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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.24 n.1 Brasília mar. 2004

 

ARTIGOS

 

A dominação do corpo no mundo administrado: uma questão para a psicologia social1

 

The body´s domination in the administrated world: one question to the social

 

 

Conrado Ramos *

Universidade Paulista-Unip

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do conceito de história natural de Theodor W. Adorno, este artigo reflete sobre o lugar do corpo na dialética entre indivíduo e sociedade. Discute-se a importância do corpo como categoria social e histórica para a Psicologia Social. Defende-se que qualquer iniciativa materialista de investigação do indivíduo na sociedade capitalista deve debruçar-se sobre a dominação cotidiana do corpo e sobre o recalque dessa experiência no indivíduo. Conclui-se que à Psicologia cumpre a tarefa crítica de denunciar que a deformação do indivíduo é conseqüência do processo vigente de socialização.

Palavras-chave: Psicologia Social, Corpo, Theodor W. Adorno, Teoria crítica


ABSTRACT

According to Theodor W. Adorno’s concept of natural history, this paper reflects on the place occupied by the body in the dialectics of individual and society. It discusses the importance of the body as a social and historical category in Social Psychology. It advocates that any materialistic investigation of the individual in capitalism must take into account the domination of the body and the repression of this experience to the individual. The conclusion is that Psychology should undertake the critical task of denouncing that the deformation of the individual is the outcome of the prevailing form of socialization.

Keywords: Social Psychology, Body, Theodor W. Adorno, Critical theory


 

 

Hoje em dia é consenso, entre os estudiosos das ciências humanas e sociais, que a civilização tem como preço o sacrifício das paixões do particular em nome da construção do todo. O filósofo, o antropólogo, o historiador, o psicanalista, enfim, cada um em função da especificidade de seu objeto, têm como elemento unificador, entretanto, a tensão que encontram entre indivíduo e sociedade, entre sujeito e cultura, entre particular e totalidade. Preocupados com o lugar da Psicologia Social dentro desse contexto, neste artigo propomo-nos a defender que o corpo, ou melhor, a dominação social do corpo, merece um lugar de destaque dentre os objetos tradicionalmente focados por essa área de saber. Nossa argumentação parte principalmente das concepções de “história natural” de Theodor Adorno. Se acompanharmos a História segundo as concepções de Horkheimer e Adorno em Dialética do Esclarecimento (1991), veremos que é na negação da natureza, no processo de diferenciação que constitui o ego em oposição a uma natureza indiferenciada, que o indivíduo surge como sede da razão e do domínio. Nas palavras dos autores:

Que a razão é distinta da natureza e no entanto parte dela, constitui sua pré-história e, ao mesmo tempo, sua determinação imanente. Ela é natureza enquanto força psíquica que se diferenciou para fins de autopreservação; mas, uma vez autonomizando-se com relação à natureza e a ela contrapondo-se, transforma-se no seu outro. Brotando, efêmera, da natureza, a razão é idêntica a ela e ao mesmo tempo não-idêntica, segundo uma dialética imanente ao seu próprio conceito. Quanto mais irrestritamente a razão naquela dialética se contrapõe à natureza como seu contrário absoluto e se esquece da presença dela em si, mais ela regride à natureza, sob a forma de uma autopreservação selvagem; somente como sua reflexão a razão poderia ascender à condição de sobrenatureza (Horkheimer, Adorno, apud Habermas, 1993, p.140).

É ao negar-se em sua relação imediata com a natureza, como irracionalidade instintiva e pulsional, que a natureza humana, enquanto tal, se constitui. A natureza humana é, pois, na essência, natureza mediada e não “natureza natural”. Encontramos nas duas últimas páginas da obra acima citada, através de uma das mais belas metáforas dos autores, o alcance ao mesmo tempo histórico e antropológico dessa leitura da relação entre razão e natureza. Dizem os autores:

O símbolo da inteligência é a antena do caracol ‘com a visão tateante’, graças à qual, a acreditar em Mefistófeles, ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Em seus começos a vida intelectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende do músculo, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo ferimento físico, o espírito pelo medo. Na origem, as duas coisas são inseparáveis (p. 239).

E mais adiante: “Cada olhar de curiosidade que o animal lança anuncia uma forma nova dos seres vivos que poderia surgir da espécie determinada a que pertence o ser individual” (p. 239).

