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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.22 no.4 Brasília Dec. 2002

 

ARTIGOS

 

Sonhos atrás da porta

 

 

Tatiana Ramminger

Psicóloga. Assessora técnica da Politico de Atenção Integral à Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é inspirado nas aulas do mestrado de Psicologia Social e Institucional da UFCRS. A partir da autobiografia de L.F. Barros - "Memórias do Delírio - Confissões de um Esquizofrênico", permito-me uma releitura da psicopatologia, à luz de dois "loucos" pensadores: Foucault e Nietzsche.

Palavras-chave: Saúde mental, esquizofrenia, Filosofia.


ABSTRACT

This paper is inspired in the psychology lessons of the South Brazilian University. From the book by a person who has schizophrenia, are discussed the mental disorders mainly through Foucault and Nietzsche is contribution.

Keywords: Mental health, schizophrenia, Phylosophy.


 

 

Esta pequena resenha surge a partir de alguns desassossegos e das aulas ministradas pela professora convidada Lilia Lobo no mestrado de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Muitos poderiam ser os caminhos percorridos, mas à época lia a autobiografia de L.F. Barros, com o sugestivo título de "Memórias do Delírio - Confissões de um Esquizofrênico", e não pude deixar de suscitar este encontro: entre o que eu lia em casa e o que ouvia, em meio à bruma do cigarro, na Universidade.

Assim, esta pretende ser uma resenha "genealógica"1, onde minha leitura passou mais por aquele Foucault que devorou e releu Nietzsche, iluminando faces pouco exploradas na obra desse singular pensador, surpreendentemente atual, criativo, subversivo, infame.

 

Autobiografando o Quê?

"Nasci em 1953, minha cabeça nunca fez BIIIN, como a de Marcelo Paiva, mas várias vezes eu já fiz e ouvi minha cabeça fazendo comigo um sonoro Poing" (Barros, 1992, p. 17).

Assim L.F. Barros começa a nos contar sua história ou, como o próprio título do livro sugere, a história de sua "loucura", quando passou dostatus de filho de família abastada, brilhante em tudo que realizou e com futuro mais que promissor, para a classe dos "doentes mentais", onde não há mais nenhuma certeza, apenas a necessidade de aprender a conviver com novas e inúmeras limitações.

Tudo em sua vida foi grandioso até sua primeira grande crise, aos 24 anos. Estudou nos melhores colégios de São Paulo, sempre se destacando como aluno, integrante ativo dos grêmios estudantis, editor dos jornais, campeão nos esportes... Cursou temporariamente duas faculdades, Administração e Filosofia. Optou pela primeira, e logo se destacou também na faculdade: tornou-se presidente do Comitê Nacional da Associação Internacional dos Estudantes, operando um programa internacional de intercâmbio de estagiários, viajando e conhecendo diversos países.

Com 21 anos, entrou em uma sociedade com seu pai e um amigo no ramo de negócios imobiliários. Em pouco mais de três anos, já era dono de um patrimônio respeitável, e uma renda que lhe permitia viver, segundo ele, dois anos sem trabalhar. Foi o que fez: comprou uma chácara, largou a sociedade por motivos que não considera como "parte destas memórias. Estas são memórias do delírio, e ter saído da sociedade foi um ato que se mostrou pleno de sanidade" (idem, p. 27) e foi descansar, por tempo indeterminado, em companhia da esposa2.

Entretanto, não conseguiu ficar parado durante muito tempo, tramando logo uma forma de passar uns anos na Europa, através da Associação de Estudantes que já havia presidido. Pleiteou um cargo de Secretário-Geral e conseguiu aprovação da Associação, dispondo de apenas um mês para se apresentar.

"Estava montado o palco do meu primeiro grande delírio, a grande queda pela vaidade. Acredito que cada delírio não só tem um tema como um traço de caráter que o suscita. O delírio dos meus 24 anos foi o delírio da vaidade, da falta de pudor de guardar reserva de meus feitos" (idem, p. 29).

