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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.23 n.2 Brasília jun. 2003

 

ARTIGOS

 

Escuta analítica no hospital geral: implicações com o desejo do analista

 

Analytical listening in the general hospital: some implications with the analyst’s desire

 

 

Zeila C. Facci Torezan*, I; Abílio da Costa Rosa**, II

I Departamento de Psicologia da Universidade Filadélfia
II Universidade Estadual Paulista/Assis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da experiência na enfermaria de um hospital-escola1, do confronto com o status-quo do trabalho dos psicólogos em hospitais e da avaliação da literatura sobre a clínica psicanalítica em hospital, esta pesquisa se propôs a buscar avanços frente a uma questão específica: a escuta psicanalítica no trabalho em enfermarias de hospital geral e as implicações dessa prática com o desejo do psicanalista. Foram entrevistados quinze psicólogos declaradamente de orientação psicanalítica, vinculados a unidades de internação e com experiência mínima de dois anos de trabalho em hospital geral. As entrevistas foram abertas e semi-estruturadas, com o intuito de contemplar de maneira uniforme a coleta de informações de cunho mais objetivo, assim como de facilitar a pertinência ao tema de estudo. A interpretação dos dados foi realizada à luz do referencial clínico psicanalítico (freud-lacaniano), sendo que tal interpretação nos permitiu identificar uma importante interação entre os impasses, presentes na instituição hospitalar, da prática clínica psicanalítica com questões pessoais e de formação do profissional, interação que se vincula à postura de trabalho adotada no hospital. Reafirmamos, através desta pesquisa, a possibilidade de fazer uso de uma escuta analítica no trabalho com pacientes internados, a qual está sempre voltada para as manifestações do inconsciente ao longo da fala, e na qual a direção do tratamento é a emergência do sujeito do inconsciente.

Palavras-chave: Psicologia no hospital geral, Escuta psicanalítica no hospital geral, Psicanálise e hospital geral, Psicologia hospitalar.


ABSTRACT

Starting from the experience with infirmary patients in a school-hospital, from the status-quo of psychologist’s work in general hospitals’ infirmaries and from literature about psychoanalysis in hospitals, this work is focused in a specific question: the psychoanalytic hearing in infirmaries and the implication of its practice with the analyst’s desire. We intervied fifteen hospital psychologists who declared psychoanalytic affiliation and had at least a two year experience in hospitals and work in infirmaries. We use psychoanalytic hearing to do “open”, semi-structured interviews. The data were analyzed under a psichoanalytical (Freudian- Lacanian) framework, and we could identify a strong interaction between the supposed hospital environment difficulties to the psychoanalytical work and some personal and training aspects, and we find that these interactions are linked to the working attitude adopted in the hospital. Our research reinforces the possibility of making use of psychoanalytic hearing in the work with infirmary patients, which is linked to unconscious manifestations along patient’s speech, and in which the therapy direction is the emergence of unconscious subject.

Keywords: Hospital Psychology, Psychoanalytic hearing, Psychoanalysis, General hospital, Analyst’s desire.


 

 

Psicologia Hospitalar

Sabemos que os primeiros traços do trabalho do psicólogo em hospital se vinculam diretamente à área médica, o que se deu no final do século dezenove nos Estados Unidos através de estudos combinando aspectos de Neurologia, Psicologia Fisiológica, Patologia Anatômica e Química (Chiattone & Sebastiani, 1998).

Assinalamos que, de forma geral, a bibliografia estrangeira encontrada segue os moldes dos trabalhos iniciados no pós-guerra (década de quarenta), contemplando o psicodiagnóstico, treino de habilidades e comportamento, intervenção de crise, terapia suportiva e de aconselhamento, trabalho grupal e atendimento à família (Ludwiggen & Albright 1994, Johnson 1994, Enright & Resnick 1990).

