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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.2 Brasília June 2002

 

ARTIGOS

 

Enlaces transferenciais: reflexões sobre a clínica psicanalítica no ambulatório hospitalar1

 

 

Nadja Nara Barbosa Pinheiro*

Universidade Estácio de Sá
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar a viabilidade e adequação do método e da técnica psicanalíticos no desenvolvimento de atendimentos transcorridos em ambiente ambulatorial institucional. Através de uma ilustração clínica, o autor problematiza o trabalho psicanalítico a partir dos vínculos transferenciais implicados nos processos: transferência com o analista/transferência com a instituição.

Palavras-chave: Transferência, Clínica psicanalítica, Psicanálise no ambulatório.


ABSTRACT

This article intends to present the viability and corretiviness of psychoanalytical method and technic into treatments which are developed into institucional context. Through a clinical ilustration, the author discusses psychoanalytical work from transferencial links which are envolved into clinical process: transference to psychoanalist and transference to institution.

Keywords: Transference, Psychoanalitical clinic, Psychoanalysis into institution.


 

 

O trabalho psicanalítico desenvolvido em ambulatórios institucionais tem sido, nas últimas décadas, objeto de crescente interesse e estudo. Tal interesse deve-se, sobretudo, ao fato de a clínica psicanalítica ter ganhado terreno para além dos consultórios particulares e ter-se instalado em diversos serviços ambulatoriais nas redes pública e particular de saúde. Atualmente, é grande o número desses espaços no interior dos quais processos psicanalíticos são desenvolvidos, atendendo a uma demanda que de outra forma não teria a possibilidade de se beneficiar desse método clínico especifico.

No entanto, a utilização da psicanálise longe de seu setting tradicional suscitou inúmeras dúvidas, levando à necessidade de promoção de novos questionamentos e análises no sentido de se formular premissas teóricas sólidas que sustentassem a real viabilidade desse tipo de atendimento, que se diferencia daqueles que tradicionalmente configuram o universo psicanalítico dos consultórios particulares. Em que pese as inúmeras distinções, a maioria desses estudos, em concordância à nossa própria experiência clínica, atesta a viabilidade desses atendimentos. Ainda que seja necessário frisar e observar que diferentes contextos engendram diferentes formas de atuação e de inserção transferencial, acredito que a psicanálise possa ser utilizada nos ambulatórios sem perder sua especificidade, fundamentalmente se a tomarmos por sua vertente ética, ou seja, como um trabalho que, indo além do alívio sintomático, refere-se à construção de uma verdade singular sobre o sujeito e o desejo do inconsciente de cada paciente.

O presente artigo se situa justamente nessa interface. Seu objetivo será o de, através da apresentação de um caso clínico desenvolvido no âmbito de um ambulatório institucional, refletir sobre a viabilidade clínica e a adequação da utilização do aparato técnico/teórico da psicanálise nesse tipo de contexto específico. Para tal, focalizarei mais de perto os movimentos transferenciais diretamente implicados no desenvolver desse caso clínico, justamente por entender que a transferência, sendo um dos pilares estruturadores do processo terapêutico e veículo através do qual esse processo encontra possibilidades de realização, se apresenta como elemento privilegiado para a compreensão do trabalho que estamos realizando.Iniciarei, portanto, através de uma breve discussão sobre o conceito de transferência na obra freudiana procurando delinear sua compreensão. Essa conceituação nos servirá de suporte para entendermos a proposta de manejo transferencial apresentada a seguir. Em continuação, a exemplificação clínica nos permitirá ilustrar como tais concepções encontram aplicabilidade prática. Ao final, tecerei algumas considerações teóricas a respeito dos vínculos transferenciais implicados nos processos psicanalíticos ambulatoriais: transferência com o analista e transferência com a instituição.

 

Sobre a Transferência: Algumas Considerações...

Segundo Miller (1986), sempre que desejarmos promover uma análise sobre o conceito de transferência na obra freudiana, devemos tomar como centrais as relações estabelecidas entre esta e três outros conceitos estreitamente correlacionados:

o conceito de resistência: posto que em sua dupla função, a transferência indica que, por um lado, os complexos inconscientes foram atingidos, e, por outro, que os mecanismos psíquicos contrários à manifestação dos elementos inconscientes foram ativados;

o conceito de repetição: a qual permite, enquanto transferência, a atualização da realidade do inconsciente no interior das sessões clínicas, tornando possível, com isso, a re-significação do conflito neurótico;

o conceito de sugestão: na medida em que se encontra no fator sugestivo contido na transferência, a possibilidade de o analista exercer uma influência sobre o paciente que o leva à mudança psíquica.