Assim, ele nos conta a odisséia em que se transformou sua "tentativa de folga", contando com pouquíssimo tempo para acertar todos os detalhes de uma viagem deste porte. Porém, toda sua energia era consumida não nos preparativos da viagem, mas em vários baseados de maconha por dia e em visitas a "primos e amigos que não víamos há anos, para nos despedir, isto é, para desfilar nosso sucesso" (idem, p. 29).

Foi em uma dessas "festas de despedida" que experimentou cocaína pela primeira vez e, para sua surpresa, justamente nessa festa, por reclamação de vizinhos, houve uma batida policial. Uma "comissão de recepção" conseguiu afastar os policiais - somente para L. não foi tão fácil assim livrar-se deles.

"Passei três dias batendo continência pra poste, assim como um modo de dizer. No vero, veríssimo, não dormi três noites e durante os dias vivi no real o que minha fantasia imaginava à noite: fugi da polícia" (idem, p. 31).

Logo a paranóia se estendeu a todos os que o cercavam. A família decidiu, de comum acordo, que ele deveria iniciar um tratamento. E assim foi feito: desistiu de ir para a Europa, voltou a morar na chácara, sendo que duas sessões semanais com uma psicóloga passaram a fazer parte de sua rotina.

Logicamente não foi só isso que mudou em sua rotina. A partir daí, começa a nos contar sua trajetória por diversos profissionais da área "psi", suas inúmeras internações tanto em instituições psiquiátricas como em clínicas de reabilitação de drogas e álcool, dos quais também se tornou dependente com o passar do tempo.

Em um relato sofrido, ele nos fala de suas quedas, do pavor de um eterno recomeço, da sensação de morte iminente, da deterioração gradativa de seu casamento e de sua família. Particularmente interessante é o capítulo onde discute o estigma de sua doença, bem como a imprecisão de seu diagnóstico:

"De início acreditou-se que eu tinha problemas de personalidade, de ordem psicológica. Depois houve época em que se julgou que era a droga - a maconha - que me fazia delirar. Muito tempo e muitas crises foram necessários para se descobrir que eu tenho um problema orgânico: uma psicose de fundo orgânico.

Após dez anos de terapia sem nenhum diagnóstico fechado, fui a um médico que me diagnosticou como sendo um caso de Psicose Maníaco-Depressiva (...).

(...) hoje meu médico me considera um esquizofrênico, mas ele mesmo não tem certeza do diagnóstico. Diz, às vezes, que eu poderia mesmo ser psicótico maníaco-depressivo. Às vezes saca de um nome intermediário às duas doenças, dizendo que eu sofro de uma "esquizopatia afetiva".

A uma determinada altura, um médico com quem anteriormente eu consultava disse-me que minha doença é uma "psicose atípica". Ora, isso não quer dizer nada" (idem, p. 41-46).

Frente a essas dúvidas que interferem diretamente em seu tratamento e medicação, L. considera a tipologia psiquiátrica "arcaica e inadequada", dizendo que só uma classificação mais apurada das doenças psiquiátricas permitirá um diagnóstico e tratamento precisos. Tem consciência de que seu tratamento é muito mais baseado na sintomatologia do que na taxinomia, e que seu estado de humor e equilíbrio precários são mantidos artificialmente. Qualquer descuido pode desencadear novas crises e a todo momento novas medicações são testadas, mas o "tratamento realmente eficaz está sempre a um passo de ser descoberto" (idem, p. 47).

