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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.3 Brasília Sept. 2002

 

ARTIGOS

 

Contemporaneidade X trânsito reflexão psicossocial do trabalho dos motoristas de coletivo urbano

 

 

Nemésio Dario Vieira De Almeida*

Departamento Estadual de Trânsito de Pernambuco. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este é um artigo reflexivo, que tem por objetivo analisar a problemática psicossocial do trabalho dos motoristas de coletivo urbano na Cidade do Recife, os quais procuram, diariamente, nossos serviços no Departamento de Psicologia do DETRAN-PE. Partimos, então, da análise dos seguintes trabalhos realizados anteriormente: Fundação Joaquim Nabuco em Recife, Leny Sato em São Paulo e Ramos no Rio de Janeiro. A análise desses trabalhos aponta como principais estratégias utilizadas pelos motoristas: a racionalização, o individualismo e a passividade. A utilização dessas defesas permite ao trabalhador manter seu equilíbrio psíquico, e, ao mesmo tempo, favorece a alienação das causas do seu sofrimento, dificultando, assim, o processo de mudança das situações de trabalho.

Palavras-chave: Contemporaneidade x trânsito, Psicossocial, Trabalho do motorista, Coletivo urbano.


ABSTRACT

This is a reflective article that has as objective the analysis of the social psychology problematic of the bus drivers work in the city of Recife that daily come to the Department of Psychology of the DETRAN-PE. For such work we used previous work as the one carried out in Foundation Joaquim Nabuco in Recife, Leny Sato in São Paulo and Ramos in Rio de Janeiro. Rationalization, individualism and passivity were identified as the main strategies. The use of these defenses allows the worker to keep his psychic balance and, simultaneously, colaborates to the alienation of the causes of his suffering, thus creating handcaps to the worker’s situations process of change.

Keywords: Contemporaneity x traffic, Social psychology, Work of the driver, collective urban.


 

 

Ao tentarmos reconstituir a história da palavra “trabalho”, constatamos a existência de entendimentos distintos quanto à sua origem, mas encontramos como denominador comum a conclusão de que ela está envolta com a idéia de castigo, pena, tarefa “penosa”, fadiga e esforço, sendo ainda nos dias de hoje o trabalho caracterizado pela noção de esforço “penoso”. Porém, além da noção de esforço, o trabalho tem ainda o caráter de obrigação, e encontra-se contextualizado por sua finalidade econômica. Temos, então, que o trabalho, sem trair sua gênese histórica e social, mantém-se não só transformando a natureza, mas também, através das relações decorrentes do modo de produção dominante, a construir os sujeitos. Assim sendo, o trabalho dissociou-se do sujeito que se transformou em força de trabalho. Isso é resultado de um sistema capitalista alicerçado nas relações de dominação e exploração. Codo (1993) remete a Marx quando contextualiza que “o trabalho dentro do sistema capitalista é considerado produtivo na medida em que produz capital, entra no circuito de produção de mercadorias, realiza mais-valia, entra em circulação, produz mais valor” (p.101).

Este estudo possui como finalidade refletir sobre a problemática psicossocial das condições de trabalho do motorista profissional de ônibus. Nosso interesse em pesquisar tal temática surgiu de nossa prática em Psicologia do Trânsito no Departamento de Psicologia do DETRAN-PE-Recife, pelo fato de constatarmos diariamente um aumento gradativo de problemas psicossociais (desmotivação, depressão, alcoolismo e acidentes) e também por verificarmos que os estudos a respeito das condições de trabalho dos motoristas no transporte coletivo por ônibus são recentes e em pequenas quantidades, se comparados a pesquisas com outras categorias profissionais; tais estudos existentes, em sua maioria, procuram estabelecer relações entre as condições de trabalho e o adoecimento.

Dentre as dificuldades mais emblemáticas do serviço de transporte coletivo da região metropolitana do Recife, apontado pelo trabalho de pesquisa desenvolvido pela Fundação Joaquim Nabuco em 1982, e que ainda hoje se repete, está o baixo nível da qualidade do desempenho profissional do motorista de ônibus,” de tal modo que qualquer intervenção que tenha como objetivo solucionar os problemas desse sistema terá obrigatoriamente que considerar como prioritário o conhecimento das condições de vida e de trabalho específico dessa categoria profissional” (Fundação Joaquim Nabuco, 1982, p.37).