A tematização freudiana sobre o conceito de transferência aparece intrinsecamente relacionada à formulação do conceito de resistência. Muito cedo em sua clínica, Freud (1893/95), ao abandonar a hipnose como técnica investigativa, se deparou com uma força psíquica que se opunha aos esforços do tratamento que visavam a resgatar as lembranças patogênicas. Tal força impedia que essas lembranças alcançassem a consciência normal e participassem do fluxo associativo que organizava as representações cotidianas de suas pacientes. Entre as inúmeras formas encontradas pelo aparelho psíquico para manter ativa essa força psíquica contrária ao progresso rememorativo, Freud (1895) destaca que, durante o processo terapêutico, os pacientes são capazes de atualizar uma cena do passado como se ela fosse atual, transportando-a para a figura do médico. Tomando o médico como ponto central, o aparelho psíquico alcança, através dessa falsa ligação, seu objetivo principal: interromper o fluxo associativo e o conseqüente resgate da lembrança afetiva dolorosa.

O primeiro exemplo desse fenômeno clínico que o autor nos oferece refere-se a uma jovem paciente que em vez de recordar seu desejo de beijar um homem importante de seu passado, transfere esse desejo para o próprio Freud (1895).É interessante observar que essa ilustração freudiana nos permite visualizar que tal procedimento, ao mesmo tempo em que foi capaz de estancar as associações verbais da paciente, também permitiu a expressão de um desejo inconsciente que, através desse movimento, pôde se apoderar de uma representação consciente e encontrar uma forma sutil de se expressar. Além disso, tal situação permite a visualização de um processo no qual passado e presente se confundem, fazem parte de uma mesma cena montada para obstruir tanto o progresso do trabalho terapêutico quanto o afloramento de materiais do inconsciente. Repetição de um passado/presente, atuação no lugar da recordação.

Na verdade, aquilo que essa situação nos apresenta é a função dupla existente na dinâmica da transferência. Delineando a dupla face transferencial, esta apresenta, ao lado da resistência, a possibilidade de mudança: é na medida em que o conflito psíquico se atualiza, entra em cena, ganha dimensão, que ele poderá ser clinicamente trabalhado. Assim,nesse momento específico de sua obra, Freud destacava, com propriedade, a importância clínica da fantasia, dos disfarces do desejo que se fazem presentes nas sessões, permitindo que o analista seja tomado como restos diurnos, significantes desprovidos em si de sentido próprio, abrindo as múltiplas possibilidades para que novos sentidos e novas configurações se estabeleçam (Miller,1986).

A rigor, é essa possibilidade de fazer emergir o desejo inconsciente aquilo que torna a transferência o pilar estruturador do processo clínico. Para Freud (1912), o aparente paradoxo transferencial (resistência e veículo da cura) pode ser melhor compreendido na medida em que entendamos a dinâmica psíquica como um todo: na concepção freudiana, há uma disposição para a transferência na economia libidinal do paciente. Durante o processo de desenvolvimento libidinal, no caminho à procura de satisfação pulsional, uma parcela dos elementos libidinais do sujeito se desenvolve e é incorporada à personalidade consciente, e outra parcela sofre interrupções e permanece inconsciente, dissociada da personalidade, ressurgindo sob a forma de fantasia. A cada nova relação empreendida pelo sujeito deve-se levar em conta essas duas dimensões (cs e ics) que determinam a forma de cada um se relacionar e de agir em situações, aparentemente novas, pois, na verdade, estarão repetindo esses “clichês psíquicos” formados ao longo da história individual.

Durante o processo terapêutico, no momento em que o analista rastreia a libido introvertida para poder torná-la útil à consciência, ele se depara com forças psíquicas (resistências) que tentam obstruir o progresso e o avanço da análise. Nesse processo, a cada nova tentativa de progresso impetrada pelo analista a resistência lança mão de mecanismos cada vez mais regressivos, que buscam a satisfação pulsional no campo transferencial, evitando a restauração pela simbolização. Nesse sentido, o amor de transferência permite ao analista se desfazer dos aspectos transferenciais negativos demais e eróticos demais e se “aproveitar” dos laços afetivos passíveis de manter o paciente investido e interessado no progresso de seu tratamento (Freud, 1912). É nesse sentido que o analista se utiliza da sugestão para propiciar a instauração dos fenômenos transferenciais, assim como para permitir a identificação da dialética da transferência/resistência, a qual, por um lado, se aferra à doença, opondo-se à recuperação, e que, ao mesmo tempo, se constitui como aquilo que permite o entendimento da forma pela qual o paciente vem se comportando em sua vida (Freud, 1905[1904]).

