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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.2 Brasília June 2002

 

ARTIGOS

 

Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações

 

 

Maria de Fátima Araújo*

Universidade Estadual Paulista

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, a autora revisita a história do amor, do casamento e da sexualidade buscando resgatar o processo de construção e transformação das relações amorosas da antigüidade à modernidade. Sua análise enfatiza as mudanças ocorridas no casamento moderno e as novas configurações que adquire na atualidade.

Palavras-chave: Amor, Casamento, Sexualidade, Modernidade.


ABSTRACT

In this article, the author reviews the history of love, marriage and sexuality to discuss the process of development and transformation of love relationships from ancient to modern times. The analysis highlights the changes undergone by modern marriage as well as the new forms it assumes in present times.

Keywords: Love, Marriage, Sexuality, Modernity.


 

 

A união que associa amor, sexualidade e casamento é uma invenção da era burguesa. O amor-sexual, amor-paixão, como fundamento do casamento, surgiu na modernidade e, com ela, trouxe um elemento revolucionário, pois enunciava uma nova ordem das coisas. Nesse cenário, o amor vai percorrer uma longa trajetória até chegar à condição de força “irresistível”, sempre pronta a desembocar no casamento, como capturaram as telas de Hollywood. Passando pelo impulso dramático shakespereano, no século XVI, essa trajetória tem seu ponto de chegada no século XVIII, no bojo da revolução burguesa e nas idéias de liberdade individual. Em torno do novo ideal de conjugalidade instaurado, criaram-se muitas expectativas e idealizações, entre elas a idéia de casamento como lugar de felicidade onde o amor e a sexualidade são fundamentais. Desde então, a instituição casamento, moldada pelas determinações econômicas, sociais, culturais, de classe e gênero tem assumido inúmeras formas.

Hoje, os mesmos movimentos de mudança levam os casais a reverem suas idealizações sobre o casamento, o amor e a sexualidade. Novas formas de amar e se relacionar estão sendo construídas para responder às exigências de uma sociedade onde os valores e as regras econômicas e sociais estão sempre em mutação.

 

O Amor Romântico e o Casamento Moderno

O amor e o casamento, tal como o conhecemos hoje, surgiu com a ordem burguesa, mas só ganhou feição a partir do século XVIII, quando a sexualidade passou a ocupar um lugar importante dentro do casamento. O amor, no sentido moderno de consensualidade, escolha e paixão amorosa, não existia no casamento, sendo, em geral, vivenciado nas relações de adultério, e a sexualidade não era vivida como lugar de prazer, sua função específica, era a reprodução. Da antigüidade à idade média, eram os pais que cuidavam do casamento dos filhos. O casamento não consagrava um relacionamento amoroso. Era um negócio de família, um contrato que dois indivíduos faziam não para o prazer, mas a conselho de suas famílias e para o bem delas. O principal papel do casamento era servir de base a alianças cuja importância se sobrepunha ao amor e à sexualidade. Escolha e paixão não pesavam nessas decisões, e a sexualidade para a reprodução era parte da aliança firmada.

Trabalhos realizados por Lèvi-Straus (1976) mostram que, nas sociedades arcaicas, a aliança também é um fator determinante no casamento. A união se justifica muito mais pela necessidade de reciprocidade imposta pela divisão sexual do trabalho do que pela satisfação sexual. A aliança é uma forma de intervenção do grupo sobre bens considerados escassos e essenciais para a sobrevivência, e baseia-se em um sistema de trocas, cujas regras marcam a origem do casamento. A proibição do incesto é sobretudo uma regra de reciprocidade que obriga a formação de alianças não só através da troca de bens, como também de mulheres. Para firmar esses laços, os grupos vão recorrer à regra da exogamia, que interdita o casamento com um membro da família. O contrato é estabelecido entre homens e a mulher é o objeto da troca feita por eles.