Quanto a ele, considera que sua doença é obra da moira, tiche, do karma. Seu primeiro contato com essas "estranhas" palavras foi na adolescência, quando um professor idolatrado, ao morrer, deixou uma caixinha de fósforos onde cada um dos palitos tinha uma palavra escrita. "Um dos palitos trazia a palavra moira, utilizada pelos gregos para designar as forças do "destino". Esse palito me sobrou após sua morte (...)" (idem, p. 24). Prossegue em sua explicação:

"Em algum momento, antes do meu nascimento, uma composição genética aleatória determinou meu destino. Em minha juventude, talvez pelo uso abusivo de maconha - um mal de minha geração - a psicose aflorou: o destino se concretizou.

É moira, é tyche. Este é meu karma. Tenho de aceitar os fatos. E inútil compreender a aleatoriedade do destino" (idem, p. 114).

Aceitar o destino, no entanto, não é se entregar à loucura... Tanto que L. se reconhece como um doente mental, mas não como louco. Para nós, pode parecer bizarro querer distinguir dois termos que, aparentemente, são sinônimos. O próprio autor recorre ao dicionário, e o que encontra não esclarece suas dúvidas - louco é aquele que "perdeu a razão; alienado, doido, demente, quem está fora de si; contrário à razão ou ao bom senso; insensato; inconveniente; esquisito; excêntrico; imprudente; imoderado, temerário", mas também é o "travesso; folgazão; fora do comum; incomum; extraordinário; dominado por paixão intensa; apaixonado, perdido" (idem, p.89). Frente a essa diversidade de sentidos, ele arrisca sua própria definição:

"(...) "louco" é quem perdeu a razão e que não tem mais a possibilidade de voltar a encontrá-la, e que "doente mental" é alguém que oscila entre a loucura e a sanidade, sendo que às vezes, está lúcido e consciente (...). Assim, se fosse o caso de estabelecer esta classificação, eu diria que a "loucura" é irreversível e a "doença mental" é tratável, passível de controle" (idem, p. 89-90).

Ele prossegue dizendo que as pessoas que trabalham com a doença mental devem perceber essa sutileza, esse tênue limite que se estabelece entre estar ou não "louco". "De repente, na doença mental, assim como afundamos no pântano da loucura, nós emergimos dele e neste momento não podemos continuar a ser tratados como loucos" (idem, p. 90).

Apesar de considerar sua doença como essencialmente orgânica, já que responde, sensivelmente, aos medicamentos, L. não considera suas crises totalmente inexplicáveis, pois sempre aparecem relacionadas ao contexto em que está vivendo. Sua depressão, diz ele, decorre de seu profundo sentimento de não ser o que gostaria de ser, já que não estava preparado para fracassar. Sua própria doença foi um fracasso insuperável, que até hoje ele tenta "digerir", sem se culpabilizar por isso, como fez de início. É também a esse intenso "medo de fracassar" e, conseqüentemente, não ser digno de amor, que ele atribui sua necessidade de sempre se propor coisas grandiosas, e conclui:

"Eu quero ser diferente do que sou, mas a única diferença que tem valor, aliás a única possível, é a que eu consiga realizar na esfera de meu próprio karma, aceitando minhas limitações sem deixar de expandir meus horizontes.

Hoje não posso sonhar, mas tenho uma porção de sonhos guardados atrás da porta..." (idem, p. 115).

 

Psicopatologizando o Mundo?

Antes de fazer qualquer comentário desse denso material, não posso deixar de relembrar um acontecimento: a escolha desse livro. Tenho o costume de me perder nas livrarias em meio a tantas opções, sou capaz de ficar uma tarde inteira em um local como esse, folheando e acariciando os livros, em um prazer quase erótico.

Um dia, em meio a um desses passeios, estava decidida a comprar um livro mais de literatura. Estava com saudades de outra linguagem, outra estética, já que meus livros de cabeceira, há um bom tempo, eram todos livros técnicos. No entanto, acabei hipnotizada por aquele título: "Memórias do Delírio". Folheia daqui e dali, lê contracapa, comentários, introdução... quando vi, já estava absorvida em sua leitura, capturada... É claro que tão logo cheguei em casa, o devorei, mas talvez não o tenha decifrado.