Matilde Neder, uma das pioneiras da Psicologia Hospitalar no país, já esboçava, no início de sua prática junto ao então Instituto Nacional de Reabilitação da USP (no final dos anos cinquenta), o perfil do trabalho do psicólogo de maneira muito semelhante ao que encontramos na literatura estrangeira.

Evidenciamos esse apontamento apresentando de forma resumida as atribuições do psicólogo, estabelecidas por Neder, no trabalho em reabilitação: diagnóstico de personalidade, intelecto e habilidades, colaboração com toda a equipe através das informações do diagnóstico, assistência psicológica ao cliente em reabilitação2, orientação à família do cliente a respeito das condições do mesmo, contatos com profissionais de outras entidades na realização de encaminhamentos, pesquisas psicológicas, treinamento de outros psicólogos (Angerami- Camon, 1994a).

Cerca de duas décadas depois, encontramos essas mesmas proposições fundamentais no trabalho de Bellkiss W. R. Lamosa, que se vinculou ao Instituto do Coração da USP em 1974.

Tendo como principal objetivo “a minimização do sofrimento provocado pela hospitalização” (Angerami-Camon, 1994b: 23), a Psicologia Hospitalar sustenta que a atuação junto ao paciente deve ser absolutamente focal às questões da hospitalização/adoecimento, vinculando essa delimitação às características da instituição hospitalar.

Nesse aspecto, a ênfase recai sobre a análise das circunstâncias associadas à internação: distanciamento da família e círculo social, separação dos pertences pessoais e igualdade entre os pacientes através das vestimentas, regras de comportamento ou ainda dos padrões de atendimento, identificação do indivíduo através do número de seu leito ou de seu diagnóstico, pouca participação do paciente no que se refere ao plano de investigação e tratamento médico, exames muitas vezes invasivos, defrontamento com diagnósticos graves, intenso sofrimento físico, tempo prolongado de hospitalização etc.

Soma-se a essa análise a indicação de um ambiente supostamente impróprio à prática clínica psicanalítica em virtude da inexistência de privacidade e conseqüente comprometimento do sigilo, das constantes interrupções provenientes das ações da equipe de saúde, da vinculação do tempo de tratamento psicológico ao período de internação, do fato de o acompanhamento psicológico geralmente se associar à iniciativa de um terceiro (indicação de algum membro da equipe de atendimento ou rotina de avaliação do psicólogo) e não à busca do paciente.

Essas considerações, sempre fortemente demarcadas na literatura brasileira sobre Psicologia Hospitalar (e.g. Angerami-Camon 1994b, Lamosa 1994, Chiattone & Sebastiani 1998), provocam um desdobramento do trabalho do psicólogo no sentido de este abranger os aspectos institucionais e ainda os familiares e sociais, práticas associadas a um ideal de humanização ao qual o psicólogo hospitalar se encontra ligado.

Esse desdobramento, em nossa interpretação da referida literatura, se sobrepõe à ação junto ao paciente no que tange ao trabalho psíquico, havendo ênfase naquilo que circunda o paciente: questões ambientais, relacionamento com a equipe, aspectos institucionais e familiares.

 

A Clínica Psicanalítica no Hospital Geral

Essa vertente sustenta a possibilidade da referida prática clínica dentro do hospital geral, sempre alerta para as especificidades do trabalho psicanalítico nesse campo.

Parafraseando Soares (1996: 58), podemos dizer não de um processo analítico dentro do CTI, mas de uma escuta analítica, de um Sujeito Suposto Saber e de um desejo do analista que pode levar o paciente a elaborar e lidar melhor com a situação traumática vivida....O trabalho analítico é aquele que propicia a articulação significante, possibilitando ao sujeito o alívio da carga pulsional ao transferi-la para uma cadeia significante.