Na cidade do Recife, o ônibus é a principal forma de transporte coletivo , sendo que, aproximadamente 65% da população depende dele para seus deslocamentos diários. Excesso de velocidade, paradas bruscas, saídas desnecessariamente abruptas, não comprimento das leis de trânsito estão, como é do conhecimento público, entre as queixas mais freqüentes do(a) usuário(a) de transporte coletivo na região metropolitana do Recife em relação ao motorista de ônibus.

No caso, por exemplo, da problemática do motorista de transporte coletivo da região metropolitana do Recife, no que ela tem a ver, de modo específico, com a qualidade do seu desempenho profissional – objeto deste trabalho de estudo - seria fácil concluir-se por sua redução ao famoso conflito capital versus trabalho. Tal redução, no entanto, não esclarece o problema, no que porventura ele apresente de específico e singular no contexto social no qual ele se manifesta.

Com o crescimento da urbanização, o transporte coletivo vem assumindo uma importância cada vez maior. Os (As) cidadões(ãs) dele dependem para satisfazer necessidades básicas:

“Nas grandes cidades, as oportunidades de consumo de alguns bens essenciais, ligados às condições de vida e aos direitos dos cidadãos como habitação, trabalho, saúde, educação e convívio social dependem de outro serviço essencial que são os transportes disponíveis” (Siqueira, 1996, p.23).

E ainda, para Souza (1996), o transporte coletivo também é essencial pelo seguinte motivo:

“(...) requer intervenções cuidadosas não só no sentido da preservação do direito social ao acesso a um transporte de boa qualidade e, mais barato, mas também no sentido da preservação do direito dos trabalhadores à sua saúde. Estas duas questões devem ser compartilhadas e não antagonizadas. Até porque no caso de um maior estresse entre os motoristas de ônibus com a supressão do trabalho do seu auxiliar, pode-se ocasionar no limite, ao longo do tempo, um aumento do número de acidentes de ônibus e, aumentar os riscos de problemas de saúde entre motoristas” (p.39).

Considerando-se que as realidades de trabalho vivenciadas pelos motoristas de ônibus influenciarão sua inserção na sociedade, afetando suas relações no trabalho e fora dele, dessa forma estando sujeitos a condições de trabalho penosas, os motoristas refletirão sua insatisfação e sofrimento naqueles que se encontram mais próximos, ou seja, os usuários(as), colegas de trabalho e, conseqüentemente, familiares e amigos(as).

Sato (1991) define a penosidade não simplesmente como exigência de esforços que provoquem incômodo e sofrimento,

“(...) a penosidade existe quando os esforços exigidos pelo trabalho provoquem incômodo e sofrimento que ultrapassem o limite do suportável. A violação do limite suportável dá-se quando sobre estes esforços, sentidos como demasiados, o trabalhador não tem controle” (p.55).

Em relação ao transporte coletivo, o comportamento de seus operadores é muito importante, pois se trata de atividade essencial à população e de significativa responsabilidade. Falhas no trabalho podem acarretar acidentes que colocam em risco a vida de dezenas de pessoas.

Assim sendo, temos que a investigação das condições de trabalho é realizada por disciplinas diversificadas, dependendo das lentes utilizadas para “olhar” o trabalho. Dentre as principais contribuições à compreensão do tema, destacam-se os estudos da ergonomia, epidemiologia, psicodinâmica do trabalho, entre outros, explicitando-se a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade do assunto.

Portanto (Laurell, 1985), as condições de trabalho e suas patologias estão vinculadas à organização do trabalho e ambas dependem das relações de trabalho vigentes naquele espaço social definido, refletindo valores e regras da sociedade.

Nesse sentido, temos a ergonomia, que procura conhecer o trabalho concreto e a sua adequação ao homem e a mulher, no que se refere à saúde e ao desempenho. Sendo um vocábulo de origem grega, erg significando trabalho e nomos significando leis, ou seja, literalmente – as leis que regem o trabalho, a ergonomia é, desse modo, um estudo científico do ser humano relacionado com o seu ambiente de trabalho.