Aos poucos, fui (re)construindo meus próprios conceitos a respeito da psicopatologia... Afinal, o que é doença, o que não é? O que é a loucura, a psicose? A que serve? Premissas que, com certeza, muito já foram discutidas, e mesmo assim estão longe de terminarem com um ponto final - no mínimo, várias reticências e intrigantes pontos de interrogação... Isso onde não existe apenas um travessão, como que um convite a uma nova fala, a um novo olhar.

A partir dessa leitura, não pude deixar de reler o clássico de Foucault sobre a loucura e pinçar alguns pontos fundamentais. Como nos aponta Machado (2000), Foucault partiu do que inspirado em Nietzsche chamou de "experiência trágica da loucura"; só assim ele pôde ultrapassar "verdades terminais" sem se apoiar em uma razão psiquiátrica, psicológica ou psicanalítica, pensando essa experiência como um valor positivo capaz de avaliar as teorias e práticas históricas sobre a loucura.

Mas não é só aqui que Foucault se aproxima de Nietzsche:

"Ora, do mesmo modo que, para Nietzsche, a história do mundo ocidental é a recusa ou o esquecimento da tragédia, a história da loucura, tal como interpretada por Foucault, é a história do vínculo entre a racionalidade moderna, tal como aparece nas ciências do homem, e um longo processo de dominação que, ao tornar a loucura objeto de ciência, a destituiu de seus antigos poderes" (Machado, 2000, p.25).

Assim, esse primeiro grande livro de Foucault parte da idéia de que instituir limites é uma estrutura fundamental de toda cultura, estabelecendo fronteiras que se deslocam continuamente, excluindo o que ameaça sua ordem. Um desses limites fundantes da cultura ocidental foi o crescente processo de subordinação da loucura à razão, que tem como última etapa - esta que ainda vivemos - a psiquiatria ou a psicologização da loucura.

Ele nos coloca que até a renascença a loucura esteve ligada à presença de transcendências imaginárias. A partir de Descartes e da valorização crescente da razão, a loucura passa a ser entendida como "desrazão", como tudo aquilo que impede o pensamento. Mesmo assim, ainda é uma doença como qualquer outra, sem uma distinção significativa das demais. É só na modernidade, com Pinei e Esquirol, que a loucura passa a ser entendida como "doença mental".

Não podemos perder de vista que é na era clássica que a loucura, pela primeira vez, passa a sofrer uma condenação ética pela ociosidade. O grande pecado capital que conduz e provoca os vícios, à época, é a Preguiça3. Nesse momento - século XVII - surge também a prática do internamente:

"Antes de ter o sentido médico que lhe atribuímos, ou que pelo menos gostamos de supor que tem, o internamento foi exigido por razões bem diversas da preocupação com a cura. O que o tornou necessário foi o imperativo do trabalho" (Foucault, 1999, p.64).

A partir de Descartes, o controle se dá através de um racionalismo que desclassifica a loucura como erro. A loucura impede o pensamento -se eu penso não posso ser louco, se louco não posso pensar...

"Descartes considerado hoje fundador do moderno racionalismo, decretava a incompatibilidade absoluta entre a loucura e o pensamento. Enquanto a cidade trancafíava os desarrazoados, o pensamento racional trancafíava a desrazão" (Pelbart, 1991, p.135).

Na modernidade, finalmente, o processo histórico de controle que Foucault pretende evidenciar atinge o máximo de sua eficácia através das ciências do homem, que, aceitando a loucura como alienação, patologizam-na como doença mental. Nasce a psicologia... "A psicologia jamais enunciará a verdade da loucura, porque é a loucura que detém a verdade da psicologia" (Foucault apud Machado, 2000, p.20).

