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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.23 no.2 Brasília June 2003

 

ARTIGOS

 

Educação infantil e psicologia: para que brincar?1

 

Children education and psychology: playing for what?

 

 

Eulina da Rocha Lordelo*, I; Ana Maria Almeida Carvalho**, II

I Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia
II Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Discute-se o lugar da brincadeira no currículo da educação infantil. A partir da nova LDB, coloca-se a tarefa de construir, ou reconstruir, em alguns casos, propostas de atendimento que contemplem as necessidades da criança em desenvolvimento. A mudança constitui um problema face à tendência à aplicação, por analogia, de um modelo de instituição escolar a essa faixa etária, evidente na organização do ambiente e das atividades proporcionadas à criança. Questiona-se a visão da brincadeira como meio através do qual a criança vai atingir objetivos escolares, representando uma visão de infância apenas como promessa de futuro, sem importância para o presente. Propõe-se uma orientação para a educação infantil que privilegie um conceito de desenvolvimento como adaptação atual.

Palavras-chave: Educação infantil, Brincar, Desenvolvimento, Currículo.


ABSTRACT

This paper discusses the role of playing in the curriculum of early education. Following the new LDB (national orientations for Education), we have the task of constructing or reconstructing, in some cases, proposals for early childhood care that meet the developing child’s needs. The change is difficult due to the trend of applying, through analogy, a school model to early childhood education. This trend is evident in the environment organization and in the activities proposed to children. We argue against looking at playing as a vehicle through which the child will achieve schooling goals, representing a vision of childhood only as a promise for the future, disregarding the present. We propose instead an early education that privileges a concept of development as present adaptation.

Keywords: Early education, Play, Development, Curriculum.


 

 

Depois de décadas de lutas tentando pôr em evidência a necessidade e prioridade da criança pré-escolar, estamos agora no limiar de uma nova etapa. Nas décadas precedentes, os esforços estiveram concentrados na necessidade, no compromisso da sociedade com os direitos das famílias e das crianças, em retirar do atendimento à criança de zero a sete anos o caráter de assistência custodial e filantrópica, em uma trajetória já bem conhecida através das contribuições de estudiosos, políticos e movimentos sociais (Campos, 1989, Oliveira & Rossetti-Ferreira, 1986).

Estamos, agora, começando uma nova era no cuidado à criança. Temos uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação que reconhece a criança de zero a sete anos e o dever do Estado em prover educação a essas crianças; temos uma secretaria ministerial que elaborou e publicou referenciais curriculares nacionais para esse nível da educação fundamental. Então, já não é sem tempo a refleção sobre o nosso papel, o que nos solicitam e o que nós devemos e podemos executar.

A recente mudança de orientação do atendimento à criança de 0 a 6 anos da área de assistência social para a educação trará algumas importantes conseqüências, algumas das quais nos propomos a explorar aqui. Queremos esclarecer que esses comentários se baseiam em um contato extenso com creches nas cidades de Salvador, São Paulo e, em menor extensão, em outras cidades do Brasil, mas não são aplicáveis a todas as creches; na verdade, a evidência de que são representativas da média das instituições de educação infantil é assistemática e sujeita a deformações por viés de amostra. Isso, entretanto, não é decisivo para a discussão que trazemos aqui, de caráter mais conceitual e menos factual.

Possivelmente devido à novidade do assunto – o cuidado extensivo da criança fora da família – a sociedade não dispõe de modelos desenvolvidos especificamente para esse contexto. Assim, assistese à tendência à aplicação, por contágio, de um modelo de instituição escolar para essa faixa etária, evidenciada na organização do ambiente proporcionado à criança, em todos os seus aspectos: arquitetura, atividades, formação de pessoal, natureza dos papéis, interações, e até mesmo em dimensões simbólicas que permeiam as relações sociais.