Colin Palmer (1976), ergonomista inglês, afirma que a principal finalidade da ergonomia consiste “ em harmonizar a relação homem-máquina, adaptando esta às peculiaridades daquele que a opera” (p.107). Ou melhor, a Engenharia dos Fatores Humanos, como também e chamada à ergonomia, constitui-se no processo que busca a elaboração de projetos que têm como finalidade diminuir ao máximo o esforço do empregado(a) no manuseio de seus instrumentos de trabalho: máquinas, equipamentos, ferramentas, mobiliário etc. Nesse sentido, Ferreira (1994) classifica os problemas mais comumente encontrados em

“(...) problemas posturais e de movimentação; problemas relacionados ao custo energético do trabalho; problemas biomecânicos (forças musculares exigidas); problemas musculares por movimentos manipulativos ou repetitivos; problemas decorrentes de condições ambientais “(p.43).

Temos, então, que, especificamente em relação a condições de trabalho, uma categorização que sobressai refere-se a cargas de trabalho, desenvolvidas nas pesquisas realizadas por Laurell (1985). Esta pesquisadora opera com a categoria de carga de trabalho. Objetiva caracterizar na análise do processo de trabalho

“(...) os elementos, a maneira como interatuam com o corpo do operário, gerando processos de adaptação que se traduzem em “desgastes”, compreendido como a perda da capacidade potencial ou efetiva corporal ou psíquica, que pode ou não se expressar no que a medicina reconhece como patologia“(p.34).

Já as cargas psíquicas, para Laurell (1985), podem ser agrupadas em dois grupos, o primeiro sendo as que abarcam tudo que acarreta uma sobrecarga psíquica, ou seja, situações de tensão prolongada e segundo as que se referem à subcarga, ou seja, à impossibilidade de desenvolver e fazer uso da capacidade psíquica, “sendo que entre as principais destacam-se: atenção constante requerida, supervisão com pressão por produtividade e consciência de periculosidade” (p. 43-44).

Laurell (1985) ressalta ainda que as cargas psíquicas são essencialmente produzidas, não podendo ser compreendidas como riscos isolados, “(...) ou abstraídas das condições que as geram. São expressões particulares da forma específica de produzir, características das bases técnicas, dos instrumentos utilizados, mas também da organização e divisão do trabalho” (p.48).

Considera-se carga de trabalho atributo de um processo de trabalho determinado,

“(...) cuja presença no ambiente de trabalho pode aumentar a probabilidade de que um grupo de trabalhadores “expostos” experimente uma deteriorização psicobiológica, comparada com aqueles que não estiveram expostos ou que tiveram uma exposição diferencial a tal atributo” (Facchini, 1994, p.61).

 

Repercussões Subjetivas das Condições Psicossociais do Trabalho

Os estudos a respeito das condições de trabalho de motoristas no transporte coletivo por ônibus são recentes e em pequena quantidade se comparados a pesquisas com outras categorias profissionais. Ramos (1991) ressalta que o primeiro trabalho a respeito desse assunto de que se tem notícia no Brasil data de 1973. Também na literatura internacional, as investigações desse tema não aparecem com abundância. Essas pesquisas, em sua maioria, procuram estabelecer relação entre as condições de trabalho e o adoecimento.

Nos Estados Unidos o primeiro trabalho, provavelmente, é o de Ross Mcfarland, em 1951, que fez uma pesquisa ergonômica sobre o trabalho dos motoristas denominada “Human Factors in Highway Transport Safety”. Ainda nos Estados Unidos, destacam-se dois trabalhos de grande relevância: Miller e Bauer, ambos publicados em 1976. Na Holanda, temos dois pesquisadores influentes: Mulders (1982) e Pokorny (1987) e Aronsson (1980), na Suécia. Miller realizou uma análise de agentes envolvidos na segurança de tráfego e saúde no trabalho. De seus estudos enfatiza-se, entre outros resultados, a necessidade de redução do tempo de condução.

Em Nova York, foi realizado um estudo de potencial de risco à saúde associado à ocupação de motoristas de ônibus urbano naquela cidade. A pesquisa, com 376 motoristas, buscou avaliar os riscos à saúde associada com a ocupação:

“(...) Os resultados demonstraram, através da análise de causa de morte dos motoristas de ônibus urbanos em relação a outros motoristas, maior incidência de todos os tipos de cânceres (destaque para câncer de esôfago), desordens mentais, psiconeuróticas e distúrbios da personalidade e doença isquêmica do coração” (Ramos, 1991, p.57).

