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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.24 n.3 Brasília set. 2004

 

ARTIGOS

 

Uma clínica para o atendimento a moradores de rua: direitos humanos e composição do sujeito

 

A social clinic to attend homeless: human rights and the identity

 

 

Aline Aguiar MendesI, *; Maria Fernanda MachadoII, **

I Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
II Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste ensaio, temos como objetivo discutir as formas convencionais de intervenção institucional direcionadas aos moradores de rua. Analisamos a relação dessa prática com uma determinada apropriação dos direitos humanos na contemporaneidade. A partir dessa análise, buscamos apontar uma possibilidade clínica no atendimento social tendo como fundamento a noção de sujeito concebida por Alain Badiou. Nessa perspectiva, avaliamos a viabilidade do exercício da cidadania por um ser que, em alguma medida, se encontra reduzido à sua condição animal. Por fim, visando a ilustrar e demonstrar a aplicabilidade dessa elaboração teórica, apresentamos a construção de um fragmento clínico.

Palavras-chave: Clínica social, Moradores de rua, Direitos humanos, Sujeito.


ABSTRACT

The objective of this essay is to question the conventional forms used by institutions to deal with the homeless. These practices seem to be related to a certain contemporary appropriation of the human rights. From this vantage point, we present and discuss a clinical possibility in social assistance, which is based on the notion of individual as conceived by Alain Badiou. In such a perspective, it is discussed the viability of citizenship exercise by a human being that, in a sense, finds himself/herself restricted to animal condition. In order to illustrate and to demonstrate the applicability of such a theoretical construction, a clinical fragment is presented in the last section of the essay.

Keywords: Social clinic, Homeless, Human rights, Individual.


 

 

Partindo da experiência de acompanhamento a moradores de rua em instituições públicas, no presente ensaio, articularemos questões que se decantam dessa prática e apontam possíveis limites de uma intervenção clínica. Interrogaremos os efeitos dos atendimentos oferecidos tanto pela assistência social quanto pela saúde mental, muitas vezes amparados por um discurso tradicional, imerso em uma determinada apropriação dos direitos humanos na atualidade. Apresentaremos, por fim, um fragmento clínico com o intuito de analisar a possibilidade (e fertilidade) de se criar alternativas ao imobilismo e à impotência que atravessam a atuação de profissionais integrantes da rede de atendimento social.

De acordo com um certo construto imaginário que permeia a sociedade brasileira contemporânea, os que se encontram alienados no gozo oferecido pelo estar ou ser da rua teriam, em sua maioria, essa posição como única alternativa de vida, configurando um sintoma socioeconômico de uma pós-modernidade hiperexcludente. Aos supostamente desprovidos do direito de escolha, são oferecidas, tanto pela sociedade civil quanto pelo Estado e por organizações não-governamentais, diversas oportunidades de (re)vinculação social1 . Não descartando a importância de iniciativas nesse sentido, mas, ao contrário, com o objetivo de pensar como intervenções direcionadas a essas pessoas poderiam, de fato, alcançá-las, buscaremos delinear uma postura que seja capaz de proporcionar a esse que se encontra em uma posição de alienação, de passividade, uma retificação que lhe possibilite apropriar-se de uma certa noção de pertencimento, de uma possibilidade de desdobramento de sua singularidade no âmbito individual e coletivo.

No ano de 2003, Dulce Critelli, em texto veiculado pela mídia impressa, desenvolveu um comentário sobre os malabarismos realizados, em muitos casos, por moradores de rua que abordam os motoristas parados nos sinais de trânsito. Ela chamou a atenção para o misto de indiferença, medo e constrangimento que acomete condutores e passageiros desses veículos. Quando o que prevalece é o ato quase compulsório de dar esmolas, Critelli faz um convite aos leitores para pensarem no que de fato está sendo oferecido àqueles que pedem umas moedas em troca do seu não poder fazer mais nada. Não estaríamos destituindo o homem de sua condição de humanidade quando damos uma esmola? Não estaríamos legitimando a posição do pedinte e sua incapacidade de se colocar a trabalho?

Dessa forma, correríamos o risco de compactuar com uma “moral da humilhação”, que sedimentaria uma exclusão social, “uma exclusão existencial. Uma exclusão da nossa própria humanidade”. De acordo com essa concepção, o rebaixamento da condição humana dar-se-ia, de algum modo, na medida em que um outro, supostamente tirânico e unificador, fosse responsabilizado pelo mal causado a esse “homem menor”, pelo qual este teria que ser recompensado.