Alguns poucos exemplos podem ilustrar essa afirmação. À parte as que funcionam como depósitos de crianças, na esmagadora maioria das instituições de educação infantil, os espaços em que as crianças ficam a maior parte do dia são organizados como salas de aula, geralmente com mesinhas e quatro cadeiras, possuindo, freqüentemente, quadros de giz; a maior parte das atividades da criança é de natureza acadêmica, envolvendo papel, lápis e tintas. A organização da rotina confere ao horário de brinquedo livre um lugar secundário, geralmente no primeiro e último horários do dia, antes do início e depois da conclusão das “verdadeiras” atividades educativas. Qual é o problema de pensar a instituição de educação infantil como escola? Na perspectiva da Psicologia, essa concepção implica tomar como verdadeiros alguns dos mitos relativos à infância, como apontado por Thoman (1979), há mais de 30 anos, especialmente o do futurismo: nessa visão, a importância atribuída à infância é o fato de que ela prefigura o futuro, o verdadeiro alvo do desenvolvimento e dos esforços da educação. O que uma criança faz na creche não é considerado em função do seu bem-estar atual mas, sim, do que pode trazer para o futuro da criança, como melhor início na alfabetização e, em qualquer nível, um desempenho acadêmico mais elevado, o que resultaria em mais sucesso na vida como adulto.

Um exemplo emblemático dessa mentalidade pode ser visto no trecho abaixo:

De uma psicóloga e professora universitária para outra:

Mas você vai deixar seu filho fazer o pré-primário nessa escola? Você não quer que ele entre na faculdade?

A idéia de continuidade no desenvolvimento é antiga e persiste no presente, a despeito dos profundos questionamentos a que tem sido submetida, desde a virada da perspectiva de ciclo de vida, nos anos 70. Não há provas irrefutáveis de que os eventos do passado tenham papel causal no futuro do indivíduo, o que talvez justifique uma redução da preocupação com a vida escolar posterior da criança. Cada vez mais, o desenvolvimento é concebido como um processo aberto e indeterminado, com múltiplos caminhos possíveis a partir de qualquer ponto (Fogel, Lyra & Valsiner, 1997). Entretanto, nossas críticas ao currículo da educação infantil não dependem da adesão ou recusa ao postulado da continuidade do desenvolvimento. Embora acreditemos que o bem-estar presente da criança seja defensável por si próprio, pensamos que as práticas escolares vigentes na educação infantil hoje estão longe de desempenhar um papel benéfico ao desenvolvimento posterior da criança.

Mesmo em uma perspectiva de continuidade, não há justificativas para a escolarização da educação infantil. A essa desvalorização do bem-estar presente da criança em favor de metas futuras, soma-se uma concepção de desenvolvimento marcada pela idéia de um cronograma dirigido para metas sempre antecipadas. À guisa de metáfora, o desenvolvimento é visto como uma corrida cujo prêmio é a redução do tempo necessário para cumprir a tarefa. A expressão atraso, que tem um sentido mais ou menos preciso para o diagnóstico de perturbações severas e permanentes no desenvolvimento, foi levada para a área do desenvolvimento normal, gerando entre pais e educadores a idéia de que fazer algo mais cedo é bom para a criança.

Exemplos dessa ideologia podem ser vistos na área da chamada “educação de bebês”, uma recente mania que se espalha em certos círculos urbanos de alta classe média e que reflete escasso respeito pelos direitos da criança, conforme se observa na imprensa escrita de grande circulação:

“A construção do superbebê”

“No passado, acreditava-se que a criança só podia entrar na escola aos 5 anos. Hoje sabe-se que, quanto mais cedo, melhor. Os três primeiros anos .. são os mais importantes para o desenvolvimento cerebral...

“... em São Paulo, o Centro de Aprendizado e desenvolvimento, AeD importou um método espanhol, com a missão de ajudar os pais a desenvolver o potencial máximo dos filhos desde o nascimento...