Na cidade do Rio de Janeiro, destaca-se a pesquisa realizada por Ramos em 1991. Esse autor realizou estudo minucioso sobre as condições de trabalho, utilizando metodologia interdisciplinar. As principais queixas em relação às condições de trabalho, são:

(...) manutenção dos veículos, inexistência de condições sanitárias, pausa de descanso inadequado e trânsito. Entre as diversas constatações, destaca-se a análise de que não bastam mudanças pontuais, tal como a diminuição da jornada de trabalho, sem uma intervenção real nas condições de operação, já que em contextos desfavoráveis qualquer jornada pode ser de extensão excessiva (p.58).

Souza (1996), em seu trabalho de investigação Estudo sobre o risco de distúrbios psiquiátricos menores entre os motoristas e cobradores do sistema de ônibus urbano na cidade de São Paulo, conclui que

“(...) estes dois profissionais mostram diferenças quanto ao aparecimento destes distúrbios. Os estudos mostraram que o trânsito foi importante variável. Além dessa, também se mostraram relevantes, as horas de sono, bancos sem regulagem, procedência e escala de trabalho” (p.61).

Souza (1996) relata, ainda, que entre as questões relativas à ocupação de motorista de ônibus é discutida a responsabilidade com manobras difíceis, que muitas vezes devem ser realizadas, o trabalho de embarque e desembarque de passageiros(as) e questões ambientais, como barulho e poluição, e ainda, identificou que as situações de maior incômodo referiam-se, “às responsabilidades financeiras, tais como pagar as multas de trânsito, pagar peças quebradas do ônibus e consertos resultantes de acidentes ou colisões com ônibus.” (p.71-73). São também abordadas, nesse estudo, as questões relativas ao estresse.

Observamos, dessa forma, que as falas e ações dos motoristas apontam com insistência a dimensão ético-afetivo do processo saúde-doença: numa concepção próxima às reflexões de Dejours (1986), saúde é “liberdade de movimento do corpo e da mente, ao contrário de doença, que é a fixação, de modo rígido, dos estados físicos e mentais” (p.53). Ou melhor, para Sawaia (1995), saúde é “a possibilidade de ter esperança e potencializar esta esperança em ação”.

E ainda, para transformar um trabalho fatigante em um trabalho equilibrante, Dejours (2000) propõe

“(...) flexibilizar a organização do trabalho, de modo a deixar maior liberdade ao trabalhador para rearranjar seu modo operatório e para encontrar os gestos que são capazes de lhe oferecer prazer, isto é, uma expansão ou uma diminuição de sua carga psíquica de trabalho” (p.39).

Câmara (2002) sugere que pode haver uma relação entre estresse e acidentes de trânsito, “(...) na medida em que mais da metade dos acidentes ocorreu no final da jornada de trabalho ou enquanto os motoristas “dobravam” sua jornada de trabalho, ou seja, alguns acidentes podem ter como causa o cansaço e o estresse” (p.61).

Dejours (1986), ao estudar a saúde do subproletariado, compreendeu com clareza a relação entre pensamento, emoção e ação ao analisar a vergonha como “ideologia defensiva”. Ele percebeu que havia uma resistência muito grande em falar da própria doença e sofrimento pelo significado do ato vergonhoso que é, socialmente, atribuído a esse comportamento. Eles faziam associação entre doença e vagabundagem. Estar doente significava interromper o trabalho profissionalmente para os homens e o doméstico para as mulheres, o que equivale a ser irresponsável pelo cumprimento de seus papéis sociais dominantes.

Em estudo a respeito das condições de vida e de trabalho na região metropolitana do Recife, as dificuldades referiam-se às

“(...) jornadas excessivas e inesperadamente longas, com horas-extras de acordo com a conveniência das empresas, defeitos nos veículos, falta de sanitários nos pontos finais, pressões de tempo para cumprimento de horários, esforço físico demasiado e relacionamento conflituoso com usuários e chefias” (Fundação Joaquim Nabuco, 1982, p.61).

Transcorridos vinte anos da realização dessa pesquisa pela Fundação Joaquim Nabuco em 1982, infelizmente as condições de vida e de trabalho desses profissionais não melhoraram em nada, pelo contrário só se agravaram, é o que constatamos diariamente em nossos serviços no Departamento de Psicologia do DETRAN-PE.