Nesse sentido, poderíamos pensar que a identificação do homem como uma vítima, como um pobre coitado, não responde às questões que nos fazem realmente humanos, não nos distancia da pura condição animal. De acordo com o que desenvolve Alain Badiou (1995) acerca dos fundamentos da ética dos direitos do homem, pode-se perceber, associada a esse construto imaginário, uma certa apropriação específica dos direitos humanos, na qual o homem ocuparia a posição do injustiçado, daquele que deve sempre ser protegido contra qualquer ofensa ou maltrato em relação à sua vida, ao seu corpo ou à sua identidade cultural.

Podemos encontrar, em Badiou, considerações importantes que subsidiam a proposta de uma nova prática relativa aos direitos humanos, distante da prática tradicional, que traz para o cerne da discussão a queda da noção de Homem. Para o autor, a concepção tradicional dos direitos humanos está sustentada nessa noção e na sua apropriação ideológica ao longo da História.

De fato, a concepção moderna de direitos humanos surge na esteira da Revolução Francesa de 1789, cristalizando-se na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” (Cf. Trindade, 2002). A Revolução Francesa se apropriou das idéias iluministas, principalmente aquelas desenvolvidas por Kant, que têm como fundamento uma noção de Homem baseada, por sua vez, na Razão e na Liberdade. Para os iluministas, o Homem dotado de Razão é aquele que não deve ser um mero cumpridor de deveres, mas aquele que deve determinar Leis a si mesmo e guiar sua conduta de acordo com essas Leis.

Nessa perspectiva, o Homem Razoável de Kant é também Homem Moral. O Homem Moral, para esse filósofo, é uma abstração realizada com o intuito de se estabelecer as condições últimas de possibilidade do que define a moralidade do Homem. Vale ressaltar que o Homem Moral é concebido por Kant a partir de um princípio universal, formal, não se referindo ao indivíduo em suas condutas particulares. Assim, para pensarmos esse Homem Moral, é necessário abstrairmos das situações particulares e referirmo-nos a condições ideais no cumprimento de uma Lei Universal (Kant, 1793/1980).

Segundo Badiou (1995), a Revolução Francesa se apropriou ideologicamente desses princípios iluministas. Razão e Liberdade foram de especial importância ao ideário burguês por possibilitarem a ruptura com a obrigatoriedade do cumprimento de deveres que submetiam os indivíduos a uma classe de nobres privilegiados. Todos os homens nascem livres, porque dotados de Razão, e iguais, não havendo, assim, motivos para alguns se subordinarem ao privilégio de outros.

Além disso, o Homem da “Declaração dos Direitos Homem e do Cidadão”, de 1789, também é o Homem abstrato, sendo esse princípio funcional aos interesses burgueses. Por essa razão, a Declaração não especifica os interesses de um indivíduo inserido em uma determinada realidade econômica e social, parecendo atender mais aos anseios da burguesia, que então se consolidavam e passavam a ser designados como interesse universal de todos os homens.

O trabalho de Badiou não deixa escapar essa apropriação ideológica presente no nascimento dos direitos humanos e sua afirmação ao longo da História. Nessa mesma direção, esclarece-nos que, atualmente, vemos prevalecer um discurso que enaltece uma ética fundamentada nos direitos humanos, baseada numa certa apropriação dos princípios kantianos descritos acima, porém com a especificidade de entender o homem como identificado ao mal que lhe é feito. Marcado pelo imperativo que opera sobre ele, o Homem passa a ser entendido como uma vítima, sempre ameaçado por um outro imaginário.

De fato, como já exposto, os direitos humanos dizem respeito a tudo o que possa proteger o Homem do Mal, impedindo-o de ser maltratado, de ser ofendido, de ser humilhado em relação ao seu corpo, à sua identidade, à sua vida. No entanto, a concepção do homem enquanto vítima parece que não nos distancia da pura condição animal. Nas palavras de Badiou, “a determinação negativa e a priori do Mal nega a singularidade das situações, princípio obrigatório de toda ação propriamente humana” (Badiou, 1995, p.28). Para entendermos o que nos faz realmente humanos, temos que abrir mão dessa noção abstrata e universal de Homem bem como das apropriações ideológicas dela decorrentes e considerarmos a noção de sujeito.