Circunscrever os domínios nos quais os movimentos transferenciais fazem sua inscrição no desenvolvimento dos atendimentos psicanalíticos pode levar, inadvertidamente, à promoção de uma confusão entre os conceitos de transferência e repetição. Porém, uma leitura mais atenta ao texto freudiano nos indica que, embora sejam intrinsicamente relacionados, não devemos tomá-los como sinônimos. A transferência, nos diz Freud (1914), é “apenas um fragmento da repetição”, ou seja, tem algo do repetir, mas não o recobre totalmente. O que se pode observar é que, em oposição à rememoração, a repetição de formas arcaicas de obter a satisfação pulsional se apresenta de forma incansável, compulsiva, através dos movimentos transferenciais cada vez mais freqüentes e intensos no processo analítico. Caracteristicamente, a neurose de transferência demonstra, com todo seu vigor e potência, a formação de um compromisso entre as exigências contrárias, impostas pelo trabalho de análise, e as resistências psíquicas que contra ele se insurgem. Sendo nesse jogo intenso e vibrante, disputado por diversas forças psíquicas, que a luta terapêutica encontra a sua arena própria, na qual poderá ser travada, podemos dizer que é nesse campo transferencial que a neurose poderá ganhar novos sentidos e configurações.

Com isso, podemos perceber toda a importância e a delicadeza inerentes ao trabalho do analista, pois o manejo da transferência define, na experiência clínica, a possibilidade de fazer com que a repetição encontre caminho para a recordação e a conseqüente simbolização. Acredito que a forma através da qual o analista promoverá esse manejo transferencial se relaciona com sua concepção sobre o trabalho psicanalítico como um todo.Nesse sentido, creio que uma pista que podemos tomar como indicativa do modo através do qual podemos conduzir nosso trabalho seja a de tomarmos a concepção freudiana sobre a dinâmica do inconsciente para, a partir daí, propormos uma distinção entre trabalhar a transferência e trabalhar em transferência.

Segundo Freud, “o inconsciente não oferece resistência alguma aos esforços do tratamento. Na verdade, ele próprio não se esforça por outra coisa que não irromper através da pressão que sobre ele pesa e abrir caminho à consciência ou a uma descarga por meio de alguma ação real” (Freud, 1920, p.31). Assim, uma vez estando a transferência a serviço da resistência, e esta última, possuindo sua origem nos mesmos estratos mais elevados da mente que originalmente provocaram o recalcamento, se o analista explicitar racionalmente os movimentos transferenciais, ele também estará agindo no mesmo nível psíquico no qual se situa a transferência/resistência. Nesse caso, seu agir reforçaria a resistência e não promoveria a sua superação, fechando as possíveis emergências de material inconsciente que poderiam advir. E, se aquilo a que o trabalho psicanalítico aspira é justamente que o sujeito do inconsciente encontre uma forma de se expressar, para além das manifestações transferenciais, o analista deve trabalhar em transferência, ou seja, deixando-se levar para lugares definidos pelos movimentos transferenciais inconscientes do paciente e trabalhar a partir daí no sentido de permitir que o próprio paciente aflore em sua verdade e o conflito psíquico possa ser elaborado. Agindo dessa maneira, acredito, o trabalho analítico poderá ser direcionado no sentido de assegurar a singularidade e a verdade de cada paciente. Procurarei, a seguir, ilustrar como tal procedimento pode ser conduzido utilizando para tal do atendimento de uma paciente histérica que tive a oportunidade de desenvolver no âmbito ambulatorial.

 

Ilustração Clínica: a Moça de Salvador...

Recebi para atendimento uma paciente que havia sido indicada para o serviço de psicoterapia do hospital por queixar-se de profunda tristeza e depressão. Segundo a própria paciente, tais sentimentos tiveram inicio a partir do seu convívio cotidiano com o processo de doença e morte de sua patroa, com quem conviveu por aproximadamente 35 anos.A paciente declarou que, após o falecimento de sua patroa, sente-se como que prisioneira dessas cenas tristes de morte e doença, acrescentando que ainda sente como se a patroa estivesse presente em casa e pudesse vir a assombrá-la a qualquer momento do dia ou da noite.