Nas sociedades ocidentais, a Igreja teve e tem - hoje bem menos -, uma forte influência no casamento, mas nem sempre foi assim. Vejamos um pouco dessa trajetória. Até o século V, a união dos casais e a celebração das núpcias não tinha interferência do clero. Era um ato privado ocorrido entre os nobres, tendo como função a transmissão da herança, de títulos e a formação de alianças políticas. Escolha e paixão não pesavam nessas decisões. Vainfas (1986), descreve o ritual revelando o papel de cada uma das partes: começava com a promessa de casamento no ato da desposatio ou pactum conjugale - precursor do noivado atual. A cerimônia, na casa da futura esposa, reunia parentes dos noivos e testemunhas. Trocavam-se palavras e bens. O pai da moça transferia a tutela de sua filha para o marido e este retribuía a doação com a entrega de uma donatio puellae (garantia do contrato). Sendo a mulher parte do patrimônio familiar, sua entrega a um homem selava a união de duas famílias reais ou nobres. O rito nupcial propriamente dito acontecia numa festa na casa do noivo e o momento mais importante ocorria no quarto nupcial. Ao redor do leito se reuniam numerosas testemunhas, e o pai do rapaz celebrava a união. Todos testemunhavam a intenção da união carnal e da procriação. A fecundidade era indispensável ao casamento, assim como a fidelidade absoluta da mulher, de modo que o adultério feminino implicava o abandono ou mesmo a morte da esposa transgressora. A esterilidade, por sua vez, levava ao repúdio, muito comum entre os nobres medievais .

Essas regras valiam para aqueles a quem cabia perpetuar a linhagem, responder pela transmissão da herança e exercer o poder, não se estendendo a todos os filhos. Os descendentes mais novos podiam seguir o caminho do clero ou estabelecer outros tipos de união que lhes permitiam satisfazer a voluptas. Segundo Duby, citado por Vainfas, essas uniões conjugais chamadas de Friedelehe eram usadas para “disciplinar a atividade sexual dos rapazes sem comprometer definitivamente o destino da honra”. Eram uniões quase sempre temporárias, mas não menos formais. O pretendente pagava o “preço da virgindade” ao pai da moça e tudo se fazia com solenidade. A mulher era, neste caso, “muito mais emprestada que dada”. Dessas uniões nasciam os “bastardos”, herdeiros menos assegurados, mas que, por muito tempo, não foram discriminados e, às vezes, até contemplados com títulos de terras.

A expansão do cristianismo, a partir do século V, e a queda do Império Romano vão abrir caminho para que aos poucos a Igreja passe a estender seu poder sobre o casamento, ao mesmo tempo que tentava submeter reis e cavaleiros ao seu domínio. Vainfas registra que na Gália, em torno do século VI, a benção do casal à porta do quarto era feita por um padre. Mais tarde, essa prática vai se difundir e se aperfeiçoar com a presença do clérigo diante do leito, a fim de incensá-lo e aspergi-lo com água benta. Era uma intervenção modesta - num momento em que ainda se oscilava entre a moral dos padres e a dos cavaleiros - perto do que viria a acontecer nos tempos seguintes. Séculos mais tarde, a Igreja vai instituir o casamento como o único espaço legítimo para uso da sexualidade, com o objetivo exclusivo da procriação. Até aí foi um longo caminho desde o início do cristianismo, quando parcelas da Igreja se dividiam entre aceitar e condenar o casamento. Marcados pelo ascetismo, os ideais cristãos pregavam a virgindade, a castidade e a continência. A renúncia aos prazeres da carne era necessária para ganhar o reino dos céus. Entre as fontes básicas dessa pregação, diz Vainfas, encontra-se a exortação do apóstolo Paulo aos coríntios, recomendando aos homens que permanecessem celibatários, às viúvas que se mantivessem castas e às solteiras que ficassem virgens.

Tais ideais de condenação absoluta do desejo e do prazer não se sustentaram por muito tempo. A Igreja acabou aceitando o casamento como um “freio” para os libertinos. Falando sobre o casamento na Epístola aos coríntios (I Cor., VII, 1), Paulo diz: “que cada homem tenha uma mulher, e cada mulher, um homem. Melhor seria que ficassem castos, mas se não podem se conter, casem-se. É melhor casar do que arder.” O casamento era recomendado como uma “concessão” e não como um mandamento, somente para evitar a “impudicia”.