É interessante, porque essa é a verdade que nosso protagonista busca: a verdade da área psi, que não classifica adequadamente sua patologia, que não descobre - deixa a descoberto - a origem de sua doença, muito menos sua cura. Nesse caso, a terapia não deixa de ter uma ação eminentemente moral, na medida em que tenta desalienar esse homem, tornando-o novamente apto para exercer sua razão, trazendo-o de volta "à sua essência, à sua natureza, à sua verdade. A cura do louco está na razão do outro" (Machado, 2000, p.21).

Gostaria aqui de apontar um outro caminho possível, começando pela revisão do conceito de "psicopatologia". Minha proposta não é sustentar um saber, mas, sim, construir um a partir dos olhares que pude lançar sobre o livro... Um devir-meio-louco, errante, já que foi isso que a leitura me suscitou.

Psicopatologia carrega em seu sentido o peso de três palavras gregas: psykhé, páthos e lógos que, por sua vez, também nos remetem a diferentes definições. Assim, páthos, por exemplo, pode significar uma "mudança produzida nas coisas", ou ainda, "experiência, prova, acontecimento, estado agitado de alma, paixão" (Naffah Neto, 1994, p. 26).

O termo "patologia" parece encerrar apenas o primeiro sentido, já que é definido como o "ramo da medicina que se ocupa da natureza e das modificações estruturais e/ou funcionais produzidas pela doença no organismo" (idem). No entanto, nada nos impede de acrescentar, seguindo a etimologia da palavra, que essas modificações são resultado da experiência, do acontecimento, do encontro entre um ou mais corpos, provocando um estado inédito, uma agitação na alma, uma paixão... Não é à toa que o termo latino affectione gerou tanto o termo "afecção", quanto o termo "afeição".

A partir dessas considerações, Naffah Neto (1994) define psicopatologia como "o relato (lógos) das afecções e das mudanças afetivas (páthos) produzidas nos seres vivos (psykhé) e proveniente dos seus encontros, dos acontecimentos (páthos) em que se afetaram mutuamente" (idem, p.27). E ainda:

"(...) o caráter doentio dessas afecções consiste no fato de gerarem uma diminuição ou impedimento na potência de ação do(s) corpo(s)/espírito(s) afetado(s), sendo esta a mudança afetiva básica produzida" (idem, p. 28).

Mais uma vez tomo emprestadas algumas conceituações de Naffah, a partir da sua tentativa de trazer toda a riqueza do pensamento de Nietzsche para a Psicanálise. Ele distingue dois usos do termo inconsciente em sua obra: o inconsciente ativo e o reativo. O inconsciente ativo designa um conjunto de forças ativas em seu caráter múltiplo, em constante devir, sempre aquém e além de uma representação possível. Por outro lado, o inconsciente reativo designa um reservatório de marcas mnêmicas disponíveis para função adaptativa. Para continuar servindo a essa função, o inconsciente reativo tem que se manter afastado da consciência.

Para tanto, é fundamental que "uma força ativa, distinta e delgada, apoie a consciência e reconstitua a cada instante sua frescura, sua fluidez, seu elemento químico móvel e leve. Essa faculdade ativa supraconsciente é o esquecimento" (Deleuze apud Neto, 1992, p. 58). Esse esquecimento é entendido no sentido nietzschiano do termo, ou seja, como digestão das experiências, como possibilidade de "não viver prisioneiros do nosso passado, digeri-lo e transformá-lo em fonte de calor" (idem, p. 67).

"Quando a função do esquecimento falha e as marcas mnêmicas invadem a consciência, as forças ativas perdem o comando (...). A consciência, invadida pelas lembranças, presa ao passado, só resta sentir, pois o que já passou não comporta ação presente: é o re-sentimento. Isso quer dizer que, através desse movimento, o inconsciente reativo pode capturar o inconsciente ativo, privando-o da sua atividade, transformando as suas forças em forças reativas: é o triunfo do ressentimento e da culpa, do tipo escravo" (idem, p. 59).