Como negar que esse “olhar”, essa “antena tateante”, seja a expressão mais primitiva da razão? Tal olhar primitivo contém, em seu devir, tanto a libertação quanto a dominação. Ele é o impulso necessário para que o organismo queira libertar-se do reino das necessidades, bem como a fonte da vigilância subjugadora que impõe o controle em nome do poder. Dialeticamente, nesse olhar primitivo já encontramos, em sua forma proto-biológica, a autonomia e o controle, a resistência e a dominação. Em sua própria natureza, toda e qualquer razão humana é essencialmente esse olhar evoluído. Negá-lo é negar sua própria natureza. Ao distanciar-se desse “olhar” como um passado perigoso ou como uma ameaça de regressão, a razão, que sonha em tornar-se “um órgão independente” do corpo, se automutila e provoca sua própria “retirada para o abrigo protetor do corpo”, repetindo, no embotamento do espírito e no endurecimento da alma, o que o caracol faz com sua antena quando se sente ameaçado. Segundo os autores, essa é a origem da introversão do sacrifício, isto é, do sacrifício necessário à autoconservação. Evoluída que é diante desse “olhar”, à razão caberia representar e executar sua superação, reconhecendo-se, entretanto, nele. Mas, ao negar o que em si mesma tem de natureza, a razão, motivada pela histórica separação entre mente e corpo, acaba por afastar-se deste último, negando-o como o representante da natureza “menor” que depõe contra um estatuto idealizado de humanidade. É assim que a razão, ao esconder o medo que tem do que não é identificável a si mesma ou ao forçar, de forma totalitária, essa identificação de tudo a si, regride ao mito – forma de conhecimento que julga ter superado. Impondo-se sobre o objeto como um conjunto de métodos auto-suficientes – cujas finalidades são afastar a subjetividade e suas paixões da “pureza” do conhecimento – a razão vai encontrar apenas a sua própria projeção. Tomando-se em lugar do objeto, reifica-se e auto-reproduz-se como uma prótese da realidade que muitas vezes é cega à realidade de fato. A reprodução cega e autoconservadora do mesmo, no entanto, é justamente o que caracteriza as forças do que chamamos de natural, diante das quais a razão inicialmente se apresentou como um princípio de ruptura e diferenciação, isto é, “como um órgão independente”

As considerações acima esclarecem uma importante posição de Horkheimer e Adorno (1991) a respeito da razão que se expressa no seguinte trecho:

Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito deste pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda a parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino (p.13).

Sustentamos, aqui, que o germe da autodestruição do esclarecimento, um dos objetos centrais da Dialética do Esclarecimento, deve ser compreendido a partir da dialética entre razão e natureza negada. As formas reificadas da consciência atual, necessárias para e conseqüentes da dominação vigente, edificaram-se sobre a fetichização da razão. A racionalidade tecnológica, expressão mental da lógica industrial que se expandiu e reduziu a riqueza da vida social concreta ao dinamismo formalizado e “administrável” do sistema, necessitou desencantar as energias vitais para transformá-las em forças motrizes. A dialética em questão denuncia que o desencantamento e a negação das vozes vitais do indivíduo (suas paixões e necessidades) provocaram o retorno das mesmas contra a razão dominadora que as oprime, levando a própria razão a assemelhar-se às paixões cegas e irracionais que teme. Assim, a fetichização da razão, suas formas reificadas, são causa e conseqüência desse retorno do recalcado. O “germe” da autodestruição do esclarecimento – que deve ser buscado no próprio esclarecimento pela crítica imanente – encontra naquilo que estamos chamando de dupla negação do corpo – isto é, na expropriação, mutilação e dominação social e cotidiana do corpo (negação física) e no recalque dessa experiência (negação psíquica) – uma realidade empírica e material.