A sacralização do casamento pela Igreja só aconteceu por volta do século XII e foi só no século XIII que a normatização da moral cristã se estabeleceu, instituindo o sacramento do matrimônio, tornando-o monogâmico e indissolúvel. A partir de então, o ritual eclesiástico transferiu o ato matrimonial da casa, seu local tradicional, para a Igreja, e a cerimônia passou a ser conduzida por um padre.

O casamento foi então instituído pela Igreja como lugar legítimo para uso dos prazeres desde que voltado para o seu fim natural: a procriação. Os teólogos instituíram regras básicas fundamentadas em três eixos principais: 1) a imposição da relação carnal (dívida conjugal) como algo obrigatório no casamento, sem a qual ele não teria sentido; 2) condenação de todo e qualquer ardor na relação carnal entre os cônjuges; e 3) a minuciosa classificação dos atos permitidos ou proibidos, tendo em vista a função procriadora.

Segundo Flandrin (1987), para a maioria dos historiadores, a vida sexual, tanto dos casados como dos solteiros, foi regida pelos preceitos da moral cristã, pelo menos até o século XVIII ou mesmo até a Revolução Francesa. Restringindo a sexualidade ao casamento e à procriação, a moral cristã proibia qualquer método contraceptivo e considerava pecado toda atividade sexual fora do matrimônio.

A dessacralização do poder da Igreja se inicia com a revolução burguesa, que vai arrancar fora os véus da ilusão religiosa. Como diz Marx no Manifesto do Partido Comunista, perde-se o halo, símbolo primordial da experiência religiosa. “Tudo que era sólido e estável evapora-se, tudo que era sagrado é profanado, e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas”(Marx & Engels, 1990, p.79). A vida é inteiramente dessantificada. Entra em cena “a ética protestante e o espírito do capitalismo”, como bem descreve Weber (1967). O destino do homem passa a ser regido pela nova organização social.

Uma mudança radical dos valores até então vigentes começa a se instaurar com a nova ordem, sublevando e renovando os modos de vida pessoal, social e familiar. O sistema daí resultante assume como característica principal uma permanente capacidade de mudança. O mundo - público e privado - entra num processo de constante transformação.

As grandes mudanças no casamento, segundo Ariès (1987), se iniciam com a modernidade. A valorização do amor individual, presente na ideologia burguesa, estabelece o casamento por amor, amor-paixão, com predomínio do erotismo na relação conjugal. Esse novo ideal de casamento impõe aos esposos que se amem ou que pareçam se amar e que tenham expectativas a respeito do amor e da felicidade no matrimônio. Essa imposição teve muitas conseqüências e contradições. Uma delas é que acabou criando uma armadilha para os casais na medida que se acentuaram as “idealizações” e conseqüentemente os conflitos resultantes da desilusão pelo não atendimento das expectativas.

Até o século XVIII, e não só na cultura ocidental, havia uma diferença básica entre o amor no casamento e o amor fora do casamento. Vários textos da cultura judaica e grega mostram que o amor não era necessário ao casamento, cuja função principal era a procriação.

Elqana (I Sam 1, 4-19) possuía duas mulheres: uma, Ana, que ele amava (.....), mas que era estéril (......); a outra, que ele amava menos, era fecunda e tinha filhos. Ela zombava cruelmente de sua rival infecunda. Apesar da sua preferência, Elqana tinha o costume, quando distribuía as carnes assadas do sacrifício, de dar várias porções à mãe de seus filhos e apenas uma à sua bem-amada. Ana ficava magoada e chorava. E então Eqana lhe disse com ternura: ‘Ana, por que choras e não te alimentas? Por que estás infeliz? Será que eu não valho para ti mais de dez filhos? ( texto judaico citado por Ariès, 1987, p.151).