Com o triunfo das forças reativas sobre as forças ativas, a pessoa é separada daquilo que pode (o que pode um corpo?), e independente de sua potência, só lhe resta invejar a potência do outro, culpabilizar o mundo pelas suas "desgraças", desejar vingança e que o presente lhe renda lucros pelo que perdeu no passado. É o ódio à realidade e à vida. Ao contrário, as forças ativas podem determinar o que Nietzsche chamou de "circuito nobre", onde a vida se afirma como devir, o outro é apenas outrem... (Neto, 1994, p.34).

Sendo assim, qualquer movimento de vida chama a participação dos dois inconscientes - o ativo, como linha de fuga, e o reativo, como suporte para sua composição. Cabe perguntar, portanto, como essas forças se relacionam... Uma relação de poder que nos atravessa, a todos, visceralmente.

O escravo te habita, na medida em que confias a um outro tua própria potência. Potência despotencializada por não se acreditar potente - é a neurose, em toda sua variedade de formas, mas que sempre escraviza o sujeito no olhar de um outro. Na loucura, ao contrário, as forças ativas te lançam à radicalidade do devir, da pura fluidez... Trava-se uma luta incessante na busca de um contorno, mínimo que seja, de um corpo passível de dar passagem a um sentido possível. Potência despotencializada por não encontrar apoio das forças reativas, das marcas mnêmicas que permitiriam significar e acolher as forças que te arrebatam.

Não é à toa que, após suas crises, L.F. não se sente mais "louco". Talvez, nesse momento, consiga buscar uma referência, um território onde se reconheça como "cidadão". Da mesma forma, ele se refere ao fato de não ter lembranças claras de nenhuma crise, diz sofrer de uma amnésia nesses momentos (apesar do nome do livro, "memórias do delírio"). O esquecimento é necessário para que possam se estabelecer novas e, daí sim, fecundas conexões... Um pouco de possível, senão enlouqueço!!!

 

Referências bibliográficas

Barras, L.F. (1992). Memórias do Delírio: Confissões de um Esquizofrênico. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Foucault, M. (1999). História da Loucura. São Paulo: Perspectiva.        [ Links ]

Machado, R. (2000). Foucault, a Filosofia e a Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

Naffah Neto, A. (1994). A Psicoterapia em Busca de Dioniso: Nietzsche visita Freud. São Paulo: Escuta.        [ Links ]

___________. (1992). O Inconsciente como Potência Sobversiva. São Paulo: Escuta.        [ Links ]

Pelbart, RR (1991). Manicômio Mental -a Outra Face da Clausura. Em Lancetti, A. (org). Saúde e Loucura 2 (pp. 131 -138). São Paulo: Hucitec.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Tatiana Ramminger
Rua Lima e Silva, 250/104 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS - 90050-100
Tel.: (51) 3226-6462 - 9 1 65-4533
E-mail: tatiramminger@portoweb.com.br

Recebido 28/02/01
Aprovado 20/10/01

 

 

1 Entendendo genealogia tal como a conceitou Foucault. Ao proclamar em Microfisica do Poder que "a genealogia é cinza", o pensador deixa claro que seu objetivo não é a iluminação, as luzes da razão. Sua prioridade é problematizar as evidências naturais, o lugar-comum - como um caleidoscópio que constrói novas imagens apesar de as peças serem as mesmas.
2 Aqui acho interessante pontuar, sem querer cair em "interpretaços", sua resolução em sair da "sociedade", já que o termo encerra duplo sentido: da sociedade profissional com seu pai e amigo e o convívio na sociedade como um todo, do qual também se afastou -inicialmente indo morar em uma chácara e, mais ainda, depois, quando começou a apresentar os sintomas da doença.
3 Foucault aponta em "A história da Loucura" que cada época elegeu seu Pecado Capital. A Idade Média condenou a Soberba e o início da Renascença, a Avareza. L.F. Barros também aponta seu grande pecado.- a Vaidade...