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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.24 no.1 Brasília Mar. 2004

 

ARTIGOS

 

E agora ... de quem, cuidarei?”: o cuidar na percepção de idosas institucionalizadas e não institucionalizadas

 

"And now ... whom shall i look after?": care as perceived by institutionalized and son-institutionalized aged women

 

 

Camila Vianna Duarte I,1 ; Manoel Antônio dos Santos II,2

I,IINúcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia Clínica , Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosocia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O perfil demográfico brasileiro tem mudado as características do envelhecimento. Este trabalho objetiva investigar a percepção de idosas sobre o cuidado consigo e com o outro, comparando-a com suas necessidades atuais de cuidados. Participaram dez mulheres, entre 65 e 89 anos, subdivididas em: institucionalizadas e não-institucionalizadas. Realizaram-se entrevistas semi-estruturadas, analisadas qualitativamente. Observou-se que o papel de “cuidadora” cria um vácuo na concepção dominante quando essas mulheres acedem à condição de objeto do cuidado do outro. Entretanto, parecem assumir um maior comprometimento com o autocuidado. Conclui-se que a família, programas comunitários e religião são as principais redes de suporte psicossocial. A ocupação e a sociabilidade influem na percepção do cuidado.

Palavras-chave: Velhice, Cuidado, Institucionalização.


ABSTRACT

The Brazilian demographic profile has altered the characteristics of aging. The present study aims to investigate how elderly women perceive the care for others and for themselves, by comparing it to their present needs of care. Ten women, aged 65 to 89 years participated in the study and were subdivided in: institutionalized and non-institutionalized. Semi-structured interviews were accomplished and qualitatively analyzed. It was found that the change of the “care-taker” role generates a void in the dominant perception, as these women become the object of someone else’s care. Nevertheless, they seem to become more committed to self-care. It was concluded that family, community activities and religion emerge as the main psychosocial support environment. Occupation and sociability influence the positive perception of care.

Keywords: Old age, Care, Institucionalização


 

 

Diante da imensa diversidade e inquestionável pluralidade estampada nos seres humanos, assim como das contínuas transformações sociais que sacodem a contemporaneidade, pelo menos uma certeza permanece irrevogável: todos os indivíduos, após terem dado o primeiro passo rumo à caminhada da vida, por mais curta ou intensa que esta possa ser, seguem sempre em direção unívoca ao envelhecimento e à morte (Heideger 1989). É no cerne dessa verdade que a condição humana constrói seu próprio universo de crenças e representações inscritas na cultura, na família e no grupo social do qual se é membro participante.

Dessa forma, é possível pensar que o processo do envelhecer, embora comum a todos, não ocorre de maneira uniforme, nem entre indivíduos oriundos de diferentes culturas, nem entre pessoas de uma mesma cidade ou núcleo familiar.

Atualmente, o quadro demográfico e as condições do envelhecimento no Brasil são marcados por um processo dinâmico de reconfiguração da pirâmide demográfica e uma perspectiva crescente de idosos na população. O País, outrora conhecido como “o berço da juventude”, projeta para meados do ano de 2025 ocupar a sexta posição no ranking mundial da população idosa. Isso equivale a dizer que 15% de sua população (aproximadamente 32 milhões de pessoas) terão alcançado os 60 anos ou mais (Carvalho Filho, 1994).

Essa mudança tem levado progressivamente a uma inversão da pirâmide demográfica. Tal transição demográfica resulta das conquistas tecnológicas e científicas na área da saúde, que vêm conseguindo prolongar a vida adulta e diminuir a mortalidade infantil através de programas de vacinação em massa, medidas preventivas e de eliminação de moléstias etc. Os fatores econômicos, por sua vez, acabam por influenciar esse fenômeno por motivos diferentes (Kalache, 1996). Em um país em vias de desenvolvimento, regulado por um modelo econômico ineficiente e injusto, o alto custo proveniente da maternidade e criação dos filhos faz com que ocorra uma redução da natalidade na maioria das famílias brasileiras. Por outro lado, uma situação precária de subsistência básica, associada a um trabalho quase escravizante e mal recompensado, fazem dos idosos subjugados a essas condições verdadeiros heróis da sobrevivência.

Vemos, assim, que a transição demográfica típica dos países subdesenvolvidos dá-se muito mais pela ressonância de conquistas tecnológicas do que pelo crescimento socioeconômico e aumento do nível educacional do país. Diferentemente da maioria dos países desenvolvidos, o envelhecimento populacional é hoje dissociado de um processo de evolução homogênea de todas as camadas sociais. O resultado direto dessa equação é encarar o envelhecimento como mais um problema no somatório dos países abstinentes de recursos. Este é, portanto, o esboço de nosso envelhecimento populacional: permeado pela profunda desigualdade social que caracteriza a estrutura socioeconômica brasileira e, conseqüentemente, artificial, desvinculado de uma consciência social que garanta ao indivíduo em processo de “envelhecer” condições de uma existência digna, cercada de bem-estar social, psicológico e de uma boa qualidade de vida assegurada.

Os dados da nossa distribuição demográfica mais atual também confirmam as já conhecidas diferenças observadas na expectativa de vida em função do gênero. Na década de 90, a participação das mulheres no contingente de pessoas de 60 anos de idade ou mais ficou em torno de 55%. De 1995 para 1999, o contingente de 60 anos de idade ou mais na população masculina passou de 7,6% para 8,3% e, na feminina, de 9,0% para 9,8%. Na atualidade, esses dados vêm confirmando a superioridade numérica da população feminina, principalmente após os 65 anos (Brasil, 2000). Como os demógrafos têm explicado esse fenômeno?

