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Psicologia: ciência e profissão

versión impresa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.22 n.1 Brasília mar. 2002

 

ARTIGOS

 

Simples como uma torradeira: um estudo sobre o computador no cotidiano da nova geração

 

 

Raphael Zaremba*, I; Daniela Romão-Dias**; Ana Maria Nicolaci-da-Costa***, I

I Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o objetivo de investigar a forma como crianças e adolescentes lidam com a inserção do computador e da Internet em seus cotidianos, foi realizado um estudo exploratório com sujeitos de ambos os sexos, na faixa etária de 10 a 15 anos. Para a coleta de dados foi utilizado um questionário composto de perguntas abertas enviado por e-mail. Ao material coletado foi dado um tratamento qualitativo, através das técnicas de análise de discurso. Como principais resultados, destacaram-se a naturalidade com que crianças e adolescentes lidam com o computador, a importância que este desempenha em suas vidas escolares, o prazer presente na sua interação com a máquina e, principalmente, a aversão que eles têm a escrever à mão em oposição ao grande gosto que sentem por teclar.

Palavras-chave: Crianças, Computador, Escola, Escrever x teclar.


ABSTRACT

The aim of this study was to investigate how children and teenagers deal with the ever-growing presence of computers and the Internet in their everyday lives. With this purpose, 10 to 15 year-old male and female subjects took part in an exploratory study. In order to gather data, a questionnaire composed of discursive questions was sent to them by e-mail. The information collected was analyzed in a qualitative manner using speech analysis techniques. Among the major results, the following are worth mentioning: the simple way that children and teenagers deal with the computer, the important role it plays in their school lives, the pleasure they derive from their interaction with the machine, and, especially, the aversion they have towards writing in opposition to the great fun they feel when typing.

Keywords: Children, Computer, School, Writing x typing.


 

 

Entre as diversas revoluções tecnológicas vividas pela humanidade ao longo dos anos, a Revolução Industrial, ocorrida no final do século XVIII, é, até os dias de hoje, considerada uma das mais significativas. Autores das mais diferentes áreas dedicaram-se a estudar os efeitos que essa revolução teve sobre a sociedade da época (cf. Diebold, 1969; Dunlop, 1962; Hobsbawn, 1979; e Mantoux, 1988, por exemplo). Apesar da variedade de visões apresentadas, todas chegam à mesma conclusão: a vida das pessoas jamais poderia ser a mesma depois de James Watt ter inventado a máquina a vapor.

É até certo ponto surpreendente imaginar a profundidade das mudanças trazidas por uma “simples” inovação tecnológica. Como nos diz John Diebold:

“Ninguém, muito menos (…) James Watt, acreditou que ele estava transformando a civilização em si. Contudo, olhando para trás, poderíamos dizer que isto é precisamente o que torna revolucionárias suas invenções.” (Diebold, 1969, p. 3-4 – nossa tradução)

Todavia, grandes transformações são geralmente acompanhadas de muitos temores e ondas de nostalgia. Como demonstra Nisbet (1966), o medo do novo aparece nas previsões pessimistas, ou até mesmo catastróficas, de vários autores que estudam momentos de mudanças significativas como a Revolução Industrial no século XIX ou a contemporânea Revolução Digital (sobre visões pessimistas acerca da época atual, ver, entre outros, Baudrillard, 1997 e Joy, 2000).

Cremos não haver dúvidas de que estamos vivendo um novo momento de profundas mudanças. Na década de 1990, uma tecnologia, já com algum tempo de vida no exterior, entrou definitivamente nos lares da classe média brasileira: o computador pessoal. E, a partir de 1995, popularizou-se no Brasil o uso da Internet, a rede mundial de computadores que é considerada por muitos uma fonte de transformações subjetivas talvez tão revolucionária quanto a máquina a vapor (ver Lévy, 1998; Negroponte, 1995; Nicolaci-da-Costa, 1998; Turkle, 1997, entre outros). Esse foi o motivo que levou Nicolaci-da-Costa e seus colaboradores a investigar o modo pelo qual o computador, agora “aliado” à Internet, está alterando a vida de seus usuários brasileiros (ver Nicolaci-da-Costa, 1996, 1998, 1998a e 1999; ver também Porto, 1999).

