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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.3 Brasília Sept. 2002

 

ARTIGOS

 

Por um programa preventivo em saúde mental do trabalhador na brigada militar

 

 

Fernanda Spanier Amador*; Kátia Santorum**; Charlotte Spode da Cunha***; Sandra Maria Braum****

Universidade de Santa Cruz do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo argumenta sobre a importância de políticas de Saúde e Segurança Públicas que sustentem programas voltados à saúde do trabalhador na Brigada Militar. Aborda, mais especificamente, a necessidade de ações preventivas e promotoras de saúde mental nesse âmbito.

Palavras-chave: Trabalho policial, Saúde mental.


ABSTRACT

The present article deals with the importance of public health and safety policies that sustain programs turned to the worker’s health in the military police. More specifically, it exposes the necessity of preventive actions and mental health promoters in this ambit.

Keywords: Police work, Mental health.


 

 

As pesquisas sobre as relações saúde mental e trabalho junto a diferentes categorias profissionais são bastante recentes no cenário científico. Em nível mundial, a França, um dos países precursores no tema, vem, desde o final da II Guerra Mundial, desenvolvendo projetos nesse sentido, sobretudo a partir das contribuições da chamada “psiquiatria social” (Lima, 1998a), enquanto no Brasil, apenas a partir dos anos 80 tais estudos vêm tomando impulso. Conseqüentemente, os programas preventivos e promotores de saúde mental dos trabalhadores em nosso país são, pode-se dizer, ainda incipientes.

Tal realidade deve-se a determinados fatores, dentre os quais destacamos a força em nível da formação de psicólogos e administradores, de uma Psicologia voltada - em primeira e última instância - para a otimização das organizações. Assim, evidencia-se a prática de profissionais que desconhecem ou então, deliberadamente, furtam-se de se filiar a uma prática centrada no trabalhador que ainda não encontra guarida em vários âmbitos, sobretudo o empresarial. Uma segunda razão parece decorrer da primeira; ou seja, no universo simbólico desse mesmo âmbito empresarial, não raras vezes desqualifica-se a prática que se volta em primeira e última instância para o trabalhador devido à distorção ético-epistemológica de que o eixo da prática profissional em Psicologia deve ser a empresa e não o trabalho.

A respeito dessa distorção, Lima (1998b) adverte que na própria formação do (a) psicólogo (a) está ausente uma discussão consistente sobre o lugar do trabalho na Psicologia, revelando o quanto o mesmo ainda não é percebido como categoria fundamental na compreensão do ser humano. Como decorrência, sustenta a autora, dificulta-se o estabelecimento de bases metodológicas para se abordar as formas de articulação entre saúde mental e trabalho.

Já Dejours (1999) discute a questão relativa às práticas discursivas do neoliberalismo dizendo que:

Hoje, afora seu objetivo principal – o lucro - o que caracteriza uma empresa não é mais a produção, não é mais o trabalho. O que a caracteriza é sua organização, sua gestão, seu gerenciamento. Propõe-se, assim, um deslocamento qualitativamente essencial. O tema da organização (da empresa) substitui-se ao tema do trabalho (...) (p.41)

O autor esclarece também, que o objetivo principal, então, não é mais promover a direção e a gestão, mas desqualificar as preocupações com o trabalho, tanto no plano econômico, quanto nos planos social e psicológico. Tal desqualificação encontra-se estreitamente vinculada à indiferença pelo sofrimento psíquico dos que trabalham, abrindo caminho à falta de reação coletiva diante da adversidade social.

Dadas as características das práticas discursivas vigentes na esfera empresarial, os projetos abordando as relações saúde mental e trabalho vêm sendo desenvolvidos principalmente nas universidades, nos sindicatos e nos diferentes espaços construídos no seio dos movimentos sociais. São ações que visam desde a desenvolver recursos para melhor lidar com o estresse até programas de pesquisa-ação que se centram na compreensão, com o grupo de trabalhadores, do impacto do trabalho na subjetividade e na constituição de seu sofrimento psíquico.