Um leque extenso de justificativas oscila desde o pólo biológico até os fatores socio-culturais no decorrer dos anos. Por um lado, estudos comprovam que a composição hormonal feminina funcionaria como um protetor natural mais eficaz contra uma série de moléstias cardiovasculares, quando comparada à masculina. Contudo, estudos mais recentes têm mostrado que essa proteção perdura apenas até a menopausa. Outras investigações buscam encontrar as razões dessa diferença na construção social e educacional do gênero feminino, que, durante muito tempo de sua história, tinha como única preocupação dar conta das “coisas de mulher” que orbitavam em torno dos afazeres domésticos para a garantia do bem-estar dos membros da família dentro do lar, cabendo ao gênero masculino as “grandes preocupações diárias”, a exposição aos riscos inerentes ao mundo do trabalho e a resolução de todos os reais problemas que pudessem ameaçar a sobrevivência da família (Nolasco, 1996, Rocha-Coutinho, 1996). Todavia, escapa aos objetivos do presente trabalho discutir aprofundadamente as razões que poderiam explicar as diferenças observadas na expectativa de vida entre os gêneros.

Além do aspecto biológico, sexual ou corporal, as funções sociais da mulher mais tradicionais e reconhecidas vão passando por transformações ao longo do tempo, ora confirmando, ora reformulando sua identidade de gênero. A propósito do conceito de identidade de gênero, Filho (1996) elaborou um breve histórico, que passaremos a sintetizar a seguir.

Na década de 50, o psicanalista americano Robert Stoller já demonstrava seu interesse por estudos sobre a variabilidade das práticas sexuais. Ele denominava o sexo como a condição biológica de ser homem ou ser mulher e o gênero como conseqüência do desenvolvimento das condições comportamentais e caracterológicas vinculadas a tal condição. Poderíamos assim dizer que o gênero abarca o que é pertencente à masculinidade e à feminilidade (Stoller, 1968, citado por Filho, 1996).

Na busca de categorizar níveis de desenvolvimento para a identidade de gênero, Tyson (1982, citado por Filho, 1996) organiza e reelabora alguns conceitos anteriores em três níveis, a saber: 1- identidade de gênero nuclear: corresponde ao senso, consciente ou inconsciente, de nível mais primário que garante a pertinência a um sexo; 2- identidade de papel de gênero: comportamento externalizado do indivíduo no relacionamento interpessoal no que diz respeito a seu próprio gênero; 3- orientação de parceria sexual: senso de preferência do objeto de amor.

Na sociedade brasileira, ao longo dos séculos da mais clássica educação, desde o patriarcado (séc. XVIII e XIX), uma das representações sociais mais identificadas às mulheres foi a indissolúvel paridade mulher-cuidadora. Os fundamentos dessa associação revelam que a identidade de gênero feminina tinha como função primordial preparar a mulher para a condição de ser mãe, viver para o cuidado dos filhos e do marido, zelar pela preservação do matrimônio. Ser altruísta não era uma qualidade, mas, antes de tudo, um requisito de toda mulher. Suas atitudes eram sedimentadas no silenciamento de seus próprios desejos e no aprisionamento de suas vontades, não podendo ser diferenciados os seus anseios do que correspondia às expectativas e desejos de seu grupo (Nolasco, 1996).

Uma grande fenda nessa representação social começa a se firmar pelo fato de não sermos nós, seres humanos, tão rígidos e estáticos como as sociedades que, paradoxalmente, queremos impor a nós mesmos. Os anos passam e essa mulher, um dia tão necessária para os cuidados da família, também envelhece e sente a necessidade de ser cuidada. Nesse período do ciclo vital, sua função familiar socializadora das relações dos filhos, que os prepara para alcançar seus objetivos, já foi cumprida (Romanelli, 1995). Além disso, as alterações naturais advindas do envelhecimento vão aos poucos restringindo sua autonomia para as mais diversas atividades. De seu corpo já não é mais esperado o dom da procriação, nem há mais crianças para devotarem sua total dedicação. Muitas vezes, nem mesmo o marido ou outros familiares significativos continuam presentes, levando à necessidade de um completo redimensionamento no próprio existir, a começar de um remodelamento de seu papel de provedora de cuidados.

Assim está configurada a realidade que pode vir a se constituir no ponto de partida ou no fim do caminho para as mulheres idosas de hoje. A consciência dessa nova realidade principia com a percepção de que é chegado o momento de olharem para si mesmas e perceberem que agora são elas que se ressentem da falta de cuidados por parte do outro. Hora de voltarem-se para si mesmas, muitas vezes com certa estranheza e perplexidade, e reconhecer suas próprias necessidades de afetos, de cuidados físicos ou amparo institucional. Ou, por outro lado, é o momento dolorido de perceberem-se sós, incapazes de responderem para si próprias à indagação: "E agora... de quem cuidarei?"

 

Objetivos

Partindo dessas premissas, o presente trabalho propõe-se a traçar dois eixos centrais como objetivos de sua análise:

•Investigar qual a percepção que mulheres idosas, provenientes de diferentes condições ambientais, elaboram acerca de sua função social do cuidar, levando-se em conta a identidade de gênero que assumiram ao longo do ciclo vital.

•Uma vez desvelados os pilares que sustentam essa construção da função social da mulher idosa, pretende-se comparar as diferentes concepções do cuidado (consigo própria e com o outro), identificando-se a percepção apresentada por essas mulheres quanto à sua necessidade atual de cuidados.

 

Método

Trata-se de um estudo do tipo exploratório e descritivo, com uma amostra de conveniência (não-probabilística), conduzido segundo um enfoque de pesquisa qualitativa.

Participantes:

Participaram do estudo dez idosas, com idades variando entre 65 e 89 anos, oriundas de estrato socioeconômico médio a baixo. A idade mínima foi estabelecida considerando-se como marco da velhice a opinião dada pelas próprias idosas, isto é, os marcos psicológicos do envelhecimento (Salgado, 1992), e também o critério adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que define para os países em desenvolvimento a idade de 60 anos como marco da velhice e de 65 anos para os países desenvolvidos.

A amostra foi subdividida em dois grupos (n=5): 1- residentes com familiares em seus próprios lares, participantes de um centro de vivência do município de Ribeirão Preto; 2- idosas internas de instituição asilar localizada no mesmo município. No tocante aos diferentes contextos de moradia, cabe ressaltar que ambos se localizam em bairros da periferia da cidade, com características socioeconômicas equivalentes.

Segue-se abaixo um quadro que sintetiza os principais dados de identificação pessoal das idosas entrevistadas.