No que se refere ao âmbito institucional em sua articulação com o paciente, consideramos que a circulação de novos discursos no campo hospitalar produz novas construções e abordagens dos fenômenos em questão. Assim, o discurso psicanalítico nos mostra que a tentativa do discurso médico de excluir o sujeito de sua doença dificulta e compromete o processo de cura (Souza,1999). Essa modalidade também não nega que, em geral, as situações no hospital constituem uma praxis atípica, na qual o sujeito se depara com o inesperado e o analista com demandas pouco definidas ou mesmo inexistentes. Impõe-se, assim, a necessidade de uma oferta de escuta que trabalhe com a clarificação de demandas (Moura, 1996: 6).

Frente a essas e tantas outras especificidades encontradas, é comum o pronunciamento da impossibilidade da prática psicanalítica no campo hospitalar.

Com o intuito de responder de outro lugar que não o da inviabilidade, as duas publicações organizadas por Marisa Decat de Moura (1996, 1999) constituem o referencial brasileiro de maior sistematização que encontramos na busca de avanços teóricos que contribuam para a superação dos entraves ao trabalho clínico psicanalítico em hospital geral.

Dessa maneira, as questões envolvidas no setting, apontadas pela vertente da Psicologia Hospitalar como obstáculos intransponíveis, são ressignificadas enquanto produtos de uma “cena ensurdecedora” (Soares, 1996: 53). Ensurdecedora, que impede de ouvir, indicando a necessidade de uma escuta diferenciada, que não se deixe atordoar e consiga se efetivar ultrapassando o ruído.

A possibilidade de ofertar e aplicar tal escuta está necessariamente vinculada à credibilidade na existência de um sujeito de desejo que, parafraseando Soares (1996:53), pode ser definido como aquele que sofre dos efeitos da linguagem, podendo, portanto, se implicar em sua vida e em seu dizer.

Nesse ponto, faz-se necessária a consideração de que o adoecimento e a hospitalização podem remeter o indivíduo à angústia, muito freqüentemente à angústia da castração, associada à intervenção no corpo e às perdas e limites aí envolvidos.

A angústia nesses casos, é tão intensa que é capaz de promover uma desarticulação da capacidade simbólica, gerando quebras e descontinuidades nos encadeamentos significantes nos quais o sujeito está inscrito (Moura, 1996).

Esse tipo de situação gerou a construção teórica da chamada clínica da urgência, que marca uma diferenciação em relação à clínica do inconsciente ou da demanda.

Esse momento de trabalho é marcado pelo esforço em recuperar o ancoramento simbólico através da articulação significante, e só então viabilizar a formulação de uma demanda e a possibilidade da clínica do inconsciente (Soares, 1996).

De qualquer maneira, como foi acima indicado, há por parte do analista a “aposta” no sujeito, sujeito da castração, sujeito do desejo.

Sabemos que a possibilidade de sustentar essa “aposta” e, conseqüentemente, fazer uso da escuta analítica enquanto instrumental de trabalho, se associa diretamente ao manejo transferencial e, portanto, ao desejo do analista.

 

O desejo do analista

O conceito teórico desejo do analista pressupõe que a concepção da transferência se contraponha ao nível das relações intersubjetivas, não se tratando de um fenômeno dual e, sim, subjetivo, concernente, portanto, ao sujeito, estrutural, ou seja, “é o que da linguagem, do simbólico, faz discurso para um sujeito a partir da castração, funda e organiza para este sujeito sua modalidade de laço social” (Stryckman 1994: 270).

É de domínio no campo psicanalítico que a operação analítica só é possível na medida em que haja transferência, e isso implica haver uma demanda endereçada a alguém a quem se destina um suposto saber.

O analista, necessariamente atento à sua função, se encontra ciente desse suposto lugar e jamais responde às seduções para que se efetive na mestria, ao contrário; podemos parafrasear Lebrun (1994: 290) ao dizer que o analista jamais pretende oferecer o que falta ao outro na medida em que se posiciona desde um lugar vazio.

Assim, o psicanalista devolve ao analisando a tarefa de produzir o saber inconsciente, enquanto o terapeuta toma como verdadeira a existência de um saber a ser transmitido ao paciente.