Horkheimer e Adorno (1991) descrevem, da maneira que se segue, as conseqüências desse processo: “a compulsão à crueldade e à destruição tem origem no recalcamento orgânico da proximidade ao corpo. (...) Na civilização ocidental, e provavelmente em toda a civilização, o corpo é tabu, objeto de atração e repulsão” (p. 217). Exemplo mais marcante desse misto de crueldade e negação simultaneamente dirigidas ao corpo encontramos nos campos de concentração nazistas: a coisificação do outro a níveis jamais vistos junto à incapacidade de identificação com o sofrimento alheio. Aliás, essa incapacidade de identificação, um legado que ainda trazemos daquela época, explica as nossas formas passivas de mutilação do outro, quais sejam, aquelas que resultam da nossa indiferença, conivência e cumplicidade diante da exploração gritante de nossos semelhantes ou de nós mesmos. Tudo se passa como se o sofrimento do outro diante da opressão fosse um problema alheio ou de responsabilidade de mecanismos institucionais criados mais para a projeção de nossas culpas do que para as tarefas transformadoras que justificaram sua criação. Tais órgãos servem, muitas vezes, mais para o alívio das almas dominadoras do que dos corpos dominados.

Pelo exposto até aqui, podemos concluir que estudar a história natural do ser humano é buscar os processos que levaram suas cicatrizes a transformarem-se na segunda natureza do homem contemporâneo, isto é, o processo pelo qual o que é histórico passa a ser vivido como natural. O histórico, assim, é visto como algo passível de sedimentação, enquanto o natural ganha substância e importância históricas. Essa é a proposta de Adorno (1991) para uma história natural: ver como história o natural e como natureza o histórico (Aguilera, 1991).

No estudo desse processo de uma história natural, o corpo é necessariamente compreendido na convergência das necessidades naturais social e historicamente mediadas e das exigências e dos interesses civilizatórios. Uma vez que, para atender a estes últimos, o corpo se distancie de suas vozes, quer miméticas, instintivas ou pulsionais, ele se torna alvo de sacrifício. Porém, quando a sociedade se constitui e se estrutura sobre a exploração e a expropriação do trabalho humano, o sacrifício corporal exigido pelo processo civilizatório adquire as formas da dominação, isto é, do mais-sacrifício, do excesso que se aproxima mais da barbárie do que da civilização. Nesse caso, o corpo não é somente negado ou sacrificado; torna-se também um corpo mutilado, coisificado, em um processo que o reduz de fonte, instrumento e local de prazer e de diferenciação que é, em nada mais do que fonte de energia motriz expropriada. Essa exploração, que há séculos se sedimenta no psiquismo humano, transforma em experiência natural e inevitável o sofrimento que se originou objetivamente com a luta de classes e que agora é muitas vezes compreendido como um defeito subjetivo de quem não se deixa inteiramente endurecer. Quanto maior o progresso tecnológico, isto é, quanto mais avançam as condições materiais da civilização, menos se justifica a exploração, e, portanto, mais brutais e menos civilizadas vão-se tornando as relações sociais reificadas.

Boa parte das renúncias e das carências exigidas dos indivíduos podem ser afrouxadas com a melhoria das condições materiais, mas, se o espírito não acompanha o mesmo progresso, a perpetuação das renúncias e das carências adquire uma condição de normalidade ou de fatalidade diante da qual os indivíduos se compreendem impotentes. A ausência de compensações objetivas para esses sacrifícios, no entanto, não impede que os indivíduos tenham, de alguma maneira, a percepção de que não se trata mais de uma condição para a vida em civilização, mas de dominação social. É por esse motivo que o mal-estar que a civilização hoje nos impõe – isto é, toda uma gama de sintomas, de sentimentos e de experiências ruins – deve ser compreendido não mais apenas como uma condição antropológica estrutural para a vida em sociedade, mas também como objeto de investigação das mediações historicamente sedimentadas entre indivíduo e sociedade. O mesmo pode ser dito para muitas das terapêuticas psicológicas que insistem em ver nos sofrimentos de seus clientes um “defeito”, uma “falha” ou um problema qualquer que se limita a leis internas do funcionamento psíquico sem quaisquer relações com os processos de socialização por eles sofridos. Essas e outras práticas fortemente instituídas e difundidas colaboram com a transformação dos indícios mais materiais de resistência do existente diante da opressão – materiais porque o sofrimento é sempre uma experiência sensível antes de ganhar a dimensão muitas vezes corrompida do entendimento – em sinais de desajustamento que desresponsabilizam o todo na mesma medida em que culpam o particular por sua não-adaptação às condições dadas. Esses mecanismos sociais contribuem para que as experiências do corpo – isto é, o prazer e a dor – sejam negadas ou distorcidas em suas significações, pois para a perpetuação e para o fortalecimento do todo é necessário que o indivíduo aceite e reproduza as condições de sua própria exploração.