(1) Para facilitar a identificação das participantes em seu contexto de vida, as idosas que moram com familiares foram designadas por nomes de deusas mitológicas e as institucionalizadas, por nomes de flores. A escolha dos nomes foi feita de forma aleatória.
(2) Referiu-se ao fato de estar sendo alfabetizada pela filha.
(3) Apenas uma das entrevistadas exercia atividade remunerada na época da entrevista.
(4) Atualmente tece tapetes e colchas por encomenda.

Procedimento de coleta dos dados:

A seleção das participantes obedeceu a critérios diferenciados. Para o G1 (idosas que residem em casa), adotou-se como critério de seleção o fato de estarem participando de um programa comunitário voltado para pessoas idosas, conhecido como PIC (Programa de Integração na Comunidade) e freqüentarem um centro comunitário (Serviço Social do Comércio - SESC).

No caso das mulheres do G2, a pesquisadora entrou em contato com a direção de um asilo que abriga mulheres e homens, solicitando sua colaboração. Uma vez concedido o consentimento formal da instituição, a pesquisadora contava com livre acesso ao local.

Uma primeira participante foi selecionada através dos contatos e interações prévias estabelecidas pela pesquisadora, em função do seu interesse e concordância com os termos e objetivos da pesquisa, sendo as demais escolhidas pelo critério da "bola-de-neve" (snowball), em que uma entrevistada indicava outra colega, que supostamente tinha condições psicológicas adequadas para realizar a entrevista e que possivelmente concordaria em participar da pesquisa.

Obedecendo às normas éticas de pesquisa envolvendo seres humanos, um termo de consentimento livre e esclarecido definindo claramente os objetivos do trabalho e seus fins científicos foi lido e assinado pelas próprias idosas entrevistadas (no grupo 1) e pelo responsável legal da instituição asilar (no grupo 2). Para o grupo das idosas asiladas, foram reservados dois dias para um breve levantamento das características gerais da instituição, através de entrevistas informais com a direção e funcionários.Em um segundo momento, objetivou-se a familiarização das internas com a presença, a partir de então bastante freqüente, da pesquisadora no ambiente institucional, mediante o estabelecimento de rapport por meio de conversas informais.

Um roteiro de entrevista de caráter semi-estruturado e seqüência flexível (Patton, 1980) foi elaborado e aplicado individualmente a cada sujeito. Esse caráter semidirigido da entrevista permitia a exploração de assuntos outros introduzidos espontaneamente pelas entrevistadas ou pela pesquisadora, desde que fosse conveniente aos objetivos da investigação. A elaboração prévia do roteiro visou a facilitar a sistematização e análise do material coletado.

Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, cronometradas e posteriormente transcritas na íntegra para análise subseqüente. Apresentaram uma duração média de noventa minutos. Ainda como instrumentação do trabalho, foi utilizado um "caderno de campo" (Biasoli-Alves, 1995), onde a entrevistadora registrou suas impressões gerais de cada entrevista, observações colhidas no campo, comentários das entrevistadas e descrições dos locais visitados.

Procedimento de análise dos dados:

A sistematização dos dados e análise subseqüente obedeceu a paradigmas qualitativos de pesquisa, segundo os quais a atenção do pesquisador deve estar voltada para a averiguação dos significados que o próprio sujeito confere à situação a ser investigada (Martins e Bicudo, 1994).

Esse referencial metodológico, também elucidado por Silva (1998), tem um caráter compreensivista ou interpretativista de pesquisa, no qual o ponto de vista do sujeito – e não do pesquisador – é colocado sob o foco do estudo.

A perspectiva de envelhecimento trazida por essa investigação está pautada no fato de que o processo de desenvolvimento, visto no contínuo do ciclo vital, não pode ser descritivo ou pontual, mas entendido como um construto processual, em movimento constante com diversas dimensões: social, cultural, psicológica e política, enfim, com todas as condições socioculturais das quais o indivíduo participa e às quais tem de se adaptar (Neri e Cachioni, 1999). Segundo Minayo (1999), por se tratar de um nível de realidade cercado por valores e crenças de indivíduos e grupos sociais, sua quantificação torna-se inviável.

No decurso da análise das entrevistas, foram cumpridas as seguintes etapas propostas por Minayo (1993):

 

• Ordenação dos dados: depois de transcritas integral e literalmente, as entrevistas foram relidas e organizadas.

• Classificação dos dados: nova leitura exaustiva do material para a obtenção de um corpus, de onde se passou a retirar as unidades de registro através de uma leitura transversal (recorte e colagem das questões do roteiro). Dessa forma foram levantados e classificados os temas visados pelo trabalho.

• Análise final: as falas foram reorganizadas por sua proximidade e convergência de temas.

Resultados e Discussão

Percepção do cuidado: a idosa e o suporte familiar Foram agrupados nessa categoria temática os segmentos de fala que correspondem à maneira como as entrevistadas percebem a situação da família atualmente e a freqüência de visitas. Através desses questionamentos, pôde-se perceber a atmosfera familiar e a dimensão que a idosa ocupa no contexto familiar. O contato e as relações familiares são expressos de acordo com o modo como cada uma vivencia essas experiências.

Os relatos transcritos logo em seguida exemplificam um elemento recorrente no discurso das idosas. O sentimento de ser um membro importante de sua comunidade, digno de respeito e dotado de riquezas não materiais para a família, foi sendo aos poucos substituído ao longo do cotidiano por um conceito comum que encara o idoso que convive com a família como um peso, um incômodo frente à vida tão ocupada e corrida dos filhos (Beauvoir, 1990, Bosi, 1995).

Conscientes dessa representação, as mulheres, que outrora tinham como tarefa prioritária os cuidados com os filhos, hoje procuram "não dar trabalho" para os mesmos.

"É com filho, mas a gente procura... ocupar menos porque eles trabalham, né? Se a gente for ficar chamando atrapalha o... eles também, né? Então o filho... eles oferecem sim, mas a gente procura evitar um... mais possível de chamar, né?" (ARTÊMIS, 75).