A partir desses estudos, uma nova questão surgiu: como ficam as crianças nesse contexto de mudança, já que lidam, desde muito cedo, com o computador e com a Internet? É necessária tanta preocupação por parte de pais e estudiosos em relação a uma “prejudicial” e “excessiva” interação das crianças com o computador? Palavras como as de Robert Bly certamente assustam:

“A tecnologia destruiu inter-relações na comunidade humana que levaram séculos para ser desenvolvidas... Nós estamos nos afogando em incontroláveis dilúvios de informação. Estamos vivendo entre adolescentes desanimados e atormentados, que não conseguem encontrar qualquer esperança.” (Bly, 1996, p. 169 – nossa tradução)

Há, entretanto, autores mais otimistas que destacam a importância dessas tecnologias no cotidiano das crianças. Dan Tapscott afirma que “as crianças estão bem. Elas estão aprendendo, desenvolvendo-se e prosperando no mundo digital” (Tapscott, 1998, p. 7 – nossa tradução). Sobre a intimidade das crianças com a tecnologia, Idit Harel sugere uma metáfora:

“Para as crianças, é como usar um lápis. Pais não falam sobre lápis, eles falam sobre escrever. E crianças não falam de tecnologia - elas falam sobre brincar, construir um website, escrever para um amigo, sobre a floresta tropical.” (Harel, 1991, p. 150-1 – nossa tradução)

Tendemos a concordar com a visão desses últimos autores. Foi nesse espírito que realizamos uma pesquisa sobre a forma com que crianças e adolescentes brasileiros estão lidando com a inserção do computador e da Internet em suas vidas. Os resultados apresentados a seguir são uma seleção daqueles que consideramos mais relevantes.

 

Metodologia

Sujeitos

Foram recrutados usuários da Internet, brasileiros, na faixa etária de 10 a 15 anos. Não nos foi possível delimitar, de antemão, dados como o sexo e a localização geográfica dos sujeitos, haja vista que lançamos mão de questionários enviados por e-mail como forma de coletar material. Quando utilizamos o e-mail como ferramenta de coleta de dados, lidamos com o fato de que, muitas vezes, temos pouco acesso prévio a dados de identificação que vão além dos endereços eletrônicos. Para ter alguma garantia de que somente crianças e adolescentes responderiam, fizemos uma introdução para o nosso questionário, pedindo que somente o respondessem aqueles que tivessem entre 10 e 15 anos. Entretanto, nos dados de identificação fizemos, entre outras, perguntas sobre localização geográfica, sexo, série escolar e tempo de acesso à Internet.1

Procedimentos

Primeiramente foi elaborado um roteiro, semi-estruturado,2 que serviu de base para a realização de uma entrevista piloto, gravada em ambiente informal.3 Após a transcrição e análise da entrevista, o roteiro inicial foi transformado em um questionário composto de perguntas abertas – estas tendo sido formuladas com base nos tópicos da entrevista que se mostraram mais relevantes. Os questionários foram enviados para os sujeitos por e-mail.

Foram enviados, no total, 90 questionários, para os quais recebemos 30 respostas.

 

Análise dos dados

Foi realizado um estudo qualitativo do material, utilizando o método da análise de discurso (ver Nicolaci-da-Costa, 1989, 1989a e 1994) a partir das categorias reincidentes nas respostas dadas pelos sujeitos.

Essa análise constou de duas etapas distintas: análises inter e intra-sujeitos. Na primeira, foram analisadas todas as respostas que todos os sujeitos deram para cada questão. Esse momento da análise visou a esboçar um quadro geral dos resultados.

Posteriormente, na análise intra-sujeitos, foi feita uma comparação entre as respostas dadas pelo mesmo sujeito para questões diferentes – procedimento que torna possível detectar quaisquer inconsistências ou contradições existentes no discurso dos sujeitos.

Terminadas essas duas etapas, nos deparamos com ricos e surpreendentes resultados.

 

Resultados

Em primeiro lugar, chamou-nos a atenção o cotidiano de “mini-executivos” vivido pelas crianças e adolescentes dos dias de hoje. Foi possível constatar que essa geração tem seu dia-a-dia repleto de atividades programadas. Mesmo o tempo dedicado ao lazer atende a uma “agenda”.