Miller (1997: 12) faz um apontamento bastante esclarecedor dessa questão ao considerar que a chave de qualquer psicoterapia é a existência de um Outro a quem o sujeito que sofre obedece, obediência que busca aprovação. A recusa desse lugar é, sem dúvida, um dever ético para o psicanalista.

Nesse sentido, o lugar do analista é de semblante de objeto; o sujeito vai projetar nele seus objetos, mas o analista se posiciona sempre desde o lugar da falta, pois nenhum objeto tem para ele valor diferenciado, nenhum é tomado por ele como capaz de fazê-lo gozar.

Lacan encerra o Seminário 11 (1998b: 260) com a seguinte proposição: “O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele.” O desejo do analista, portanto, prima por fazer emergir o sujeito, alcançá-lo em sua singularidade, aquela relativa à cadeia significante na qual sua história se escreve: “Aponta antes de mais nada para recortar a singularidade do sujeito, para escutar em sua palavra sua silenciosa particularidade”3 (Pujó 1997: 36).

Esse aspecto é de extrema relevância quando se trata do hospital geral, espaço que “rouba” do sujeito sua individualidade e no qual circulam discursos inscritos na ordem da normalidade (restituir ao doente sua condição de saúde) e da homogeneidade (bem representada pelos compêndios de Medicina).

Destacamos e parafraseamos ainda outro apontamento de Pujó (1997) quanto à sustentação do desejo do analista pelo fato de que o analista deve estar já um pouco resgatado da influência do fantasma, enquanto regula a realidade de cada um, e que ele é, em particular, menos dependente desse Outro do qual, no fantasma, cada um se torna objeto. Parece-nos notório que a possibilidade de sustentarse no lugar de analista é indício do quanto este foi adiante em sua própria análise, ou seja, do quanto suporta a própria castração.

A relevância dessa questão para o tratamento analítico é indiscutível e muito bem formulada por vários autores, pois se o analista, por seu desejo, não se furtar às seduções do amor transferencial, não haverá nenhuma chance de que o neurótico escape da neurose” (Juranville,1987: 224).

Nesse sentido, relembramos o célebre apontamento de Lacan (1998a: 868): “...é o desejo do analista que, em última instância, opera na psicanálise”.

Nesse ponto, ao avaliarmos as considerações teóricas encontradas até então na literatura e contempladas neste capítulo introdutório a respeito do trabalho clínico psicanalítico em hospital geral, identificamos o desejo do analista enquanto temática central e objeto de elaboração para uma praxis psicanalítica na instituição hospitalar.

As características do hospital geral, as demandas dos demais profissionais que aí atuam, o sofrimento provocado pelo adoecimento e pela hospitalização seriam obstáculos a um trabalho clínico de enfoque psicanalítico, no sentido de sua inadequação frente a esses aspectos, ou por gerarem complicadores à sustentação do desejo do analista?

Afinal, esses elementos que circunscrevem a prática em enfermarias constituem demandas recorrentes para a promoção de saúde e de “bem-estar”, comuns e pertinentes ao discurso médico, apropriadas, talvez, aos propósitos da Psicologia e suas aplicações, mas inadequadas ao campo psicanalítico.

Portanto, de acordo com as considerações delineadas até o momento, interessou-nos nesta pesquisa investigar se os referidos impasses à atitude psicanalítica, existentes na instituição hospitalar, produziriam efeitos (e de que tipo) sobre a sustentação do desejo do analista, enquanto operante em sua escuta e, portanto, num trabalho psicanalítico em hospital geral.

Essa investigação nos permitiu uma análise a respeito da sustentação do enfoque psicanalítico em hospital geral e da constatada predominância e estabilidade, nesse campo, do tradicional referencial da Psicologia Hospitalar.

 

Metodologia

Plano amostral

Foram entrevistados quinze participantes, por julgarmos este um número razoável para obtermos dados que permitissem a discussão do problema da pesquisa em questão.