Antes da expansão do cristianismo, a moral estóica defendia a procriação como finalidade e justificação do casamento. Para os estóicos, um homem sábio devia amar sua mulher com discernimento e não com paixão. Os homens deviam se apresentar às esposas como maridos e não como amantes. A regra básica do código moral estóico defendia o amor-reserva no casamento e o amor-paixão fora do casamento. Os cristãos se apropriaram da moral estóica e foram mais além na condenação dos prazeres.

Expulso do casamento, o amor proliferou nas relações ilícitas, estilizado pelos cavaleiros, poetas e trovadores, vivido intensamente por homens e mulheres em toda parte. O amor cortês cantado pelos trovadores era diferente do amor cavalheiresco. O amor cavalheiresco era quase sempre ligado a um adultério carnal ou a uma proeza que resultava no casamento. O amor cortês era um amor adúltero espiritual que nunca implicava no casamento dos amantes. O amante dessas histórias era sempre socialmente inferior à dama cortejada e se dispunha a qualquer sacrifício para provar o seu amor. Era um herói disposto ao sacrifício, mas não buscava o encontro carnal com sua amada. Fazia simplesmente uma declaração, uma confissão de amor, fosse pelo gesto, pela amável conversa ou pelo simples olhar. A retribuição esperada era um ato de carinho, um reconhecimento do amor, nunca a entrega do corpo. Enquanto o amor cortês exaltava a mulher e a colocava num plano superior ao homem, o amor cavalheiresco a colocava numa atitude passiva, inferior ao homem e dependente de sua iniciativa. A Igreja repudiava todas essas formas de amor por ameaçarem a pureza do “amor conjugal”(cf. Vainfas, 1986, pp.55-56)

Segundo Macfarlane (1990), há muita controvérsia sobre a origem do amor romântico. Uma das localizações mais antigas para o seu surgimento é a Europa meridional nos séculos XI e XII. Segundo March Bloch, citado por Macfarlane, p. 336, o amor romântico começou com a tradição do “amor cortês” do sul da França. Inicialmente, esse “amor cortês” não tinha “nada a ver com o casamento, muito pelo contrário: opunha-se diretamente ao estado legal do casamento, uma vez que a amada era quase sempre uma mulher casada, e seu amante jamais o marido”. Mas esta “paixão absorvente, constantemente frustrada, presa fácil do ciúme e alimentada por suas próprias dificuldades” foi, no entanto, “uma concepção notavelmente original”, uma “idéia de relacionamento amoroso em que reconhecemos muitos elementos que hoje nos são familiares”.

Trevelyan, também citado por Macfarlane, p. 337, levanta uma questão importante: se o amor cortês está na origem da moderna concepção de amor, como teria passado de sua posição basicamente anticasamento para a de fundador do casamento? Ele acredita que essa revolução aconteceu na Inglaterra, na “gradual evolução da idéia e da prática de casamento”. Segundo Trevelyan, na Idade Média eram comuns os casamentos por amor entre os camponeses, uma vez que entre os pobres a escolha do casamento era provavelmente pouco influenciada por motivos econômicos. Nas camadas altas da sociedade, a situação começa a mudar a partir do século XV. Ao iniciar-se a “era de Shakespeare” a literatura e o drama tratam o amor mútuo como a base apropriada, ainda que não a única, do casamento.

O casamento por amor vai assim, lentamente, ascendendo na escala social até a era moderna, quando se estabelece como regra básica. A partir do século XVIII, quando o amor romântico se torna o ideal de casamento, o erotismo expulsa a reserva tradicional, mas introduz um outro aspecto importante: coloca à prova a duração do casamento. Como o amor-paixão em geral não dura, o amor conjugal ligado a ele também não dura. O divórcio então, coloca-se como uma possibilidade, não como forma de reparar o erro, mas como a sanção normal de um sentimento que não pode nem deve durar, e que deve dar lugar ao seguinte. Essa é uma das principais características do casamento moderno, diz Ariès (1987). Ao contrário do amor conjugal que aumentava com o tempo, o amor-paixão tende a acabar com o tempo. Esse é o grande desafio que os casais modernos enfrentam nos dias de hoje e que os leva a redefinir expectativas e idealizações sobre o casamento.