Badiou, em “O Ser e o Evento” (1996), sustenta sua concepção de sujeito como possibilidade de uma abertura subversiva a qualquer classificação prévia de seu estado ou natureza. Um sujeito se conforma como tal e é composto a partir da incidência de um acontecimento indiscernível. Um acontecimento é uma noção, trabalhada pelo autor, que pode ser compreendida como um recorte, uma circunstância inusitada que atravessa as situações ordinárias, um suplemento no cotidiano distante do usual, que provoca no animal humano a emergência de uma nova maneira de ser. Somente a marca de um acontecimento é capaz de elevar esse animal humano à categoria de sujeito, deslocando-o da posição de vítima.

Para sustentar a universalidade dos direitos humanos como fundamento de nossas práticas sociais, teremos que concebê-las como um processo que não se fecharia em saberes prévios, mas que comporia um sujeito como negação de qualquer qualidade prescritiva, imperativa, já existente. Nessa perspectiva, passemos à apresentação de um fragmento clínico, com o intuito de vislumbrarmos um possível desdobramento dessas elaborações teóricas nos atendimentos feitos em contextos institucionais, sejam esses ligados à saúde mental ou à assistência social. Buscaremos enfatizar os efeitos de uma intervenção que visou a provocar um deslocamento do Homem de uma posição identificada ao lugar da vítima, promovendo a emergência de um sujeito.

 

Uma Possibilidade Clínica, uma Brecha para o Sujeito

L. é um jovem adulto, criado desde os cinco anos de idade na FEBEM. A mãe saiu de casa, desapareceu, e o pai, alcoolista, não conseguiu cuidar dos quatro filhos. Cada filho teve um destino diferenciado. Aos 21 anos, L. não tinha onde morar. Dormia sempre nas mesmas ruas e já tinha estabelecido vínculo com o entorno do bairro. Uma vizinha buscou atendimento para o rapaz nos serviços oferecidos pela prefeitura da cidade.

Não raras vezes, os vizinhos e transeuntes que estabelecem alguma relação com as pessoas que moram nas ruas mesclam, na impressão que têm desse contingente populacional, duas principais caracterizações. A primeira poderia ser traduzida na figura da vítima, do sofredor que precisaria da misericórdia alheia. Na segunda caracterização, o morador de rua encarnaria a violência, o que coloca o outro em uma posição de fragilidade, expondo-o a uma ameaça da qual se sente incapaz de se defender. Parece evidenciado um sentimento que, por vezes, permeia a sociedade, localizado entre a piedade e o temor. No caso em questão, a vizinha solicitou o atendimento para o jovem “largado na rua” e pediu para não ser identificada.

Quando atendido por um profissional, L. demandou abrigamento. Foi, então, levado para uma das poucas instituições da rede municipal.

Passou a morar lá. Assim como na rua, ele tinha fortes sintomas que sugeriam crises epilépticas: debatia o corpo, babava, esmurrava paredes, batia a cabeça no chão.

Iniciou-se, assim, uma longa trajetória por centros de referência em saúde mental e postos de saúde. L. recebeu um diagnóstico de epilepsia com um possível quadro de psicose associado, sendo essa definição sempre marcada pela imprecisão e pela dúvida. Foi fortemente medicado. Os sintomas aumentaram. Os hospitais psiquiátricos não queriam recebê-lo, com a justificativa de que se tratava de um epiléptico. Foram receitadas quatorze diferentes prescrições medicamentosas pelos médicos dos postos de saúde em apenas dois meses.

Os remédios pareciam fazê-lo piorar. As crises não cediam.

L. saiu da instituição na qual estava abrigado e não deu notícias por alguns dias. Ficou sem tomar medicamento algum. Depois de uma semana, retornou. Para surpresa de todos, tinha melhor aparência física e passou a recusar a medicação. No entanto, nos dias que se seguiram, L. ficou agressivo: exigia um cardápio diferenciado dos demais abrigados; violava as regras da instituição; ameaçava, chegando a jogar tijolos em funcionários do abrigo. Se não atendiam os seus pedidos, apresentava o discurso de um pobre sofredor: queria merecer o cuidado de todos. Começou a gritar recorrentemente: “Ninguém olha por mim” e, em seguida, insinuava e chegava a simular as crises anteriores, batendo a cabeça na parede.