“...no projeto chamado Superbebês... a maior parte é de recém-nascidos... Nesses cursos os bebês ...ouvem música clássica para desenvolver a inteligência auditiva... estimular o aprendizado de língua estrangeira... oferecer noções elementares de matemática...

...são estimulados a engatinhar, equilibrar-se, subir rampas... (para) desenvolver a capacidade motora...

...observam obras de arte para aprimorar a percepção de cores... têm brinquedos para desenvolver o senso tátil...

...com um ano começam a aprender uma segunda língua... poderão falá-la no futuro sem sotaque...” (Veja, 1998, pp.31/33).

Um segundo mito, na análise de Thoman (1979), refere-se à ausência de uma concepção de desenvolvimento como um todo, em que as diversas competências são integradas. A escolarização da educação infantil toma o desenvolvimento cognitivo como alvo privilegiado e praticamente ignora sua relação com os demais aspectos.

A separação de funções entre os diversos profissionais da educação infantil exemplifica essa concepção. Embora as regulamentações sobre a educação infantil tenham fixado a formação de professor como o desejável para a área, é patente a divisão de trabalho existente nas creches entre professores, que “trabalham” competências e auxiliam o desenvolvimento, e os auxiliares ou qualquer outro nome pelo qual são conhecidos (pajens, atendentes, babás), encarregados de trocar fraldas, limpar narizes, dar banho, comida etc. Nessa divisão de trabalho, as pessoas de melhor formação se encarregam de cuidar do desenvolvimento cognitivo, não sendo necessárias para lidar com a criança em todos os seus aspectos, os quais, portanto, supostamente não requerem escolaridade mais elevada ou formação especializada.

Ora, a instrução é, certamente, muito importante, embora não necessariamente pelo domínio de conteúdos específicos e técnicas particulares aplicáveis a esse nível de atendimento à criança, o que só é compreensível quando se aceita que o trabalho do adulto seja prioritariamente visto como ensino. A instrução, no entanto, não é a única característica importante, talvez nem mesmo a mais importante. Sabe-se que o desenvolvimento é profundamente afetado pela qualidade da relação entre a criança e o adulto, que, usual, mas não exclusivamente, envolve a mãe. Dificuldades no ajustamento da personalidade do adulto, como hostilidade, depressão, inconsistência, entre outras, são características comumente relacionadas à qualidade das adaptações alcançadas pela criança nas suas trajetórias desenvolvimentais (Schaffer, 1977, Papousek & Papousek, 1984, 1989, Isabella & Belsky, 1991). Essas dificuldades não são, evidentemente, prerrogativas de pessoas com baixa instrução.

Um caso exemplar pode ilustrar a obsessão da educação infantil com as habilidades acadêmicas: em uma visita a creche de reconhecida boa qualidade, com razão adulto-criança acima das recomendações, empenhada em seguir as orientações do MEC, pudemos presenciar uma cena representativa da concepção de creche como escola. Entre outras decisões, a instituição mostrava um grande comprometimento com o estímulo ao desenvolvimento da criança. No berçário, além das pessoas que cuidavam regularmente das necessidades corriqueiras das crianças, havia uma professora com a função específica de estimulação, chamada, apropriadamente, “a estimuladora”. Quando entramos na sala, vimos duas crianças (de um ano e um mês e um ano e três meses) sentadas a uma pequena mesa, segurando pincel atômico e riscando um papel. Uma das crianças parou o “trabalho” e olhou para nós. A estimuladora se abaixou, pegou a mão da criança e guiou-a para riscar o papel.

Esse exemplo revela o conceito pobre de estimulação praticado, que privilegia estímulos materiais e atividades, ignorando completamente a dimensão de responsividade do ambiente, inclusive o social. Schaffer (1977) aponta o fracasso da hipótese de estimulação como determinante do desenvolvimento, a partir da análise de diversos estudos na literatura. Para ele, a idéia de fornecer estimulação à criança “envolve experiências arbitrariamente impostas que podem não estar relacionadas à habilidade da criança de assimilá-las” (p. 43). Em seu lugar, propõe uma concepção de socialização inicial em que tanto o adulto quanto a criança estão envolvidos e em que a quantidade, o tipo e o timing da estimulação estejam relacionados à organização psicológica da criança (SCHAFFER, 1977, 1992).