 

O Casamento Malthusiano

Mcfarlane (1990) denominou de casamento malthusiano o modelo de união conjugal que tem como premissas básicas o afeto, a amizade e o companheirismo entre os cônjuges e a procriação não é o objetivo principal do casamento.

Malthus, clérigo inglês que viveu na Inglaterra no século XVIII, expressou pela primeira vez sua preocupação com o casamento quando escreveu o “Ensaio sobre população” em que aponta a desigualdade da relação entre crescimento populacional e crescimento econômico. Com base nessa preocupação, propõe um sistema de casamento que privilegia a ética acumulativa, o desejo de ascensão social e o individualismo possessivo, valores fundamentais da ideologia burguesa. Esse sistema de casamento surgiu na Inglaterra na fase de ascensão do capitalismo (séculos XVIII e XIX) para dar impulso ao desenvolvimento econômico. Para prevenir o desequilíbrio entre o crescimento econômico e demográfico, Malthus propôs uma avaliação dos custos e benefícios do casamento, controle da natalidade e retardamento do casamento. Na visão malthusiana, a procriação deixa de ser a finalidade principal do casamento, e os propósitos econômicos e psicológicos do casal passam a ser os objetivos centrais. A ideologia do amor romântico é usada para justificar a ausência dos filhos. Como o casal se casa por amor, por escolha e decisão dos próprios cônjuges, o mais importante é a relação conjugal. Embora considerando o casamento por amor como a relação mais importante na vida de uma pessoa, Malthus o coloca como uma escolha racional sobre a qual a condição econômica pesa na decisão e na idade de casar. Dessa forma, a irracionalidade do amor romântico e da paixão sexual são domesticadas dentro do casamento, não mais ameaçando a racionalidade do capitalismo.

Para Malthus, na sociedade inglesa, uma sociedade civilizada e bem desenvolvida economicamente, pressão econômica e social se combinam - uma mistura de temor à pobreza, à perda do status, à perda do lazer e do prazer - e mantém os ricos afastados do casamento. O matrimônio era visto como algo que envolvia consideráveis custos econômicos e sociais que deveriam ser pesados contra suas vantagens. Algumas pessoas podiam até sacrificar suas carreiras e posições na vida para casar, mas isso implicava descer alguns degraus na escala social onde se encontravam. Casamento implica mais despesas e responsabilidades. É evidente o conflito entre o desejo de casar e a percepção racional dos riscos. Malthus acreditava que os indivíduos deveriam estar física e economicamente maduros para o casamento. Condenava o casamento antes da independência econômica.

As mudanças no casamento propostas por Malthus eram extremamente revolucionárias para a época. Ele propunha uma relação mais igualitária entre marido e mulher, quando na maioria das sociedades prevalecia a dominação masculina. O casamento centrado no vínculo conjugal, e não nos filhos ou na família, também era uma mudança radical. Ao valorizar o afeto, a amizade e o companheirismo, o casamento se tornava um refúgio dentro de um mundo competitivo e individualista.

Com o desenvolvimento do capitalismo, o modelo de casamento malthusiano se espalhou pelo mundo. Sofreu, é claro, as adaptações necessárias às diferentes culturas e níveis de desenvolvimento econômico. Na atualidade, muitas das suas características são encontradas nos casamentos ditos “modernos”, como a relação igualitária entre os parceiros, a valorização do companheirismo e da amizade na relação conjugal e a não-obrigatoriedade de procriação.

 

A Sexualidade na Era Moderna

A experiência sexual, como toda experiência humana, é produto de um complexo conjunto de processos sociais, culturais e históricos. A concepção moderna de sexualidade, segundo Foucault (1988), designa uma série de fenômenos que englobam tanto os mecanismos biológicos da reprodução como as variantes individuais e sociais do comportamento, a instauração de regras e normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas, e também as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos. Sexualidade é, pois, uma construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais. Ao longo da história, a atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, como tal, submetida a dispositivos de controle das práticas e comportamentos sexuais. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes à medida que a sociedade muda.