No Brasil, existem, relativamente, poucos estudos sobre motoristas de ônibus urbanos e suas condições de trabalho; dentre estes, destacamos os estudos realizados por Leny Sato (1991) na Cidade de São Paulo, já citado anteriormente, onde ela faz uma análise qualitativa da penosidade no trabalho dos motoristas de ônibus urbanos, destacando que poucas profissões são reconhecidas como penosas, estando a do motorista de ônibus dentre elas.

Cavalcanti (1996) aborda que, no período de junho de 1991 a fevereiro de 1993, foram atendidos 412 trabalhadores no ambulatório do Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte na Cidade de São Paulo:

“(...) Os fatores do trabalho considerados maléficos à saúde pelos trabalhadores fazem parte principalmente dos seguintes grupos: agentes físicos (principal : ruído), agentes ergonômicos (principal: bancos), fatores estressantes (principal: passageiros) e agentes químicos (principal: poluição)” (p.45).

Galvão (1996), analisando 1.101 comunicados de acidentes de trabalho emitidos pelas empresas de ônibus urbanos na cidade de São Paulo, no período de outubro de 1989 a junho de 1995, constatou

“(...) a importância da violência urbana nos acidentes de trabalho dos motoristas. Entre os motoristas, as freqüências de acidentes foram em primeiro lugar as quedas, choques e perda de equilíbrio (60,6%), em segundo, atropelamento e colisões (14,8%) e, em terceiro, as agressões por passageiros e assaltos (12%)” (p.67).

Ainda com relação a acidentes de trabalho, ressaltamos uma pesquisa (Possamai, 1997) que investiga as representações sociais do acidente de trabalho entre trabalhadores da construção civil.Três dimensões principais foram evidenciadas em relação à ocorrência de tais acidentes: fatalismo (destino, sorte ou azar), individualismo (descuido, desatenção ou características psicológicas individuais), e determinadas mediações (trabalho perigoso, medo, pressa, falta de equipamento de proteção, coerção, desafio).

Essas mediações se colocam como um espaço negado pelos trabalhadores, e eles só falam quando se insiste em que se procurem as verdadeiras razões dos acidentes. Assim, por exemplo: quando perguntados por que tinham se acidentado, a resposta imediata, em 80% dos casos, era “porque me descuidei” (minha culpa), “foi um azar”, “não tive sorte” (meu destino). Mas, discutindo mais a fundo o fato, eles se referem a outras razões que levam aos acidentes: “porque o patrão mandou apurar o serviço, para entregar a obra”, ou porque ele foi “chamado a fazer outro serviço e na volta o andaime caiu porque tinha esquecido de prender”, e ainda mais: se não se arriscar, não era considerado suficientemente viril (2002a, 2002b). Isso evidencia uma ideologia de individualismo e fatalismo, escondendo as verdadeiras razões dos acidentes. As representações sociais do trabalho circunscrevem-se, dessa maneira, no que o autor denomina como “Minha culpa, meu destino” (Possamai, 1997).

 

Fatores Externos e Internos que Influenciam no Desempenho do Motorista de Ônibus

Saúde é um fenômeno complexo e não basta a ampliação do enfoque biológico, no sentido de abranger o psicológico e o social, como variáveis, para superar a dicotomia mente-corpo instalada por Descartes. Saúde é uma questão eminentemente sócio-histórica (Grisci, 1999 e Sawaia, 1995) e, portanto, ética, pois é um processo da ordem da convivência social e da vivência pessoal. Em quase todas as doenças encontram-se relações curiosas entre o que se passa na cabeça das pessoas e a evolução de sua doença física.

Isso significa que é preciso colocar no centro da reflexão sobre o adoecer a idéia de humanidade e, como temática, o indivíduo e a maneira pela qual ele se relaciona consigo mesmo e com o mundo social a que pertence (grupos, família, comunidade, sociedade mais ampla), compreendendo:

“como ser de razão que trabalha, como ser ético que compartilha e se comunica, como ser afetivo que experimenta e gera prazer e como ser biológico que se abriga, se alimenta e se reproduz, com um corpo que, além de ser determinado pelo universalismo do biológico, é antes uma realidade simbólica” (Sawaia, 1995, p.157).