Elegemos as três maiores cidades do Paraná (Curitiba, Londrina e Maringá) e uma pertencente à região sul de São Paulo (Marília). Essas quatro cidades, além da relativa proximidade geográfica, apresentam semelhanças quanto ao contingente populacional, se caracterizam por uma economia predominantemente agropecuária e possuem universidades públicas às quais se vinculam hospitais-escola.

Dessa maneira, distribuímos o número de entrevistados em sete instituições diferentes, buscando, na medida do possível, heterogenizar nossa amostra com o intuito de enriquecer os dados obtidos.

Participantes e coleta de dados

Os participantes desta pesquisa foram psicólogos com prática em hospital geral há, no mínimo, dois anos, que trabalham em unidades de internação e nos declararam orientação teórica psicanalítica.

Realizamos uma entrevista com cada participante, orientados pela técnica de entrevista individual aberta e semi-estruturada (Bleger, 1987), para a qual elaboramos um roteiro voltado para os aspectos do trabalho do psicólogo em enfermaria. A escolha dessa técnica se justificou pelo fato de a mesma contemplar em alguma medida a expressão livre do participante e o uso de uma escuta clínica provocativa3 , mas garantindo a obtenção uniforme de alguns dados de caráter mais informativo, assim como a centralização no tema a ser estudado.

Redigimos os relatos das entrevistas, sem qualquer identificação do participante, através da tomada de notas ao longo das mesmas. Os relatos foram submetidos, com o máximo de proximidade possível da data da entrevista, ao exame e aprovação do respectivo entrevistado.

A opção pelo registro escrito e não pela gravação e transcrição dos dados se deveu ao fato de considerarmos esta última como mais inibidora da fala por associar-se a uma maior possibilidade de identificação e comprometimento do participante.

Além do mais, consideramos que, distantes do gravador, nos favoreceríamos quanto à eficácia da escuta clínica por necessitarmos estar muito mais atentos, inclusive no sentido da atenção flutuante.

 

Resultados e discussão

Os participantes desta pesquisa apresentaram um tempo significativamente superior ao critério estabelecido (dois anos) para experiência clínica e prática em hospital; os hospitais-escola foram definidos como campo de coleta primordial e foram identificados 80% de sujeitos vinculados a instituições públicas de ensino (hospitais-escola). Assinalamos ainda que maioria dos participantes é responsável por elevado número de atendimentos, atendendo, em geral, no leito e em enfermarias grandes.

Consideramos relevante a divisão, praticamente equitativa, dos participantes entre os que definem seu trabalho como terapêutico (focal e suportivo) e aqueles que o caracterizam como de escuta analítica, havendo equivalência na representação de entrevistados das duas principais vertentes de trabalho em hospital.

Lembramos ao leitor que todos os entrevistados declararam adotar um referencial teórico psicanalítico5 , dado que, para nós, se contrapõe ao fato de que a metade dos participantes não orienta sua prática em hospital através de uma escuta analítica e, sim, a partir de uma postura terapêutica, sob a égide da psicoterapia breve, focal e suportiva.

A contraposição se fundamenta na concepção de que há uma nítida diferença entre um trabalho de escuta analítica e aquele com propósitos psicoterápicos diferença centrada na presença, ou ausência, do operador do desejo do analista, na medida em que este permite que o profissional se posicione, sempre, desde o lugar da falta ou, mais precisamente, do lugar de semblante de objeto, permitindo ao paciente maior abertura de seu discurso.

Observamos que esses entrevistados não identificam uma inadequação ao referencial teórico que declaram, ao contrário, verbalizam que existe mesmo uma distinção entre a prática clínica do consultório e o trabalho em hospital, e que esta se caracteriza por uma necessária postura psicoterápica nas instituições hospitalares.

Esse argumento é obviamente extraído dos ditames da Psicologia Hospitalar, que vogam em favor de modificações teórico-técnicas advindas das especificidades do hospital geral, proporcionando, assim, naturalidade ao fato de o profissional assumir posicionamentos controversos com os pressupostos psicanalíticos.