Entre os diversos afazeres cotidianos, o mais mencionado foi a ida à escola – o que não chega a constituir uma surpresa. A grande maioria dos sujeitos destacou-a como a principal tarefa a ser cumprida no seu dia-a-dia:4

“estudo de manhã faço cursos tipo aulas de ingles tennis computação e volei a tarde , vejo tv e estudo a tarde e de noite e durmo as 10” (sexo feminino, 11 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 6 anos).

“Vou pro colégio, depois vou pro espanhol, ingles ou natação (depende do dia) , faço dever de casa, estudo (quando tem prova), e depois vou dormir” (sexo feminino, 13 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 8 anos).

Além das tarefas supra citadas, alguns sujeitos mencionaram, antes mesmo que lhes perguntássemos, o uso do computador como parte integrante de seu cotidiano. Isso faz pensar em como o computador está, de fato e cada vez mais, fazendo parte das atividades diárias das crianças:

“Bem, durante a semana letiva (2ª a 6ª feira) eu frequento a escola, ultilizo o computador, ás vezes ao shopping. E no fim de semana geralmente estudo e ultilizo o computador” (sexo masculino, 15 anos, Brasília (DF), usa computador desde os 11 anos).

Um fato curioso no que concerne o uso do computador diz respeito à relação de lazer e afetividade que as crianças estabelecem com ele:

“[uso o computador para] Fazer trabalhos, lazer... TUDO!! fazer mp3, jogar, ir na internet... me divertir!” (sexo feminino, 13 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 8 anos).

Alguns chegam, inclusive, a tratá-lo como se fosse um ser humano:

“Bom, o computador é a minha “salvação”, nele eu me divirto, pesquiso, estudo... o computador é a minha enciclopédia, pesquiso tudo nele, faço todos os trabalhos possiveis no microsoft word, enfim é um “amigão”” (sexo feminino, 11 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 7 anos).

Como é possível notar no trecho acima, o prazer envolvido no uso que as crianças e adolescentes fazem do computador acaba influenciando a forma de lidarem com tarefas escolares tradicionalmente consideradas “chatas”:

“Ele [o computador] é muito emportante sem eles eu não podia faser as pesquisas que eu fiz no computador. Bater texto para a escola, o computador me ajuda muito na escola” (sexo masculino, 13 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 9 anos).

“[o computador me ajuda] com trabalhos, qualquer pesquisa que eu precise, vupp.. já to nele!! (...) A facilidade de encontrar as coisas que preciso.. antes que ficava que enm uma maluco, folheando livros, revistas, jornais, agora nào. e só estalar os dedos, ligar o comp. e mão a obra!!” (sexo feminino, 13 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 8 anos).

Um aspecto curioso chama a atenção nas respostas de nossos sujeitos: muitos deles demonstraram não conseguir separar a Internet e o computador. Para eles, computador e Internet são praticamente sinônimos, como se pode observar nas passagens abaixo:

“ELE [computador] ME SERVE PARA ME COMUNICAR COM AS PESSOAS DO BRASIL” (sexo feminino, 14 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 8 anos).

“Uso [o computador] para todo tipo de tarefa, inclusive para bater papo entre amigos e ainda uso a Undernet” (sexo masculino, 15 anos, São Paulo, usa computador desde os 11 anos).

“Eu uso o computador para fazer pesquisas, conversar, fazer downloads, entre outros. E uso o computador para fazer trabalhos, como já tinha dito” (sexo feminino, 13 anos, Mato Grosso, usa computador desde os 7 anos).

Resumindo, nossos jovens sujeitos atribuem ao computador características específicas da Rede, como, por exemplo, a de ser um meio de comunicação. Quando nos dizem que o computador “me serve para me comunicar com as pessoas do Brasil”, estão claramente fundindo as funções. Esse resultado merece destaque e a ele voltaremos mais detidamente na discussão.

Chegamos agora ao resultado mais consistente da pesquisa: a diferença entre escrever e teclar.

No questionário enviado, havia uma pergunta explícita sobre os diferentes tipos de escrita: Você vê alguma diferença entre escrever à mão e digitar? Qual? Dos 30 sujeitos, apenas um respondeu negativamente.

Entre as diferenças mais citadas estão a maior velocidade e a facilidade de digitar, mencionada por quase todos:

“Digitar é mais fácil e simples do q escrever (acho que futuramente escrever será “pré-histórico”)” (sexo masculino, 15 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 12 anos).