De outro lado, o sócio-interacionismo, especialmente na concepção atribuída a Vygotsky, tem sido processado de uma forma peculiar em alguns meios educacionais. Alguns aspectos da obra de Vygotsky têm tido um impacto significativo no campo da educação. Entre esses, van der Veer e Valsiner (1995) destacam três princípios ou hipóteses: a primeira delas é a proposição vygotskyana de que os processos cognitivos são construídos num meio histórico-cultural e mediados pelos agentes sociais que interagem com os indivíduos; a segunda, estreitamente ligada à primeira, é que o desenvolvimento da criança difere essencialmente segundo ela freqüente ou não a escola, e, finalmente, o terceiro ponto a influenciar a educação atual diz respeito ao papel decisivo da “zona de desenvolvimento proximal”, o lugar privilegiado de ação do educador. Essas hipóteses, de grande importância para a Psicologia atual, foram geradas no contexto da construção de uma sociedade socialista, com sua preocupação com a educação e a adoção da premissa do materialismo histórico de subordinação das idéias às condições materiais de existência. Embora a preocupação final de Vygotsky, no entanto, fosse a educação das massas, seus estudos empíricos foram realizados (e muitas das suas hipóteses não chegaram a ser testadas) como experimentações limitadas, sem maior generalidade, sendo que apenas uma parte de seus resultados se acha disponível em publicações.

A “descoberta” de Vygotsky pelo mundo ocidental trouxe para a Psicologia um novo ritmo de desenvolvimento, como se entrevê no aparecimento de uma psicologia histórico-cultural, nos avanços do campo dos estudos sobre cognição, entre outros. Conceitos como “participação guiada”, de Rogoff (1990), têm sido acrescentados ao corpo teórico da Psicologia como mecanismos explicativos do desenvolvimento.

Como em qualquer teoria psicológica, entretanto, há um hiato entre teoria e aplicações. Em primeiro lugar, as teorias científicas são construídas, em geral, para explicar aspectos limitados de um campo, mas as ações humanas, como a educação, lidam com situações globais. Fatos e leis científicas sobre desenvolvimento cognitivo, por exemplo, não podem orientar ações educativas diretamente, uma vez que o sujeito do conhecimento é um todo e compreende motivações, emoções e contexto, todas essas instâncias interligadas de forma desconhecida. Derivar uma pedagogia de uma teoria sobre aprendizagem e desenvolvimento cognitivo, portanto, é uma tarefa independente da elaboração dessa teoria, que requer investimento em pesquisa, experimentação e avaliação em ambientes naturais e controlados.

As práticas pedagógicas brasileiras supostamente apoiadas no sócio-interacionismo enfatizam fortemente o papel do professor. Freqüentemente, as orientações fornecidas ao professor, ao menos aquelas efetivamente praticadas, parecem assumir que a criança nada pode aprender que não seja explicitado e orientado pelo professor, havendo pouco reconhecimento ou preocupação com o que a criança aprende através do que é ensinado e, principalmente, através de suas ações, independentemente de ter recebido instruções para executá-las. Deve-se ressaltar que um dos aspectos essenciais do construtivismo, de qualquer construtivismo, é a proposição de que toda a aprendizagem e todo o conhecimento são governados por processos tácitos e abstratos, que prevalecem sobre o explícito e o concreto (Mahoney, 1998). Então, a integração de novas experiências aos esquemas cognitivos disponíveis ocorre independentemente de o professor fazer essas ligações, ou seja, toda a preocupação de relacionar experiências pessoais a conceitos, de contextualizar os conhecimentos em relação ao ambiente sócio-histórico parece-nos, de certo modo, repousar no velho mito da criança como página em branco, apesar de toda a insistência discursiva na crença sobre a criança como sujeito do seu desenvolvimento, como organismo ativo na construção do seu conhecimento. Em suma, parece haver um terrível hiato entre as teorias sobre o desenvolvimento e a pedagogia derivada.