Identificamos, majoritariamente, razões subjetivas/ inconscientes associadas à escolha/ingresso no hospital e às oscilações na capacidade/interesse no trabalho. Nesse sentido, da importância dos aspectos de ordem subjetiva para a atuação em hospital, destaca-se a categoria de “dificuldades na escuta advindas de questões pessoais”.

Comentamos também sobre a vinculação, praticamente unânime, a setores de trabalho de forma desarticulada de uma escolha pessoal. Não podemos deixar de agregar a esta discussão a total relevância dada à análise pessoal para a atuação no hospital, seu confronto com o percentual de interrupção de tratamento (40%) e com os 20% que nunca fizeram análise no referencial que afirmaram adotar no trabalho.

Esses elementos, ao serem considerados em conjunto com a não aplicação, no hospital, do referencial teórico declarado, apontam, em nossa interpretação, problemas na formação profissional (nos âmbitos: teoria, supervisão e análise própria) como um dos fatores associados à postura eleita no trabalho em hospital geral.

Paralelamente a essa argumentação, relativa à subjetividade do profissional e à formação deste, gostaríamos de abordar as dificuldades encontradas no trabalho que também contemplam a formação profissional, mas estão circunscritas principalmente aos aspectos institucionais: pouca privacidade nos atendimentos, elevado número de leitos, queixas de sobrecarga de atividades, problemas com a equipe de saúde e queixas salariais. Esses mesmos aspectos são também indicados como responsáveis pelas oscilações no trabalho.

Esses itens se somam ao destaque para o distanciamento entre os objetivos da instituição e os da Psicologia/Psicanálise e também à atribuição de dificuldades na escuta advindas de elementos do campo hospitalar.

Considerando que os dados acima apontados trazem à tona a temática referente aos entraves institucionais, torna-se claro para nós que esses elementos caracterizam o campo hospitalar como fonte de dificuldades para o trabalho do psicólogo. Essas dificuldades se associam à significativa importância dada ao reconhecimento e/ou valorização do trabalho do psicólogo pela instituição. Interpretamos tal ênfase na busca de reconhecimento ou no valor deste para o desenvolvimento do trabalho, como uma forma de assegurar que, a despeito de tantas dificuldades, o trabalho seja bem aceito pela instituição e por seus representantes, aceitação que atestaria sua eficácia e/ou importância, contrabalançando com as agruras experimentadas pelo profissional.

 

Conclusão

Pudemos perceber, nas entrevistas com os participantes que trabalham em hospital com o enfoque terapêutico, elementos recorrentes que nos possibilitaram a análise de que essa escolha se encontra marcada por conflitos provenientes do embate entre algumas questões pessoais e particularidades do campo hospitalar, embate advindo das condições de adoecimento dos pacientes, assim como das dificuldades provenientes das características institucionais e da impotência frente às demandas dos pacientes e da instituição para a resolução de problemas, alívio da dor, promoção de saúde e bem-estar.

Dessa maneira, formulamos a interpretação de que os entraves institucionais e o peso da subjetividade do profissional nesse campo favorecem a sustentação do lugar de terapeuta, o qual se propõe a amenizar o sofrimento, fortalecer, adaptar.

Parece-nos que o profissional considera, através desse tipo de atuação, estar promovendo algum tipo de “bem-estar” para o paciente, sentindo-se menos impotente perante os quadros desoladores presentes no hospital e, ainda dessa maneira, estaria de acordo com o objetivo primordial dessa instituição (de promoção de saúde) e, portanto, com as demandas que aí circulam.