Para Foucault, a sociedade que se desenvolveu a partir do século XVII - sociedade burguesa, capitalista ou industrial - deu início a uma época de repressão à sexualidade não como proibição em si, mas através da incitação dos discursos. Essa sociedade não reagiu ao sexo como uma recusa em reconhecê-lo, ao contrário, instaurou todo um aparelho para produzir verdadeiros discursos sobre ele. Nessas sociedades, não somente se falou muito sobre sexo e se forçou todo mundo a falar dele, como também instituiu-se uma verdade regulada sobre a sexualidade.

Nos séculos XIX e XX, instituiu-se um discurso disciplinador para suprimir as formas de sexualidade não relacionadas com a reprodução e com o casamento como lugar legítimo da sexualidade. Através desses discursos, multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental: da infância à velhice foi definida uma norma de desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se os controles pedagógicos e os tratamentos médicos. Até o século XVIII, o sexo lícito era restrito às relações matrimoniais e carregado de prescrições. Romper as regras do casamento ou procurar prazeres estranhos merecia a condenação moral e jurídica. As práticas sexuais fora do casamento - sexualidade das crianças, homossexuais, perversões, devaneios, obsessões, etc., eram consideradas “contra a natureza”. Os libertinos carregavam o estigma da “loucura moral”, neurose genital, desequilíbrio psicológico, etc.

No século XIX, os códigos de delitos sexuais se alteraram, e a justiça deu lugar à medicina. Aumentaram as instâncias de controle e vigilância instauradas pela pedagogia ou pela terapêutica. A medicina passou a interferir nos prazeres do casal, inventou toda uma patologia orgânica, funcional ou mental, originada nas práticas sexuais. O poder exercido pelos médicos e pedagogos voltou-se para o controle da sexualidade infantil, interdição do incesto e caça às sexualidades periféricas (sodomia, homossexualismo e outras perversões).

O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e as condutas familiares têm como objetivo dizer não a todas as sexualidades errantes e improdutivas mas, na realidade, funcionam como mecanismos de dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela e, por outro lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder, fingir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou de resistir. Captação e sedução; confronto e reforço recíprocos: pais e filhos, adulto e adolescente, educador e alunos, médico e doente e o psiquiatra com sua histérica e seus perversos, não cessaram de desempenhar esse papel desde o século XIX. Tais apelos, esquivas, incitações circulares não organizaram, em torno dos sexos e dos corpos, fronteiras a não serem ultrapassadas, e, sim, as perpétuas espirais de poder e prazer (Foucault, 1988, p. 45).

Nesse domínio, a sexualidade instituiu-se como um dispositivo de saber e poder. Tornou-se um campo de poder nas relações entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre a administração e a população. Nas relações de poder, a sexualidade encontrou um ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias de controle.

Foucault busca as razões pelas quais a sexualidade, longe de ser reprimida na sociedade contemporânea está, ao contrário, sendo suscitada. O dispositivo da sexualidade deve ser pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas. Para ele, três eixos constituem a sexualidade nas sociedades modernas: a formação dos saberes que a ela se referem; os sistemas de poder que regulam suas práticas e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade.

Ao centrar a história da sexualidade nos mecanismos da repressão, Foucault considera duas rupturas:

Uma ocorreu no decorrer do século XVIII: nascimento das grandes proibições, valorização exclusiva da sexualidade adulta e matrimonial, imperativos de decência, esquiva obrigatória do corpo, contenção e pudores imperativos da linguagem. A outra ocorreu no século XX, momento em que os mecanismos da repressão teriam começado a se afrouxar; passar-se-ia das interdições sexuais imperiosas a uma relativa tolerância a propósito das relações pré-nupciais ou extra-matrimoniais; a desqualificação dos perversos teria sido atenuada e sua condenação pela lei, eliminada em parte; ter-se-iam eliminado, em grande parte, os tabus que pesavam sobre a sexualidade das crianças (Foucault, 1988, p. 109).