O mesmo problema ocorre no que diz respeito aos processos de socialização, da aprendizagem de normas de conduta e valores. A preocupação explícita dos educadores com esses aspectos da formação traduz-se na inclusão de conteúdos relativos à vida social, que devem ser “passados” para a criança, ignorando-se o que, de fato, ela aprende a cada momento através das suas experiências concretas. Quando a criança é repreendida por molhar as fraldas ela, certamente, aprende que esse comportamento será punido e, aos poucos, deixará de fazê-lo mas ela também aprende, entre outras coisas, sobre seu próprio poder e o do outro, sobre o valor do seu corpo e seus produtos e sobre causalidade e controle.

 

O Lugar da Brincadeira na Educação Infantil

Assim, uma vez situados os quadros de referência amplos nos quais se apoiam as políticas da educação infantil, passemos a avaliar especificamente o lugar da brincadeira na educação infantil. Também nesse caso, devemos afastar as instituições que não têm qualquer pretensão educacional, representando soluções improvisadas, às vezes desesperadas, de guarda da criança durante os períodos do dia em que a mãe está trabalhando, e concentrar nossa atenção naquelas que estão preocupadas em educar a criança e que têm recursos suficientes para fornecer serviços além da alimentação: materiais acadêmicos, pessoal qualificado, espaço planejado, entre outros. No Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (Brasil/MEC, 1998), a brincadeira aparece como um importante componente da educação infantil, mas como uma ferramenta para a aprendizagem; de fato, o item brincar é um tópico do item maior “aprendizagem”, e vem no mesmo nível que imitação, oposição, linguagem e imagem corporal; além disso, restringe-se à brincadeira de faz-deconta, e a prioriza injustificadamente, ignorando as inúmeras modalidades de brincadeiras que precedem o surgimento do jogo simbólico.

Esse enquadre utilitarista da brincadeira na educação infantil vem sendo discutido na literatura, sendo apontadas as limitações e/ou distorções dessa concepção, entre as quais a ausência de reconhecimento do caráter auto-motivado do brincar, a crença na necessidade de orientar a brincadeira em certas direções e não em outras, e as implicações dessas concepções para a vida da criança, bem como os impactos no seu desenvolvimento futuro.

O que significa dizer que o brincar (bem como diversas outras atividades) é auto-motivado? A pergunta requer uma digressão sobre um tema clássico da Psicologia, freqüentemente ignorado em estudos mais recentes em Psicologia do Desenvolvimento: motivação.

Deci e Ryan (1985) sintetizam as controvérsias sobre bases motivacionais do comportamento em dois modelos, por sua vez baseados em dois enfoques epistemológicos diferenciados: o mecanicista e o organísmico. O enfoque mecanicista pressupõe um organismo passivo, que só é ativado ou energizado a partir de estimulação externa, ao passo que o modelo organísmico pressupõe um organismo ativo e auto-determinado. Desses enfoques, resultam dois modelos motivacionais distintos: de um lado, as teorias de impulso, que só admitem motivações endógenas determinadas por déficit ou distúrbios do equilíbrio orgânico – por exemplo, fome, sede, dor, sexo – que ativariam ações no sentido de restabelecer o equilíbrio; de outro, o modelo de motivações intrínsecas, que pressupõe um sistema nervoso dotado de atividade própria, capaz de gerar energia para ações não motivadas por déficit ou distúrbio de equilíbrio, ações que não cessam a partir de saciação ou reequilíbrio – por exemplo, exploração, manipulação, ludicidade. Desse último modelo, decorrem os conceitos cognitivos de níveis ótimos de ativação e de atenção: os organismos estariam preparados para novidade, complexidade, desafio, incongruência, mas dentro de âmbitos delimitados, capazes de ativar o comportamento sem desorganizálo; no plano afetivo, decorrem as noções de que seres humanos teriam necessidade de interações livres e efetivas com o ambiente, nas quais estariam envolvidos sentimentos de prazer e de interesse, ou seja, que envolveriam recompensas intrínsecas à própria atividade; seriam dotados, ainda, de curiosidade e de desejo de eficácia ou competência na manipulação do ambiente. Esses conceitos permitem uma definição de auto-determinação como a experiência de liberdade na iniciação e controle do próprio comportamento.