Desde o início desse atendimento procurei ficar atenta aos movimentos transferenciais que, acreditava, apareceriam como forte resistência ao processo terapêutico. Expectativa confirmada através de sua maneira extremamente cerimoniosa de falar comigo em suas primeiras entrevistas. Seu discurso apresentava-se entrecortado por pausas e silêncios longos, sua postura na cadeira era rígida e sua dificuldade em falar de si era grande.Inicialmente procurei driblar esse primeiro sinal de resistência transferencial recebendo-a de uma forma bastante acolhedora e amável, deixando-a à vontade para interromper as sessões quando ela desejasse, até o momento em que, sentindo-se mais segura, ela pudesse começar a se expor.

De toda maneira, seu posicionamento suscitou em mim inúmeras questões: porque tanto medo de falar de si?; porque me chamava de senhora e doutora mesmo sendo bem mais velha do que eu?; porque procurava tão ansiosamente me agradar? Algumas respostas a essas questões foram ficando mais claras a partir do relato de sua vida, o qual apresento a seguir, resumidamente: ela viveu até os 9 anos de idade em uma pequena cidade do interior da Bahia, com seu círculo familiar primário. Logo após a morte de seu pai, foi levada para a capital por uma senhora de classe média alta, que prometera à mãe da paciente tratá-la como filha, educando-a e dando-lhe uma vida melhor. Porém, ao chegar à cidade grande, a paciente começou a perceber que a promessa feita não seria cumprida. Na verdade, tornou-se empregada doméstica sem direito a estudos e nem a uma vida “de filha”. As primeiras atitudes dessa senhora foram separá-la de suas roupas (feitas pela mãe da paciente) e cortar-lhe o cabelo, sem pedir sua permissão. Destituindo a paciente desde o início de sua identidade, abriu a questão sempre presente em seu discurso: “o que ela queria de mim?, quem sou eu ? quem vai decidir minha vida a partir d’agora?”

Prosseguindo seu relato, a paciente diz que, nesses primeiros tempos de cidade grande, dormia em um quarto no sótão, que era trancado à chave durante a noite e reaberto na manhã seguinte. Lugar “escuro e triste,” onde a paciente “só fazia chorar e ter medo”. Medo por estar só, sem seus parentes, seus pertences, sem entender o que realmente queriam dela. A partir daí, estabeleceu-se uma relação de desigualdade e desconfiança em sua vida. Despojada de sua identidade, a paciente cresceu “isolada” e “trancada” em seus pensamentos, encontrando grandes dificuldades em se “desligar” dessa figura senhoril que controlava sua vida de maneira totalitária, fechando-lhe a possibilidade de criar vínculos afetivos fora desse círculo familiar secundário que não lhe pertencia de fato. A paciente passou, então, sua infância, adolescência e vida adulta “servindo aos outros” e nunca a si própria. Estabeleceu um romance durante 12 anos com um rapaz, mas não chega a se casar, fato marcante, pois agora me diz: “eu não tenho nada realmente meu”, “eu não tenho uma família, filhos...”

Seu relato me fez compreender que sua resistência começava pela minha pessoa: não era eu também representante de uma classe social que a havia encarcerado e despojado de sua singularidade? Não era eu também uma senhora que a acolhe em um momento difícil de sua vida oferecendo ajuda? Se anteriormente ela se questionava em relação ao que a patroa queria dela, agora a mesma pergunta se fazia em relação a mim. A paciente esperava que eu lhe indicasse o caminho a seguir, estabelecendo uma maneira cordial e distante de se posicionar na análise. Posição confortável para ela e para mim, pois apesar de sua dificuldade em falar, notei que eu me sentia bastante à vontade em atendê-la. Através da transferência, ela havia me colocado no lugar de sua antiga patroa, a quem ela deveria “obedecer e agradar sempre”. Lugar agradável, é verdade, que levei um tempo para perceber que, se por um lado tornava o processo aparentemente atuante, na verdade o impedia de ser iniciado.Pela transferência a mim fora destinado o lugar daquele que detém o poder e deve decidir por ela o que fazer de sua vida. Repetição, na análise, de uma situação passada na qual, novamente, alguém de fora lhe deveria dizer o que fazer. A paciente permanecia, assim, encarcerada em seu silêncio.