Quando se trata do trabalho policial, especialmente na esfera da Brigada Militar, vemo-nos diante de algumas considerações a fazer, já que no presente artigo argumentamos sobre a importância de um programa preventivo em saúde mental junto a essa categoria, bem como tecemos considerações a respeito dos caminhos a percorrer para consolidar uma prática nesse sentido. Para tanto, fundamentamo-nos em nossa experiência junto à Brigada Militar, construída a partir de nossa vivência enquanto grupo de pesquisadoras na Universidade de Santa Cruz do Sul/RS.1

 

Por onde vem sendo estudada a Relação Trabalho-Saúde junto às Polícias

O tema trabalho e saúde entre policiais vem ocupando lugar de destaque tanto no âmbito da organização policial quanto das universidades brasileiras. De um lado, movido pela peculiaridade da função, a qual possui uma série de características evidentemente “perigosas” do ponto de vista da saúde física e psíquica, tal como o contexto diário de risco; de outro, pelo momento histórico vivido pela sociedade a partir do chamado período de abertura democrática, no qual se coloca em discussão a prática das polícias, entre outros assuntos, antes condenados ao silêncio.

Também em outros países, o tema das polícias tem despertado interesse. Pelacchi (1999), policial argentino, ao abordar as estratégias policiais nas sociedades contemporâneas afirma que o problema da segurança pública é de todos os setores comprometidos, incluindo a polícia e demais segmentos correlatos. A polícia é resultante de uma série de normas que dão sustentação à sua existência, sendo importante para seu bom funcionamento fazer adequações na legislação penal, processual e contravencional, assim como implementar serviços ou programas sociais, de saúde e educacionais. O autor argumenta sobre a importância de os policiais terem adequadas condições de trabalho e equipamentos, sobre a importância de um bom recrutamento e boa educação e formação posterior assim como de uma boa remuneração e plano de carreira confiável.

Vários estudos a partir da perspectiva do estresse vêm sendo realizados, analisando os impactos do trabalho sobre a saúde dos policiais. O conteúdo violento do trabalho policial, o contato rotineiro com a morte e a violência e a constante pressão das responsabilidades são considerados elementos do cotidiano de trabalho causadores de danos à saúde dos policiais (Amir, 1995). Da mesma forma, também vêm sendo estudadas as diferenças de gênero nas exposição das fontes de estresse ocupacional entre policiais, revelando que as mulheres sofrem estressores adicionais no trabalho (Brown & Fielding, 1993).

Outros estudos se dedicam ao comportamento violento dos policiais relacionado a situações de trabalho sem, no entanto, se ocuparem dos aspectos psicodinâmicos implicados. Pesquisas baseadas nas teorias que prevêem a formação de grupos como elemento diminuidor da inibição dos membros e do aumento da probabilidade de agressão destacam que o nível de violência individual dos policiais em atividades específicas varia de acordo com a natureza da atividade, o grau de ansiedade associado a essa atividade, o índice de policiais presentes e o número de espectadores (Wilson & Brewer, 1993).

No Brasil, Amador (1999b), ao analisar a relação entre trabalho e saúde mental na categoria dos policiais militares, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, assim como a violência policial, julga ser de fundamental importância considerar os policiais como trabalhadores que sofrem o impacto do trabalho sobre a sua subjetividade e saúde. Propõe que os casos de violência policial, entre outras transgressões disciplinares, de adoecimento físico e psíquico e até mesmo de suicídio, sejam analisados não somente desde o ponto de vista quantitativo, mas também desde a perspectiva qualitativa, ou seja, que tais fatos, além de contabilizados, possam ser interpretados. Tal interpretação, segundo a autora, deve ser promovida, acima de tudo, entre os próprios policiais, para que estes possam, através da inteligibilidade de seu sofrimento no trabalho, chegar à transformação de seu fazer na permanente busca de uma polícia de qualidade.

Assim, afirma que a questão da Segurança Pública consiste também em uma importante questão de Saúde Pública na medida em que o fazer policial não traduz apenas um conhecimento ou desconhecimento técnico, mas também a vivência de um sofrimento, cujas repercussões atingem um número expressivo de homens e mulheres, quer sejam policiais, quer sejam pertencentes à população em geral.

