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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.3 Brasília Sept. 2002

 

ARTIGOS

 

A saída do sujeito sem alta médica. A discussão sobre a autonomia e a postura do profissional psicólogo1

 

 

Adilson Rodrigues Coelho*

Conselho Regional de Psicologia – 4ª Região
Universidade do Vale do Rio Doce - Governador Valadares - MG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto analisa a saída do sujeito do ambiente hospitalar sem autorização do médico. Apresenta ainda uma concepção sobre a Ética, entendida como um processo dialético entre os costumes da sociedade e a afirmação da liberdade do sujeito. Em seguida, o texto aborda a Bioética explicitando a etimologia da palavra Autonomia e sua relação permanente com a Heteronomia, tecendo as principais críticas do século XIX e XX a esse conceito. O texto também destaca maneiras de se controlar a influência dos profissionais de saúde sobre os usuários e finalmente ressalta os aspectos importantes sobre a postura do profissional psicólogo frente à questão inicial.

Palavras-chave: Ética, Autonomia, Heteronomia, Postura do profissional psicólogo.


ABSTRACT

This text analyzes the exit of the subject from the hospital environment without medical authorization. It also shows a vision about Ethics, understood as a dialectic process between society customs and the statement of the subject freedom. Next, the text approaches the Bioethics dealing with the etymology of the word Autonomy and its permanent relationship with the Heteronomy, displaying also the main criticism of the XIX and XX centuries about this concept. The text also deals with ways to control the influence of the health professionals over the clients and, finally, emphasizes important aspects about the posture of the professional psychologist regarding the initial matter.

Keywords: Ethics, Autonomy, Heteronomy, Postures of the psychologist professional.


 

 

Este artigo é o resultado de um convite feito ao autor para participar de uma mesa-redonda onde seria discutida a saída de sujeitos do hospital sem que o médico fornecesse o atestado de alta. Essa situação conflituosa é causada pelo envolvimento, de um lado, da percepção dos médicos e dos estabelecimentos da necessidade de se manter a internação de determinada criança, adolescente ou adulto e, de outro lado, do desejo dos representantes legais e/ou do sujeito adoentado em sair do hospital.

Percebe-se, nessas situações, o desejo do pai, mãe, responsáveis ou do próprio sujeito de se retirar do hospital, fundamentado em motivos diversos, mas geralmente oriundos do próprio impulso daqueles de se afastar do nem sempre desejável ambiente hospitalar.

Por outro lado, tem-se, por parte dos profissionais de saúde e funcionários do hospital (experientes e conscientes das conseqüências da indevida saída do sujeito do ambiente hospitalar), a percepção da necessidade de se dar o devido tratamento demandado pelo estado de saúde do sujeito, o qual somente deveria sair do hospital após obter a alta hospitalar, que deve ocorrer (segundo a freqüente posição dos profissionais de saúde) tão somente via critérios da ciência médica, visando sempre à saúde do paciente, e jamais o interesse de terceiros.

Essa questão gera conflitos entre os profissionais de saúde e os sujeitos envolvidos. A situação provoca angústia tanto entre os sujeitos que estão pondo em questão a sua saúde, quanto entre os profissionais de saúde, que vêem o seu conhecimento e a sua autoridade sendo expostos a esses questionamentos.

Essa situação levou o autor a explicitar alguns conceitos que são pressupostos importantes para fundamentar a sua posição no final do texto. Para isso, ele comentará o conceito de Moral e Ética e sua construção pelo sujeito no engajamento constante dentro da sociedade em que vive, estabelecendo um diálogo crítico e permanente com os costumes.

Em seguida, o autor abordará o conceito de Autonomia e sua relação dialética com a Heteronomia. Será comentada a tensão existente entre a autonomia dos sujeitos adoentados, pouco estimulada pela nossa sociedade e geralmente não desejada pelo sujeito fragilizado pela doença, e o freqüente paternalismo da sociedade e dos profissionais de saúde, que, muitas vezes, acreditam estar lutando pelo bem do sujeito, oferecendo, sugerindo ou coagindo o mesmo a tomar ou permitir uma intervenção terapêutica.

Ao final do texto, ficarão explícitos os principais aspectos referentes à saída dos sujeitos adoentados sem a alta médica, sob a leitura e intervenção do psicólogo.