Mas, se pela transferência a paciente resistia, pela transferência o processo clínico poderia ser iniciado.Assim, dirigi meu trabalho orientando-o para essa dinâmica transferencial, ouvindo suas queixas e tentando demonstrar que, nas sessões, o importante era sua palavra, aproveitando-me de cada momento que ela me permitia para deixá-la falar, sem se preocupar com o meu desejo, numa tentativa de reverter a resistência transferencial, reforçando a confiança que aos poucos ela ia depositando em mim. O estabelecimento da confiança foi se dando de forma gradual até ficar claro para mim, através do relato de um sonho, de caráter eminentemente transferencial, no qual a paciente me conta que foi ajudada a atravessar um caminho escuro e desconhecido por uma mulher que pouco falava (seria eu nas sessões?). Sonho infelizmente interrompido antes de seu término, impedindo-a de ver aonde esse caminho a levaria, já que, segundo ela, tinha certeza que chegariam em um lugar bem melhor e mais bonito do que aquele em que se encontravam.

Modificada, então, de resistência para facilitadora do processo, a transferência corria agora de outra maneira, a paciente começava a falar com desenvoltura. Falar era preciso, e falar da raiva que a aprisionava era primordial.Mas, para que isso fosse possível, novamente o manejo transferencial foi fundamental, na medida em que necessitei utilizar a confiança que a paciente havia me conferido para permitir que a raiva fluísse.Processo que se iniciou em um dia chuvoso no qual me atrasei para a sessão.E, de forma surpreendente, a paciente começou a reclamar de meu atraso, deixando a irritação aflorar sem que eu fizesse nada para impedir tal acesso. Algumas semanas depois, novamente tive problemas pessoais e não pude comparecer à sessão, deixando um recado para a paciente com um dos funcionários do ambulatório.A paciente só soube da minha ausência quando já estava na instituição.É interessante observar que na sessão seguinte fez o mesmo comigo, deixou-me esperando e telefonou deixando recado com o mesmo funcionário.Seu ato reafirmou uma grande mudança em relação à sua posição inicial dentro do processo analítico e à sua vida cotidiana também, pois por duas ocasiões, nas quais não houve expediente na instituição, a paciente me diz que tomou coragem para fazer coisas pessoais que vinha adiando há muito tempo. Ela me conta que, além de ter ido ao médico e ao dentista, ela também havia “tomado coragem” para dizer à atual patroa (filha da antiga patroa) que havia resolvido passar o Natal na casa de sua irmã em Salvador.

Retornando da viagem, a paciente me diz se sentir muito bem. Conta-me sobre um ‘trabalho’ espírita que uma moça de Salvador havia feito para que a antiga patroa “desencarnasse” e fosse embora para sempre. Acrescenta que acreditava que o trabalho estava dando certo mesmo, pois está se sentindo muito mais leve, livre e segura do que deseja para a sua própria vida. Pude perceber que o que ela me confirmava através desse relato era sua confiança em nosso ‘trabalho’ e como tal processo estava sendo importante para ela. A partir desse ponto, escuto-a falar sobre planos para o futuro, sobre viagens e passeios...

Não foi à toa, portanto, que ela tenha me presenteado com um pequeno cadeado verde dizendo que este serviria para guardar algo que eu tivesse de valioso, como, por exemplo, uma caixinha de jóias. Recebi o presente pensando o que de tão valioso havia para ser guardado. E uma vez que, se por um lado, um cadeado serve para fechar, trancar e velar por algo, por outro ele também possibilita a abertura, o destrancamento e a revelação daquilo que guarda. Ele aponta, então, para movimentos que descrevem a dinâmica consciente/inconsciente daquele que possui sua chave.Se, nesse momento da análise a paciente podia falar, pensar e decidir sobre sua própria vida, esse momento só se tornou possível através de um campo de abertura construído por todo o processo psicanalítico. Momento único e singular que realmente merecia ser guardado por sua importância e valor. Além disso, importa salientar que a paciente me informou haver comprado um cadeado para mim e outro igual para ela! (não esqueçamos que, ao ser trazida para a cidade grande, permanecia à noite, aos nove anos, trancada em um quarto cuja chave permanecia em poder de sua patroa e pseudo-protetora).