Na Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), com bastante freqüência constata-se comportamento explosivo entre policiais, como um sintoma de fundo nos mais variados quadros clínicos. Em decorrência, a Diretoria de Saúde realizou uma pesquisa documental na Junta Central de Saúde da PMMG sobre os motivos que levam à reforma de policiais, com o objetivo de obter indicadores epidemiológicos sobre a saúde mental na instituição.

Averiguou-se que, no período compreendido entre janeiro de 1994 e novembro de 1996, os transtornos mentais (notadamente as psicoses e o alcoolismo) constituíram o principal fator causal, seguidos por lesões e envenenamentos, e, na terceira posição por doenças do aparelho circulatório (hipertensão e suas conseqüências) e doenças do sistema nervoso e dos órgãos dos sentidos. Além disso, foi constatada a presença pequena, mas constante, dos diagnósticos de Transtorno Explosivo da Personalidade e de Transtorno da Personalidade Emocionalmente Instável como causas de reforma.

Pereira & Brasil (1999) fazem a análise desses dados, buscando na teoria psicanalítica lacaniana, através do conceito de narcisismo e na imagem idealizada institucional, a explicação para tais ocorrências, supondo que “... os indivíduos afigurem-se mais explosivos na medida em que passam a ser integrantes do efetivo militar, como se tornariam mais explosivos se reportassem a qualquer ambiente muito idealizado”(p.24).

Nogueira & Moreira (1999), ao discutirem as formações grupais e seus efeitos nas instituições policiais militares, afirmam que tais organizações apresentam particularidades que devem ser levadas em consideração, uma vez que apresentam regras de convivências e ideais que permeiam as relações de trabalho e as relações interpessoais que têm influências no psiquismo de seus integrantes. Ao ingressarem na polícia militar, os sujeitos são concitados a se destituírem de valores e crenças para incorporarem os valores preconizados pelos regulamentos da instituição. Inicialmente, sentem o impacto das regras na convivência social intramuros, onde as relações perdem a naturalidade e se revestem de medo, de receio do erro e de tudo que ele pode acarretar. Sustentam as autoras que a formação do policial militar é perpassada por um ideal de homem, que, por conseguinte, se estrutura em princípios rígidos. Além dos ideais difundidos, a padronização das condutas, comportamentos, atos e fardamentos tende a dificultar a expressão do que é individual e singular. Apontam ainda para o fato de que estudos vêm demonstrando a ação intimidativa que o grupo exerce sobre os indivíduos, sendo a limitação da liberdade um dos principais fenômenos verificados. No caso dos policiais militares, existe uma pressão muito grande sobre o indivíduo visando à coesão do grupo, sendo o Regulamento Disciplinar, o Código Penal Militar e todos os documentos doutrinários e normativos os principais meios para tal.

Segundo as autoras, estudos apontam para a significativa incidência de suicídio entre os componentes de corporações militares, mostrando índices diferenciados e maiores do que os apresentados pela população civil. Ao analisar essa situação, apontam como uma das possíveis causas o fato de que a morte faz parte do cotidiano do policial militar, o que pode levar à sua banalização. Dessa forma, ao banalizá-la, colocam a possibilidade de que o indivíduo, frente a situações de perda ou que envolvam sofrimento, a veja como uma saída rápida para a infelicidade. Um outro fator estaria relacionado às questões relativas ao funcionamento grupal, uma vez que este faz com que os interesses individuais raramente sejam considerados, produzindo efeitos na vida mental do indivíduo, colocando em questão o valor relativo de cada um.

Já Rezende (1999), ao analisar o caso de suicídio de um policial militar de Minas Gerais, busca fazer uma reflexão acerca dessa atuação, questionando sobre que mudanças de fato ela provoca. Afirma que, enquanto o militar pôs fim à sua vida, a instituição, alvo de seu ataque, saiu ilesa. Entende que uma das formas possíveis de se lidar com a questão do suicídio entre policiais militares seria um trabalho preventivo, inter e multiprofissional, que envolva toda a instituição e que através da fala e da escuta possa resgatar a identidade dos sujeitos.

