SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 issue3Uma contribuição à história do movimento psicanalítico: a trajetória de Wilhelm ReichA influência do afastamento por acidente de trabalho sobre a ocorrência de transtornos psíquicos e somáticos author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.3 Brasília Sept. 2002

 

ARTIGOS

 

A lógica do discurso penitenciário e sua repercussão na constituição do sujeito

 

 

Patrícia Oliveira Lira*; Glória Maria Monteiro de CarvalhoI, **

I Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo, coloca-se em questão o modo pelo qual se estrutura o sistema penitenciário, buscando uma articulação teórica que permita discutir o sujeito submetido ao discurso norteador de todo o sistema. Nesse sentido, parte-se das questões já abordadas por Foucault, para quem o discurso humanista que fundamenta o sistema penitenciário se constitui como um tipo de controle das condutas e de manutenção de poder. No entanto, procura-se incluir, nessas questões, a problemática da subjetividade implicada na lógica do aprisionamento a partir do referencial de sujeito pressuposto pela psicanálise.

Palavras chave: Sistema penitenciário, Discurso humanista, Subjetividade.


ABSTRACT

The present study raises questions onto the way the penitentiary system is structured by seeking theoretical approaches which could allow discussion about the subject as submitted to the guided speech present throughout the whole system. In that sense, the basis for discussion lies on questions already elicited by Foucault, to whom the humanistic speech grounding the penitentiary system is formed as a type of conduct control and maintenance of power relations. Nevertheless, in those questions, we propose the inclusion of the problem within the subjectivity implied in the logic pertaining to the imprisonment status, from (and under) the subject’s references taken for granted in psychoanalysis.

Keywords: Penitentiary system, Humanistic speech, Subjectivity.


 

 

Este ensaio tem como pretensão indicar uma aproximação teórica entre duas abordagens – a de Foucault, a partir de sua obra “Vigiar e Punir” (1987), e a psicanálise - na medida em que considera a possibilidade de um ponto de encontro bastante útil entre as mesmas, no sentido de se produzir uma compreensão viável acerca do sistema penitenciário e dos sujeitos a ele submetidos.

Vale lembrar, ainda, que a proposta em questão funda-se no pressuposto de que é indispensável perceber o problema a ser investigado enquanto inserido num contexto sócio-político-cultural e econômico que, em muito, demarca as possibilidades de seus sujeitos e faz emergir demandas singulares tanto para os que se reconhecem no lugar do delinqüente, quanto por parte dos profissionais que se prestam a mediatizar uma reinserção psicossocial. Torna-se importante, então, compreender porque ocupam esse lugar e como a lógica penitenciária está implicada nesse processo dito de ressocialização.

Sendo assim, o que se busca aqui é a possibilidade de inserção da questão da subjetividade implicada no discurso que norteia as prisões. É na busca dessa articulação teórica que se pretende delinear o questionamento norteador da presente proposta.

 

A exclusão do diferente: a marginalidade em questão

Sem dúvida alguma, falar nos valores-atitudes a partir dos quais uma sociedade significa seus artífices implica falar na dimensão do estranhamento suscitado quando tais significações referem-se ao campo daquelas idéias sobre o outro, cujas inscrições já previstas e aceitas não dão um suporte tão coerente e consistente para o estabelecimento de um sentido possível.

Foucault tematiza, de maneira profunda, a loucura, esse tipo de contingência humana complexamente significada ao longo da história justamente pela perplexidade que suscita. Acaba por falar, então, acerca desse estranhamento que rompe no limite suscitado pela diferença, pelo contraditório ou por aquilo que parece se relacionar com o indizível. Enfim, o autor termina por trazer à tona essa insuportável brecha que a imprevisíbilidade faz surgir diante da necessidade de (com)vivência humana.

Machado (2000) comenta como a obra de Foucault aborda essa busca por se estabelecer uma regularidade discursiva em torno da loucura, com vistas a tornar-se possível concebê-la e exprimi-la do ponto de vista da racionalidade cartesiana. Discute, a partir disso, que apesar dos diferentes modos de elaboração que a loucura teve em cada época, a dinâmica da exclusão sempre esteve presente por se tratar de um indivíduo que “aparece como outro, como diferente, como estrangeiro aos olhos da razão e da moral”, o que para o autor, o faz ser classificado como “desrazão, desatino, o que se pretende desclassificar” (p. 17).

Nesse contexto, a loucura passa a ser discutida enquanto transgressora da norma e, por isso, completamente estranha e dificilmente classificável em função da média de comportamentos aceitáveis numa sociedade norteada pelos parâmetros de racionalidade.

É a partir daí que Machado (2000) põe sob questionamento o fato de ser a loucura uma pura negatividade, na medida em que, ao ser articulada com os significantes da razão, não permite encaixes, formação de signos ou interpretações viáveis racionalmente. Quanto a isso, o autor afirma que a loucura foi, então, “historicamente instituída como negatividade de sentido, como palavra situada no exterior dos limites definidos pela razão ocidental a partir do classicismo” (p.40).

Ao tratar desse mundo louco, Foucault (1995) o coloca, portanto, num lugar produzido em função do limite razão/desrazão, denunciando essa impresscindível necessidade de se tornar materialidade toda impossibilidade de sentido. E é por esta contradição estrutural (pensar o impensável) que o diferente passa a ser colocado no lugar do exterior, como bem afirma Machado (2000). Como um fora de sentido, ele é pensado como um de fora de toda civilidade. E, nesse deslocamento, surge um limite na simbolização frente à diferença.