Na origem de todo esse processo, encontramos a moral religiosa, que adquiriu nova forma, diferente da que tinha na era feudal, individualizando-se mais como “responsabilidade” do que como dogma e sendo introjetada como o cimento ideológico do capitalismo nascente. Esse parece ter sido o fator psicológico necessário ao crescimento do sistema capitalista, isto é, se o avanço das condições materiais de produção da burguesia encontrou na estática moral feudal um obstáculo e se a construção da moral moderna implicava o dinamismo, a racionalidade tecnológica e o individualismo, o processo de reforma religiosa que transformou a submissão objetiva e imediata aos dogmas em componentes subjetivos de caráter ofereceu à consciência e à razão um lugar privilegiado, sem que se tivesse que abrir mão dos elementos úteis que a moral feudal já trazia: a culpa e o medo. A própria moral religiosa secularizada e introjetada ajudou, assim, a fazer dos prazeres e das paixões singulares, isto é, descompromissados com o todo, fontes da dor, nas formas da culpa e do medo diante de Deus e do sacrifício do trabalho como saída compensatória. Assim é que Weber (1904/1996) indicou como o espírito dominador do capitalismo precisou da ética protestante para extrair do temor ao pecado da carne e do amor a Deus a “vontade de trabalhar” necessária para que essa ética e esse espírito se tornassem sólidos componentes subjetivos historicamente determinados, mas experimentados e aceitos, desde então, como naturais.

O sacrifício do trabalho substituiu o dogma diante do qual deve acontecer a submissão imediata do indivíduo moderno. Entre sacrifício e autoconservação estabeleceu-se, assim, uma dialética historicamente construída que transcende o esforço natural do trabalho exigido para a satisfação das necessidades imediatas à sobrevivência. O sacrifício e a autoconservação implicam, agora, as relações entre indivíduo e sociedade, relações essas marcadas pela naturalização das forças envolvidas no processo capitalista de produção. Isso quer dizer que, embora o sacrifício do trabalho seja mais-sacrifício, isto é, exploração, ele é, muitas vezes, experimentado como norma inquestionável da existência. Embora não seja o espelhamento das relações imediatas do homem com a natureza, o sacrifício exigido pelo trabalho é, entretanto, assim experimentado: torna-se “segunda natureza”, transforma-se em componente do psiquismo.

Tomada como elemento de necessário sofrimento particular e legitimada a partir da presença ou da ausência de méritos, capacidades, competências e habilidades particulares, a lógica objetiva da exploração do trabalho dilui-se e desaparece por trás de explicações psicologizantes dadas às diferenças sociais concretas. Ter que se sacrificar para sobreviver passa a ser culpa do indivíduo e não da organização das forças de produção. Mais do que isso, o avanço dessas novas condições acaba por fazer da própria dor e da exaustão cotidianas do trabalho fontes de um prazer obtido pela identificação e pela integração do indivíduo com o todo. Novas necessidades psicológicas são criadas: paradoxalmente à emergência da consciência de uma individualidade, a consciência de um “sistema” cria a necessidade de integração. Cresce, nesse contexto, o que poderíamos chamar de “controle social das experiências singulares”. Se ao indivíduo passa a ser exigida maior atenção às suas experiências particulares, ao mesmo tempo estas tornam-se contra-indicadas. Fiar-se na própria experiência pode levar a distanciar-se do todo. Essa é uma lição não só da religião, mas também da ciência e da moral burguesas. O sentido dessas experiências deve, pois, passar a ser buscado dentro de um cabedal simbólico pré-fabricado constituído de formas esvaziadas e inócuas de paixões. As diferenciações existem, mas controladas e limitadas a experiências de individualidade conformadas ao sistema.

Desse modo, as experiências “particulares” que o indivíduo muitas vezes tem do mundo e de sua própria existência já são previamente filtradas pelas malhas do entendimento que condiciona as possibilidades perceptivas e que é sutilmente imposto através dos mecanismos de socialização de massas. Aos poucos, a expropriação crescente dessas experiências abre a perspectiva de uma pseudo-individualidade.