Não nos surpreende, assim, que esse fato tenha demarcado o momento na análise em que a paciente iniciou a falar predominantemente sobre si própria, seus desejos sexuais (que por tanto tempo ela acreditou estarem mortos e enterrados, mas que agora podia perceber que estavam apenas adormecidos), seu novo namorado, sua própria família, irmã, irmãos, sobrinhos, enfim, todos aqueles que poderiam ajudá-la a re-construir um mundo individual e particular no qual pudesse fazer valer e viver suas fantasias e desejos próprios. Processo que se tornou possível através de um trabalho analítico que transcorreu pautado por movimentos transferenciais decisivos e significativos que permitiram que essa paciente em particular, que iniciou o processo muda em relação a si mesma, se abrisse com alguém capaz de falar sobre seus desejos e resgatasse o seu direito de viver e decidir sobre sua própria vida. Direito esse reconquistado com minha concordância em oferecer minha pessoa (e não o meu o ser- ver Lacan,1966) como palco sobre o qual os fenômenos transferenciais pudessem se manifestar e ser encenados, sendo justamente a partir dessa encenação que o analista pode dirigir o tratamento, e não a vida,a fantasia e o desejo do paciente, manejando cuidadosamente as manifestações transferenciais.

Geralmente, nos atendimentos ambulatoriais, delimitamos um momento de término para o tratamento, em comum acordo com os pacientes, expediente que utilizamos para otimizar o serviço, objetivando atender a todos os que recorrem à sessão da psicologia. No entanto, tal manobra, evidentemente, produz efeitos marcantes na dinâmica transferencial. Assim, algumas semanas antes do prazo que havíamos delimitado para o encerramento de nosso trabalho, a paciente me comunicou que iria viajar. O que me fez pensar que talvez para não ser por mim abandonada, me abandonaria primeiro em uma tentativa de controlar, através da ação, algo que não pôde passar pelo processo de simbolização, uma vez que esse momento remete ao abandono materno que sofreu ainda criança. Situação limite entre o conforto e o desamparo, aparece, assim, ainda presente em sua vida. Podemos notar que, novamente pela transferência, outro lugar me fora reservado. Agora eu estava no lugar da mãe que a abandonara um dia, quando, após a morte do marido, impedida por questões financeiras de sustentar seus filhos, entregou a paciente para alguém que prometeu ajuda. Momento difícil, em que a paciente perde seu pai, perde seu lugar na família, perde suas referências afetivas primárias.Agora, novamente em um momento de mudança, eu lhe proponho o mesmo: o abandono.Embora encontrando enormes dificuldades na tentativa de manejar essa situação que, como todas as outras, deveria ser trabalhada transferencialmente, procurei deixar claro que o encerramento do nosso trabalho poderia ser visto como provisório, ou seja, ela poderia retornar à instituição em um outro momento e retomar seu processo psicoterápico, em grupo ou individual. Enfim, procurei deixar claro que a instituição estaria sempre presente caso ela necessitasse recorrer em busca de ajuda. Aqui entra o que me parece de fundamental importância em relação ao trabalho institucional e que se refere à transferência institucional. Acredito que esse tipo de vínculo transferencial serve como amparo tanto para pacientes quanto para os profissionais no sentido de suportar situações penosas e delicadas como a acima descrita ao apontar para os limites impostos pela própria modalidade de trabalho institucional.

O importante aqui, em minha opinião, é percebermos que, embora o desenvolvimento de processos psicanalíticos em ambiente ambulatorial imponha limites e regras próprias ao seu desenrolar, ele também nos permite destacar a multiplicidade de oportunidades que o analista possui de trabalhar em transferência de forma a assegurar a verdade e a singularidade de cada paciente. O caso clínico aqui apresentado me parece bastante ilustrativo dessa possibilidade na medida em que sublinha, particularmente, as mudanças conquistadas pela paciente ao abandonar uma posição subjetiva na qual se encontrava encarcerada e subjugada em seu silêncio para uma posição na qual pôde começar a tomar contato com seus próprios desejos.Mudança conquistada, acredito, a partir de um trabalho que se desenvolveu tomando como fundamento uma forma específica de entendimento e de manejo dos movimentos transferenciais estabelecidos.

Afinal, não foi a própria paciente quem imputou à uma moça de Salvador o mérito de tê-la livrado dos “fantasmas” que a assombravam por tanto tempo? A partir daí não poderíamos supor que, para além desse fato, ela também se referia a uma moça que salva-a-dor?