 

O movimento dialético da Ética

A Ética é um tema recorrente na sociedade, quando esta passa por uma crise de valores, através de uma procura insistente pelo certo e pelo errado. Ribeiro (1993) enfatiza que a Ética está muito além de uma lista do certo e do errado. Ela pressupõe uma permanente construção do sujeito e também um embate constante com os costumes da sociedade. Para que essa posição fique clara é necessária a explicitação dos conceitos de Moral e de Ética.

A Moral é a codificação das regras, dos costumes sedimentados pela sociedade. Essas regras ou condutas se formam quando a sociedade reflete sobre princípios, valores, normas de ação e ideais. Muitas vezes, esses aspectos são expressos pelas normas sistematizadas da nossa sociedade. Desta maneira, elas se transformam em leis regulamentadas pelas diversas organizações sociais. Com o passar do tempo, essas normas aceitas e reafirmadas pela comunidade se transformam em tradição.

A Ética, palavra grega (Ethos) que significa morada ou habitat humano, envolve a construção que o homem faz de sua própria conduta. Ela pressupõe a edificação de regras de direcionamento pessoal, que é edificada, conflitiva e dialeticamente, entre:

l As determinações genéticas, sociais, econômicas e políticas, que fazem do homem um ser arremessado no mundo não escolhido por ele;

l As múltiplas escolhas que o homem tem que tomar diante da vida. Escolhas essas que o colocam frente à sua liberdade e à sua responsabilidade diante de seus atos.

Poderíamos dizer, então, que a Ética é um movimento dialético, que coloca o homem dentro de uma tríade, no qual ele terá necessariamente que se posicionar. Essa tríade é composta da seguinte forma: a Lei, ou o que é estabelecido pela sociedade e que geralmente está sistematizado pela comunidade; a Liberdade, constante presença na vida humana apesar de todas as suas determinações (por isso, destaca-se que o homem é um ser que está condenado a escolher), e o Bem, ou Eudamonia em grego, que significa a procura do melhor para mim e para a minha sociedade.

Esse processo ético não se estabelece de uma maneira imediata. O homem tem que vivenciá-lo e construí-lo. Portanto, o processo ético constitui-se na passagem que o ser humano faz ao deixar de ser criança e estar permanentemente vinculado às normas e proteção dos pais ou seus substitutos para um maior conhecimento de si mesmo, perseguindo uma maior maturidade, liberdade e responsabilidade (Figueiredo: 1995).

Rollo May, psicólogo americano, destaca que, ao sair dessa proteção infantil, desse ficar ancorado nos valores dos outros, o homem paga um alto preço, que é a insegurança e o medo diante do desconhecido. Ele nos diz: “A emergência de uma nova vitalidade quebra sempre, até certo ponto, os costumes e as crenças em vigor, ameaçando e provocando ansiedade tanto nos que detêm o poder, como na pessoa em crescimento”. (Rollo May: 1994,154)

A construção ética do sujeito é edificada destacando a sua posição e o seu relacionamento com a comunidade. No século XIX, esse confronto entre as necessidades individuais e o interesse dos estados em sua intervenção nas ações do indivíduo se tornou uma questão importante porque esses confrontos estavam mais presentes na sociedade da época. Os conflitos, conseqüentemente, se expressaram fortemente nas questões da saúde, exigindo assim a criação da disciplina de Bioética, isto na segunda metade do século XX.

 

Bioética

A saúde da população começou a ser pensada pelos estados de maneira sistemática a partir do final do século XVIII e com intensidade maior no século XIX. Do século XVIII, podemos relembrar a presença da Revolução Francesa, trazendo várias preocupações dos cidadãos para o terreno da discussão política, ou seja, da organização da vida em sociedade. Esse período foi importante para as demandas organizadas pelos trabalhadores durante todo o século XIX, no sentido de proporcionar melhores condições de moradia, saúde e educação para os cidadãos.

No século XX, com o crescimento vertiginoso da tecnologia, o avanço contínuo da ciência em todos os campos, as duas guerras mundiais com sua devastação e mortalidade assustadora, surgiram muitas questões éticas, ou seja, questões que perpassaram a relação do indivíduo com a sociedade. Dallari destaca de maneira brilhante essa preocupação:

“... a possibilidade de conflito entre os direitos de uma determinada pessoa e os direitos pertencentes ao conjunto da coletividade pode ser imediatamente evidenciada e, talvez, os totalitarismos do século XX, supostamente privilegiando os direitos de um povo e, nesse nome, ignorando os direitos dos indivíduos, sejam o melhor exemplo de uma das faces da moeda. A outra face pode ser retratada na destruição irreparável dos recursos naturais necessários à sadia qualidade de vida humana, decorrente do predomínio do absoluto direito individual à prosperidade.” (Dallari: 1998, 208/9)

Com esse panorama de acontecimentos históricos e também com a evolução dos instrumentos para lidar com a questão da saúde, nasce a preocupação com a Bioética. Podemos defini-la como sendo “...o estudo sistemático da conduta humana no âmbito da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e princípios morais...” (Barchifontaine: 1996, 30)

A Bioética abarca a ética médica, porém não se limita a ela. Ela constitui um conceito mais amplo, com quatro aspectos importantes:

• Compreende os problemas relacionados aos valores que surgem em todas as profissões de saúde, inclusive ‘afins’, e nas vinculadas à saúde mental;

• Aplica-se às investigações biomédicas e às do comportamento, independentemente de influírem ou não de forma direta na terapêutica;

• Aborda uma ampla gama de questões sociais, as quais se relacionam com a saúde ocupacional e internacional e com a ética do controle de natalidade, entre outras;

• Vai além da vida e da saúde humanas, enquanto compreende questões relativas à vida dos animais e das plantas, por exemplo, no que concerne às experimentações com animais e as demandas ambientais conflitivas.

O início formal da Bioética se dá em 1962, através da publicação de um artigo na revista Life intitulado: Eles decidem quem vive e quem morre. Esse artigo descreve a formação de um comitê criado com o objetivo de decidir os critérios para selecionar pacientes para o programa de hemodiálise crônica. A solução foi constituir um grupo de profissionais, na sua maioria não médicos, que decidiriam sobre as prioridades que determinariam a escolha (Barchifontaine: 1996, 16).

Doravante, os profissionais de saúde foram envolvidos diretamente em questões singulares, tais como: aborto, tecnologias reprodutivas, patenteamento genético, qualidade ambiental, experimentação humana, órgão e tecidos artificiais, transplantes, a morte e o morrer, eutanásia, suicídio assistido, dentre outras.

 

A definição da Autonomia e sua relação com a Heteronomia

A questão que instigou as reflexões deste artigo, ou seja, a saída do sujeito do ambiente hospitalar, exige a discussão de um conceito específico dentro da Bioética, que é o de Autonomia. Será explicitada sua etimologia e também alguns aspectos pertinentes a ele.

Etmologicamente, Autonomia é palavra de origem grega composta pelo adjetivo pronominal autos, que significa “o mesmo”, “ele mesmo” e “por si mesmo”, e pelo substantivo nomos, com o significado de “compartilha”, “instituição”, “lei”, “norma”, “convenção” ou “uso” (Castoriadis, Apud Schramm (1998).

Filosoficamente, “autonomia” indica a condição de uma pessoa ou de uma coletividade, capaz de determinar por ela mesma a lei à qual se submeter. Seu antônimo é “heteronomia” (Lalande: 1972).

Tanto a etimologia quando a ênfase filosófica nos apontam para a relação do indivíduo ou de uma sociedade com algo que lhe vem de fora. A determinação por si mesmo só pode ser pensada em referência ao que é enfatizado, inscrito, legislado pelo outro. Nesse sentido, a Autonomia é pensada necessariamente como uma relação dialética com a Heteronomia.

“Assim sendo, “autonomia” e “heteronomia” fazem parte de um conjunto complexo, cujos elementos são, em princípio, distinguíveis (para evitar a confusão) e inseparáveis (para evitar o reducionismo), e é nisso que a concepção complexa se diferencia, por exemplo, da holística” (Schramm: 1998,30).

A revolução moderna, através de René Descartes, enfatizou o sujeito como substância, realidade imediatamente dada a um sujeito que reflete sobre si mesmo, e essa certeza indubitável é signo de sua realidade primordial. Dominar seus pensamentos é signo da autonomia humana e, ao mesmo tempo, é índice de certeza de todos os conhecimentos que puder atingir no exercício da razão (Descartes: 1988).

A nossa contemporaneidade abalou profundamente essa concepção de sujeito. Autores filósofos questionaram essa concepção a partir da segunda metade do século XIX, mas foi Freud quem provocou a ferida narcísica mais profunda na ilusão humana. A descoberta freudiana veio desmitificar o domínio absoluto sobre os nossos pensamentos e nossas emoções. A afirmação do conceito de Inconsciente, a separação rigorosa entre o consciente e o inconsciente e, em conseqüência, a não possibilidade de acesso total ao nosso íntimo, levou ao desmoronamento da identificação entre identidade e clareza, entre sujeito e substância. Freud postulou que o homem não é dono nem de sua própria casa e a possibilidade de conhecimento total de si mesmo é uma ilusão e um empreendimento impossível(Freud: 1900/1976 e 1917/1972).

Os autores que debatem a Bioética consideram que a Autonomia é um processo difícil, que deve ser perseguido cotidianamente:

“A obscuridade, a fragmentação, a dispersão, a exteriorização, a alienação podem nos indicar, também, que o sujeito é uma tarefa que cada um tem a cumprir, isto é, cada um deve constituir-se como sujeito atravessando as agruras e dificuldades de uma história que nos projetou para fora de nós mesmos. Autoconstituir-se como sujeito, chegar à instância do si-mesmo seriam, sob esta ótica, muito mais um objeto e uma meta do que um ponto de partida natural” (Segre & Silva & Schramm: 1998).

A Autonomia, na história, sempre esteve em conflito com a Heteronomia, principalmente com a sua expressão paternalista, quer dizer, à forma de resolver os problemas de autoridade, poder, obediência e liberdade através dos meios tradicionais embasados na estrutura familiar patriarcal, na qual o pater decide e faz todas as escolhas. Esse paternalismo é muito freqüente no ambiente hospitalar, onde os profissionais de saúde assumem a figura do pater, influindo de maneira decisiva e abusiva nas decisões do sujeito adoentado e fragilizado. Essa postura heterônomica é derivada da formação profissional, onde os profissionais de saúde aprendem uma atitude autoritária em relação aos usuários dos serviços de saúde.

As posturas paternalistas podem ser combatidas com um movimento para a mudança de atitudes dos profissionais de saúde. Essa mudança enfoca necessariamente o esclarecimento do sujeito adoentado de todo o processo relativo à moléstia, que se estende desde a comunicação clara do diagnóstico, às terapias indicadas, o prognóstico e até os efeitos colaterais provocados pelos medicamentos. Dessa forma, o sujeito poderá dar o seu consentimento esclarecido sobre os procedimentos a serem tomados em relação à sua doença. (Marchi e Sztajn: 1998)

 

A saída do sujeito do ambiente hospitalar: questões preliminares

Para a nossa discussão específica, é necessário expor aspectos da Autonomia em relação à criança e aos adolescentes. O paternalismo é muito defendido nestes casos, na medida em que os sujeitos são ainda considerados incapazes para tomarem uma decisão em relação a si mesmos.

Em primeiro lugar, é necessário apontar toda a legislação que resguarda os deveres e direitos da criança e dos adolescentes. As obrigações dos pais e familiares estão expressos na Constituição Federal (Oliveira: 1998), em seu artigo 227, que dispôs assim: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

No caso da eventual saída de crianças e adolescentes do ambiente hospitalar, os pais e responsáveis devem estar cientes de que podem ser responsabilizados, caso seja constatada eventual omissão em suas condutas. E no caso dessa saída ocasionar óbito ou lesão à integridade corporal ou saúde da criança, tal fato caracterizaria, em tese, crime de homicídio culposo ou lesão corporal culposa, praticado por omissão. A pena para esse crime está explicitada no artigo 13 do Código Penal Brasileiro, dispondo esse artigo que a pena é relevante quando o agente devia e podia agir para evitar o resultado (Sirihal: 2000).

Complementando a Constituição Federal, a nossa sociedade teve a necessidade de regulamentar uma lei específica para proteger adequadamente a criança e o adolescente. Nesse sentido, houve a afirmação da Lei nº 8.069, de 13.07.1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA - (Oliveira: 1997). Essa lei tem artigos específicos que visam a resguardar a criança e os adolescentes de maus-tratos, violência e omissão no que diz respeito à sua saúde. Podem ser destacados dois artigos em especial:

Art. 12. Os estabelecimentos de atendimento à saúde deverão proporcionar condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de internação de criança ou adolescente;

Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

Esses artigos do ECA estabelecem uma proteção e um cuidado com a criança e o adolescente na medida em que estes são considerados incapazes de tomarem a melhor decisão para si mesmos. Incumbe aos pais e responsáveis a decisão a respeito dos procedimentos a serem utilizados quanto à assistência médica (Campos: 2000).

Essas duas posturas acima enfocam os deveres e os direitos que a sociedade estabeleceu para a promoção e a proteção da criança e da família. De modo geral, apoiamos essas condutas. Olhando com mais cuidado para elas, poderíamos, segundo Leone (1998), apontar algumas especificidades, que não só manteriam a proteção aos sujeitos envolvidos, mas também estimulariam a aquisição da autonomia. Tomando com referência as idéias de Leone, explicitaremos duas especificidades desta situação:

• é preciso não ser ingênuo em relação ao cuidado com as crianças e adolescentes. Nesse sentido, é necessário estarmos atentos e não aceitarmos uma crença numa atitude paternalista romântica, que induz à certeza de que, sendo a criança e o adolescente seres incapazes, e portanto, indefesos, todos os adultos farão tudo e o tempo todo visando aos benefícios para estes;

• outro ponto é o fato de a legislação protetora nivelar todas as crianças e os adolescentes em um mesmo patamar de desenvolvimento. Há a necessidade de estarmos atentos para o fato de que a autonomia não é conseguida de uma hora para outra e também de que existe um processo de desenvolvimento e amadurecimento desses sujeitos que não pode ser desconhecido.

Leone enfatiza também a necessidade de os profissionais de saúde estarem preparados para discernir em qual etapa de desenvolvimento a criança ou o adolescente se encontra, para que seja proporcionado aos sujeitos envolvidos um grau adequado ao seu momento específico de desenvolvimento e amadurecimento, uma participação na tomada de decisões a respeito de sua terapêutica. O autor tem consciência de que esse procedimento é um desafio tanto para os sujeitos, que se sentem estimulados ou amedrontados em assumir uma decisão, quanto para os profissionais de saúde, que são questionados em relação ao seu paternalismo e têm de estar abertos para abdicar um pouco de sua costumeira autoridade. Vale a pena citar o autor em sua conclusão:

“Na realidade, o que deve existir é a construção conjunta de uma verdade para aquele momento, amadurecida no crescimento e evolução de todos, juizes e legisladores, pais ou responsáveis, médicos e profissionais de saúde e, principalmente, a criança e o adolescente, como parte de um processo de interação franco, sincero, isento e realmente participativo que de fato respeite a autonomia, qualquer que seja o nível de competência que a criança ou o adolescente estejam apresentando para tal” (Leone: 1998, 54).

 

A postura do profissional psicólogo frente à situação em questão

Foi necessário abordar todos esses aspectos para chegarmos, com mais subsídios, à questão inicial que se colocou para reflexão: a postura do profissional psicólogo diante da saída do sujeito sem uma alta médica do ambiente hospitalar.

Há que se acentuar que essa é uma situação desafiadora para o psicólogo, pois este irá se envolver numa situação singular, colocando-se à escuta de uma situação que envolve vários aspectos que precisam ser considerados dentro de um conjunto mais amplo, necessitando privilegiar os sujeitos envolvidos na questão.

Num outro texto, escrito pelo autor em 1998, já se destacava a atuação específica do profissional psicólogo dentro do ambiente hospitalar:

A abordagem clínica no hospital é fundamental para nós psicólogos, ou seja, estarmos à escuta do desejo do sujeito adoentado é escutarmos suas necessidades e suas motivações, mas irmos além dessas. É preciso que façamos tudo para que o doente se transforme, de paciente, isto é, aquele que espera e coloca sua saúde ou doença na mão do outro, em sujeito, agente e participante de sua condição de saúde. Nesse sentido, o trabalho de todo o profissional da saúde e particularmente do psicólogo é fazer emergirem as possibilidades e recursos de cada sujeito para o convívio com seu estado atual, buscando aclarar o significado das atitudes de sua vida e da compreensão de sua doença (Coelho: 1998,34).

A situação em pauta não tem uma resolução geral. é preciso estar atento a todos os aspectos envolvidos e com uma postura de escuta sobre as razões de cada personagem envolvido na cena. O psicólogo decidirá caso a caso, respeitando a singularidade do momento. Como profissional de saúde, tem responsabilidade com o local onde trabalha e também com os sujeitos que estão sendo atendidos. É preciso que seja estimulada a autonomia do sujeito, mesmo estando ele numa situação fragilizada.

A saída do sujeito do hospital sem a conseqüente alta médica é um fato que desafia os conhecimentos teóricos e práticos do psicólogo. Conhecem-se diversas situações onde os sujeitos envolvidos tomaram posições diversas. Há situações onde os sujeitos adoentados assumem uma posição passiva e aceitam que outros (pais, responsáveis ou profissionais de saúde) tomem a decisão por eles. Essas situações são as mais comuns e acontecem de forma rotineira nos ambientes hospitalares, reafirmando, assim, uma atitude paternalista e uma posição heterônomica. Há, entretanto, situações onde a autonomia do sujeito, mesmo fragilizado, é preservada. Como exemplo, gostaríamos de citar Darcy Ribeiro, professor e antropólogo brasileiro, que nos últimos anos de sua vida teve que se confrontar com um câncer, que o fragilizou bastante. Em sua penúltima internação, os médicos o aconselharam a permanecer mais tempo no hospital. Apesar desse conselho, Darcy Ribeiro fugiu do hospital, pois decidiu que o melhor para si mesmo era estar fora dali, numa tentativa de usufruir dos prazeres que a vida ainda podia lhe reservar.

Pode-se considerar a atitude de uma pessoa significativa, mas não se deve tomá-la como padrão, mesmo considerando todos os aspectos envolvidos em sua resolução. Creio que não se deve generalizar, pois cada situação reflete a singularidade dos elementos envolvidos.

Pode-se ainda ressaltar que a questão de saída do sujeito do hospital sem permissão do mesmo se coloca nos dias atuais em função de uma maior preocupação e atitude de respeito para com as decisões e posições do sujeito. Essa situação está sendo muito debatida, pois junto com a liberdade individual temos que ponderar até que ponto a comunidade será atingida e prejudicada com a atitude do sujeito de desconsiderar as normas hospitalares. A tensão entre a autonomia e a heteronomia se faz presente.

Respeitando a particularidade de cada situação, algo que todo o profissional da saúde tem a obrigação de analisar, podem-se e devem-se fazer algumas pontuações.

Para melhores esclarecimentos sobre a responsabilidade do psicólogo no hospital, o autor formulou a seguinte questão ao assessor jurídico do CRP-04: o psicólogo, fazendo parte de uma equipe de saúde, num hospital geral, assume juridicamente a responsabilidade com relação a todos os pacientes da Unidade onde está inserido, independentemente se foram ou não atendidos por eles?

O advogado do CRP-04 ressaltou que a resposta era complexa, mas que ele poderia dizer que: “... é relevante esclarecer que só o fato de estar o psicólogo compondo a equipe de saúde torna-o, em princípio, parte legítima a figurar como réu numa ação judicial de reparação de danos causados a um determinado paciente. O fato de ser legitimado a ser posto na posição de réu não implica a sua imediata responsabilidade. A questão está em: embora fazendo parte da equipe de saúde, teve o psicólogo alguma participação (ou omissão) no fato que conduziu ao prejuízo do paciente?”

Constata-se então, que o psicólogo não pode se omitir frente às situações-limite que o ambiente hospitalar proporciona. Sua conduta deve se pautar pelo conhecimento e respeito pelas normas do hospital, mas também pela escuta psicológica do sujeito que demanda a saída do hospital, fazendo com que a autonomia deste sempre seja estimulada.

Assim, pode-se concluir que as ações do psicólogo devem ser construídas de acordo com o processo ético ressaltado no início do texto. A angústia e a insegurança diante do novo, do desconhecido, não devem ser fonte de paralisia, mas ao contrário, devem impulsionar o psicólogo para o questionamento constante, tanto das posturas adotadas pelo hospital quanto dos sujeitos envolvidos. Com essas preocupações, o psicólogo poderá proporcionar mais intervenções prudentes e conscientes dos sujeitos envolvidos.

 

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Endereço para correspondência
Adilson Rodrigues Coelho
Rua Manoel Cordeiro da Silva, 855 - Morada do Vale
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Tel.: +55-33-3271-5344 / +55-33-3279-5081
E-mail : adilrco@uol.com.br

Recebido em 29/03/01
Aprovado em 20/10/01

 

 

1 Este artigo é fruto de discussão em mesa redonda sobre A saída do paciente do hospital sem alta médica, realizada em Outubro de 2000 pelo Hospital São Cristóvão e organizada pelas psicólogas Márcia Inês dos S. Mendes e Milene Sabini G. De Baros em Governador Valadares – M. G.
* Psicólogo (UFMG), Mestre em Filosofia (UFMG), Presidente da Câmara de Ética do Conselho Regional de Psicologia – 4ª Região (IX Gestão – 1998-2001), Professor de Ética Profissional da UNIVALE (Universidade do Vale do Rio Doce - Governador Valadares - M. G.) e Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da UNIVALE (2001).