O modelo de motivação intrínseca pressupõe, ainda, que o comportamento intrinsecamente motivado pode ser inibido se for submetido a controle externo (motivação extrínseca, ou seja, fazer algo por um motivo que não tem a ver com a própria atividade ou que não é auto-determinado). Esse pressuposto tem sido amplamente confirmado por pesquisas empíricas, que dão suporte à noção de organismo ativo e auto-determinado: por exemplo, crianças que receberam balas para brincar em balanços abandonam essa atividade temporariamente quando deixam de receber a recompensa extrínseca (Gomide & Ades, 1989).

A partir desse modelo, brincar, movimentar-se, interagir com parceiros são ações intrinsecamente motivadas no ser humano, e a criança é concebida como um ser ativo e auto-determinado, o que implica reconhecer sua competência e seu direito a condições propiciadoras de seus comportamento intrinsecamente motivados – mas nunca sua obrigação de desempenhar esses comportamentos, o que seria incongruente com a própria noção de motivação intrínseca. O modelo permite ainda indicar o que são condições propiciadoras: novidade e diversidade dentro de um grau ótimo de desafio e de incongruência, em condições ótimas de atenção e interesse, ausência de pressão por motivações extrínsecas (expectativas de desempenho, recompensas por desempenho segundo critérios externos), capazes de inibir o comportamento intrinsecamente motivado possibilidade de experienciar auto-determinação. Changchum e Dianwu (1993) defendem o direito da criança pré-escolar ao brinquedo e condenam os esforços para “desenvolver” a inteligência da criança através de programas de treinamento. Acreditam que o brinquedo livre tem um valor educacional, devendo ser o papel do professor o de ajudar a criança a realizar o brinquedo de acordo com seus desejos e a criar e descobrir coisas novas.

Quanto ao impacto dos programas sobre o desenvolvimento cognitivo, Sylva (1993), revendo estudos sobre efeitos da pré-escola no desempenho escolar da criança, reporta que, em termos de ganhos cognitivos, as diferenças entre grupos com diferentes experiências tendem a desaparecer em torno de oito a nove anos. Apenas em relação às diferenças em medidas não-acadêmicas, como compromisso com a escola, sucesso no trabalho e comportamento criminal, parece haver associação com as experiências de pré-escola, sendo os resultados relacionados especificamente à natureza dos currículos adotados e à qualidade dos programas.

Passaremos ao que consideramos um exercício de pensar o currículo da educação infantil da perspectiva da Psicologia do Desenvolvimento. Não formulamos essas proposições como propostas práticas porque elas não foram testadas. Cremos que seria melhor tratálas como hipóteses: o que aconteceria para a criança se:

O espaço da educação infantil fosse organizado como um parque? Ou como uma casa? Ou como um grupo de escoteiros/bandeirantes? Ou como uma cooperativa de trabalho? Ou como uma comunidade política? Ou como grupo de crescimento pessoal?

O objetivo dessas perguntas é trazer à nossa consideração as implicações derivadas da adoção de um modelo particular para a educação infantil: em cada caso, são enfatizados caminhos desenvolvimentais diferenciados, como o trabalho, num caso, ou relações e vínculos, no outro, ou formação de valores, ou obediência, e assim por diante, em cada um deles.