Encontramos, aqui, os caminhos que levaram à constituição das relações entre a dominação do corpo (por intermédio do controle das paixões) e a administração da satisfação facilitada, cuja principal técnica é a produção em massa de pseudo-individualidades através da identificação com personalidades-ícones criadas pelo mercado. Em resumo: indústria cultural.

Cabe-nos ressaltar que, talvez, por ser necessário como categoria auxiliar ao controle e à disciplina dos indivíduos, o corpo ganhou uma importância e uma consistência conceitual antes inexistente. Segundo Foucault (apud Garcia, 2002), é o corpo, por ocupar um lugar no espaço, que dá ao indivíduo a visibilidade necessária aos poderes disciplinares, tornando-se o principal alvo das estratégias de controle. Assim, o corpo, enquanto categoria histórica, surgiu atrelado à dominação e, por isso mesmo, deve ser visto como uma fonte de resistência. Se o corpo é alvo predileto dos poderes disciplinares, pensar o indivíduo concretamente livre e autônomo é pensá-lo em função de sua relação com seu próprio corpo.

Cabem, no entanto, outras concepções históricas para a origem do corpo enquanto constructo socialmente relevante. No seu sentido moderno, o indivíduo caracteriza-se “como átomo social dotado de uma explicação própria sobre a sua constituição”, isto é, como “o espaço psíquico tal como podemos compreendê-lo atualmente” (Crochik, 1994, p.175). Com o objetivo de se distanciar da submissão imediata aos dogmas religiosos, como já dissemos, forma de dominação da era feudal, a ideologia burguesa postulou a liberdade da consciência e a razão como guia. O indivíduo emergiu, assim, como um mediador universal das novas relações propostas, isto é, administrativas, entre homem e mundo, tornando-se também expressão particular da razão e da experiência. Enquanto particularidade socialmente construída, o indivíduo assumiu responsabilidades e necessidades próprias, não-coletivas, preparando o terreno para as competições e as lutas necessárias ao acúmulo do capital. Dentro desse novo contexto, o corpo, além de se transformar em força de trabalho, tornou-se também o meio de expressões e a fonte das experiências particularizadas. A sensualidade e a sensibilidade adquiriram, assim, um novo valor e criaram, através do corpo, uma dimensão de existência que passou a se reconhecer em sua singularidade.

É dentro dessa dialética de dominação e de resistência, de submissão e de libertação, de enrijecimento e de sensibilidade, de força e de sensualidade, de força motriz e de fonte de prazer, que o corpo aparece como índice de condensação do que é histórico e natural nas relações entre indivíduo e sociedade. É principalmente no que diz respeito ao corpo, isto é, no sacrifício e na autoconservação, na dor e no prazer, no sofrimento e na satisfação, que podemos encontrar aquilo que de origem objetiva se tornou subjetividade e aquilo que de subjetividade carece de concretização. Falamos, aqui, não só dos processos históricos de interiorização e de determinação das estruturas psíquicas, mas também da crítica e dos recalcados que retornam, de forma socialmente aceita ou de modo destrutivo. Caberia pensarmos com esses critérios também a arte e a experiência estética, em cujo encantamento compreendemos um processo de identificação nostálgica com conteúdos socialmente negados, projetados na obra de arte. É no corpo que podemos localizar o que de histórico se tornou naturalizado e o que, da natureza, pede pelo esforço histórico. Assim é que a pulsão pode adquirir valor político, enquanto as satisfações facilitadas podem tornar-se meio de alienação.

Como parte dessa conceituação de corpo deve ser pensado também o âmbito das necessidades que, depois de Marx, precisa ser compreendido não mais como um atributo natural e exterior às relações sociais historicamente construídas, mas como natureza social e historicamente mediada. Assim, as transformações sofridas pelo processo de produção com o avanço do capital geraram novas necessidades, não menos naturais que as anteriores nem menos históricas, apenas mediadas por novas condições de existência material (isto é, novas condições econômicas). São necessidades novas em sua forma e em seu conteúdo, mas não na essência material que define sua função na dialética entre homem e natureza na luta pela sobrevivência. Por ser o componente material da existência humana, as necessidades são identificáveis, em última instância, no corpo, e por mais que as necessidades sejam socialmente geradas, pelo processo histórico de interiorização elas adquirem expressão psíquica e podem ser, por isso, subjetivamente experimentadas. Desse modo, segundo Adorno:

As necessidades vigentes elas próprias são, em sua forma atual, produtos da sociedade de classes (...) O risco de a dominação se interiorizar nos homens por meio de suas necessidades monopolizadas constitui (...) uma tendência real do capitalismo tardio. Perigo este que não diz respeito à possibilidade da barbárie após a revolução, mas sim da obstrução da revolução por intermédio da sociedade total (...) (Adorno, apud Leo Maar, 2001, pp.103-4).