Acreditamos encontrar, dessa forma, ao menos parcialmente, a resposta para a predominância e estabilidade (ao longo de meio século) do enfoque da Psicologia Hospitalar: essa vertente se sustenta enquanto apaziguadora das dificuldades que se apresentam no campo hospitalar, dificuldades indicadas como impossibilitadoras de uma prática clínica psicanalítica em hospitais, quando podemos considerá-las como impasses a serem trabalhados. Os participantes que se propõem a sustentar uma escuta analítica com pacientes internados nos permitiram ampliar a leitura aqui realizada, na medida em que avaliam os elementos próprios do campo hospitalar como capazes de promover, em acordo com outros de ordem pessoal, oscilações no interesse e na capacidade de trabalho.

Nesse sentido, eles falam das convocações, feita pelos pacientes e pela instituição, a uma postura terapêutica e da necessidade de saberem acolhêlas, sem respondê-las, em virtude da ética de uma atuação, assim como reconhecem que o interesse no trabalho aumenta quando existe uma implicação subjetiva do paciente, ou seja, quando este formula uma demanda de ordem psíquica.

Essa relação diretamente proporcional entre a implicação subjetiva do paciente e o interesse do profissional pelo trabalho identifica a existência de dificuldades para não recuar do desejo do analista, assumindo a postura terapêutica ou desinteressando-se pelo trabalho perante outros tipos de demandas (que não de cunho analítico) ou mesmo diante da ausência de demanda por parte do paciente.

Os entrevistados trazem também em seus discursos, com certa freqüência, o entendimento dos elementos institucionais como uma espécie de “desafio” à prática clínica, no sentido de considerarem uma série de questões, presentes no campo hospitalar, que efetivamente atravessam a transferência.

A necessidade de superar esses “desafios” pode ser identificada como uma maneira de não se deixar ensurdecer, de manter-se no lugar de quem escuta sem ser capturado pelas demandas a ele direcionadas ou por ele formuladas em seu imaginário.

Afinal, sustentar uma escuta analítica no hospital geral depende da capacidade de isenção perante as demandas institucionais de “promoção de saúde”, assim como da suportabilidade da própria condição de castrado e impotente diante da dor e do sofrimento.

Essa capacidade exige uma formação aprimorada exatamente pela exposição constante do hospital aos pedidos, diretos e indiretos, para a transmissão de “bens” (bem-estar físico e mental: comer, dormir, não chorar, não entristecer etc).

Articulamos, neste ponto, a constatação, em nossos dados, de problemas na formação profissional: inconsistência teórica, interrupção da análise e/ ou análise feita em outro referencial (que não o declarado na atuação). Este nos parece mais um elemento que fundamenta o percurso até aqui traçado, pois, afinal, a formação profissional é o alicerce indispensável à sustentação de uma escuta analítica e, portanto, do desejo do analista. Devese acrescentar que o pouco investimento nesta nos leva a pensar na presença de elementos pessoais (e em certa resistência ou recusa em lidar com estes) que possam criar obstáculos a um posicionamento eminentemente clínico analítico.

Gostaríamos de assinalar a ênfase dos entrevistados, que desenvolvem nos hospitais um trabalho clínico psicanalítico, no fato de que tal prática possui limites e especificidades, ressaltando que não se trata de “analisar nas enfermarias” e sim de aplicar aí uma escuta analítica, de fazer uso dessa escuta em entrevistas clínicas.

Esse argumento se encontra também presente na literatura, onde nos deparamos com o conceito teórico da clínica da urgência e sua diferenciação em relação à clínica da demanda ou do inconsciente.

Talvez as críticas a um trabalho analítico no hospital, ou mesmo as indicações desse trabalho como impossível, também se dêem pelo desconhecimento da referida diferenciação e do apego a uma idéia mítica da Psicanálise enquanto destinada ao trabalho com o “profundo”.

Na medida em que temos clara a noção de que o inconsciente é atemporal e está sempre presente na cadeia discursiva, não há porque pensarmos em impropriedade de um trabalho de escuta analítica, ou seja, daquele que se volte para a emergência do sujeito do inconsciente e, portanto, para a implicação subjetiva e possível mudança no posicionamento subjetivo, assim como não há impropriedade quando sabemos a respeito da responsabilidade ética de nossa escuta, pois, respaldados teoricamente, certamente estaremos alertas para os momentos de “desancoramento do simbólico”, como enuncia a clínica da urgência. Portanto, é possível reafirmar, através desta pesquisa, a possibilidade de fazermos uso de uma escuta analítica no trabalho com pacientes internados, a qual está sempre voltada para as manifestações do inconsciente ao longo da fala, e na qual a direção do tratamento é a da emergência do sujeito do inconsciente.