“(...) Meus filhos tudo têm compromisso, né? (...) Mas que é bom ter uma companhia de noite é, né? Pra gente, né? Meu filho tem uma chave, ele falou: `Se acontecer alguma coisa eu abro a porta` (risos). Se eles me acharem morta, eles me enterram, né?” (PANDORA, 76).

"A família, filha, é... só eu e essa minha menina e a outra e a... e tem mais dois filhos, mas está tudo pro mundo... não, não liga pra... pra mãe, não liga pra nada. Eles estão levando a vida deles e eu ando na minha..." (ATENAS, 89).

Nessa relação de cuidados, a intensidade do zelo parece definir o caráter e a função social de cada integrante. Dessa forma, verdadeiras inversões de papéis entre mães e filhos são observadas. Confirmando os achados de Bosi (1995) e Erikson (1998), tal atitude, comum a alguns filhos em relação aos pais idosos, acaba convertendo-os em “menores dependentes”, reduzindo suas perspectivas de desenvolvimento em razão do desvelo excessivo, no limite da superproteção.

"(...) não saio porque ela [filha] tem medo de carro pegar, essas coisas... mas fica com esses cuidados, a gente vai e ela vai comigo” (ATENAS, 89).

“É a minha filha (...) Ela vai e... a gente resolv... resolve pra viajar... ela viaja comigo, se é pra... sair pra rua ela vai comigo, eu não saio mais sozinha...” (ATENAS, 89).

"Ah, quem... quem... assim, mais ou menos é meu filho, né? O T. meu, a A. L., tudo que eu precisar eu peço pra ele, tudo é ele, né? Ele que foi atrás de tudo do meu marido quando morreu. É ele, coitado” (PANDORA, 76).

De fato, para o idoso que encontra na aposentadoria sua única fonte de sustento material, a ajuda financeira advinda dos filhos passa a ser requisitada e de certa importância:

"É o filho, né? Ele ajuda. Eu peço dez, peço vinte, ele me ajuda...” (MAGNÓLIA, 77).

"Os filhos ajudam um pouco, né? Essa, o filho mais velho, dão uns tiqui [tickets] pra gente, né? Pra poder ajudar, senão não daria...” (ARTÊMIS, 75).

Todavia, a rede de apoio familiar mostra-se mais significativa quando é capaz de oferecer seu suporte afetivo...

"...Mas a velhice, pra mim até que está sendo... bom. Por... graças a Deus tenho tudo que é conforto, como pobre, mas tenho tudo, tenho muito amor dos filhos, dos genros também” (AFRODITE, 73).

...contribuindo para a promoção de seu bem-estar...

"(...) A moça também [filha] (...) Eu vou na casa dela, mesmo ontem eu fui lá... ela veio me buscar, eu fui lá, fui almoçar fora, já demos uma volta...” (MAGNÓLIA, 77).

...e também auxiliando no monitoramento de suas condições de saúde...

"Eu procuro os filhos, né? Tem ela que me olha, né? [a filha] Ela está junto comigo, ela que me olha, mas quando for um caso mais sério, a gente procura os outros também, né?” (risos) (HERA, 85).

...ainda que essa (preocupação com a saúde da idosa) seja a razão quase que exclusiva para alguns membros da família dispensarem sua atenção e cuidados para com seus integrantes mais velhos.

"Os filhos... amigos também tenho, parentes que eu tenho aqui também, eles vêm se eu ficar doente, fica todo mundo doido, fica todo mundo preocupado comigo... Agora, visita, visita assim, pouco, mas não assim muito, muito... cada um na sua...” (AFRODITE, 73).

A falta, principalmente dos filhos, passa a ser muito marcante. Com a independência econômica e, sobretudo, afetiva, dos filhos, a mulher idosa parece sentir-se abandonada ao ver esvaziada sua função mais reconhecida: o cuidar do outro. Pode-se perceber que, de certo modo, persistem ainda as dores de crescimento dos filhos. A saudade parece, antes de mais nada, ser fruto da impossibilidade, no presente, de se atribuir valor e relevância aos cuidados que poderiam estar sendo remetidos a si próprias, sob a forma de autocuidados.

“Ah, a gente sente falta dos filhos, gostaria que estivessem sempre juntos, né? (...) eu acho que... daria um apoio mais pra gente, né?” (ARTÊMIS, 75).

“Ah... uma coisa que eu senti foi a falta dos filhos. A gente sente falta, sabe? (...) cada um vai pra um lado (...) tem hora que eu sinto aquela tristeza, aí é de chorar. Quando lembra que os filhos estavam tudo junto, né? (...) a gente arrumava as roupas dele, ele se arrumava... Então a gente sempre se consola... Ah, isso eu sinto sim. A gente sente saudade” (VIOLETA, 70).

Vemos no depoimento a seguir a força da função de cuidar como eixo articulador da identidade de gênero feminina. Magnólia nos mostra que sua função de mãe-cuidadora é o elemento responsável por se sentir útil; no desempenho dessa função ela deposita todo seu valor, seu auto-conceito, sua auto-estima. No presente, ao perceber que não há mais necessidade de proteger e educar os filhos, sente que de certo modo os abandonou, evidenciando que os laços com essas criaturas, que um dia foram crianças dependentes de seus cuidados, não foram totalmente rompidos.

"Ah, eu sinto mais que ficar velho, deixar os filhos aí e... isso que eu sinto (...)” (MAGNÓLIA, 77).

A idéia de conceber os filhos dependentes, e não como de fato eles são já há algumas décadas, negando-se a reconhecer neles a autonomia conquistada, parece ser uma tentativa de encontrar uma saída frente ao peso da realidade penosa. A idosa agarra-se à função que delineia e sustenta sua auto-imagem, com a qual sabe definir qual é sua importância e reconhecer sua utilidade social.

Podemos vislumbrar, na seqüência, que a rede de apoio estabelecida entre os cuidados familiares é um contínuo que perpassa as gerações por diferentes caminhos. Mesmo a mulher que não gerou seus filhos não era excluída de sua função de cuidadora. Parecia estar resguardada para ela a responsabilidade de cuidar de seus pais, em substituição aos filhos que não teve.