De fato, como descrito na literatura, em vários países do mundo a creche não é concebida como uma escola. Observe-se, por exemplo, a descrição de uma creche típica na Suécia, feita por Gunnarsson (1994). Apenas a descrição do espaço já é suficiente para marcar diferenças essenciais nas concepções de creche: a área interna para um grupo de 16 crianças é composta por cinco salas, que as crianças podem utilizar livremente, uma para brincar de casinha, um espaço com almofadas, livros e um aquário, uma sala de carpintaria, um salão de brincar para atividades que envolvem movimentos amplos e uma sala com mesas e cadeiras, onde as crianças fazem as refeições, jogam e armam quebra-cabeças e preparam algumas refeições (o autor menciona especificamente que “assam bolinhos”). A organização dos grupos não obedece ao critério de faixas etárias, o que permite a convivência de crianças de idades diferentes e as experiências peculiares que essa convivência propicia (LORDELO & CARVALHO, 1989, 1999). O currículo enfatiza o contato e o respeito à natureza, a identidade cultural e a interação com a sociedade.

Na Noruega, a formação de educadores privilegia essas mesmas dimensões, incluindo, além de Psicologia do Desenvolvimento e de Pedagogia, noções de Sociologia e de Filosofia relevantes para esse currículo (LÆKKEN, 2001).

De outro lado, a descrição da Escola “Bank Street”, nos Estados Unidos, feita por Oliveira (1994), evidencia sua aproximação com um modelo escolar, mas com uma escola cujos objetivos e estratégias valorizam intensamente aspectos como identidade, auto-estima, auto-controle, autonomia e expressão emocional.

Também na Itália, país em que o atendimento à criança pequena tem sido visto como muito satisfatório, os currículos de educação infantil são marcados por uma enfática orientação não escolar (GHEDINI, 1994, FARIA, 1994).

Sustentamos que a escola não é o único e, provavelmente, não é o melhor modelo em que a instituição de educação infantil pode realizar uma ancoragem em busca de sua própria identidade. A simples enumeração de possibilidades de modelos nos alerta para o caráter perigosamente redutor da experiência de educação infantil que se está gestando nas políticas públicas.

Pode-se acrescentar a isso a consideração das deficiências de nossos modelos atuais de escola: quantas crianças em idade escolar estudam por prazer ou por interesse, e não controladas por nota? Quanto da motivação característicamente humana pela busca do conhecimento sobrevive às nossas escolas - das piores às melhores? Quanto dessa motivação sobrevive até em nós, professores, sob as pressões de produção e avaliação? Será que vamos cometer a proeza de conseguir que um dia as crianças também brinquem só porque, como, onde e quando se espera que elas brinquem?

Se tomarmos efetivamente por base o modelo de auto-determinação, talvez essas conseqüências não sejam tão graves ou irreversíveis, pelo menos em alguns casos. Conta-se que Einstein foi um péssimo aluno; talvez isso queira dizer que sua motivação intrínseca sobreviveu à escola. Talvez a ludicidade humana sobreviva à inserção do brincar na pré-escola como currículo obrigatório e como atividade da qual se esperam resultados mensuráveis em termos de desenvolvimento.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Eulina da Rocha Lordelo
Ana Maria Almeida Carvalho
Rua Estrada de São Lázaro, 197 - Federação
40210 – 730 Salvador-BA
Tel: +55-71–245-9375 / Cel.: +55-71-9122-9375
E-mail: eulina@ufba.br

Recebido 12/10/02
Aprovado 24/02/03

 

 

* Doutora em Psicologia. Pesquisadora do CNPq. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia.
** Livre docente em Psicologia. Pesquisadora do CNPq. Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1 O presente artigo tem como base apresentações realizadas em simpósios do I e II Congresso Norte-Nordeste de Psicologia.