Os trabalhadores do abrigo situavam suas falas sobre L. ora no terror ora na compaixão. Ao mesmo tempo que denunciavam o seu comportamento inapropriado, eram absolutamente contrários à idéia de “devolver o coitadinho à rua”. Buscavam amparo no discurso do poder público: não abrigar L. seria uma medida desastrosa, contrária aos princípios inclusivos e protetores da assistência social e fonte de revolta para o entorno vinculado ao rapaz. Acreditavam que, enquanto cidadão, era direito de L. continuar naquela instituição.

Aqui, somos interpelados pela convocação feita ao jovem adulto no sentido de que usufruísse seus direitos como cidadão. O discurso da conquista de cidadania, tão em voga na atualidade, é, como se sabe, uma derivação e materialização, no âmbito do Estado nacional, da concepção mais abrangente dos direitos humanos. Como vimos acima, ainda que de maneira sucinta, a definição do Bem que dá lastro aos direitos do homem é construída a partir de uma dada concepção do Mal, ou seja, é a partir da noção do negativo que se delineia o positivo. Nesse sentido, podemos também encontrar, nos princípios éticos que inspiram a defesa da cidadania, uma forte tendência a se definir o que é propriamente humano partindo do que é considerado desumano, do que seria uma negação do homem.

Célio Garcia (2000), em seu livro “A Clínica do Social”, constrói uma possível articulação entre a composição de um sujeito e a competência de um cidadão. O autor aproxima as práticas institucionais da concepção desenvolvida por Alain Badiou acerca da apropriação dos direitos humanos na contemporaneidade, tratada anteriormente. A partir da noção de sujeito cunhada por Badiou, Garcia busca analisar a conformação da cidadania, partindo do pressuposto que haja uma tensão entre essas duas noções.

Com efeito, a condição de cidadania seria inspirada por fundamentos capazes de discernir o desumano, mas incapazes de delimitar o que é humano de outra forma que não pela carência e/ou pelo mal. Constituída a partir desse enquadramento negativo, tal condição não comportaria uma dimensão de singularidade. Em contrapartida, sendo o sujeito constituído a partir da negação de qualquer identificação a um saber prévio, somente quando ele consegue imprimir algo do seu saber nessa exterioridade torna-se possível, para esse sujeito, alcançar a competência de cidadão: “o cidadão é, de início, um, qualquer um; o sujeito é singularidade que se afirma por ocasião de um acontecimento” (Garcia, 2000, p.23).

A cidadania não se restringe a uma estruturação jurídico-formal dos direitos e à provisão estatal de bens e serviços. Apenas quando o sujeito marca, com sua singularidade, o espaço comum, e, ao mesmo tempo, consegue construir uma saída que extrapole o previamente determinado é que se afirma sua condição de cidadão. Pode-se, assim, minimizar a tensão existente entre a conformação de um sujeito e a capacidade de exercício da cidadania operando-se um deslocamento da posição do qualquer um universal para o um qualquer capaz de desdobrar e expandir suas particularidades no âmbito público.

Percebe-se, então, a dificuldade de se aventar a possibilidade da cidadania relegando-se a um segundo plano a condição de sujeito. Nesse sentido, como L. responderia na competência de cidadão se o seu comportamento era o de um homem reduzido à sua condição animal? No lugar da vítima, recebia um tratamento dirigido a um “pobre homem”. Diretor e funcionários do abrigo o temiam, mas recusavam-se a mandá-lo embora. Perpetuavam o seu desamparo. Em alguma medida, também os demais agentes do poder público sustentavam a necessidade da permanência de L. sob a proteção do abrigo.

A equipe de operadores que acompanhava o caso, trabalhando na perspectiva de construção do mesmo, convocou L., então, a uma apropriação de sua atuação no abrigo e à percepção da incompatibilidade desta com as regras do local. L. impôs condições para mudar seu comportamento. As suas ameaças aos funcionários da instituição aumentaram. L. continuava recebendo qualquer intervenção, ou resposta contrária aos seus pedidos, com a alegação de que ninguém olhava por ele.

Configurava-se um impasse: compactuaríamos com a negativa que L. apresentava de uma implicação em sua queixa, legitimando sua posição de vítima?

Neste ponto de nossa argumentação, parecem adequadas as palavras de Garcia, quando nos convoca a não recuarmos diante do convite à manutenção do desumano:

“É imperativo contar com uma subjetivação sempre possível. (...). O inimigo da Clínica do Social seria a idéia do pobre homem, de vítima a ser mantida sob proteção do sistema” (Garcia, 2000, p.26).

O autor acrescenta, ainda, que somente quando o homem se posiciona contra o “querer-ser-um-animal” é que lhe é possível alcançar a subjetivação.