"...eu sempre acompanhei pai e mãe, não... eu sempre olhei eles também, né? Nas horas que precisou da gente que podia olhar. Sempre acompanhei pai e mãe, eu e essa última que morreu por último, nós duas solteiras, sempre com pai e mãe” (JASMIM, 83).

Existe,no entanto, um outro caminho que também pode ser vislumbrado. Essas mulheres também mostram-se capazes de resguardar sua autonomia, assim como de voltar a preocupação, antes dispensada ao outro, para si mesmas.

"Eu gosto da minha casa, né? Enquanto que eu puder, né? Agora, quando não puder, meus filhos têm que me olhar” (PANDORA, 76).

Nota-se também, em algumas circunstâncias, a permanência da figura provedora das idosas, seja oferecendo auxílio financeiro...

"(...) esse filho que tem... é casado com a... ela tinha um menino, eles têm um menin... filho autista também, (...) têm muitos gastos, ele precisa trabalhar, mas ela acha que ele tinha que sair do serviço e levar o menino, né? E eles têm muita des... desentendimentos nesse sentido, apesar de que agora a gente até ajudou, a gente tinha um pouquinho de dinheiro na... na poupança (...) e a gente deu um pouquinho pra ele...” (ARTÊMIS, 75).

...ou na forma de acolhimento, representando ainda aquela referência segura, materna e umbilical constante dos filhos:

"(...) tenho esses casados, tenho essa outra que mora aqui, que trabalha no hospital, não deu certo o casamento. Dezessete anos casada, mas não deu certo, então separou. Você vê, eu tinha ido pra Portugal também (...) quando eu voltei de Portugal ela estava morando aqui. Diz que tinha separado do marido, ia fazer o quê? Vou largar na rua, não podia, né? Então veio pra cá, morando lá com dois filhos” (AFRODITE, 73).

Violeta e Hera nos revelam o caráter cíclico do cuidar feminino, permeando de formas variadas as gerações das famílias. O valor do cuidado materno não reina mais absoluto na identidade de suas filhas: as mães de hoje dividem seu tempo entre o cuidado com a família e a dedicação à profissão. Nesse caso, ambas mantiveram ainda seus papéis de cuidadoras, um legado transmitido aos netos.

"Minha família eu não posso falar deles de jeito nenhum. Eles estão sempre aqui, vêm sempre visitar a gente, né? Os netos também vêm, né? (...) elas vêm sempre aqui, a menina, essas que eu... tomei conta delas e... é sempre assim...” (VIOLETA, 70).

"(...) tem esse outro menino (...) ele ficou morando comigo sete anos, meu neto, e quando foi pra ele ir embora, gostava mais de mim do que da mãe dele. (...) Eu fazia mais carinho do que a mãe, né?” (HERA, 85).

Falar da velhice do outro pode ser o meio mais fácil de entrar em contato com os sentimentos que emergem de sua própria velhice, projetando, dessa maneira, o medo do abandono familiar, a carência afetiva e de cuidados, a percepção de desprezo no olhar do outro. Essas preocupações e temores, então, são vivenciadas algumas vezes como uma experiência alheia.

“...A gente tem que fazer um carinho pras pessoas de idade, não é verdade? É, ué. As pessoas não podem ser abandonadas, não é verdade?” (PANDORA, 76).

“Olha, aqui têm idosos que têm filhos que não vêm visitar (...) outras vêm pra cá porque a filha bateu, né? Outros a nora não quer aceitar em casa porque é de idade... tem... é idoso, essas coisas têm e coitadinhos, eles ve... vive aqui espe... vai ver que vive até meio triste pensando que acontece essas coisas com eles, né? É assim.(...). Traz, interna, some. É assim. Sabe, eles devem se... viver triste com isso, né? Então...” (JASMIM, 83).

Por outro lado, a convivência próxima com outros idosos permite uma troca viva de experiências, facilitando a compreensão empática entre eles, como se pode notar nesse último depoimento.

Mesmo quando a convivência entre os idosos não parte do cotidiano compartilhado, seus exemplos são utilizados para demonstrar o medo que sentem de serem abandonadas. Observa-se, então, o receio de que a realidade intolerável do outro possa ser a sua algum dia. Essa possibilidade não passa desapercebida por Afrodite.

“Tenho muita dó de pessoa que é idosa e sofre. (...) que eu vejo tanto desprezo dos filhos, tanta coisa que a gente vê dos idosos. (...) Torcer que não tenha que passar por isso, que eu não posso saber o dia de amanhã, mas eu tenho muita dó das pessoas que sofrem. São idosos. Quanto sofre um pai e uma mãe pra criar um filho, quantas noites mal dormidas por causa de um filho, depois o filho despreza: ‘Ai, esse velho... ah... também já podia ter ido!’ Tem muito que faz isso” (AFRODITE, 73).

Pandora menciona a ausência de cuidados sofrida pelo idoso perante sua família e deixa escapar no tom de voz certa dose de ressentimento por isso. A substituição do suporte familiar pelo cuidado institucional só é admitida por ela no caso extremo de abandono.

"Se os idosos têm família, que têm que dar apoio pra eles, olhar eles, que vai chegar a vez da gente também, não vai? Eu acho, né? Agora, se não tem ninguém, tudo bem, mas se têm os filhos que você criou com muito amor, agora vai por você num asilo? Eu acho que isso daí... né?” (PANDORA, 76).

“...se têm os filhos que cuida deles em casa, eu acho muito bonito, mas quando da vez têm os filhos tudo que leva pro asilo, eu não... eu não gosto (...). Agora, se não tem ninguém, tudo bem, né? (...)” (PANDORA, 76).