Os estudos de Foucault nos mostram, portanto, que a sexualidade, longe de ser um fenômeno natural, é, ao contrário, profundamente suscetível às influências sociais e culturais. É produto de forças sociais e históricas. É a sociedade e a cultura que designam se determinadas práticas sexuais são apropriadas ou não, morais ou imorais, saudáveis ou doentias. A história da nossa concepção de corpo e sexualidade é a história dos sistemas de valores fundamentais em cada sociedade.

A história da sexualidade vista como uma construção social aponta mudanças importantes tanto no comportamento sexual como no significado que lhe atribuímos. Por isso não se pode explicar suas formas e variações sem examinar o contexto em que se formaram. Isso nos permite entender, por exemplo, o significado da bissexualidade para os gregos e o pluralismo sexual do século XX. Para os gregos que idealizavam a beleza do corpo, não existia dois impulsos diferentes. O que permitia desejar um homem ou uma mulher era o simples apetite sexual que a natureza lhes havia despertado por seres humanos “belos” de qualquer sexo. No século XX, o pluralismo sexual, ao se desviar do paradigma cartesiano (mentalidade mecanicista, categorização normal/anormal), reinventa o corpo como uma forma de organismo social que abre caminho para a aceitação da diversidade como norma viável da cultura. “Se a natureza humana é histórica, cada indivíduo tem uma história diferente e, portanto, necessidades diferentes” (Highwater, 1992, p.155).

 

A Intimidade Transformada: Novas Formas de Relacionamento Amoroso

As mudanças que vêm acontecendo no amor, no casamento e na sexualidade ao longo da modernidade resultaram em transformações radicais na intimidade e na vida pessoal dos indivíduos. Nesse processo, a chamada revolução sexual e a emancipação feminina tiveram um papel fundamental. Esse tema é objeto de análise do sociólogo Anthony Giddens em “A transformação da Intimidade”(1993). Segundo ele, as novas formas de relacionamento que resultaram dessas mudanças têm como base a igualdade e os princípios democráticos. Para apreender essa realidade atual, Giddens lança mão de três categorias básicas : o amor confluente, a sexualidade plástica e o relacionamento puro.

O “amor confluente” é mais real que o amor romântico, porque não se pauta pelas identificações projetivas e fantasias de completude. Presume igualdade na relação nas trocas afetivas e no envolvimento emocional. O amor confluente introduz a ars erotica no cerne do relacionamento conjugal e transforma a realização do prazer sexual recíproco em um elemento-chave na manutenção ou dissolução do relacionamento. Desenvolve-se como um ideal em uma sociedade onde quase todos têm a oportunidade de se tornarem sexualmente realizados. Ao contrário do amor romântico, o amor confluente não é necessariamente monogâmico nem heterossexual.

A “sexualidade plástica” é uma sexualidade descentralizada, liberta das necessidades de reprodução. Tem origem na tendência à redução da família, iniciada no final do século XVIII, e desenvolve-se mais tarde com a difusão da contracepção moderna e das novas tecnologias reprodutivas. A emergência da “sexualidade plástica” é fundamental para a emancipação implícita no “relacionamento puro” assim como para a reivindicação da mulher ao prazer sexual.

O “relacionamento puro” é um relacionamento centrado no compromisso, na confiança e na intimidade. Implica em desenvolver uma história compartilhada em que cada um deve proporcionar ao outro, por palavras e atos, algum tipo de garantia de que o relacionamento deve ser mantido por um período indefinido. É um relacionamento diferente da idéia de casamento como uma “condição natural”, cuja durabilidade pode ser assumida como certa, exceto em algumas circunstâncias extremas. Uma característica do “relacionamento puro” é que ele pode ser terminado, mais ou menos à vontade, em qualquer época e por qualquer um dos parceiros. O compromisso é necessário para que um relacionamento tenha a probabilidade de durar, mas não evita que qualquer um que se comprometa sem reservas corra o risco de sofrer muito no futuro, no caso de o relacionamento vir a dissolver-se. Nesse tipo de relacionamento, o que conta é a própria relação, e a sua continuidade depende do nível de satisfação que cada uma das partes pode extrair da mesma.