Falar sobre o diferente como estranho e nada mais, colocando-o à margem e conceituando-o segundo a dimensão de uma negatividade, é fazer com que este fique fadado ao insucesso de chegar a ser algo de fato. Significa torná-lo prisioneiro de tudo o que não é, na medida em que pertence à ausência de sentido lógico e pensável. Recuperando as palavras de Foucault (1995), quando metaforizou a Nau dos Loucos da Idade Média: “...sua exclusão deve encerrá-lo (...) se ele não pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e inversamente.”(p.12) É assim que o diferente enquanto suscitador de uma contingência humana é pensado: um eterno viajante, sem nunca ocupar um lugar no qual se faça reconhecer pelo que de fato é.

Calligaris (1989) traz exatamente uma discussão acerca dessa definição sobre o diferente louco, fundada nos parâmetros que subsidiam uma estrutura neurótica. Definição que só torna possível um saber fundado numa negatividade, afirmando tudo o que o psicótico não é, nunca buscando sistematizar um conhecimento dessa diferença em função de suas próprias especificidades de estruturação, de suas singularidades, embora tão radicais. Por que não pensar o sujeito estruturado na psicose enquanto diferente por aquilo que ele é, não simplesmente falando sobre ele a partir do que não conseguiu ser em função do registro neurótico? Talvez este modo de se saber acerca dessa diferença abrisse o novo caminho tão almejado de convivência viável com um louco reconhecido enquanto cidadão – homem capaz, singular, sujeito de uma história.

É nesse sentido, de um questionamento acerca da diferença, que a presente proposta se faz.

Questionamento que se dá acerca dessa diferença mesma que faz com que um saber calcado numa lógica formal e unívoca esbarre com o limite de simbolização. Em outras palavras, fala-se da dificuldade em se nomear aquele que transgride a regularidade do sentido estabelecido em torno das coisas.

Sendo assim, buscam-se aproximações acerca da diferença ressaltada pelo sujeito que opta pela via da transgressão criminosa e se faz reconhecido pelo registro da delinqüência. Aliás, Rassial (1994) chama a atenção para o forte valor simbólico desse significante. Palavra que vem do latim, “delinquere. Linquere é deixar algo, ou alguém, no seu lugar, e o de marca a separação, o destacamento. O delinqüente é – contra a natureza própria das coisas, de retornar ao seu lugar (Aristóteles) – aquele que desaloja: que desaloja as coisas, que se desaloja de seu lugar, do lugar que lhe é atribuído pela sociedade”(p.51).

Pode-se observar, portanto, que no próprio termo que nomeia o sujeito que transgride pela via da delinqüência, há explicitamente demarcado um espaço de exclusão do diferente, exclusão que é estabelecida em função de uma negatividade. O delinqüente, pelo mesmo movimento que leva a loucura a ser significada como desrazão, é reconhecido exatamente pela não ocupação de um lugar. Tem-se aí, mais uma vez, a significação da diferença fortemente fundada no que o sujeito não é, ou no lugar no qual ele não está. É de se indagar, portanto, acerca desse lugar de fora no qual o delinqüente é colocado.

Esse tipo de diferença – a diferença remetida ao que delinqüe – talvez seja mais difícil de suportar do que a própria loucura, porque não se tem uma explicação plausível no referencial da razão/desrazão para entendê-la. Quanto ao Louco, explica-se, justifica-se, compreende-se, a partir de uma incapacidade que lhe é atribuída: incapacidade de ajuizar, de trabalhar, de amar, de falar sobre si mesmo e sobre os outros, de resolver suas próprias questões sem recorrer a uma postura animalesca e sem sentido. Entendê-lo, porque é simplesmente louco e não sabe o que faz.

Mas, como tratar daquele que se constitui nos mesmos parâmetros de normatividade que norteiam a vida racionalmente vivida e que, entretanto, burla as regras de convivência, rompendo com toda a estabilidade social e desvirtua todos os caminhos que confluem para o bem comum? Faz isso e, no entanto, não o faz sem sabê-lo. Simplesmente goza por fazê-lo.

 

“Vigiar e Punir”: a lei que produz, enclausura e reforça a diferença

O caminho que parece ter sido encontrado para lidar com a diferença constituída pelo que delinqüe é o da equivalência com um ato de loucura ou, diante da impossibilidade de tal correspondência, o de recorrer-se ao registro da estupidez, do absurdo, da monstruosidade e da mais profunda malícia.

Esse estranhamento tão radical provocado pela delinqüência também é tratado por Foucault (1987) a partir de uma leitura que o concebe como um lugar que é produzido sócio-historicamente. Tal produção se dá, exatamente, quando o sujeito é falado e nomeado pelo corpo social enquanto delinqüente e, em função disso, excluído do reconhecimento enquanto cidadão.

O mencionado autor possibilita a compreensão do sistema penitenciário enquanto aquele elemento do corpo social revestido de toda autoridade e especificidade para falar sobre esse que delinqüe, sendo o aprisionamento viabilizador de toda uma sistematização de saberes acerca do que transgride. Uma tal sistematização que acaba por nomeá-lo como um de fora de toda lógica social vigente, colocando-o no lugar da exclusão e da diferença por causa da ruptura de sentido que produz.

Foucault (1987) esclarece, ainda, que embora haja uma contradição na própria estruturação das prisões, qual seja, produzir delinqüência na medida em que se objetiva a ressocialização, é essa contradição mesma que nutre todo o sistema. No entendimento do autor, ao que parece, não poderia ser de outra forma, se o objetivo último da relação com a diferença provocada pela delinqüência é a manutenção das relações de poder. Daí precisar-se recolocar, a todo momento, cada um em seu lugar. Interior e exterior têm que estar bem demarcados. E, nesse sentido, aquele que está de fora tem que permanecer lá. Mas até esse de fora tem que ser contido. Essa contenção se dá não apenas pela concretude do aprisionamento em grades, mas antes, pelo lugar simbólico através do qual ele mesmo passa a se reconhecer. O ser que é desalojado do corpo social – o delinqüente – é, então, produzido.

A partir daí, surge a necessidade de se buscar uma possível compreensão dessa estrutura falante que é o sistema penitenciário, a fim de se articularem a lógica de funcionamento discursivo que lhe é própria e as repercussões que essa fala sobre o de fora tem no processo de subjetivação do delinqüente. Em outras palavras, tenta-se, aqui, introduzir a questão da subjetividade nesse discurso próprio do sistema penitenciário, buscando aguçar o questionamento de como fica o sujeito falado por um discurso que mais parece (des)sujeitá-lo, embora fale no sentido de torná-lo cidadão, ou seja, inseri-lo, recolocá-lo no lugar de onde saiu.

Para pensar a questão da subjetividade no que se refere ao discurso das prisões parte-se, portanto, dos elementos de análise trazidos por Foulcault (1987), buscando articulá-los com a noção de sujeito fundada no referencial da psicanálise. Nessa posição, a subjetividade é entendida enquanto um efeito significante que se constitui a partir da linguagem, mas de uma linguagem equívoca, sobre-determinada, porque atravessada por um funcionamento inconsciente. Assim, a validade de tal articulação está no fato de que uma abordagem puramente sociológica não implicaria numa inserção da subjetividade pensada a partir de um sistema específico da sociedade. Nem, tampouco, o sujeito visto isoladamente daria conta do questionamento acerca de uma subjetividade que se constitui profundamente implicada nas significações próprias do sistema penitenciário.

 

O aprisionamento na perspectiva da subjetividade

Cabem, aqui, muito mais do que hipóteses, algumas indagações acerca do discurso organizador do sistema penitenciário que levem em consideração a perspectiva de inserção da problemática da subjetividade.

Num primeiro momento, é importante que se reflita sobre a pergunta: de qual lugar tem-se falado acerca do que delinqüe? Quais as bases epistemológicas que têm fundamentado a lógica discursiva do aprisionamento?

Esses questionamentos parecem trazer à tona uma forte vinculação do discurso penitenciário às noções racionalistas sobre o sujeito, a partir das quais o significado da diferença remete sempre a um forte movimento de exclusão.Nessa perspectiva, o sujeito diferente vai ser visto sempre em função da regra normatizadora, fundada nos ideais da racionalidade cartesiana, a qual faz questão de equivaler a subjetividade à consciência, descartando toda afetação de um tipo tal de funcionamento subjetivo que escapa sempre àquilo que se pode aprender, transmitir, ensinar dentro dos parâmetros de uma univocidade lógica. É nesse sentido que a inclusão da subjetividade na questão do aprisionamento, tal como é pensada aqui, implica numa ressignificação do lugar a partir do qual tem sido pensado o sujeito de fora dos parâmetros legais. Isto porque se parte do pressuposto de que há uma dimensão de sujeito desejante e interpelado pelo funcionamento inconsciente. É em função da constatação de uma ideologia corretiva destinada a um indivíduo defeituoso, cujo funcionamento se dá em função do paradigma do sujeito cartesiano que vê a racionalidade como centramento fundamental do bom homem, que se seguem os questionamentos aqui suscitados.

Quanto a isso, faz-se importante abordar Foucault (1987), que aponta a coerção disciplinar como sendo o tipo de sistematização de saber em torno do qual se norteia o funcionamento não somente das prisões, mas também de uma série de organizações que visam ao controle dos homens. Fala também da disciplina como grande tendência da passagem do século XVIII para o século XIX, período em que a filosofia racionalista cartesiana encontrava grande repercussão a partir do avanço científico, especificamente no campo das ciências humanas. Como observa o autor, durante a época clássica, há...

“uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças multiplicam” (p.117).

A perspectiva do homem-máquina é levada, pois, a amplas conseqüências. Passa-se a conciliar um corpo que pode ser sistematicamente adestrado, treinado, manipulado, medido e previsível, com um corpo que pode também ser útil, na medida em que é passível de aperfeiçoamento.

Assim, aprende-se e aperfeiçoa-se num ofício, ao mesmo tempo em que se controlam as condutas, as paixões, os desatinos que burlam o ideal da racionalidade. O valor desse saber centra-se, portanto, no ideal cartesiano de um homem cujo centro de si mesmo é a razão, numa época na qual a postura positivista de ciência ganhou muito mais lugar de verdade do que qualquer outra forma especulativa de conhecimento.

Nesse contexto, a disciplina, saber que fundamenta, na raiz, o próprio funcionamento prisional, está longe de considerar o homem enquanto ser desejante. A perfeição dos movimentos e das habilidades deve ser buscada ao máximo. Os erros, as paixões, precisam ser superadas e anuladas. Apagam-se as diferenças, as singularidades pela ênfase na estabilização das condutas e dos corpos. Desvaloriza-se, portanto, o discurso individual.

Tudo isso acontece, porém, em meio ao objetivo de recuperar, de imprimir correção aos corpos e almas caídos do pacto social. Precisa-se apreender a utilidade de cada um e, a partir disso, corrigir o comportamento desviante.

Antes de mais nada, caberia, então, perguntar: é possível transformar-se em função de um poder coercitivo centrado fundamentalmente no treino e no adestramento através de uma punição dos corpos ou da alma?

A psicanálise dá grande contribuição ao destacar o ingresso no registro das trocas simbólicas, pressupostas pelo adiamento do prazer imediato, como garantias na constituição do homem enquanto sujeito.

De acordo com essa perspectiva, um primeiro aspecto a ser destacado é que o fundamento mais primitivo do ser está na formação de uma imagem que configure uma dimensão própria de si mesmo, imagem ego-narcísica fundamental para que se possa lidar minimamente com os embates que o nascimento proporciona e com a angústia que isso suscita no ser. Se o bebê continua numa multi-determinação de sensações imediatas e plenas (fantasia de fragmentação do corpo) não pode relacionar-se e, tampouco, sobreviver, já que nasce prematurado e sua necessidade do outro é aspecto crucial para a manutenção da vida.

Isso requer do sujeito em formação um mergulho na relação com o outro, que pressupõe dois mecanismos fundantes do psiquismo – a identificação e o reconhecimento. Na verdade, essas duas dimensões compõem a relação de alteridade de maneira intimamente relacionada. O reconhecimento implica a identificação e vice-versa. Para que haja o reconhecimento de uma imagem egóica, mesmo que apenas esboçada, precisa-se de uma relação identificatória com um outro que signifique a criança e lhe imprima um sentido enquanto sujeito.

Em segundo lugar, essa identificação/reconhecimento através do outro (espelho) precisa ser atravessada pela dimensão simbólica, precisa ser interpelada por uma Lei que assegure a coexistência dos corpos, impedindo a destruição mútua. Se o indivíduo se mantém profundamente alienado no outro, perde a dimensão da diferença e permanece numa dualidade tal que a indiferenciação entre si e o outro aguçaria a ilusão de que este constitui pura e simplesmente o objeto fálico ilusoriamente conferidor de gozo total e plenitude. É nessa direção, portanto, que se poderia pensar na possibilidade do aniquilamento do outro, na medida em que tal indiferenciação seria a mola mestra das relações. Por isso, essa perspectiva arcaica e primitiva da constituição psíquica pode ser entendida como aquela que estrutura o apaixonamento pela equivalência entre os corpos e possibilita o movimento para o apagamento das diferenças.

Desse modo, a Lei é imprescindível para que a contingência da falta, traduzida pelas diferenças entre as diversas realidades subjetivas, seja suportada e seja passível de se transformar numa convivência social viável através de trocas e de mútuas influências de significação. A cultura faz-se como berço da civilidade, da convivência, das trocas e dos intercâmbios sociais. Mais que isso, a cultura dá fundamentos que podem simbolizar a falta, o que a torna a via possível para que a diferença seja significada de maneira positiva, e não excludente.

 

A aplicação da lei como negação da subjetividade

Mas será possível uma significação positiva da diferença num contexto que visa unicamente à contenção das condutas através de um adestramento, cujo alvo está centrado no ideal normatizador calcado nos fundamentos racionalizadores do ser?

Parece possível que a contenção, em algum momento, seja necessária aos corpos, à alma, à vida. É provável que, em um dado momento, o papel interditor e punitivo da Lei precise se fazer presente da maneira mais objetiva e concreta para o sujeito. A necessidade desse nível de controle só encontraria espaço, porém, em se tratando de alguém cuja estruturação psíquica tenha deixado fissuras ainda não suturadas, de modo que conteúdos não estabilizados e não simbolizados de maneira viável precisariam ser trabalhados.

Daí a demanda pelo grande Pai – o Mm. Juiz – encarnador da justiça idealizada como infalível e promotora do bem comum. Todavia, é de se perguntar, a que favor essa contenção se cumpre? Estaria o Juiz internalizando a Lei enquanto Ideal estruturante ou reproduzindo uma história de exclusão e apagamento da diferença a partir da qual o sujeito provavelmente construiu sua trajetória desde o início?

Em favor de que se cumpre uma instituição que, como diz Foucault (1987), se faz em função de uma “justiça que se diz ‘igual’, um aparelho judiciário que se pretende ‘autônomo’, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares...” (p.195). Civilidade penal?

A própria significação do termo pena ou punição aponta para a noção de puro castigo, repressão, suplício para a expurgação do mal social atualizado pelo indivíduo desviante (Aurélio, 1986). Uma noção, aliás, sistematizada pelo behaviorismo psicológico, o qual deixa bem clara sua concepção de homem enquanto puro organismo psicofisiológico, modulado por associações estímulo/resposta, abordagem que confere à punição a competência de sancionar o comportamento indesejado. Assim,

“a prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. (...) Ela tem que ser a maquinaria mais potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido; seu modo de ação é a coação de uma educação total” (Foucault, 1987, p.199).

De acordo com Foucault (1987), esse saber disciplinar tem, como pano de fundo, todo um discurso humanitário, que ganha razão de ser enquanto demarcação de limites norteadores do exercício de poder sobre esses corpos desviantes. E do ponto de vista do preso? Que tipo de subjetivação é possível, se a demanda pela Lei já se dá, provavelmente, como um pedido, como uma linguagem cifrada (sintoma) que se dirige a um outro que lhe possibilite desejar, atuar de algum modo na sociedade?

Como o próprio autor aponta, a perspectiva humanista vigorou em função de uma necessidade de gerenciamento das ilegalidades, cujo intuito era o de dar corpo aos novos princípios sociáveis imprimidos pelo ideal liberal burguês, princípios que seriam, pois, os novos tradutores do ideal de sujeito cartesiano. A partir do capitalismo, há uma supervalorização das fraudes, para assegurar bens, para garantir poder, para manter a liberdade dos homens em construírem seus espaços no locus social.

Segundo Dornelles (1998), juntamente com a nova Era do Capital, surge uma série de contradições no cerne do próprio sistema e a ideologia liberal capitalista não apresenta condições para dar conta das inúmeras crises e conflitos sociais. E, neste sentido, essa mesma ideologia vai encontrar possibilidade de manutenção de sua ordem através do processo de valorização científica que marcará o século XIX. As explicações sobre a realidade social surgem, assim, a partir dos marcos positivistas das ciências do homem. E é neste contexto que o sistema prisional será uma das respostas aos conflitos suscitados. Nesse período, a própria maneira de se conceber os direitos dos homens passa a ser diferente. Como afirma o referido autor,

“os Direitos Humanos serão entendidos não mais como valores inerentes à natureza humana, mas sim como um produto normativo do Estado, uma garantia de reconhecimento formal de direitos àqueles indivíduos adequados aos valores da sociedade burguesa”(p.49).

O discurso humanista seria, pois, formalizado dentro dos moldes da nova doutrina de convivência, qual seja, a liberdade, a fraternidade e a igualdade, asseguradoras dos bens e da nova ordem estabilizada na sociedade – a ordem do capital.

Nessa perspectiva, a estruturação penitenciária funcionaria muito menos como um projeto de ressignificação de vidas do que um mecanismo radical de controle social, como já salientava Foucault (1987). E o sujeito implicado nessa lógica estaria mais em vias de um (des)sujeitamento do que mesmo de uma reestruturação.

Segundo Dornelles (1998), seriam reproduzidos os espaços de exclusão social, num movimento incessante de aniquilamento das diferenças e conseqüente realce do ideal burguês para todos os homens. Por outro lado, a esfera do Cidadão não passaria de “um ente abstrato de igualdade pública que pouco ou nada representava no espaço real da existência...” (p.50).

Disso tudo parte a necessidade de se pensar na importância de que, inicialmente, se inscreva para o sujeito essa dimensão real de igualdade entre o si mesmo e o outro, enquanto condição humana, para que, a partir daí, se torne viável a construção de um espaço de trocas entre as diferenças. Como bem observa Apolinario (1998), quando se parte para essa dimensão de um exercício ético na convivência, deixa-se de ver no outro uma mera externalidade, porque se reconhece o tempo todo a partir desse outro enquanto pessoa humana.

Nesse sentido, como seria possível elaborar uma ressignificação subjetiva se essa condição primeira de estruturação, que é a dimensão da identificação, do igualamento e do reconhecimento do outro e através do outro (a dimensão estruturante do espelhamento) é negada? Pois, nessa lógica, o sujeito é, o tempo todo, identificado e reconhecido pelo olhar social como um de fora. Assim, como o próprio signo que nomeia o sistema prisional já diz, constitui um lugar de penitências por aquilo que se é – transgressor da norma, diferente, delinqüente e supérfluo. Como se reinserir no corpo social a partir de uma perspectiva excludente por excelência? Porventura, não seria o ideal de um sujeito centrado em si mesmo o grande provocador dessa exclusão?

Vale salientar, aqui, que a reflexão até então produzida nada tem a ver com uma postura defensiva diante daquele que burla as regras de convivência social, no sentido de isentá-lo de culpa e de tirar-lhe a responsabilidade pelos delitos praticados. Muito pelo contrário. No entanto, é de se indagar acerca deste que consegue um lugar social como um de fora e de buscar ver, no movimento transgressor, algo que aponta para um sintoma social e que, como tal, implica a todos, acusados e acusadores, penitenciados e penitenciários.

Para que o sujeito se constitua como tal, é necessário que, antes de tudo, o outro lhe dirija a palavra, lhe invista, o nomeie, o reconheça e lhe atribua um lugar, um sentido enquanto possibilidade.

Essa possibilidade de vira-ser que surge da relação, ocorre de modo a funcionar como uma defesa que possibilite o jogar-se para o mundo e, posteriormente, como um mecanismo assegurador da própria integridade e do outro, quando do confronto com a diferença e com a falta que salta dessa relação. É a qualidade dessa passagem que possibilitará a elaboração de estratégias eficazes ou não para uma permanência produtiva na sociedade humana.

Essa configuração fundamental sobre o próprio ser do sujeito é necessária, apesar de seu caráter alienante (porque a imagem é conferida pelo outro), pois é ela que fornece ao sujeito o aparato defensivo estruturante para uma autonomia posterior e conseqüente atuação enquanto sujeito ativo socialmente.

Do ponto de vista do discurso penitenciário, desta palavra que nomeia excluindo o sujeito, parece haver uma busca por uma fixação do preso nesse nível identificatório mais primitivo, o que dificulta, se não impossibilita, a inserção do sujeito no âmbito cultural – lugar de autonomia, de trocas e da dura, mas necessária experiência de liberdade.

A categoria de liberdade, enquanto dimensão dos Direitos Humanos, pressupõe uma ética viabilizadora de responsabilidade e compromisso nas relações entre os homens. Assim, o homem precisa como que desvincular-se dos intuitos puramente voltados para sua realização a todo custo (adiamento do prazer imediato) para ingressar numa dimensão mais ampla de vida a partir da convivência com um outro que também precisa, que também deseja, que também sonha.

Mas, segundo Goffman (1961), o internamento naquele tipo de estabelecimento que enclausura para disciplinar se dá de modo que o homem internado passe por um processo através do qual perde sua dimensão de individualidade e de sujeito. Ocorre, então, o que o autor chamou de mortificação do eu. Essas instituições são, pois, segundo o autor, “as estufas para mudar pessoas; cada um é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu” (p.22).

Dessa forma, esse processo de mortificação egóica compromete seriamente a estruturação subjetiva, ao invés de proporcionar ao sujeito uma reedição de sua história e de suas condutas, pois que tipo de identificação e de reconhecimento lhe é conferido de modo a torná-lo correto, revisto, transformado? Como é possível se transformar, sem ter em mãos algum modelo identificatório coerente e que implique o investimento afetivo do ser?

Ao contrário, pois, do que deveria ser esperado dessas instituições, uma série de elementos negativos são introduzidos perante aquilo que se conseguiu ser, ao mesmo tempo em que a única opção se faz no sentido de subordinação, de dependência e de humilhação, o que torna inviável transformar a falta radical de todo ser humano em produção social. Em outras palavras, nada acontece de modo a mostrar ao indivíduo que vale a pena o adiamento do seu próprio prazer para a convivência, para as trocas permeadas por uma Lei mediadora. Nada o impele para uma autonomia social viável.

Assim, no modelo prisional, há uma enorme barreira colocada entre o indivíduo e o mundo lá fora, o que faz com que se perca, em muito, a dimensão do passado, presente e futuro, além de produzir, no interno, um desinvestimento radical dos papéis, valores e crenças que significaram sua vida pessoal. Além disso, o indivíduo enclausurado passa a ter que se deparar com a perda do seu próprio nome, com uma insegurança física diária, sem falar na perda total de sua intimidade, seja nos ritos de higienização corporal, seja na relação afetiva com o outro. Esses elementos provocam, a olhos vistos, a violação de sua própria identidade e, portanto, de toda linhagem simbólica que o significou até então.

Disso tudo, um tipo de resposta defensiva precisa ser composta e qual a única saída se não a submissão a uma ordem que disciplina e que corrige através de um adestramento fundado na decomposição dos elementos de sustentação da própria subjetividade? Nessa lógica de funcionamento coercitivo, “violenta-se a autonomia do ato”, como explica Goffman (1961, p.42).

 

A lei enquanto estruturante: uma reviravolta de sentido acerca do aprisionamento

Aqui, vale a pena considerar que o estatuto de sujeito, a partir do referencial psicanalítico, implica exatamente um desprendimento de uma realização ilusoriamente plena e um mergulho no mundo simbólico como possibilidade de significar a falta e passar a coexistir na realidade coletiva através de um pacto que remete à mediação de uma Lei. Essa assunção a um lugar simbólico tem, por sua vez, como condição fundamental, a de que o outro passe a ser visto não mais como assegurador de onipotência, mas como interpelado também pelo grande Outro significado pela linguagem. Isso implica, pois, no sujeito como uma realidade autônoma, na medida em que desprende-se de uma radical alienação no outro, para se jogar na dimensão da liberdade e, portanto, no mundo de trocas, perdas e ganhos que toda e qualquer opção requer. Nesse caso, a submissão se daria direcionada ao Código, mas um Código que assegurasse a possibilidade de escolhas viáveis socialmente.

Contudo, como é possível se pensar num processo onde uma ressignificação subjetiva pode ser viabilizada, levando-se em consideração um objetivo em torno do humano, se essa autonomia do ato que é fundamental para que o estatuto de sujeito seja exercido é o tempo todo exaustivamente aniquilada, mantendo-se firmemente o nível de alienação às últimas conseqüências?

O que poderia ser possível para esses seres chamados presos senão o que Goffman (1961) denomina de “ajustamentos secundários”, que são estratégias de saída, onde se possa minimamente exercer individualidade? Estratégias essas que estão longe de se firmarem em função de um Ideal coletivo de cidadania? O movimento ego-narcísico seria, exatamente, o de se livrar da humilhação, acionando os mecanismos de defesa e de preservação dos Ideais até então compostos enquanto sustentação subjetiva.

Aliás, é isso mesmo que o aprisionamento acaba por produzir, um tipo tal de ajustamento, no qual se possa manter minimamente a integridade subjetiva, em que se possa ter “uma forma de abrigo para o eu, uma churinga, em que a alma parece estar alojada” (Goffman,1961,p.54). Cria-se, pois, uma série de codificações e uma ética informal de convivência que possibilite um mínimo de exercício de autonomia. Coloca-se a Lei maior da sociedade entre parênteses (pois ela não assegura a possibilidade de ser e atuar enquanto gente que escolhe, sente, ganha e perde) para que se faça valer uma norma outra que assegure um nível de atuação, na maioria das vezes radical, para esses indivíduos. Por mais que se interne, por mais que se contenha o outro no aprisionamento, como possibilitar uma transformação egóica se a dimensão de liberdade – condição imprescindível diante do confronto com a falta de completude – é a todo tempo aniquilada?

Na lógica do discurso penitenciário, parece que a única identificação possível pressupõe a relação de um outro – detentor de poder e, portanto, infalível (poder de polícia) – com um outro totalmente desinvestido pela sociedade, ou melhor, investido sim, mas como marginal, monstro atroz, desumano. Como reinserir socialmente, sem a perspectiva de uma autonomia viável socialmente?

Daí o forte equívoco (enquanto infinitas possibilidades de significações) da penitência, equívoco este que faz saltar aos olhos uma série de significados nem sempre possíveis de entendimento consciente por estarem ligados àquele desejo primitivo de aniquilamento do outro pela diferença que este suscita e pela ilusória onipotência de alguns, que tantas vezes encontra respaldo radical no dinheiro e no exercício de poder sobre os outros. Equívoco que se deixa captar pelas próprias contradições do sistema, uma vez apontadas por Foucault (1987). É, portanto, num mesmo movimento para tratar esses seres desviantes que se dão atuações tão distintas e contraditórias. Por um lado, um discurso manifesto calcado na liberdade, fraternidade e igualdade, mas, por outro, uma busca incomensurável pelo afastamento do que delinqüe em relação a tudo o que possa ser nomeado como humano.

Disso advém a necessidade do se dar conta acerca desse tipo de proposta de reinserção social baseada no ideal cartesiano, que tem sido constituída no âmbito da perpétua marginalidade e delinqüência, visto que é este o único espaço de reconhecimento que tem sido oferecido ao indivíduo em detenção. Assim, que outra forma de tratar seria possível num contexto onde só se reproduz a exclusão em função de uma incompetência social? Ou seja, se a lógica desse discurso fala, na maioria das vezes, de maneira não-dita, num indivíduo ruim por natureza e que por esse motivo deve ser afastado, a realidade atual do enclausuramento contemplaria, realmente, a alternativa mais coerente.

Mas, na verdade, o que mais deixa entrever esse tipo de lógica e de tratamento é a revelação de uma cultura que ainda não formulou estratégias de conciliação das diferenças entre os sujeitos que a compõem. E essa falta de estratégias que somente a cultura pode engendrar é o que acaba por fazer da instituição prisional e penitenciária um puro exílio, onde se dá a crispação do corpo e da alma do aprisionado, de modo que, mesmo depois, ao se deparar com o mundo exterior, não lhe seja mais possível desejar e produzir a não ser pelo registro do aniquilamento do outro, na medida em que o selo da incompetência, da maldade e do enclausuramento em si mesmo foi-lhe, de uma vez por todas, destinado. Pergunta-se, então: o ideal cartesiano tem dado conta do sujeito e de suas vicissitudes enquanto ser humano?

De acordo com a concepção de sujeito assumida pela Psicanálise, a idéia de estrutura psiquicamente sadia gira em torno de um pacto que, como já referido, inicia-se no nível triangular entre pai-mãe-filho e, depois, precisa ser estendido ao nível mais amplo do contexto cultural. Aí, é fundamental que, de todas as partes, haja a mediação dessa Lei, o grande Outro, símbolo por excelência, que regula, define e destina o desejo de todos, mas faz isto de uma maneira a assegurar as trocas imprescindíveis para que o pacto se faça valer no seio da sociedade. Assim, a Lei adquire novo sentido nesta outra concepção de subjetividade. Fala-se, pois, numa Lei que estrutura. E a própria norma cultural implica, intimamente, o atravessamento por esta Lei estruturante. Ou seja, as leis que se expressam no âmbito normativo, através dos códigos escritos, devem ser, elas mesmas, interpeladas por uma Lei Ideal, uma Lei que traga a possibilidade de trocas em meio às vicissitudes do humano.

É só nessa medida que a identificação fálica pode se dar ligada a qualquer conteúdo de idéias, representações ou condutas viáveis socialmente. Caso contrário, seria travada uma luta interminável entre o poder marginal e o poder policial, como, aliás, acontece não muito raramente na realidade das instituições penitenciárias, cujo objetivo final reflete a busca por um poder apenas ilusório de uns sobre os outros.

Aqui, faz-se importante retomar as palavras de Pellegrino (1987), quando diz que:

“A Lei não existe para aniquilar o desejo, aviltando-o ou degradando-o. Ao contrário, existe como gramática capaz de articulá-lo com o circuito de intercâmbio social.” (p.313).

Para que essa articulação seja então possível, o Ideal de Ego, que se contrapõe ao ego-narcísico ilusoriamente infalível, torna-se preciso enquanto elemento norteador do sujeito na vida sócio-cultural.

Se esses modelos representativos do Ideal de Ego são desinvestidos, ao ponto de não mais exercerem força identificatória para os sujeitos sociais, acaba-se por nutrir o que Costa (1988) chama de “cultura narcísica da violência”.

Segundo esse autor, esse tipo de cultura enraíza-se numa moral fundada na razão cínica, onde os valores efetivadores de trocas solidárias na vida social são totalmente subvertidos em nome de um realismo perante a vida coletiva. Nessa lógica, a violência é tida como inevitável, e essa crença é estabelecida através do convencimento de que o único caminho ao qual toda Lei direciona é a violência, convencimento que se dá a partir da própria realidade, onde a impunidade e o enriquecimento ilícito, dentre outros crimes, vêm a tona a todo momento.

O discurso do cínico seduz, então, porque tem respaldo visível na vida prática, evidenciando o sintoma, mas escamoteando sua produção, como explica o referido autor . Daí a reprodução cada vez mais evidente de uma realidade atravessada por leis que se estabelecem em função do apagamento das diferenças, na medida em que a crença fomentada diz que esse é o único caminho, inevitavelmente. Aí, a própria lei não se faz enquanto Ideal, mas nutre o apaixonamento narcísico ao conferir poder de exclusão, e não de trocas. Nesse sentido, Costa (1988) comenta:

“Não há por que empregar meios-termos. O discurso cínico, refletidamente ou não, avaliza a prática social mais suja, calhorda e ensandecida que se possa imaginar. Por meio de exemplos ou argumentos, o que se diz ao homem comum é que ele só tem saída se vier a compactuar com a violência e a escroqueria.” (p.133)

Além do mais, o referido autor salienta que esse tipo de moral se manifesta brutalmente nas condutas sociais. O indivíduo passa a gerir-se a partir do registro ilusoriamente investido de que o espaço coletivo implica exercício de poder sobre o outro e aniquilamento. É nesse contexto que “a cultura da violência rapidamente degenera em cultura da delinqüência. O desaparecimento do Ideal coletivo dá lugar ao surgimento da figura do fora-da-lei, como imagem Ego-Ideal” (Costa, 1988, p.133). Assim, o ego-narcísico é levado às últimas conseqüências, inclusive ao extermínio de si mesmo e do outro, seja colocando-o à margem ao anulá-lo enquanto sujeito social, seja isentando-o da própria vida através do crime de sangue.

 

Considerações finais

Em meio a tudo isso, a própria delinqüência pode ser entendida como um tipo de estratégia de continuar a existir enquanto sujeito, mas sujeito alienado numa imagem narcísica radical, onde os Ideais do Ego estão longe de sustentar a dinâmica dos conflitos e desejos psíquicos. Daí o delinqüente atuar através da via de busca pela completude a todo custo, inclusive a custo de si mesmo e do outro, numa realidade produzida pela desmoralização e falência dos Ideais expressa pela decadência moral da sociedade.

Assim o sujeito, em sua dimensão de cidadão, é desinvestido a tal ponto que, se é para ser um de fora, ele radicaliza. Nas palavras de Costa (1988), “o delinqüente é a forma que o homem supérfluo encontra de sobreviver socialmente na cultura da violência” (p.133).

Ao levar em consideração todos os aspectos observados, fica difícil pensar no discurso humanitário, uma vez objetivado nas leis que regem o sistema penal, como estruturadores do ser. Isso porque a própria articulação desse discurso passa a ser compreendida em torno de significantes que apontam para um equívoco intenso, a partir do qual não há apenas a contradição intencional desse discurso tal como foi discutida por Foucault (1987), mas, também, uma contradição não intencional parece existir e produzir efeitos.

Enfim, que Ideais poderiam ser pensados enquanto elementos significantes da lógica discursiva norteadora da penitência senão a impunidade, o vale-tudo, o poder de matar e de morrer? Afinal,

“Por seu raciocínio, depois de um delinqüente ter sido submetido a castigo injusto ou excessivo, bem como a tratamento mais degradante do que prescrito pela lei, passa a justificar o seu ato – o que não podia fazer quando cometeu. Decide “descontar” o tratamento injusto na prisão, e a vingar-se, na primeira oportunidade, através de outros crimes. Com essa decisão, torna-se um criminoso ” (McCleery, 1953, citado por Goffman, 1961, p.56).

Por tudo isso, o que se vê não é outra coisa senão os indivíduos, uma vez desacreditados pelo corpo social, lutando entre si, sem nenhuma mediação simbólica validando as relações. Cada um se salva como pode. Cada um assegura o mínimo de autonomia subjetiva como pode. E assim, vêem-se presos que lutam com fogo nos colchões, paus e palavras vãs contra policiais que tentam assegurar o exercício de poder com rajadas insensatas de metralhadoras. Luta contra a vida e a favor da morte, aliás morte que se inicia antes mesmo dos tiros e das palavras vãs. Morte de desejos, morte de limites, morte de solidariedade, morte da humanidade enclausurada.

E, assim, o ideal de sujeito que tem estruturado o sistema penitenciário parece somente reproduzir a criminalidade e, por não atentar ao sujeito enquanto ser desejante, não proporciona uma transformação egóica civilmente constituída.

Essa transformação não é ficção, é produto de uma prática histórica e está intimamente ligada a uma questão ética, onde se leve em conta a dimensão da solidariedade entre as pessoas, ou seja, onde o nível do igualamento especular seja possível no reconhecimento de si e do outro enquanto condição humana. Se esse nível primeiro de elaboração não for possível, então o mais não será, na medida em que uma Lei enquanto Ideal de Ego só é demandada se a dimensão de alteridade estiver implicada.

 

Referências bibliográficas

Apolinário, H. (1998). A ética cidadã: uma dimensão dos direitos humanos. Direitos humanos, ed. especial, 44-53.        [ Links ]

Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas.

Costa, J. F. (1988). Narcisismo em tempos sombrios. Em H. R. Fernandes (org.), Tempo do desejo (pp.109-136). São Paulo: Editora Brasiliense.        [ Links ]

Chechinato, D. (1988). A Clínica Da Psicose. Campinas: Papirus.

Chemama, R. (1995). Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas.

Dor, J. (1991). O Pai E Sua Função Em Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Dor. J. (1992). Introdução à leitura de Lacan (Vol 2). Porto Alegre: Artes Médicas.

Dornelles, J. R. W. (1998). Sobre a fundamentação histórica e filosófica dos direitos humanos. Direitos humanos, ed. especial, 44-53.

Ferreira, A. B. de H. (1986). Novo Dicionário Aurélio Da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.        [ Links ]

Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópoles: Vozes.

Foucault, M. (1987). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária.

Foucault, M. (1995). História da loucura. São Paulo: Editora Perspectiva.

Garcia-Roza, L. A. (1996). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.        [ Links ]

Goffman, H. (1961). Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Ed. Perspectiva.

Leite, N. (1994). Psicanálise e análise do discurso: o acontecimento na estrutura. Rio de Janeiro: Campo Matêmico.        [ Links ]

Lemos, M. T. G de (1994). A língua que me falta: uma análise dos estudos em aquisição de linguagem. Tese de Doutorado, IEL/UNICAMP.        [ Links ]

Lier-de-Vitto, M. F. (org). (1994). Fonoaudiologia: no sentido da linguagem. São Paulo: Cortez.

Machado, R. (2000). Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.        [ Links ]

Pêcheux, M. (1990). O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes.

Pellegrino, H. (1987). Édipo e paixão. Em A. Novaes (org.), Os sentidos das paixões. São Paulo: Companhia das Letras.

Rassial, J.J. (1994). O adolescente e o psicanalista. Porto Alegre: Artes Médicas.

 

 

Endereço para correspondência
Patrícia Oliveira Lira
Av. Mário Álvares Pereira de Lyra, 754 - Iputinga
50670-130 Recife-PE
Tel.: +55-81-3453-8577. Fax: +55-81-3272-1913
E-mail: patriciaolira@hotmail.com

Glória Maria Monteiro de Carvalho
Universidade Federal de Pernambuco
Pós-Graduação em Psicologia
CFCH, 8º andar
Rua Acadêmico Hélio Ramos, s/n - Cidade Universitária
50670-901 Recife-PE
Tel.: +55-81-3271-8272 / +55-81-3271-0599. Fax. +55+81-3423-9800
E-mail: gmmcarvalho@uol.com.br

Recebido em 19/04/01
Aprovado em 20/10/01

 

 

* Psicóloga clínica com especialização em Intervenção Psicossocial à Família no Judiciário pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Responsável por elaboração e execução de projeto junto a crianças e adolescentes vítimas de omissão e violência familiar.
** Psicóloga, Doutora em Ciências pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Professora do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Pesquisadora na Área de Aquisição da Linguagem – UFPE/FACEPE.