Por conseguinte, a realidade vivida por essas mulheres leva-as a confrontarem algumas de suas concepções prévias e a reverem conceitos arraigados que pareciam cristalizados, abrindo algumas vertentes de extrema importância para nossas discussões. A idéia dominante que apresentam a respeito das instituições asilares é a de que, em sua maioria, correspondem a espaços de segregação dos indivíduos indesejáveis, que já perderam sua utilidade social. Os asilos seriam o local destinatário do descaso social, depositários das pessoas que a sociedade abandonou e, de fato, a história institucional freqüentemente corrobora essas concepções vigentes. Também há outros aspectos e significações possíveis para o ambiente institucional, que nem sempre é o lugar onde se confina parte da miséria da condição humana. Os depoimentos das idosas residentes em suas próprias casas revelam que a possibilidade de internação asilar é vista como uma idéia ameaçadora. Em contrapartida, eludem a vivência de abandono e descaso de muitas idosas dentro de suas próprias famílias. Essa outra realidade quem aponta e elucida são as internas dos asilos. Nesse sentido, Magnólia fala da necessidade que teve de "mendigar", entre seus familiares, uma oferta de suporte e acolhimento...

"...Eu tinha casa, tinha tudo (...) mas meus filhos, depois que meu velho morreu, quiseram vender... Eu fiquei pensando, pensando, pensando, mas aquela hora, sabe? A gente é tão desorientada, né? Aí peguei, falei: 'Ah, eu vendo.' Aí eu fiquei na casa de um, na casa de outro, (...) nora, né? (...) comecei a andar pra cá e pra lá, então falei: 'Não, mas isso não é vida, ficar andando... está parecendo andarilho...” (MAGNÓLIA, 77).

Diante dessa situação, Magnólia decide recorrer à instituição por entender que essa era a única via que lhe restava para resgatar sua autonomia e encontrar alguma garantia de estabilidade e de maior bem-estar psicológico. Essa atitude não é exclusiva de Magnólia. A questão é que, diante das pré-concepções e preconceitos disseminados sobre asilamento e cuidado institucional, essa "escolha" voluntária pela internação pode chocar mais do que a situação de descuido social e negligência familiar que ela procura evitar.

"...Eu peguei e vim aqui (...) eu gosto porque eu não fico andando pra cá e pra lá, né? Se eles quiserem, eles vêm me buscar, vêm me trazer, né?...” (MAGNÓLIA, 77).

"(...) Mas eu quis vir pra cá porque me achei muito sozinha, porque eu não quis morar com as sobrinhas, têm os filhos todos mocinhos, pra gente que tem idade tudo, foi quando elas me deram a casa, telefone, tudo pra mim (...) mas eu me achava muito sozinha...” (JASMIM, 83).

 

Percepção do cuidar de si: autocuidado e convívio social

Foram agrupados nessa categoria temática os segmentos de fala que correspondem à maneira como as entrevistadas percebem a necessidade de cuidar de si mesmas. A análise dos mesmos permite-nos articular respostas para algumas questões, tais como: qual o tipo de cuidado e atenção que as mulheres idosas dispensam a si próprias? Quais as relações encontradas entre a vaidade e o convívio social na velhice? Vejamos como as entrevistadas vivenciam essas experiências.

Como já constatado anteriormente, essas mulheres foram educadas e preparadas, salvo algumas exceções, para a dedicação completa ao outro. Essa devoção é vista como essencial para a manutenção e preservação dos integrantes de sua família, bem como de seus princípios e valores. Com tamanha insígnia a zelar, um tempo de dedicação para a sua própria imagem e suas vontades pessoais acabava sendo facilmente protelado. Hoje, a disponibilidade de tempo e a ausência de compromisso com a diligência familiar lhes dão a oportunidade de se colocarem sob o foco de sua própria atenção. Frente à nova situação, essas mulheres mostram-se capazes de exercitarem um verdadeiro aprendizado de novas experiências que enriquecem seu repertório de vida, vivenciando essas aquisições recentes ainda com o frescor da novidade.

"...passear nunca passeei não. Por isso que agora eu gosto de sair um pouquinho, né? (...) Tem que aproveitar um pouquinho. Tinha que ficar só dentro de casa tomando conta de tudo...” (PANDORA, 76).

"...eu nunca dancei quadrilha eu dancei aqui, olha [risos] (...) Você sabe que é bom dançar quadrilha (...) Nós pusemos roupa comprida, pôs chapéu na cabeça (...) eu já peguei que aqui agora está até melhor. Também quer ver, depois que eu casei, faz quarenta e oito anos que nós casamos, nunca mais fui em baile, nunca mais. E eu dançava quando era solteira. E aqui eu dancei. [risos]. Ah, teve baile, aí nós... eu dancei com uma colega minha, né? Ele não, colega... Ah, mas nós dançamos no salão. [risos] Acho que então... até que não está ruim, né?” (VIOLETA, 70).

Essa valorização do aprendizado de novos hábitos, no entanto, não é unânime, nem elas deixam de mostrar dificuldades ao lidar com essa nova situação. O cuidado com a própria aparência pode ser visto como desnecessário e sem propósito algum, como conseqüência de preocupações que nunca fizeram parte de seu universo.

"...de pintura eu nunca usei na minha vida (...) meu falecido marido falava pra mim pra eu pintar o cabelo (...) as meninas (...) Falei: 'Não.' Se nunca na minha vida até esta idade eu nunca pintei, pra que é que eu vou pintá?...” (AFRODITE, 73).

Os dados obtidos permitem-nos constatar uma interessante realidade. Em ambos os grupos, o relacionamento interpessoal foi preservado. Para as mulheres residentes em suas casas, boa parte de sua rede social advinha de atividades dos centros comunitários; já no caso das asiladas, mediante atividades recreativas ou por meio do próprio convívio cotidiano com outros internos:

"Eu agora estou fazendo pintura (...) eu adoro pintar aqui. Estou na escola, ainda tenho aula agora mesmo. É o que eu... pra gente relembrar, né?” (ROSA, 75).

"...desde que eu comecei a ir na ginástica eu... virei outra pessoa. Porque a gente pega amizade com aquelas pessoas...” (AFRODITE, 73).

O tipo de cuidado dispensado, porém, mostrou suas divergências. Para as mulheres pertencentes ao G1, a preservação de boas condições de higiene foi apontada como o único tipo de autocuidado. Os cuidados com o asseio corporal seriam a única forma de vaidade que elas ainda mantêm. Para concederem um cuidado maior consigo mesmas, torna-se necessário que algum evento social maior ocorra.