A interiorização das necessidades socialmente geradas e a administração monopolizada de suas satisfações podem significar, através da dominação material dos indivíduos, o controle dos corpos e, por decorrência, das mentes. Detentora de todas as fontes de satisfação vigentes (falsas ou verdadeiras), a dominação totalitária alcança o controle do psiquismo das massas, para quem todo esse processo é dado como inevitável. Porém, se por um lado isso implica a dissolução do indivíduo, por outro, a experiência individual da reificação sofrida, quando escapa à vigilância da indústria cultural e de outros órgãos de embotamento e não é tomada como uma falência psíquica isolada e independente das condições sociais, aparece como um instante de consciência social e histórica cujo valor de resistência não pode mais ser negado. Em decorrência, a Psicologia encontra seu compromisso político e ético atual, dirigindo-se ao encontro das ciências sociais e humanas engajadas, justamente nessa experiência individual de reificação:

A experiência individual de reificação, isto é, das contradições no plano das mediações, permite revelar nelas, no existente como mediação, a História; ao passo que ‘as grandes categorias históricas’ são referenciais exteriores ao existente na experiência, transcendentes como primeiros princípios, que não se impõem por si próprios e, portanto, se encontram sob a suspeita de imposição (Leo Maar, 2001, p.104).

O que defendemos, aqui, é que essa experiência individual de reificação, à qual a Psicologia deve estar atenta, manifesta-se nas formas da insatisfação e/ou da exploração, quer psíquica ou material. Em ambos os casos, guardadas suas especificidades – isto é, seu caráter pulsional ou físico – é na dominação social do corpo que a insatisfação e a exploração são geradas. O momento histórico em que vivemos coloca a Psicologia como uma ciência capaz de extrair história da experiência do indivíduo atual, história essa de deformação desse indivíduo, não no sentido de que à Psicologia cumpra confrontar o existente com seus modelos ideologicamente criados, pois não se trata de postular ideais de formação burguesa ou de afirmar o indivíduo autônomo e consciente de si que se imaginava possível no capitalismo liberal. Mais precisamente, a Psicologia deve tornar-se a ciência que denuncia que a deformação do indivíduo é parte do processo de socialização, que a integração social não visa a retirar o existente de seu estado puro para fazer dele um exemplar saudável de civilidade, e que, por isso, a barbárie existente talvez se deva mais à inclusão opressiva do que à marginalização social dos indivíduos. Assim, por mais particular que seja a experiência de alguém, em suas contradições podemos localizar os universais que condicionam a subjetividade e cuja objetividade precisa de desvelamento para que sejam combatidos.