A literatura comumente enfatiza o risco enquanto possibilidade de dano/prejuízo e perda da saúde física dos trabalhadores/as. A Organização Internacional do Trabalho (1986) e o Instituto Nacional de Seguridad e Higiene em el Trabajo (1990) revelam que a atual abordagem se centra em aspectos biológicos e físicos da saúde. A necessidade do alargamento do conceito de risco se faz presente, visto que o entendimento da noção de saúde extrapola as concepções biologicistas sobre o mesmo. Esses organismos internacionais também chamam a atenção para a penosidade do trabalho e as conseqüências geradas pelo fenômeno do desemprego estrutural. Nesse sentido, a psicopatologia do trabalho abre o leque da concepção individualizante, possibilitando compreensões de cunho coletivo acerca do sofrimento e das “estratégias defensivas” (Codo, 1993, 1995 e Dejours, 1986, 1987, 1988 e 2000) desencadeadas por trabalhadores/as no cotidiano do trabalho. Esses autores dão ênfase às repercussões para a vida psíquica relacionadas à organização do trabalho.

A seguir, são apresentados os principais fatores que influenciam no desempenho do motorista de ônibus que diariamente nos são revelados pelos próprios profissionais:

Fatores Externos - Como se constata, a fadiga física e psicológica não deve estar presente no condutor de coletivo, evitando-se, assim, dirigir prolongadamente. A monotonia da estrada, quando se viaja só e em viagens longas, a música irritante, a ausência de um reparador, são fatores prejudiciais comuns aos acidentes, que podem ser representados a seguir: a segurança física, as exigências dos usuários, as condições do tempo, as condições das estradas, o trânsito lento congestionamentos, as deficiências na sinalização, poluição sonora, a poluição visual, a iluminação deficiente, o mau planejamento das viagens, as viagens longas e enfadonhas, a temperatura do motor, as condições de trabalho em geral.

Fatores Internos - Os fatores internos alteram o comportamento do motorista de coletivo, que são muitas vezes a origem dos acidentes ou contribuem para a sua consumação, ou ainda para torná-los inevitáveis, ou aumentando a gravidade. Essas perturbações podem ser representadas por várias formas: as doenças crônicas ou agudas, os problemas de visão/auditivos, a automedicação, a prescrição conjunta de várias drogas, a fadiga (muitas horas no volante), o excesso de estímulos, o estresse/calor/cansaço, o desrespeito às leis de trânsito, o desrespeito dos outros motoristas, o álcool e as drogas, os problemas pessoais (morte, problemas familiares, brigas, mudanças no trabalho, desajustes profissionais, perdas materiais, dividas e outras), a auto-imagem do motorista e a representação que possui a respeito de sua profissão, a ambigüidade entre o grau de exigência cognitiva da tarefa e a escolaridade da maioria dos motoristas.

 

Considerações Finais e Recomendações

As cidades brasileiras passam por uma degradação acelerada da qualidade de vida, traduzida pelo aumento dos congestionamentos, (com drástica redução da qualidade do transporte público, do qual depende a maioria da população), pela redução da acessibilidade das pessoas ao espaço urbano, pelo aumento da poluição atmosférica e pela invasão das áreas residenciais e de vivência coletiva por tráfego inadequado de veículos. O debate em relação às questões de trânsito passa pelo questionamento da prioridade do transporte nas vias públicas. Em nossas cidades, o transporte coletivo não tem preferências no trânsito. É bom estudarmos medidas no sentido de restringir o uso indiscriminado do transporte individual, privilegiando-se o coletivo. Tais medidas trariam alívio quanto ao descongestionamento do trânsito e, possivelmente, diminuiriam o índice de acidentes (Almeida, 2000).

Este trabalho vem mostrar uma realidade na cidade do Recife que muito se parece à de outras cidade do Brasil e do mundo. Inquietações dos motoristas aqui levantadas pela Fundação Joaquim Nabuco em 1982, como trânsito, jornadas de trabalho e relacionamento com usuários(as) já eram abordadas na imprensa pernambucana há vários anos.

Através dos trabalhos aqui relatados e pela nossa experiência com motoristas de trânsito, foi possível identificarmos como principais estratégias utilizadas pelos motoristas: a racionalização, o individualismo e a passividade. A utilização dessas defesas permite ao trabalhador manter seu equilíbrio psíquico, e, ao mesmo tempo, favorece a alienação das causas do seu sofrimento, dificultando assim, o processo de mudança das situações de trabalho.