 

Considerações Finais

Minha intenção através desse pequeno artigo foi a de destacar, de forma breve, a possibilidade de se desenvolver atendimentos psicanalíticos em um ambiente institucional. Nessa descrição, procurei ressaltar que, nesse tipo de atendimento, o paciente produz dois tipos distintos de vínculos transferenciais: um que se estabelece com o analista e outro com a instituição.Ambos exercem, cada um a seu modo, efeitos sobre o tratamento, como bem pudemos observar através de nosso exemplo clínico. A transferência com o analista permite o avanço da análise, a emergência do material inconsciente, a resignificação do conflito neurótico.O processo analítico se desenrola na medida em que o analista fica atento aos lugares a ele destinados pelos movimentos transferenciais dos pacientes.Lugares, por vezes, bastante angustiantes pelo vazio que nos é imposto suportar, mas que se mostra necessário na medida em que é somente através da experiência transferencial que se torna possível fazer emergir o saber do paciente sobre si mesmo.

Por outro lado, o vínculo institucional, inicialmente bastante forte, uma vez que é para a instituição que os pacientes se dirigem buscando ajuda para seus sofrimentos, se mantém presente ao longo de todo o processo terapêutico.Em alguns momentos, tal vínculo se apresenta como um obstáculo, principalmente quando a instituição impõe regras e leis injustas, atendimentos hierarquizados, demorados, filas grandes, demoras intermináveis, enfim, toda uma série de descasos e arbitrariedades com as quais temos que aprender lidar freqüentemente quando trabalhamos em instituição. Em outros momentos, no entanto, o vínculo transferencial se mostra como aquele que dá suporte e amparo ao trabalho como um todo, fundamentalmente por seu caráter de solidez, principalmente porque a instituição oferece permanentemente ajuda, sempre que necessário, através dos médicos, exames clínicos, enfermeiros, assistentes sociais, enfim, todo um aparato técnico e humano que se apresenta como um ponto de referência para os pacientes, pois estes sabem que podem utilizar tais serviços sempre que for preciso.

É importante assinalar que o vinculo institucional produz efeitos tanto em relação à inserção do paciente na instituição quanto em relação à inserção do analista em seu ambiente de trabalho.Tal fato significa dizer que nos atendimentos ambulatoriais a dinâmica transferencial se especifica de uma forma própria, demandando do analista formas de atuação genuinamente focalizadas para esse tipo de trabalho institucional, que difere em substrato daqueles que transcorrem nos consultórios particulares. Afirmar que o trabalho psicanalítico ganha especificidades próprias a partir do contexto no qual se insere não significa desmerecê-lo. Ao contrário, significa dizer que necessitamos partir dessa diferença para delimitarmos a abrangência e os limites de nosso trabalho impedindo, assim, que nossa escuta se torne hegemônica ou etnocêntrica.Bem, mas isso já é outra história, e espero poder tratá-la, com maior propriedade, em uma próxima vez.

 

Referências bibliográficas

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Julivaldo, F. & Pinheiro, N. (1993) Observações sobre o atendimento psicoterápico ambulatorial e seus reflexos na constituição do campo transferencial, monografia de especialização, IPUB, R.J.        [ Links ]

Lacan, J. (1966) La direction de la cure et les principes de son pouvoir, in Ecrits, Paris:Seuil.        [ Links ]

Miller, J- A (1986) Percurso de Lacan: uma introdução, R.J.:Zahar.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Nadja Nara Barbosa Pinheiro
Rua Sorocaba, 264 - Botafogo
Rio de Janeiro - RJ
Tel.: +55-021-2535 2961 / (cons.) +55-021-3393-7102
E-mail: nadjanbp@hotmail.com

Recebido em 25/04/01
Aprovado 20/10/01

 

 

* Psicóloga clínica, sessão de Psicologia Clínica do HFAG (Hospital de Força Aérea do Galeão). Professora auxiliar - UNESA (Universidade Estácio de Sá - campus - Friburgo). Doutoranda em Psicologia Clínica - PUC-RIO.
1 O presente artigo baseia-se, em parte, em minha monografia de especiali-zação:Julivaldo,F.& Pinheiro,N. (1993) Observações sobre o atendimento psicoterápico ambulatorial e seus reflexos na constituição do campo transferencial.