A importância de recorrermos à Psicologia como ciência para pensarmos a crítica social e a transformação dentro do nosso sistema encontramos no fato de o desenvolvimento dialético do capital ter criado as condições não apenas de adequação da produção às necessidades individuais, mas, como já dissemos, de ajustar as próprias necessidades individuais aos interesses da produção. Esse fator histórico aponta para o poder determinante do todo sobre o particular, transformando em ideológicas todas as concepções do particular como um objeto autônomo e independente e como insuficientes todas as concepções do todo que não reconheçam as investigações das motivações subjetivas, psíquicas ou particulares como passo necessário de sua crítica. O estudo dos processos de ajustamento e de adequação, impositivos ou não, entre as necessidades particulares e os interesses do capital não podem mais prescindir de conceitos desenvolvidos por teorias psicológicas, pois precisam de categorias para a compreensão aprofundada do indivíduo. Por outro lado, o estudo do indivíduo não pode mais desprezar as categorias necessárias à compreensão da natureza histórica e social de seu objeto. Ou ainda, dito de maneira inversa, a teoria social e a teoria do indivíduo talvez não se sustentem mais hoje sem que voltem sua atenção para os processos de ajustamento e de adequação entre interesses do capital e necessidades do indivíduo. A tensão que aí podemos localizar entre particular e todo é o objeto que se impõe para que ambas as teorias realizem sua potencialidade e sua intenção críticas. Há elementos subjetivos naturalizados, porém historicamente determinados, que reproduzem as relações sociais existentes, por mais irracionais e desumanas que sejam. O conhecimento objetivo de tais relações, sem a compreensão de seu alimento subjetivo irracional, impede a condução de práticas transformadoras realmente consistentes. O desconhecimento da participação da esfera subjetiva na manutenção e no fortalecimento do status quo constitui, inclusive, poderoso componente de deformação da consciência. Acreditamos que o alimento subjetivo irracional de que falamos seja componente interiorizado e naturalizado da dominação e que hoje se deixe experimentar e materializar, respectivamente, nos sofrimentos e nos conceitos psicológicos. Uma vez que essa dominação incide objetivamente sobre o corpo e suas vozes, estes são socialmente escotomizados das consciências dos indivíduos para que a experiência real e concreta da mutilação cotidiana que sofrem não venha à superfície, por isso nossa insistência nessa compreensão social e histórica do corpo e de suas vozes atuais como o “tradutor” das mediações entre subjetividade e objetividade.

Sabemos que ainda falta à Psicologia o desenvolvimento de categorias específicas mais rigorosas para essa tarefa, até porque boa parte dela vem de há muito tempo marcada por certa incapacidade de pensar historicamente. Os motivos para tanto também são históricos e podem ser refletidos segundo as concepções aqui sugeridas, ou seja: em que medida a própria Psicologia contribui para a dominação do indivíduo e para o recalque da consciência dessa dominação? De nossa parte, pensamos estar, com esta proposta, contribuindo para que essas categorias possam ser discutidas. Devemos reconhecer, no entanto, que também há muito tempo os esforços no sentido de uma psicologia crítica, capaz de pensar historicamente, já se iniciaram dentro da Psicologia.

Para concluir, o que estamos a propor, falando em nome da Psicologia Social, é que qualquer iniciativa materialista de investigação do indivíduo na sociedade capitalista deve debruçar-se sobre o corpo e sobre a história de sua dominação. Segundo Adorno (1992), a consciência infeliz - ou o mal-estar, segundo Freud - resulta da negação da “componente somática do espírito”. O fim ou o alívio da dor e do sofrimento deveriam ser o compromisso ético da razão, não apenas em sua forma paliativa, como faz boa parte das terapêuticas psicológicas, ortopédicas ou farmacêuticas, mas enquanto praxis transformadora historicamente exigida. A dor e o sofrimento são sempre, em última instância, corporais, assim como as satisfações e a felicidade. Por isso, à Psicologia Social impõe-se a resistência frente às práticas de dominação do corpo e às ideologias que apagam ou deformam a consciência dessa dominação.

 

Referências

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AGUILERA, A. Lógica de la Descomposición. In: Adorno, T. W., Aguilera, A. Actualidad de la Filosofia. Madri: Paidós, 1991, pp. 9-70.

CROCHÍK, J. L. O Conceito de Representação Social: a Questão do Indivíduo e a Negação do Outro. Revista Psicologia. USP, São Paulo, v. 5, n. 1/2,1994, pp. 173-195 .        [ Links ]

GARCIA, M. R. V. Conseqüências Contemporâneas da Não-historicização da Anatomia Sexual. Trabalho apresentado no I Congresso Psicologia, Ciência e Profissão, São Paulo,2002.        [ Links ]

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HORKHEIMER, M. & Adorno, T. W. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.        [ Links ]

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RAMOS, C. A Dominação do Corpo no Mundo Administrado: do Sacrifício das Paixões à Satisfação Repressiva. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo,2002.        [ Links ]

WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1996(1904).        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Conrado Ramos
Rua Wilson Dupont, 102
02019-040 São Paulo - SP

Recebido 10/03/03
Aprovado 03/01/04

 

 


* Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professor titular de Psicologia Social da Universidade Paulista. Psicanalista.
1 Esta proposta é uma síntese das questões mais importantes que desenvolvemos em nossa tese de doutorado (Ramos, 2002).