Inicialmente, fica a sensação de que as dificuldades no trabalho do motorista são inerentes à função e, portanto, sem solução. Um posicionamento determinista facilmente legitimaria a manutenção da situação ou a intervenção em elos isolados desse sistema.É importante refletir e discutir o transporte coletivo e o papel do ônibus nesse importante serviço público. A melhoria das condições de trabalho dos motoristas de ônibus coletivo urbano é fundamental para que se possa ter um serviço de boa qualidade. A elaboração de propostas conseqüentes e a implementação de mudanças, entretanto, é uma decisão que extrapola a dimensão essencialmente técnica da questão.

Reformulações nas condições de trabalho dos motoristas requerem um questionamento da relevância do sistema de transporte coletivo e uma decisão conjunta dos atores envolvidos no processo. Foram apresentadas algumas reflexões relativas às principais queixas dos motoristas, porém fica claro que nenhuma decisão isolada solucionará a problemática.

As queixas oriundas das variáveis físicas destacadas, como o ruído, a temperatura e iluminação são minimizadas com a melhoria da frota, em especial com a substituição dos veículos de motor dianteiro. Já possuímos tecnologia acessível, inclusive para isolar os inconvenientes externos.

Um resgate da função social do transporte, tanto para os motoristas, como para a população em geral, elevaria a representação desse trabalho, refletindo-se de forma satisfatória na auto-representação do motorista, na qualidade do serviço prestado e no respeito das pessoas para com esse profissional.

O contato com os(as) usuários(as) do transporte coletivo apresenta-se como o principal fator de estresse. Sendo esse trabalho uma prestação de serviço, esse fator é praticamente impossível de ser eliminado, porém pode ser melhorado através da compreensão da importância dessa profissão pelos passageiros(as), campanhas educativas e melhorias na prestação do serviço, tais como cumprimento de horários, melhoria do sistema de informações, conforto/limpeza, entre outras, que se refletirão de forma significativa nesse convívio.

Queixas relatadas pelos motoristas com relação a conforto e higiene são condições mínimas às quais todo(a) trabalhador(a) tem direito. Torna-se urgente a instalação de sanitários e o fornecimento de água potável nos pontos finais, ao mesmo tempo, nesses locais deveria haver um espaço onde o motorista se isolasse do público.

Quanto à carga de trabalho, considera-se que a jornada de trabalho do motorista de 7 horas e 20 minutos é condizente com a realidade brasileira. Mais importante que reduzir essa jornada é cumpri-la, pois o número, a quantidade de horas-extras relatadas pelos motoristas é abusivo. Além disso, a fadiga do trabalho parece estar mais vinculada às condições de sua execução do que à jornada de trabalho.

Aposta-se que, melhorando as condições de trabalho dos motoristas, poder-se-á ter resultados satisfatórios no desempenho do serviço considerado essencial à população. O Estado, por meio de políticas de transportes públicos, tem um papel importante nesse processo, sendo co-responsável pelas melhorias.

 

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Endereço para correspondência
Nemésio Dario Vieira De Almeida
Rua Adônis de Souza, 26 Pina
51110-210 – Recife-PE
Tel.: +55-81-3454-8143 / +55-81-3454-8145 / +55-81-3466-2679
Fax: +55-81-3454-8142
E-mails: nemesiod@globo.com.br / nemesiodario@hotmail.com.br

Recebido em 25/06/01
Aprovado em 20/10/01

 

 

* Especialista em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. Psicólogo Especialista em Trânsito pela Universidade de Pernambuco. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.Atua em Psicologia do Trânsito desde 1994 no Departamento de Psicologia do DETRAN-PE. Estuda e pesquisa sobre Circulação Humana e Relações de Gênero.

Uma versão deste trabalho foi apresentado no II Curso de Capacitação para Psicólogo Perito Examinador do Trânsito, realizado em 1999, em Recife, Universidade de Pernambuco-UPE.

Um agradecimento especial é dirigido a Profª Mestra Aparecida Craveiro Costa-UNICAP-PE, por sua revisão deste trabalho e sua valiosa sugestão e apoio de publicação.