Partindo do referencial teórico-metodológico da Psicodinâmica do Trabalho, Amador (1999a) analisa os impactos dos aspectos institucionais e organizacionais do trabalho sobre a subjetividade e a saúde mental dos policiais militares, visando a compreender as articulações entre trabalho, sofrimento psíquico e violência policial.

As conclusões do estudo apontam para a existência de pressões e desafios nas esferas da organização prescrita do trabalho policial e do trabalho policial no cotidiano. Pressões e desafios que impõem rigorosos limites à expressão da subjetividade dos policiais no trabalho, oferecendo-lhes escassas possibilidades para encaminhar seu sofrimento de forma criativa2 . Conforme a autora, como tentativas de gerenciamento do sofrimento psíquico decorrente da experiência laboral, os policiais, coletivamente, recorrem a mecanismos defensivos, visando à tentativa de clivagem entre corpo, pensamento e psiquismo, de maneira a continuar trabalhando nos limites entre a descompensação psíquica e a saúde mental. A violência policial aparece como parte desses mecanismos, expressando o sofrimento psíquico dos policiais, constituído no território de violência da organização do trabalho.

Sob diferentes perspectivas, os pesquisadores vêm desbravando o terreno das relações entre trabalho policial e saúde, procurando respostas e, sobretudo, indagações que impulsionem a discussão do tema, bem como a busca de alternativas referentes à promoção da saúde junto à categoria profissional dos policiais. Este é o assunto do qual tratamos a seguir.

 

A Metodologia em Psicodinâmica do Trabalho como Caminho para Promover a Saúde Mental no Trabalho entre Policiais

No início dos estudos em saúde mental e trabalho, a preocupação voltava-se para a identificação de doenças mentais específicas relacionadas ao trabalho. Com a Psicodinâmica do Trabalho - disciplina que vem sendo desenvolvida principalmente na França pelo médico e psicanalista Christophe Dejours – o foco tornou-se outro. Mais do que identificar doenças mentais específicas correlacionadas ao trabalho, o que se toma como eixo é a dinâmica que se refere à gênese e às transformações do sofrimento mental vinculadas à organização do trabalho. Desse modo, a investigação em saúde mental e trabalho impõe uma ruptura com os modelos médico e psiquiátrico clássicos. Além disto, impõe realizar uma reviravolta epistemológica suplementar, deslocando o eixo de análise da loucura para a normalidade (Dejours, 1994).

O sofrimento é entendido como o campo que separa a doença da saúde, domínio que se instala quando entre os homens e mulheres que trabalham não mais existe um espaço de liberdade que permita uma negociação com a ordem prescrita, quando não mais há possibilidade de tornar a organização do trabalho congruente com o seu desejo.

Assim, o objeto da Psicodinâmica do Trabalho é a análise dinâmica dos processos psíquicos mobilizados pelo confronto do sujeito com a realidade do trabalho, dinâmica essa constituída de mecanismos defensivos, tanto individuais quanto coletivos, sendo estes últimos foco principal dos estudos. Em outras palavras, a análise em Psicodinâmica do Trabalho detém-se no entendimento dos processos intersubjetivos e interativos que se desenvolvem nos locais de trabalho.

Falar de metodologia de pesquisa em Psicodinâmica do Trabalho significa abordar a própria disciplina. Isto porque pode-se afirmar que a mesma consiste em um referencial teórico-metodológico cuja metodologia não se aplica, faz-se em ato. Além disso, significa tratar de um assunto ainda incipiente, já que esse referencial teórico-metodológico vem sendo construído, sobretudo por um grupo de pesquisadores na França, há apenas aproximadamente vinte anos. Assim, ainda é escassa a publicação desse grupo para outros países, encontrando-se à nossa disposição em língua portuguesa poucas obras, tais como: A Loucura do Trabalho, (Dejours, 1988), Psicodinâmica do Trabalho. Contribuições da Escola Dejouriana à Análise da Relação Prazer, Sofrimento e Trabalho (uma coletânea de artigos coordenada por Maria Irene Betiol, 1994), O Fator Humano (Dejours, 1997) e A Banalização da Injustiça Social (Dejours, 1999).