Sabemos que essa direção, desde o referencial psicanalítico, é aquela verdadeiramente ética, por possibilitar que o sujeito se depare com seu desejo, num movimento contínuo de desalienação em relação ao Outro.

No trabalho com pacientes internados, essa direção só pode fazer com que estes se interroguem e, portanto, se envolvam cada vez mais com suas próprias vidas. Esse movimento se acha na contramão do discurso reinante na instituição hospitalar, aquele que aproxima o paciente de um objeto para o qual se tem o melhor destino.

Concluímos ainda que as limitações a esse tipo de trabalho se associam às especificidades do campo hospitalar, tanto em relação aos momentos particulares vivenciados pelos pacientes (por exemplo: doenças muito graves, acidentes traumáticos), nos quais se deve aplicar uma escuta que, ao menos a princípio, trate de favorecer o lide com o simbólico, de maneira mais estruturante e menos enigmatizadora quanto aos aspectos ambientais e de funcionamento institucional (interrupções, tumulto, tempo de internação, relacionamento com equipe de saúde, objetivos da instituição) que podem dificultar a condução de uma escuta analítica.

Temos também enquanto síntese deste trabalho, a certeza de que as tais especificidades do campo hospitalar se entrelaçam com particularidades do profissional, aquelas que, em geral, denunciam pontos cegos a serem elucidados, constituindo possível fonte de limites ou dificuldades para o desenvolvimento de um trabalho clínico de escuta analítica no hospital.

Como pudemos observar em nossos dados, a instituição hospitalar se acha repleta de elementos que convocam à atuação terapêutica enquanto sinônimo de transmissão de algum tipo de bem, elementos esses associados ao sofrimento e ao adoecimento do paciente ou às demandas de eficácia e produtividade, situações que põem em questão o narcisismo do profissional, dificultando o seu posicionamento desde o lugar do vazio, ou seja, enquanto semblante do objeto a.

 

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Endereço para correspondência
Zeila C. Facci Torezan
Clínica Tríade
Rua Raposo Tavares, 829 - Vila Ipiranga
86010-580 Londrina - PR
Tel: +55-43-3324-6328
E-mail: jtorezan@aol.com

Abílio da Costa Rosa Universidade Estadual Paulista
Av. Dom Antônio, 2100
19806-173 Assis - SP
Tel: +55-18-322-2933 ramal:216

Recebido 07/03/02
Aprovado 10/10/03

* Psicóloga clínica. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Filadélfia/ Londrina. Mestre em Psicologia pelo Programa de pósgraduação em Psicologia e Sociedade da Universidade Estadual Paulista/Assis.
** Prof. Dr. do Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de pósgraduação em Psicologia e Sociedade da Universidade Estadual Paulista/Assis.
1 A autora atuou, durante nove anos, como psicóloga no Hospital Universitário Regional Norte do Paraná/Londrina-PR.
2 Cabe ressaltar que Neder define a assistência psicológica como uma terapêutica que objetiva auxiliar o indivíduo em melhor adaptar-se à realidade, enfocando o apoio à valorização e aceitação pessoal através de esclarecimento ao cliente sobre suas condições emocionais.
3 Tradução nossa, citação original: “Apunta antes que nada a recortar la singularidad del sujeto, a hacer escuchar en su palabra su silenciosa particularidad”
4 Elementos absolutamente indispensáveis aos objetivos deste trabalho e ao referencial metodológico proposto.
5 Marcado pela divisão em: lacanianos (54%), kleinianos (33%) e freudianos (13%).