Diante da situação acima relatada, apostamos na saída de L. do abrigo como alternativa para não cedermos e para rompermos o imobilismo a que a situação nos convidou . Dissemos que não lhe seria mais possível morar na instituição. No entanto, se lhe interessasse, poderia continuar recebendo o acompanhamento clínico social.

Surpreso e indignado, L. voltou para a rua.

Depois de três semanas, reapareceu. Trouxe consigo endereços dos irmãos, até então ignorados, que buscou descobrir durante o tempo em que ficou ausente. Pediu que o ajudássemos a providenciar sua carteira de trabalho, pois queria um emprego para se sustentar. – “A vida na rua não dá certo” – disse, emocionado – “mas também não quero voltar para um abrigo, quero fazer minha casa”. Esse momento é definitivo. A posteriori, fica evidenciada a importância dessa brecha no instituído que recortou a repetição de L., uma brecha capaz de promover o rompimento do Homem universal, absoluto. Com a divisão instaurada a partir do convite para sua responsabilização, ele é compelido a sair de uma posição que o mantinha como refém, paralisado no lugar de quem deve sempre receber do outro. Assim, L. se viu sem alternativa e precisou inventar uma saída. De acordo com o que ressalta Osvaldo França Neto, “desresponsabilizar o jovem (...) seria desconhecê-lo como sujeito de seu ato, seria cavar um fosso entre ele e qualquer possibilidade de uma intervenção terapêutica” (2004, p.13),

Em uma leitura do desenrolar do caso de L., conseguimos perceber uma implicação do sujeito em sua queixa exatamente quando foram refutados um enquadramento e uma resposta dada de antemão àquele que sofre uma ingerência, qualquer que seja ela. Talvez a saída da instituição ou, em outras palavras, a impossibilidade de acomodação na posição de “pobre homem” tenha surtido o efeito de um acontecimento para L., configurando-se como uma abertura para a apropriação de sua singularidade que, finalmente, promoveu uma composição do sujeito. De modo diferente do que percebemos na concepção tradicional dos direitos humanos, não prevalece, aqui, uma estrutura velada que desresponsabiliza o indivíduo, desconsiderando a sua singularidade. L. precisou haver-se com as conseqüências de suas atitudes e, dessa forma, passou a ser sujeito em seu ato (Neto, 2004).

O jovem sofreu uma quebra em sua posição ordinária, justificada por uma história pregressa de passagem por instituições estigmatizadas e pelo abandono dos pais. A ele, foram apresentadas alternativas de morar no abrigo ou na rua. No entanto, L. construiu uma opção própria. Quando foi decidida a não-legitimação de sua posição de vítima e ele foi convidado a responsabilizar-se por suas atitudes violentas, teve início um processo no qual o jovem adulto já podia dizer o que do seu saber ele era capaz de querer. No começo: fazer sua casa. Na concepção de Garcia (1995), a partir desse acontecimento que seria o “disfuncionamento de um regime” e provocaria a formação de um resto, um resto de produção, L. pôde fazer uso de um novo saber sobre ele mesmo e abandonar um saber da multiplicidade que o retinha paralisado na situação de que ninguém olhava por ele.

Nesse sentido, torna-se possível desatrelarmos a concepção de direitos humanos de uma necessidade de defender o Homem do mal que lhe é feito para, então, estabelecermos uma outra via, na qual, a esses direitos, associa-se a emergência de uma promoção subjetiva, resultante de desdobramentos de uma tensão entre exigências particulares e representações sociais.

 

Referências

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BADIOU, A. O Ser e o Evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.        [ Links ]

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TRINDADE, J. D. L. História Social dos Direitos Humanos. São Paulo: Peirópolis, 2002.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Aline Aguiar Mendes
Maria Fernanda Machado
Rua Miradouro, n° 100/101
30310-640 Belo Horizonte-MG
E-mail: alineamendes@hotmail.com
mfernandam@ibest.com.br

Recebido em 27/11/03
Aprovado em 13/10/04

 

 

* Psicóloga (UFMG). Mestre em psicologia (UFMG). professora da Puc-Minas.
** Psicóloga (UFMG), mestranda em Psicologia (UFMG),área de concentração Estudos Psicanalíticos.
1 Para uma discussão menos sucinta acerca das formas de atenção à população de rua pelas organizações da sociedade civil e por organismos governamentais, ver Faria e Machado (2004).