Em termos metodológicos, nessas publicações, apenas um anexo publicado na terceira edição brasileira da Loucura do Trabalho (1988) e dois artigos do livro coordenado por Maria Irene Betiol (1994) dedicam-se especificamente ao tema. Entretanto, já parecem suficientes para instigar novos pesquisadores a enveredar pela pesquisa com foco nas articulações entre sofrimento psíquico e organização do trabalho, na busca não apenas de ajudar a avançar a disciplina da Psicodinâmica do Trabalho, como também de construir alternativas metodológicas considerando as especificidades das diferentes categorias profissionais bem como as peculiaridades da realidade do trabalhador brasileiro.

Conforme Dejours (1988):

“O que visamos, através de uma pesquisa em psicopatologia do trabalho é à possibilidade de os autores da mesma pensarem sua situação em relação ao trabalho, as conseqüências dessa relação na vida fora do trabalho e na vida em geral, ou seja, mergulhar na dialética ator-sujeito” (p. 158).

Assim, a palavra é o mediador privilegiado na metodologia em Psicodinâmica do Trabalho. O material da investigação se constitui nos comentários, nas falhas e nas faltas de comentários relacionados ao contexto, os quais devem ser interpretados em relação ao binômio sofrimento/defesa. Além de restituir os comentários dos trabalhadores sobre o sofrimento, é preciso articulá-los com o comentário subjetivo do pesquisador proveniente de sua observação clínica da situação de trabalho, bem como enfatizar que a investigação passa pelo coletivo de trabalho.

A metodologia possui caráter de pesquisa-ação e fundamenta-se na abordagem compreensiva, tendo por objetivo a elaboração da vivência do sofrimento na medida em que esse sofrimento possibilite desvendar a vivência dos sujeitos em sua relação com a organização do trabalho, bem como perceber aquilo que na organização do trabalho pode gerar sofrimento, mas também, prazer. A hipótese dinâmica é, então, a de que os sujeitos, ao transformarem-elaborarem suas vivências de trabalho, ficam em melhores condições de propor e de conduzir ações de transformação da organização do trabalho (Dejours & Jayet, 1994).

Dejours (1988) apresenta a metodologia em Psicodinâmica do Trabalho como desenrolando-se em fases: a pesquisa inicial, a pesquisa propriamente dita, a solicitação, o grupo homogêneo e o coletivo, o material da pesquisa, a observação clínica, o método de interpretação e validação e refutação dos dados. No entanto, entendemos que a metodologia pode ser dividida em duas etapas principais: pesquisa inicial ou pré-pesquisa e pesquisa propriamente dita, ambas dinamizadas por relatórios de restituição. Tais relatórios devem ser elaborados pelos pesquisadores imediatamente após a realização dos grupos ou contato com o campo para posteriormente serem submetidos à apreciação do grupo, alavancando, assim, a discussão.

Na primeira etapa, é importante atentar para alguns aspectos. O primeiro deles é que uma pesquisa nessa perspectiva deve basear-se numa solicitação proveniente dos próprios trabalhadores, os quais participarão na investigação, na análise e na interpretação do material (Dejours & Jayet, 1994). Outro elemento refere-se à definição de quem participa da pesquisa, tanto por parte da equipe de pesquisadores quanto dos trabalhadores, já que a formação de um “compromisso” em torno da proposta é fundamental. Nessa fase, é preciso reunir informações sobre o processo de trabalho (documentação), visitar a organização junto ao empregador e aos empregados (visitação) e abordar a organização do trabalho principalmente no que se refere ao aspecto conflitual entre trabalhadores e hierarquia. Importante também é conversar com os responsáveis pelo setor de saúde e segurança para captar expressões de sofrimento dos trabalhadores constatadas por estes profissionais.

Já a fase de pesquisa propriamente dita deve acontecer em local identificado com o trabalho. os pesquisadores devem apresentar claramente sua formação e área de trabalho e o tema da pesquisa deve ficar claramente enunciado. A seguir, parte-se do comentário do grupo acerca da solicitação e todo o trabalho de pesquisa concentra-se nas modificações trazidas ao comentário inicial. O que passa a importar é o comentário do grupo, tanto no que tem de consenso, quanto de contraditório ou polêmico visando à compreensão da:

“...relação do coletivo com o trabalho e os efeitos mascaradores dos sistemas coletivos de defesa em relação ao sofrimento. Indo além, visa descrever as modalidades de ação da organização do trabalho e seus efeitos nocivos à saúde psíquica” (Dejours, 1987, p.145).

Tal grupo não é definido por categorias objetivas como idade, sexo, classe social, etc. O que define sua formação são categorias subjetivas, isto é, o fato de que as pessoas sustentem a solicitação de análise e compreensão de sua relação psíquica com o trabalho.

As pesquisas com base nessa metodologia costumam levar um tempo relativamente longo. Por tratar-se de um estudo com caráter de pesquisa-ação, são muitos os elementos que entram em questão referentes ao grupo pesquisador (pesquisador e trabalhadores) os quais carecem de tempo de maturação. Entre tais aspectos, mencionamos a discussão acerca dos riscos da pesquisa e o tratamento da demanda que freqüentemente necessita passar do estágio de demanda de cuidados (ou de conselhos) para o de demanda de sentido (ou de inteligibilidade) (Dejours & Jayet, 1994).

Isso significa dizer que, na fase de pré-pesquisa, há todo um trabalho a ser feito no sentido de “afinar” os propósitos do trabalho de pesquisa, trabalho esse lento e gradual por envolver, entre outros aspectos, o debate sobre os riscos do estudo. Tais riscos referem-se, sobretudo, ao fato de que a pesquisa tem efeitos sobre as relações sociais de trabalho, convocando à reflexão, bem como à transformação da organização do trabalho. E ainda: nessa fase de pré-pesquisa, inicia-se a consolidação das condições de visibilidade social do debate sobre as relações entre trabalho e sofrimento psíquico, constituindo o que Dejours & Jayet (1994) definem como espaço público potencial.

Tal espaço apresenta-se como desafio a ser enfrentado não apenas devido aos processos psíquicos relacionados ao jogo das defesas, mas também e sobretudo devido ao modo de organização social do trabalho. Tal modo, em nossa opinião, ainda sofre os efeitos da tradição política do ocidente, a qual, segundo Arendt (1989), define-se em termos de dar e receber ordens e, portanto, na divisão entre quem comanda, pensa e deseja e, a seguir, impõe seu pensamento e desejo aos outros pela persuasão, pela autoridade ou pela violência. Assim, a metodologia em Psicodinâmica do Trabalho convoca a uma “fratura” no modo de organização laboral instituído em nossa sociedade, de maneira a possibilitar a circulação da palavra dos atores sociais protagonistas da cena do trabalho. Eis aqui, talvez, o maior desafio proposto pela Psicodinâmica do Trabalho!

 

Desafios para a Consolidação de um Programa Sistemático de Prevenção e de Promoção de Saúde Mental do Trabalhador na Brigada Militar

Uma vez apresentada a proposta metodológica de pesquisa-ação em Psicodinâmica do Trabalho, passamos a discutir, a partir de nossa experiência junto à Companhia de Polícia Militar de Venâncio Aires/RS, as particularidades de uma ação de pesquisa nessa perspectiva junto à Brigada Militar. A seguir, propomos alguns caminhos na intenção de contribuir para a consolidação de programas preventivos e promotores de saúde mental do trabalhador – com base na Psicodinâmica do Trabalho - no âmbito das polícias.

Inicialmente destacamos que o caminho metodológico abordado no presente artigo implica um deslocamento: centrar-se na normalidade e não na loucura e abordar, mais precisamente, o que se define como normalidade sofrente (Dejours, 1996). Tal deslocamento impõe, como conseqüência, uma reviravolta nos pressupostos médico-psiquiátricos ainda bastante vigentes nas ações empreendidas pelos profissionais de saúde no que se refere às questões da saúde dos trabalhadores.

Além disto, para desenvolver ações em saúde do trabalhador na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, é preciso aceitar a dimensão do sofrimento humano dos policiais e abordá-la cotidianamente criando um espaço no qual são expressas as fragilidades humanas dos agentes da Segurança Pública. Essa não parece ser uma tarefa fácil para nenhuma categoria profissional exatamente pela utilização dos mecanismos defensivos construídos coletivamente pelos trabalhadores para conjurarem seu sofrimento, os quais, conforme Dejours (1999), favorecem a alienação. Tratando-se da categoria dos policiais, outro aspecto parece ainda reforçar essa dificuldade: trata-se do discurso viril e da construção imaginária de figuras superpoderosas (Amador, 1999a), amparo permanente das estratégias defensivas dessa categoria que acaba por descartar, freqüentemente, toda a possibilidade de reconhecimento de dificuldades tanto no plano da saúde física como, e sobretudo, da saúde psíquica.

Um segundo aspecto importante a considerar é o fato de que o sofrimento psíquico é o objeto da pesquisa-ação em saúde, proposta em Psicodinâmica do Trabalho. Sofrimento este que, para ser transformado, pressupõe que os sujeitos elaborem suas vivências laborais para, desse modo, propor e conduzir transformações na esfera da organização do trabalho.

Assim, entendendo que a metodologia em questão implica que os policiais possam pensar sua situação em relação ao trabalho negociando com seu universo prescritivo de maneira a “subvertê-lo” criativa e saudavelmente, parece-nos que a prescrição minuciosa, característica da organização do trabalho policial, representa, em certa medida, um obstáculo a esta proposta. Minuciosidade esta cujo cumprimento se ampara em um extenso e rigoroso Regulamento Disciplinar.

Outro aspecto que destacamos refere-se à importância da criação de um espaço público potencial (Dejours & Jayet, 1994) de circulação da palavra entre os policiais. Considerando a estrutura hierarquizada da organização do trabalho nessa categoria, a qual se encontra associada à já mencionada minuciosidade de prescrições, o que se observa é a existência de um importante corte da palavra no contexto do trabalho policial. Corte este imputado de um lado pela organização prescrita do trabalho que pouco lhes permite revelar-se em sua singularidade e por outro, pelos próprios policiais no contexto do trabalho cotidiano, os quais, ao gerenciarem coletivamente seu sofrimento, também impedem a circulação da palavra.

Como em Psicodinâmica do Trabalho o que se visa é a possibilidade de os trabalhadores pensarem sua situação em relação ao trabalho e as conseqüências dessa relação fora do espaço laboral, tendo na palavra o mediador privilegiado das relações intersubjetivas (Dejours, 1988), é pela possibilidade de seu exercício que se configura a chance de inteligibilidade do sofrimento. Para tanto, faz-se necessário repensar a estrutura que cinde os que pensam dos que executam, no trabalho, ainda fortemente presente na organização policial apesar dos movimentos em direção à democratização do espaço policial.

Por fim, abordamos a questão de que a solicitação deve partir dos próprios interessados para que o trabalho de pesquisa-ação tenha êxito. Entretanto, pela questão hierárquica somada às dificuldades na circulação da palavra, o que se evidencia é que a posição favorável dos comandos à proposta é fundamental para que um grupo sustente a solicitação de análise ou até mesmo que venha a formulá-la.

Desse modo, a realidade do trabalho policial, implicando permanente possibilidade de trocas de comando devido às transferências e às promoções, exige da equipe de pesquisadores um cuidado especial, dispensando atenção a cada momento de mudança de comandantes, sobretudo os intimamente vinculados ao grupo em questão. Constatamos que a formação em torno do compromisso com a proposta de pesquisa-ação em Psicodinâmica do Trabalho refere-se acima de tudo ao plano inter e intrasubjetivo e não exatamente à esfera burocrática. Dizemos, com isso, que não basta a assinatura de consentimentos para a realização do trabalho, muitas vezes por comandos superiores à localidade do grupo trabalhado, pois o importante é a consolidação de uma relação de confiança3 estabelecida entre equipe de pesquisadores e trabalhadores.

A partir dos aspectos acima considerados, passamos agora a discutir alguns caminhos para consolidar programas preventivos e promotores de saúde mental no âmbito da Brigada Militar.

Inicialmente, chamamos a atenção para a importância de reconhecer que o trabalho tanto pode conduzir as pessoas à saúde como à doença e além disso, que o sofrimento, enquanto categoria interme-diária entre as duas, é condição inexorável dos sujeitos que trabalham, exigindo não que se busque eliminá-lo, mas sim, transformá-lo.

Como conseqüência, é necessário admitir que tal sofrimento está diretamente relacionado ao fazer da polícia e, portanto, à qualidade que esse fazer apresenta. Portanto, não mais é possível atribuir a problemas de seleção de pessoal ou a treinamento, como freqüentemente se faz, os problemas apresentados pela categoria. Tão pouco é possível conceber que “erros” ou problemas vividos por policiais tenham suas explicações buscadas apenas em sua histórica individual, reforçando as teses que sustentam práticas de exclusão, quer sejam temporárias ou definitivas.

Partindo do exposto, é necessário que a Organização da Polícia Militar encare a sua responsabilidade com a saúde dos policiais-trabalhadores, já que se trata de uma importante questão de saúde pública, não apenas porque o sofrimento psíquico decorrente do exercício laboral atinge uma categoria profissional inteira, como também porque seus efeitos atingem ampla e gravemente toda a sociedade.

Assim, entendemos que são necessários esforços no sentido de garantir a viabilidade de ações promotoras e preventivas em saúde mental do trabalhador na Brigada Militar mediante algumas iniciativas: a primeira que destacamos refere-se a dar continuidade ao processo de democratização na Polícia Militar, o qual, para ser verdadeiramente efetivo, pressupõe a restauração do direito à palavra no contexto do trabalho; a segunda diz respeito ao investimento na contratação de profissionais das áreas das ciências humanas e da saúde que possam atuar junto às Companhias aproximando-se, desse modo, do cotidiano dos policiais e, por fim, chamamos a atenção para a importância do estabelecimento de políticas públicas em saúde e segurança que amparem programas sistemáticos em saúde do trabalhador junto aos espaços de trabalho policial, oportunizando o repensar permanente dos agentes da segurança pública acerca de sua relação com o trabalho.

 

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Endereço para correspondência
Fernanda Spanier Amador, Kátia Santorum
Charlotte Spode da Cunha & Sandra Maria Braum
Rua Sofia Veloso, 46/304 - Cidade Baixa
90050-140 Porto Alegre-RS
Tel.: +55-51-3212-5864 / +55-51-3717-7388
E-mail: fspanier@dpsico.unisc.br

Recebido em 30/05/01
Aprovado em 20/10/01

 

 

* Psicóloga, Especialista em Saúde Mental Coletiva, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade, Professora e Pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul/RS (UNISC).
** Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade, Professora e Pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul/RS (UNISC).
*** Monitora do grupo de Pesquisa e Extensão, bolsista do Programa de Iniciação Científica (PUIC)/UNISC, acadêmica de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul/RS (UNISC).
**** Monitora do grupo de Pesquisa e Extensão, bolsista do Programa de Iniciação Científica (PUIC)/UNISC,acadêmica de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul/RS (UNISC).
1 O grupo autor deste artigo vêm desde março de 2000 desenvolvendo um projeto de pesquisa-ação intitulado Sofrimento Psíquico e Organização do Trabalho: um estudo junto aos policiais militares de Venâncio Aires/RS.
2 A autora refere-se ao encaminhamento do sofrimento de forma criativa amparada no referencial teórico da Psicodinâmica do Trabalho, segundo o qual existem duas dimensões do sofrimento: uma denominada criadora e outra patogênica.
3 A confiança aqui mencionada apresenta-se como categoria fundamentada na ética e cuja importância é fundamental para o encaminhamento dos sujeitos para a saúde mental no trabalho.