"Não, muito pouco vaidosa... Eu gosto de estar limpa (...) Gosto de usar um perfuminho, gosto de desodorante, coisa de higiene gosto...” (AFRODITE, 73).

"...Não sou nada, difícil eu me pintar assim, me arrumar, só se vai num casamento (...) Não sou muito não” (ARTÊMIS, 75).

As atividades que preconizam a convivência social entre os sexos aparecem como o grande diferencial e conseqüente estimulador de maior valorização da sua auto-imagem. Geralmente essas atividades são os bailes para idosos que ocorrem em clubes da cidade, agremiações ou nos próprios asilos. Esse fato abre a possibilidade para um movimento interessante, no qual mulheres que residem em suas casas acabam buscando dentro dos asilos seus momentos de maior diversão e valorização da auto-imagem. A conseqüência desse fato parece estar revertida em um maior cuidado consigo, em comparação com as idosas do seu grupo.

"Ah, diversão é... procuro ir nas festas dos asilos, né? Lá têm muitas festas, né? (...) eles mandam a gente se arrumar bem e ir pra lá e tem sanf... sanfoneiro pra pessoa dançar...” (ATENAS, 89).

"Eu gosto de andar arrumadinha... Agora hoje você falou que vinha, eu coloquei uma roupinha melhor, né? [risos] Mas eu gosto assim de me arrumar em dia de festa, de baile lá no asilo, no... outro... clube, quando eu vou. Eu tenho talco, pó-de-arroz... Passo, eu gosto, gosto de andar arrumada (...) Mas até que eu ouço elogio, falam que eu estou enxutona por aí” [risos] (ATENAS, 89).

Práticas e pensamentos sugestivos de vaidade pessoal e cuidado com a própria aparência estiveram muito mais presentes no discurso das idosas institucionalizadas. As preocupações evidentes com a vaidade e as brincadeiras freqüentes com conteúdos de natureza sexual são indícios de manutenção da auto-estima, além de representarem uma estratégia eficiente de se lidar com as próprias limitações de maneira leve e bem humorada.

Sra X: A outra foi fazer permanente, não volta mais.
Quem?
Sra X: A velha que mora comigo. Foi se embelezar. Parece que ela quer arrumar um broto.[risos]
Faz ela bem. Eu também quero arrumar, você não sabe onde tem? [risos] Ela vem sim, na hora da janta. Sra X: [risos] Eu vou tomar banho, tirar essa roupa... [retira-se do local] (MAGNÓLIA, 77).

"Eu sou. Eu cuido de mim, né? Que eu também não quero ficar uma velha assim meio relaxada, né? [risos] Igual ontem, eu fui comprar tinta pro meu cabelo [risos] (...) Tem que ter um pouquinho de vaidade, se cuidar, né?” (JASMIM, 83).

"...Vaidosa, assim, quando a N. [amiga] vem, eu me arrumo bem porque ela me leva pro R. [clube da cidade] Você precisa ver os velhos lá ficaram doido por causa de... doido assim, porque eles admiram a idade da gente, né?...” (ROSA, 75).

 

A Fé como Rede de Apoio: um Outro Recurso de Cuidado

Foram agrupados nessa categoria temática os segmentos de fala que dizem respeito à maneira como as entrevistadas percebem o papel da fé e do contato com a dimensão transcendente como elemento de fortalecimento da auto-estima e estratégia de enfrentamento das adversidades da vida. Assim, a questão da fé, ao nosso ver, corresponde a uma dimensão importante do cuidado. A análise das falas permite-nos articular respostas para algumas questões, tais como: qual a importância da religiosidade na vida das idosas? De que maneira a fé é instrumentalizada frente às dificuldades enfrentadas no cotidiano?

Ao encontrarmos o aspecto religioso como um suporte de apoio na velhice, pudemos confirmar aspectos já mencionados em estudos de muitos teóricos do desenvolvimento humano (Neri, 1993). Com a chegada da velhice, a atenção do indivíduo tende a voltar-se para si próprio (Jung, 1933). Na balança das preocupações externas versus internas, essas últimas se acumulam mais facilmente e um propósito para a existência precisa ser encontrado em substituição às atividades que a idosa não desempenha mais.

O recurso da religiosidade, isto é, a busca da proteção divina, foi a forma de cuidado que se mostrou de maneira mais uniforme e semelhante em ambos os grupos. Elemento componente de sua educação e formação da personalidade, o fato de serem devotas e encontrarem na religião uma explicação plausível para a vida plena de sacrifícios que tiveram traz a compensação desejada. Com maior disponibilidade de tempo para dedicarem-se aos cultos e também pela condição existencial de maior proximidade com a morte, a religião passa a representar um alívio, um grande conforto que preenche um espaço importante dedicado a sua subjetividade espiritual (Kubler-Ross, 1994).

"Lugar que eu gosto de ir e eu me sinto bem é na igreja” (AFRODITE, 73).

"...agora que a gente vai é a igreja (...) Eu acho que agora eu estou indo mais, né? (...) porque quando meu marido operou, eu pedi uma graça e eu achei que fui... que alcancei...” (ARTÊMIS, 75).

Estar de acordo com os preceitos da religião e poder utilizar-se dela como maneira de preparar-se positivamente para a morte mostrou ser um recurso importante na velhice. Além disso, a sensação de alento e conforto diante da finitude, proporcionada pela religião, ficou evidenciada, confirmando o que já foi percebido em diferentes estudos sobre o assunto (Goldstein, 1993, Kübler-Ross, 1994, Torres, 1996).

"...Eu gosto do... sermão dele [padre], ele fala bem, até deixa a gente assim... leve, mais leve parece” (VIOLETA, 70).

"...tem que às vezes tirá do sofrimento, às vezes nós estamos sofrendo pra nos purificar aqui (...) morreu pelo menos do sofrimento daqui... agora lá do outro mundo que nós não sabemos como que é (...) Eu espero que seja bom” [risos] (AFRODITE, 73).