As origens do “relacionamento puro”, diz Giddens, podem ser encontradas na ascensão do amor romântico, que criou a possibilidade de estabelecer um vínculo emocional durável. A diferença é que, embora o amor romântico suponha uma igualdade de envolvimento emocional entre duas pessoas, durante muito tempo as mulheres foram mais afetadas pelos seus ideais. Os sonhos do amor romântico conduziram muitas mulheres a uma severa sujeição doméstica. O ethos do amor romântico teve um impacto duplo sobre a situação das mulheres : além de ajudar a colocar as mulheres “em seu lugar” - o lar-, reforçou o compromisso com o “machismo” ativo e radical da sociedade moderna. Os ideais do amor romântico começaram a se fragmentar com a emancipação sexual e a autonomia femininas. O declínio do controle sexual dos homens sobre as mulheres colocou possibilidades reais de transformação da intimidade. Embora a intimidade possa ser opressiva se for encarada como uma exigência de relação emocional, ela pode, no entanto, surgir sob uma luz completamente diferente se considerada como uma negociação transacional de vínculos pessoais, estabelecida por iguais. “A intimidade implica uma total democratização do domínio interpessoal, de uma maneira plenamente compatível com a democracia na esfera pública” (Giddens, 1990, p.11).

Esse processo de “democratização das relações pessoais” afeta profundamente as representações e vivências do casamento. No contexto brasileiro, principalmente entre os segmentos médios urbanos mais intelectualizados, o casamento tradicional regido pela dominação masculina vem dando lugar a outra forma de casamento, onde a mulher reivindica igualdade e há uma constante negociação no relacionamento, conforme descrevemos em outros trabalhos (Araújo, 1993 e 1999). Nesse tipo de casamento, a intimidade tende a se reestruturar com base em novos valores, entre os quais amizade e companheirismo se colocam como fundamentais.

A transformação da intimidade passa necessariamente por uma análise de gênero. Os novos estudos nesse campo questionam a idéia predominante na literatura de que os homens têm mais problemas com a intimidade do que as mulheres. Como diz Giddens, a intimidade é acima de tudo uma questão de comunicação pessoal, com os outros e consigo mesmo, em um contexto de igualdade interpessoal. Nesse cenário, as mulheres tiveram um papel de revolucionárias emocionais da modernidade e prepararam o caminho para expansão da intimidade Algumas disposições psicológicas têm sido a condição e o resultado desse processo, assim como também as mudanças materiais e sociais que permitiram às mulheres reivindicar a igualdade e propor mudanças nas relações de gênero. Concordo com Giddens quando diz que as mulheres foram promotoras dessas mudanças, mas vale lembrar que elas não fizeram esse trabalho sozinhas. A construção de relações amorosas e sexuais mais democráticas e igualitárias dentro ou fora do casamento é uma conquista de homens e mulheres.

Tal conquista tem permitido o surgimento de outras formas de relacionamento amoroso, tanto no contexto heterossexual quanto fora dele. Vivemos hoje no signo da pluralidade. O casamento formal, heterossexual com fins de constituição da família, continua sendo uma referência e um valor importante, mas convive com outras formas relacionamento conjugal como as uniões consensuais, os casamentos sem filhos ou sem cohabitação, e também as uniões homossexuais. Nesse processo de transformação da intimidade, dos valores e das mentalidades, a tendência da sociedade é tornar-se cada vez mais flexível para acolher essas novas configurações das relações amorosas.

 

Referências bibliográficas

Araújo. M. de F. (1993) Família Igualitária ou Democrática? As transformações atuais da família no Brasil. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Maria de Fátima Araújo
Departamento de Psicologia Clínica
Universidade Estadual Paulista/Unesp
Av. Dom Antônio, 2.100
19800-000 Assis - SP
Tel.: +55-18-322-2933 ramal 226
E-mail: fatimaraujo@uol.com.br

Recebido em 09/02/01
Aprovado em 20/10/01

 

 

* Psicóloga, Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Professora da Universidade Estadual Paulista/Assis/SP.