“Pra mim escrever a mão é muito cansativo, até porque a minha letra é muito desenhada; por isso eu prefiro 1000 vezes digitar, eu digito num minuto e escrevo em tres minutos, ja é alguma coisa, não acha?” (sexo feminino, 11 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 7 anos).

“[digitar é diferente de escrever porque] primeiro, tenho uma letra feia e segundo, digitar é prático e rápido paca... Estou respondendo essa questão faz 26 segundos e demoraria uns 40 pra escrever com uma caneta (quase aposentada)” (sexo masculino, 11 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 8 anos).

Outro aspecto ressaltado por boa parte dos sujeitos relaciona-se com a estética, já mencionada acima:

“Vejo [diferença entre escrever e digitar], pois digitar é mais fácil, mais rápido e deixa o trabalho com uma ‘cara’ melhor” (sexo masculino, 15 anos, Brasília (DF), usa computador desde os 12 anos).

Consideramos, contudo, que a diferença mais importante apontada por essas crianças e adolescentes é a de que teclar poder ser divertido:5

“escrever a mão agente cança muito e a letra as vezes sai feia e escrevendo no computador não a letra sai sempre bonita e agente não cança e eu particulamente acho muito mais divertido” (sexo feminino, 11 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 6 anos).

“Eu naum gosto de escrever, porem digitar é o paraíso!!!” (sexo masculino, 15 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 12 anos).

Alguns de nossos sujeitos revelam, ainda, estar utilizando o teclado para se comunicar com outras pessoas:

“Agora estou começando a conversar com meus amigos por e-mail” (sexo masculino, 13 anos, Rio de Janeiro, usa computador desde os 9 anos).

“Uso [o computador] na escola e para me comunicar com outras pessoas” (sexo masculino, 14 anos, São Paulo, usa o computador desde os 11 anos).

“Eu uso [o computador] para ficar em contato com amigos e família no Brasil, fazer dever ou pegar ajuda na Internet ou Encarta, eu faço amigos nos chats, etc...” (sexo feminino, 12 anos, Nova Iorque, usa o computador desde os 9 anos).

Tendo em mente os resultados apresentados acima, passemos para a discussão, na qual privilegiaremos a questão do teclar versus escrever à mão.

 

Discussão

As crianças e adolescentes do nosso estudo demonstraram grande facilidade ao lidar com o computador e com a Internet. Isso talvez ocorra por conta de terem tido contato, desde muito cedo, com a tecnologia digital. Consideramos ser esse um ponto importante por pensarmos que, para essas crianças, que começaram a usar computadores muitas vezes com apenas cinco anos de idade, as novas tecnologias, como aponta Dan Tapscott (1998), passam a ser tratadas como algo “natural”. Computadores não as assustam, como acontece com pessoas não tão mais velhas assim.

Não só os computadores são “naturais”. Nossos sujeitos encaram a Rede com bastante desenvoltura. Porque a Internet no Brasil só passou a ser largamente difundida em 1995,6 talvez esperássemos que nossos sujeitos relatassem, senão um impacto, ao menos algumas diferenciações entre o pré e o pós Internet.

A Rede pode ser, para eles, muito “legal”, “irada” ou “viciante”, mas o “impacto” que esperávamos, as reações frente ao “novo” foram quase que “blasés”! Para nossos sujeitos, a Internet agora é parte quase que inseparável do computador. Quando nos relatam seu uso diário do computador, incluem-na automaticamente. Computador sem a Rede parece ser, para eles, uma possibilidade bastante remota, ou, quem sabe, inexistente.

Em muitas de suas respostas, nossas crianças e adolescentes mencionaram as facilidades que a Internet e o computador trazem para a vida escolar. Tudo parece ter ficado mais fácil, desde as pesquisas por WWW, passando pela diversão de digitar e chegando às notas, que melhoraram. Mas, certamente, um aspecto não passa despercebido nos depoimentos reproduzidos acima: a gramática e a ortografia dessas crianças deixam muito a desejar. Esse talvez seja um aspecto bastante negativo do uso da Rede. Nesta, tudo acontece rápido demais. Não há tempo para acentuar, abreviações são necessárias e a impressão que se tem é que a língua que eles falam não é o Português dos livros de gramática. Tal questão foi abordada por Nicolaci-da-Costa:

“A língua usada para falar na Rede não é o português tal como o conhecemos fora dela. É mais uma língua híbrida, cuja forma de expressão é predominantemente escrita, que tem como base o português (...), mas com alta incidência de vocábulos ingleses não traduzidos (...) e outros tantos neologismos.” (Nicolaci-da-Costa, 1998, p. 159)

“Palavras acentuadas se misturam com uma total ausência de acentuação, o que certamente acrescenta rapidez à digitação não especializada e faz com que ‘então’ vire ‘entaum’ e ‘alô’ vire ‘alou’. Por conta da rapidez usa-se apenas a inicial de algumas palavras e a grafia de outras é alterada: ‘que ’ vira ‘q’, ‘aqui’ se transforma em ‘aki’, ‘você’ se transforma em ‘ce’ ou em ‘vc’” (Nicolaci-da-Costa, 1998, p. 167)

Como a autora coloca, a língua usada na Rede não parece mesmo ser o Português. Acrescenta-se a isso o fato de que alguns dizem detestar escrever, mas gostar muito de teclar! Talvez as aulas de Português, assim como várias outras, estejam ficando lentas demais, enfadonhas demais para uma geração que aprende brincando.

Retornamos, assim, ao principal resultado da pesquisa: Teclar nada tem a ver com escrever. A diferença entre escrever e teclar nos chamou a atenção já no início de nosso estudo, na ocasião em que realizamos uma entrevista piloto com um menino de 12 anos. Falando sobre o papel que o computador desempenha em sua vida escolar, nosso sujeito relatou nunca ter feito um trabalho sem usar o computador. Ao insistirmos e perguntarmos se ele já havia feito algum trabalho à mão, o menino respondeu com simplicidade: “Não”.

Mais adiante na entrevista, quando indagado sobre as matérias escolares de que mais gostava, nosso sujeito deixou clara sua total “aversão” às aulas de Português e Redação:

“Português, eu odeio Português (...) Redação eu não gosto (...) A professora pede geralmente coisas que eu não gosto. A professora às vezes ensina coisas assim, eu não sei por que, eu não gosto, tenho um bloqueio com Português, sempre tirei nota ruim em Português”.

Apesar de dizer que não gostava de escrever, quando lhe perguntamos se escrevia e-mails e se gostava de escrever na Rede, a resposta foi surpreendente: “Escrevo. Gosto. Aí eu gosto, eu gosto de teclar, aí eu gosto”. Além disso, em outro momento ele revelou que escrevia de 15 a 20 e-mails por dia! Tal colocação parece deixar claro que, para o nosso sujeito, escrever e teclar são coisas bastante distintas. Mas qual pode ser a diferença?

Para essas crianças e adolescentes, escrever à mão é algo “chato”, muitas vezes associado a tarefas escolares que consideram entediantes. Além disso, também ficou claro o quanto consideram mais fácil, rápido e esteticamente melhor teclar do que escrever.

Entretanto, não parece ser nenhum desses o aspecto mais “cativante” do teclar. A possibilidade de estar em contato com outras pessoas, de se comunicar, parece ter tornado o teclar algo muito diferente do antigo datilografar. Isso seria suficiente para explicar por que é mais divertido mandar um e-mail do que escrever uma redação. Entretanto, por que é mais divertido simplesmente digitar um trabalho escolar do que escrevê-lo à mão?

Neste ponto retornamos à fusão da Internet com o computador assinalada na seção anterior. Para essas crianças, não somente a Internet é interativa. Elas também se sentem interagindo com o computador. Não é por acaso que ele foi definido por um de nossos sujeitos como “um amigão”.

Na realidade, essa sensação que os usuários (inclusive usuários bem mais velhos) têm de que estão interagindo com suas máquinas foi detalhadamente descrita por Nicolaci-da-Costa (1998), que conclui:

“(...) dadas as múltiplas funções que um computador contemporâneo pode exercer, são inúmeras as áreas da nossa experiência em que ele pode se tornar um companheiro confiável e quase imprescindível”. (Nicolaci-da-Costa, 1998, p. 59)

Talvez esse caráter interativo seja um dos principais responsáveis pelo sentimento que a maior parte dos sujeitos relacionou ao teclar: prazer. Escrever, quando é no computador e não à mão, parece tornar-se algo divertido. Outra razão para isso ocorrer pode estar no fato de que, para eles, teclar lembra uma brincadeira ou um jogo de videogame. A partir disso, mesmo uma tarefa inicialmente vista como entediante pode tornar-se algo lúdico. Como escreveu Tapscott “por mais chocante que possa parecer, de muitas maneiras, um computador é um brinquedo de U$ 3.000” (Tapscott, 1998, p. 159 – nossa tradução).

Como pôde ser observado, obtivemos resultados diversos, que nos possibilitaram interpretações também diversas neste estudo. Aspectos curiosos do cotidiano dos sujeitos, falas particulares e até confusas - que ferem os olhos mais sensíveis a erros gramaticais -, facilidade e, por que não dizer, intimidade com o computador. Esses foram alguns dos temas que mereceram destaque. Soma-se a eles nosso resultado mais relevante, que diz respeito à diferença entre teclar e escrever à mão. Diferença essa que, como vimos, envolve uma série de fatores, desde o simples apelo estético até o prazer e a comunicação (com as pessoas e com o próprio computador) que estão por trás do ato de teclar. E isso pode ter sérias implicações.

Poderíamos afirmar que nossos sujeitos preferem mandar um e-mail a escrever uma redação para a escola. Essa questão, por sua vez, traz à tona uma discussão importante: não seria a hora de nosso sistema educacional começar a acompanhar as inovações tecnológicas? Várias escolas particulares do Rio de Janeiro já incluem em seus programas aulas de informática, mas isso não parece ser suficiente para estimular os alunos à criatividade e ao prazer pelo estudo. Quantos já pensaram em, ao invés de solicitar ao aluno que escreva a tradicional redação sobre suas férias, ou ensinar como se redige uma carta, pedir a ele que envie um e-mail para seu colega ou para o autor de um livro enviando seus comentários?

Pensamos que esse é um momento especial, em que revisões nos âmbitos psicológicos e educacionais se fazem necessárias a fim de melhor compreendermos e lidarmos com os conceitos e valores que as novas tecnologias trazem para nossas vidas.

Finalmente, ressaltamos que muito mais poderia ser dito sobre essa nova forma de ser criança, sobre essa nova interatividade que está surgindo, onde a máquina ganha estatuto de “amigão”, conforme disse um de nossos sujeitos. Cremos ter destacado o que de mais relevante surgiu em nosso estudo. Entretanto, como mencionamos anteriormente, algumas questões que emergiram nesse estudo exploratório merecem, por si só, pesquisas à parte.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Raphael Sacchi Zaremba, Daniela Romão-Dias
Ana Maria Nicolaci-da-Costa
Departamento de Psicologia
Pontifícia Universidade Católica do Rio De Janeiro
Rua Marquês de São Vicente, 255
22543-900 Rio de Janeiro-RJ

Recebido em 24/08/00
Aprovado em 20/10/01

 

 

* Psicólogo, Bacharel em Psicologia, Mestre em Psicologia Clínica e Professor do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
** Psicóloga, Bacharel em Psicologia e Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
*** Psicóloga, Ph.D. em Psicologia pela Universidade de Londres, Professora e Pesquisadora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
1 Dado que o questionário era dirigido a crianças e adolescentes, não inserimos perguntas relativas à renda familiar dos sujeitos. Entretanto, cremos ser possível inferir que, por possuírem computador em casa e conta de acesso à Internet, sejam pertencentes à classe média brasileira.
2 Este roteiro consta de duas partes: uma bem estruturada, que contém os itens de identificação do sujeito e outra pouco estruturada, em que, ao invés de perguntas prontas, há a utilização de tópicos que servem de guia para a entrevista.
3 A respeito de técnicas de entrevistas que se assemelham a conversas cotidianas, ver Labov, 1973, e Nicolaci-da-Costa, 1987.
4 Os trechos do discurso dos sujeitos que apresentamos nesta seção foram retirados das respostas dos sujeitos tal como nos foram enviados por e-mail. Portanto, erros de digitação, ortografia e gramática, bem como gírias e abreviações, foram mantidos.
5 Em busca de uma maior compreensão acerca das diferenças entre escrever e teclar, Raphael Zaremba dedicou seu Mestrado a esse tema.
6 Época em que nossos sujeitos tinham, em média, 9 anos de idade.