 

Considerações Finais

Discorrer sobre as relações de cuidado de uma população portadora de características muito próprias – mulheres idosas, asiladas ou residentes em seus lares – não implica apenas falar de educação dos filhos ou da família instituída, mas envolve também toda a rede de significações implicada nesses processos, além do papel político e social de assistência e, indubitavelmente, o cuidado dispensado a si própria.

O suporte familiar, o convívio social e a religião foram os três eixos centrais encontrados e de onde provinha um emaranhado de significações referentes ao cuidado que essas mulheres mantinham consigo e com o outro. Essa constatação possibilita reconhecer que, sob o aspecto do cuidado, esses três núcleos constituíram-se nas principais redes de apoio.

Com o aumento da expectativa de vida, as relações familiares vão encontrando desafios antes desconhecidos no âmbito dos relacionamentos. Parece existir um certo senso comum de que os pais têm deveres especiais para com os filhos, mas não há o mesmo consenso quando o cuidado muda de responsabilidade, quando são os filhos adultos que têm deveres para os seus pais que envelheceram. Encontrar referências que permitem constatar essa afirmação não foi difícil no presente estudo, pois essa era a tônica captada nos discursos das idosas. Sempre que falavam de sua maior função social na família, o cuidado, alinhavavam sentimentos de amor devotados a seus "protegidos". Essa significação positiva fica evidente na falta que sentem da continuidade dessa função perante seus familiares, em parte pela força e vivacidade desses sentimentos, em parte pela sensação de utilidade que tal tarefa assegurava à mulher. Quando a inversão de papéis ocorre,no entanto, e a responsabilidade do cuidar pertence agora à geração mais jovem, essa função parece ser desempenhada como uma espécie de dever moral, resguardando uma conotação totalmente diversa, de uma simples retribuição (não raro incômoda) àquilo que se recebeu dos mais velhos. As próprias idosas confirmam essa impressão em seus relatos. É evidente o desconforto que experimentam quando se sentem "dando trabalho" para seus filhos, que agora necessitam contribuir para seu sustento.

Em contrapartida, não foi somente com relação ao suporte financeiro que o incômodo gerado pela inversão de papéis mostrou sua face, mesmo porque não é raro o filho adulto ainda demandar sua ajuda na complementação da renda (o que garante a essas mulheres a preservação de um aspecto de seu lado de cuidadora em certos momentos). Esse desconforto parece ser maior quando envolve aspectos emocionais e o contato com as idosas. As visitas e o vínculo afetivo entre filhos e idosas ganham ares de obrigatoriedade. Sentir a falta do convívio familiar mesmo quando há proximidade física, no caso das idosas que residem em seus lares, ou retratar o abandono dos familiares que levaram algumas mulheres a procurar uma situação de maior bem-estar dentro de uma instituição asilar para não terem mais de "mendigar cuidados" são elementos que reforçam a importância e, ao mesmo tempo, a insuficiência dessa rede de apoio segundo a visão dessas mulheres.

O grau de autonomia preservada mostrou também sua relação de causalidade com as vivências atuais dessas idosas. A sociedade na qual foram educadas não lhes permitia o exercício autêntico de sua individualidade, pois suas preocupações precisavam estar voltadas para outrem. Agora, a independência ou ausência (principalmente dos filhos e do marido) permite o vislumbre de um lado positivo de seu "descompromisso com o outro", fazendo com que descubram na sua subjetividade vontades e necessidades de oferecem cuidado para si próprias. Essa autonomia propicia a participação em grupos comunitários, onde exercitam seu autocuidado através de ginástica, coral, palestras educativas, passeios com outros idosos etc. Entretanto, a realidade com que nos deparamos no presente estudo leva a uma reflexão. Os grupos comunitários não são as únicas fontes experimentais para o exercício da individualidade da idosa, que pode exercê-la inclusive na escolha voluntária de residir dentro de uma instituição asilar. Tal “escolha” confronta-se com a representação corrente, para a qual asilo é sinônimo de abandono e perda de autonomia, fazendo com que esse tipo de atitude seja mais impactante do que o abandono velado, mas em que de fato viviam, ao lado dos familiares.

É claro que esse tipo de iniciativa não esconde a precariedade de muitos asilos, onde ainda cabe perfeitamente a comparação com verdadeiros depósitos humanos, nos quais o peso do caráter institucional despersonaliza cada interno em movimento crescente, não sendo capaz de oferecer respeito e dignidade aos idosos que necessitam de seus cuidados. Todavia, manter os olhos fechados para os ganhos que um idoso pode usufruir no âmbito asilar também não deixa de ser uma atitude preconceituosa.

Se nem mesmo a sociedade está preparando seus filhos para o cuidado com os velhos que um dia também virão a ser, é preciso então que a qualidade do cuidado prestado por instituições, tais como os asilos de idosos, seja capaz de oferecer essa assistência da melhor maneira possível. Nesse contexto, atitudes vinculadas ao bem-estar do idoso, estimulando a preocupação consigo, sua autonomia, sua auto-estima e sociabilidade, constituem-se em práticas sociais preventivas, contrárias à condição humana quase inerte que muitas vezes permeia a visão assistencialista de vários organismos sociais.

Quanto à religião, aparece como um recurso da rede de apoio que confirma as necessidades de autocuidado e instrospecção crescentes nessa fase do desenvolvimento. Por ser o suporte que menos depende de fatores externos e da condição sócio-familiar das idosas, foi o que se mostrou mais homogêneo entre elas.

O papel reconhecido da religião como um conforto para a possibilidade iminente da morte, como uma alternativa menos sofrida para encarar a finitude da condição humana, foi amplamente confirmado. Mas cabe também pensar se a esperança de uma condição de existência melhor em um futuro incerto não é de alguma forma conseqüência de necessidades que, na sua condição de vida atual, não estão sendo preenchidas de maneira satisfatória.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Camila Vianna Duarte
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Manoel Antonio dos Santos
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Recebido em 06/11/02
Aprovado em 02/01/04

 

 


1Psicóloga formada pela da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP-USP. Mestranda em Psicologia pela FFCLRP-USP. Membro do NEPP - Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia Clínica.
2 Docente do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP, Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, coordenador do NEPP - Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia Clínica. Bolsista junto ao CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa).