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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.24 n.4 Brasília dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Da necessidade à demanda: produzindo sujeitos

 

From the necessity to the demand: producing subjects

 

 

Rafael Andrés Villari*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto visa mostrar parte da complexidade social atual – através dos conceitos de modernidade e pós-modernidade – enquanto possível produtora de subjetividades afetadas ou condicionadas pela dificuldade na constituição da dimensão simbólica e imaginária do sujeito e também as estratégias que se vislumbram, para a Psicologia, no sentido de poder incidir e intervir sobre essas questões.

Palavras-chave: Subjetividades, Modernas, Mal-estar, Globalização, Modernidade, Discurso psicológico.


ABSTRACT

The text aims to show part of the modern social complexity – through the concepts of modernity and post modernity – while possible producer of subjectivities effected by the difficulty to constitute the symbolic and imaginary dimension of the subject, the strategies that can be discerned by Psychology, trying to fall on and to interfere in these questions.

Keywords: Modern subjectivities, Illness, Globalization, Modernity, Psychological speech.


 

 

A intenção geral deste ensaio inclui, além de responder ao incentivo à produção científica promovida pelo Conselho Federal de Psicologia homenageando nosso Dante Moreira Leite, a vontade de apresentar uma série de reflexões teóricas que, ao mesmo tempo, possam assinalar e contribuir, sempre de modo contextualizado, para questões práticas no campo da Psicologia; de forma específica, no que diz respeito à necessidade e destaque da Comunicação Social enquanto propiciadora da cidadania.

Assim, sabemos que a comunicação é um tipo de relação humana e humanizante que pressupõe a participação e a reciprocidade, quer dizer, o reconhecimento do outro enquanto alteridade. Nesse sentido, a própria comunidade é definida a partir da presença do fenômeno comunicacional. Essa participação recíproca incita modos de ser que adquirem novos e imprevisíveis significados quando está em jogo a liberdade. Implica, portanto, a presença da alteridade entendida como o avesso do Espírito Absoluto e da Auto-consciência. Por isso, a comunicação implica a dimensão democrática, não enquanto ideologia política, mas como espaço histórico aberto às transformações onde o conflito, entendido como contrapoder, seja considerado legítimo e necessário.

Porém, acreditamos que os tempos atuais -tentaremos, logo a seguir, justificar o plural em relação aos tempos -em que nos toca viver, quer dizer, gozar e produzir, apresentam-se permeados por circunstâncias onde a comunicação – sem confundi-la com a circulação de informação ‘democratizada’ pelos meios de massa - aparece ameaçada e, em alguns casos, impossibilitada, produzindo sujeitos, subjetividades e identidades nas quais o saber e a alteridade estariam ausentes ou prejudicadas. Desse modo, ao longo deste ensaio, tentaremos problematizar essas questões e propor estratégias de intervenção possíveis visando às mudanças necessárias.

Atualmente, geográfica e temporalmente, pareceria existir algo da ordem que sugerimos chamar de falta de inscrição da necessidade de saber, em alguns casos, inclusive, sobre o próprio sofrimento singular e comunitário. Quando dizemos falta de inscrição, queremos assinalar a ausência de condições simbólicas para que o sofrimento e as necessidades subjetivas possam interrogar o sujeito. Haveria uma sorte de entropia na qual renunciar-se-ia, cada vez mais, ao contato com o outro, à socialização.

Por isso, achamos necessário determo-nos, brevemente, no aspecto sociocultural destes tempos para tentarmos entender esses fenômenos geradores de subjetividade. Para isso, cremos que o termo pós-modermo - e a teoria que comporta - podem servir-nos para embrenharmo-nos na difusão de signos culturais que nos rodeiam e determinam, se suportarmos a condição de avançar desprovidos de um discurso que possa ser de consenso geral. Provavelmente, essa provisoriedade esteja implícita no debate - entre Habermas e Lyotard - sobre a existência ou não desse espaço que se define em relação à modernidade, mas, além da possível continuidade de um projeto ainda inacabado ou de uma mudança de paradigma - lembremos que se trata das posições encarnadas respectivamente pelos autores acima — sabemos dos efeitos que essa alta modernidade ou pós-modernidade, como optamos por chamá-la neste texto, implica mudança de sensibilidade, quer dizer, uma transformação.

A natureza e a profundidade dessa transformação - afirma D. Harvey - são discutíveis, mas transformação ela é. Não quero ser entendido erroneamente como se afirmasse haver uma mudança global de paradigma nas ordens cultural, social e econômica; qualquer alegação dessa natureza seria um exagero. Mas, num importante setor da nossa cultura, há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas que distingue um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e proposições de um período precedente (Huyssen, apud Harvey, 1983, p.45).

Sabemos que a sincronia de paradigmas diferentes é constituinte da História. Lembremos que paradigmas, como o medieval e renascentista, por exemplo, conviveram até que, em algum momento, pôde-se falar - através do reordenamento de forças - da predominância de algum deles. Assim, em relação à modernidade e à pós-modernidade, podemos falar no mesmo sentido, porém acreditamos que a quantidade de elementos em jogo atualmente gera aquilo que Foucault chamou de heterotipia, “Por heterotopia Foucault designa a coexistência, num ‘espaço impossível’, de um ‘grande número de mundos possíveis fragmentários’, ou, mais simplesmente, espaços incomensuráveis que são justapostos ou superpostos uns aos outros” (Harvey, 1993, p.52).

A super-informação à qual estamos submetidos pareceria provocar não somente um presente sem história mas, também, a impossibilidade de falar de uma história, “[...] é como se, por alguma razão, estivéssemos impossibilitados, hoje em dia, de focalizar nosso presente, como se nos tivéssemos tornado incapazes de chegar a representações estéticas de nossa própria experiência atual” (Jameson, 1990, p.33). Desse modo, se o papel do historiador é o de, como propõe Foulcault (2001) , ser um arqueólogo do passado, perguntamo-nos: qual o lugar do discurso psicológico nesse contexto? Não fazemos referência a um subjetivismo que resiste à construção de sua história - destinos possíveis da resistência - mas de sujeitos cujo silêncio remete ao vazio subjetivo e para os quais, em situações extremas de carência, não parece haver acesso nem à consciência da necessidade. Sem amor, ódio ou ignorância que possam configurar a possibilidade de se remeter ao outro, “O problema com o pós-modernismo é que ele relega à História a lata de lixo de uma episteme obsoleta, argumentando enfaticamente que a História não existe, a não ser como texto, isto é, como historiografia” (Huysen, 1983, p.92).

Sejamos mais claros: o discurso da pós-modernidade está diretamente associado ao capitalismo tardio - o qual pretende mascarar-se sob o significante neoliberalismo. Organiza-se de costas à diferença, tornando absoluto o mercado, homogeneizando os gozos, relegando ao esquecimento aquilo que não coincida com seu ideal. Pareceria tratar-se do mal-estar próprio, singular do nosso tempo.

Paradoxalmente, as contradições do cenário pós-industrial que viu nascer a pós-modernidade - narcisicamente chamado de primeiro mundo - pareceriam mais extremas na nossa sociedade, onde não se alcançou, no seu conjunto, o mesmo estágio produtivo. Acontece que os efeitos daquilo que nos alcança como pós-moderno parecem multiplicar-se na medida em que sofremos de uma profunda heterogeneidade social - onde a brutal concentração de renda distancia os pólos sociais - à qual se acirra o caráter fragmentário desta época: no mesmo espaço urbano, dispomos da fome e das trufas, do analfabetismo crônico e da biblioteca virtual.

Deparamo-nos, assim, com a “Carnavalizacão”. O termo , desde já, é de Bajtín, e abrange desordenadamente a indeterminacão, a fragmentação, a descanonização, a ausência de eu, a ironia, a hibridacão, (...)” (Hassan, 1991, p.273), questões que não levam implícito um juízo de valor, já que as mesmas circunstâncias, em setores como a estética, por exemplo, provocaram a possibilidade de inovação e criação mas também efeitos não muito alentadores na constituição das subjetividades.

A supermedicalização e o ideal sanitarista que se veicula, na atualidade, nos meios de informação de massa, coincidem, junto ao aumento da procura pelas religiões, com o testemunho da busca de um fantasma de onipotência prêt-à-porter. De alguma forma, nós nos encontraríamos frente não somente ao desengano mas também à impossibilidade da construção de uma utopia que fosse precursora e objetivo do desejo partilhado, comum. Pareceria que hoje estamos cada vez mais expostos a

Esses espetáculos, monstruosos e dolorosos, (que) maltratam nossos aparelhos de percepção e de representação. Como que extenuados ou destruídos por uma onda muito poderosa, nossos meios simbólicos encontram-se quase aniquilados, petrificados. À beira do silencio emerge a palavra ‘nada’, defesa pudica diante de tanta desordem, interna e externa, incomensurável. Nunca um cataclismo foi apocalipticamente exorbitante, nunca a sua representação foi cuidada por tão poucos meios simbólicos (Kristeva, 1989, p.202).

Nesse sentido, estarmos alertados sobre o tempo que habitamos significa encontrarmos suas marcas em cada demanda, em cada relacionamento terapêutico, identificando sua natureza histórica.

As marcas deste tempo trazem, além das estruturas e formas clínicas conhecidas, novas formas subjetivas1 que desafiam as práticas e as teorias psicológicas. Inscrevem-se, aí, aqueles pacientes que fenomenicamente se apresentam através de: toxicomanias, impulsões, melancolias, fobias irredutíveis, prevalência do acting-out, transtornos alimentares, depressões, a psicossomática. Pelo viés da estrutura discursiva, encontramos dificuldade na possibilidade de estabelecer um relacionamento terapêutico e aquilo que Didier-Weill chamou, conforme Heinrich (1993), de “(...) falta de confiança no significante” (1993, p.9), na palavra dirigida ao outro, quer dizer, dificuldade ou impossibilidade de poder articular a necessidade num discurso.

Em relação a esses pacientes, “(...) se temos em conta a emergência histórica desses fenômenos e sua proliferação, teremos que procurar a lógica da formação social que se organiza num tipo de laço, num modo de discurso que é estruturalmente rechaçante” (Alvarez, 1994, p.360). Dessa forma, a importância de tentarmos delinear esse espaço pós-moderno radica nos efeitos que, enquanto discurso, podem produzir na subjetividade. Trata-se da proliferação de afecções - algumas delas arroladas acima - em que os sujeitos que as padecem não conseguem atrelar uma demanda a esse sofrimento: “Poderíamos dizer que o sujeito está aí ausente ou absolutamente apagado detrás de uma apresentação pelo lado do ser que não leva à produção de nenhuma pergunta, de nenhum enigma” (Alvarez, 1994, p.359). Propomos chamar a esse aparente novo destino do ser de náufragos da pós-modernidade, na medida em que esses sujeitos parecem habitantes de uma deriva discursiva que não remete a nenhum porto de partida, ou de chegada, numa espécie de exclusão não somente do chamado mercado como também das trocas simbólicas de uma forma geral.

De alguma forma, esses que chamamos de náufragos da pós-modernidade – e que talvez poderíamos chamar de náufragos do neo-liberalismo ou da globalização - estão excluídos do discurso específico que essas instituições implantaram. Podemos afirmar que essa exclusão é, de certa maneira, uma exclusão da cultura dominante. Nesse caso, e sem querer aprofundar a questão quando nos referimos à cultura, estamos querendo destacar não somente o sentimento de pertença dos indivíduos mas também as condições de contenção e acolhimento que cada cultura pode oferecer ao sujeito. Citando Sigmund Freud, para remetermo-nos a um dos autores clássicos da Psicologia contemporânea, num dos seus textos conhecidos como sociológicos, O Mal-estar na Civilização (1930)2 , analisa a situação na qual o sujeito moderno se insere. Para Freud, o que a cultura tinha a oferecer ao sujeito era, justamente, o Mal-estar: “A felicidade, o bem, aquilo que seria o fim último de toda ação social, política ou moral o homem, segundo Freud no Mal-estar na Cultura, não pode esperá-lo nem de seu interior nem do mundo exterior” (Alvarez & Colovini, 1994, p.10). Lembremos que, nesse trabalho, Freud explora o antagonismo irredutível, no seu entender, entre as pulsões, enquanto manifestação do desejo, e as restrições da vida em comum na civilização.

Como vimos, falamos anteriormente de um tempo que poderia estar além do modernismo, quer dizer, uma situação além ou aquém desse Mal-estar; de pessoas excluídas, inclusive, desse Mal-estar que poderíamos chamar de normativo. Por que normativo? Porque o Mal-estar a que se refere Freud diz respeito ao campo onde se inserem as necessidades do sujeito e, com isso, sua insatisfação, que o impele, de alguma forma, a desejar e a fazer coisas, ou de outra forma, para fazer e criar é preciso necessitar, desejar. Daí que, nessa lógica, tenha que haver uma dose de mal-estar, de modo tal que leve o sujeito a, querendo desprender-se dele, fazer – nessa situação incômoda - coisas em comum.

Mas hoje, nas margens dessa cultura do Mal-estar, parece surgir um sujeito que não teria acesso à dimensão da necessidade: “Essa margem social (...) excede, assim, o que se pode articular a partir do aparelho do mal-estar na cultura, e seus fenômenos poderiam definir-se melhor por um estado de ‘horror na cultura’” (Alvarez & Colovini, 1994, p.8), ou, de outra forma, aquém do Mal-estar.

Além das implicâncias subjetivas assinaladas acima, vemos, nessas situações de marginalidade e miséria social, fenômenos que poderíamos caraterizar como isolamento, fora de discurso, falhas estruturais na ordem da filiação3 e da identidade. Isso nos leva à necessidade da, na medida em que se trata de uma sorte de endemia, prática comunitária: promovendo a comunicação nos espaços concretos de vida.

Dessa forma, pensamos que a prática do psicólogo visa a promover, a dar lugar ao Mal-estar na Cultura, quer dizer, à instalação das necessidades.

A necessidade deve ter um estatuto claro no discurso do sujeito, incluindo a inscrição das necessidades fisiológicas ou biológicas. Assinalamos isso porque há uma suposição biologicista de que essas necessidades estariam inscritas naturalmente. Sabemos, no entanto, que o ser falante pouco tem de natural e que aquilo que não passa pela linguagem não tem inscrição simbólica, portanto, não faz parte das necessidades. Às vezes, a falta de inscrição da necessidade é interpretada como ‘falta de participação’ das pessoas nos problemas da comunidade: “Ampliam-se as entidades, grupos e setores ‘sensibilizados’ com a população e os problemas sociais: são ONGs e as entidades filantrópicas, e, paradoxalmente, os setores populares encontram-se desmobilizados e refratários à possibilidade de participação” (Quintal de Freitas, 2001, p.4). Essa questão é descrita, também, por outros autores, como ‘falta de motivação’; assim, ocorre “[...] não estar realmente motivado para o atendimento, visto não compreender sua necessidade e desconhecer o que é um serviço psicológico, uma vez que esse tipo de trabalho não tem repercussão no seu universo educacional e cultural” (Larrabure, apud Moré, 2001, p.87).

Essa situação, no nosso entender, propicia algo que parece bastante difundido e, inclusive, valorizado, nestes tempos de filantropia; como diz Cordeiro, “A concentração de renda se acentua cada vez mais, ao mesmo tempo em que se difundem ideologias de um ‘novo humanismo’, citando exemplos de como seria possível superar a pobreza pelo voluntariado, pelas iniciativas da filantropia e a ‘compaixão’ entre as pessoas” (2001, p.328). Essa atitude – que, no nosso entender, reforça ainda mais as diferenças - iria contra a possibilidade de trabalhar no sentido de

Criar espaços que permitam o surgimento de alguma demanda. Dar lugar à necessidade, inscrevendo-a no discurso, sem ignorá-la. Essa é uma posição ética. Pensamos que as lutas no campo social podem ser consideradas como tentativas de cura ou como reforço do sintoma. ‘Cura’ quando se produz um ponto de separação, um momento em que vacila a alienação no Outro. A isto se poderia chamar desmascaramento do Amo, desmascaramento de sua impostura. O reforço do sintoma se dá na medida em que é o máximo de alienação, essa sucção no campo do Outro que aparece como pleno, consistente (Alvarez & Colovini, 1994, p.10).

De outra forma, trata-se de promover a participação para a inscrição das necessidades e das demandas. Nesse sentido, dar é muito diferente de promover. Algo que se promove é da ordem de uma potencialidade, e, portanto, não pertence a ninguém, ninguém pode se senhorear daquilo que será, mas que ainda não existe. Por outro lado, podemos nos perguntar: existe um saber-participar ou se trata de um poder-participar? Haveria, então, que ensinar a fazê-lo, ou será que há que deixar que se faça? É possível programar, planificar, indicar a participação?

Vejamos um caso específico e, desgraçadamente, recorrente. Trata-se da prática comunitária de psicólogos que encontraram, numa comunidade carente, uma altíssima taxa de desnutrição; mesmo que esse grupo dispusesse de um programa nutricional oferecido pelo poder público e por organizações filantrópicas,

Questionamo-nos: essa situação de desnutrição é vivenciada como um problema? Fazemos essa pergunta porque a passividade, a indiferença demonstrada por essas famílias faz supor que não há registro efetivo da necessidade, ou que existem outras explicações do que podem perceber nas crianças, ou interpretações denegatórias; referimo-nos a fantasmas ou mitos, por exemplo: ‘nós somos todos magrinhos’. Trata-se, aqui, de uma ‘simples’ denegação? Ou podemos pensar em algo da ordem do rechaçado? Há ignorância da necessidade: é necessário se alimentar. A situação de marginalidade não é unicamente sociológica, pareceria que esses grupos ficam, assim, excluídos, à margem de significações organizadoras centrais, que são as que possibilitam a produção de um sujeito, o acesso aos sintomas habituais, próprios do mal-estar na cultura. O que fica afetado é a possibilidade mesma de o sujeito ser reconhecido enquanto tal, quer dizer, num discurso que não ignore a necessidade (Alvarez et al., 1994, p.19).

Dessa forma, no nosso entender, a promoção da Comunicação Social deve estar, em primeiro lugar, orientada no sentido de poder dar lugar a que surja a dimensão da necessidade no discurso.

Por isso, no nosso modo de ver, pensar a intervenção do psicólogo na comunidade, promovendo a comunicação, significa pensar num trabalho que faça surgir, no discurso, aquilo que ainda se encontra somente no registro do real – como a necessidade de uma boa alimentação, por exemplo – e que deve se inscrever no simbólico da linguagem.

É que, ante o acontecimento inexistente – ainda não sancionado pela linguagem, pelo dito – não se inscreve enquanto não tem sanção simbólica. O psicólogo deve produzir, em primeiro lugar, um fato necessariamente de discurso. Entendemos que as intervenções deste se registraram na conta de um dizer, dimensão onde se ponha em jogo a relação do sofrimento e da subjetividade para, dessa forma, propiciar a mudança. A partir dessa perspectiva, pode-se subjetivar o sofrimento, o que se torna, desse modo, uma forma de particularizar o sintoma social. É preciso que cada um, na comunidade, seja ela qual for, se sinta implicado na sua particularidade pelo que acontece, já que o universal faz que se perca o sentido e se torne infinito.

Promover a necessidade significa, no nosso entender, possibilitar a articulação de uma demanda. É a partir dela que o Mal-estar poderá instalar-se. É por isso que a assistência da necessidade, sem a promoção da demanda – enquanto inscrição da necessidade no discurso – não muda a marginalidade social no sentido de que não inscreve, incorporando os sujeitos nisso que chamamos de Mal-estar. Para demandar, é preciso estar inserido no Mal-estar na Cultura. Assim, pensamos que responder às demandas da comunidade é uma tarefa necessária mas não suficiente, porque, sem uma implicação subjetiva das próprias problemáticas e dos modos de resolvê-las na singularidade de cada grupo social, não transcenderíamos o nível do assistencialismo que suporta uma relação cristalizada entre aquele que tem e aquele que nada pode.

Cremos que esse tipo de prática psicológica implica, além da postura do profissional, uma escolha política, no sentido de sua participação nesse campo de intervenção: “Com sua postura, permite que os sujeitos retomem para si o que alienaram nos outros, nos grupos e na instituição (no nível mesmo da imagem que fazem de si, dos grupos e da instituição). No limite, é claro, em que isso for possível” (Guirado, 1987, p.76). Trata-se de um campo bastante delicado e até, poderíamos dizer, movediço, que requer uma constante reflexão crítica no que diz respeito aos espaços de poder, no qual aspectos políticos, e mesmo religiosos, podem esconder-se detrás de cada movimento. Estamos cientes de que, nesse tipo de prática, há o que podemos chamar de uma esperança – campo da religião – de mudança – campo da política. Nele se espera, indo além do horror na cultura, encontrar no mal-estar na cultura a esperança do surgimento de um sujeito e, junto a ele, a articulação da necessidade e do desejo, “A análise do cotidiano, no cotidiano, e por meio de uma fala que veicula o reconhecimento/desconhecimento sobre ele: eis a natureza dessa Psicologia Institucional que estamos propondo aqui. Seu ‘efeito’ é o de estabelecer, na legitimação do vivido, um corte que faz pensar” (Guirado, 1987, p.76). Por isso, as estratégias de intervenção são pensadas a partir da própria comunidade:

A aposta é construir algo a partir de uma situação: pedidos, necessidades, que interpretamos, possibilitando que se constitua uma demanda. Não há programa que guie linearmente nossa ação, senão um dizer sobre o que já está se pensando, às vezes sem sabê-lo. Não dizemos o que há que fazer; intervimos sobre o que já está passando, retroativamente (Alvarez, 1994, p.30).

Assim, para suportar esse tipo de prática, há somente um imperativo a seguir, que consiste simplesmente em suspender nosso saber de um princípio para, escutando o outro, finalmente, cairmos de nossa posição, que não deve ser mais do que aquela que promove as potencialidades.
Por isso, a capacidade e disponibilidade para a escuta e a postura ética tornam-se ferramentas fundamentais na singularidade desse trabalho, porque os tempos, como vimos, mudaram: “Durante muitos anos, a Psicologia permaneceu nos rígidos compartimentos estanques da ‘clínica’, ‘educação’, ‘social’ e ‘laboral’, mas, quando se entra na comunidade, as paredes desses compartimentos se desmoronam” (Calatayud, 1991, p.368). Vemos, inclusive, que, em alguns casos, o conhecimento da Psicologia pareceria perder-se, quando de intervenção prática se trata, na passagem do espaço privado ao público.

Dessa forma, aparece o que chamamos de uma prática que visa – lembremos a articulação anterior da demanda, a necessidade e a linguagem – a reconstituição ou nova instauração de um laço social comum, dando lugar à singularidade do discurso: “Com que propósito? O de abrir uma fenda no discurso do Amo que, como tal, tem um efeito hipnótico, adormecedor, no sentido de evitar que se ponha em jogo alguma diferença” (Gerlero, 1994, p.64). Lembremos que o discurso do Amo – ou do Mestre – diz respeito ao controle; por isso, vemos que, “(...) surgiram subculturas para as quais a ajuda psicológica tem ficado a cargo de psiquiatras, clínicos gerais e tratamentos medicamentosos oferecidos pela Previdência Social; (...) esse modelo tradicional tem revelado uma relação patronal psicólogo-cliente que foge à essência da atitude clínica” (Macedo, apud Moré, 2001, p.87), quer dizer, ao discurso psicológico. Em termos de expectativas e estratégias, devemos lembrar que

(...) as experiências nas comunidades se constituem uma-a-uma. É a modalidade de cada comunidade a que imprime os estilos, marca ritmos, determina opções. Por isso, não se impõe um modelo metodológico a priori. Devem criar-se dispositivos apropriados para cada situação específica: intervenções em grupos e instituições, oferta e organização de atividades variadas, abordagens de problemáticas específicas e, fundamentalmente, abertura do jogo para a convocatória ampla, pretendendo incidir nas modalidades do laço social (Alvarez, 1994, p.30).

Para finalizar, gostaríamos de dizer que pensamos que, se conseguirmos manter a liberdade — distanciando-nos de programas que tentam, através da imposição e sedução do discurso do Amo moderno, assimilá-la à lógica de poder pós-moderno — poderemos oferecer uma resposta singular àqueles que, submetidos à pobreza subjetiva, física e social dominante consigam — através de seu sofrimento singular — alinhavar, a partir da necessidade, uma demanda de saber.

Sendo assim, o discurso psicológico poderia localizar-se na contracorrente do suposto bem-estar que marca a impossibilidade de fazer e falar uma história rechaçando o aparecimento do sujeito da nossa história4 .

Acreditamos que, enquanto psicólogos e cidadãos, somos testemunhas, atores e autores de uma época que pressupõe e incita à criação e ao desafio5 . Pensamos que encontrar respostas e posições morais – coletivas - e éticas – pessoais - nesse ambiente torna-se condição da nossa geração para que, alhures, o discurso psicológico possa manter-se vivo e necessário. Supomos que já nos cabe essa responsabilidade. Inovar significa, no nosso modo de pensar, poder, ante o aparecimento dessas diferentes condições subjetivas, culturais e sociais, encontrar a brecha onde avivar o discurso psicológico nestes tempos assépticos, que reduzem o sujeito desejante e social a um ente físico-químico. Para isso, acreditamos que deveríamos questionar-nos de forma profunda e constante sobre o laço social com a comunidade onde inserimos não somente nossa prática mas, também e principalmente, nossos fracassos, triunfos, sonhos e paixões.

Desejamos, agora, sim, finalizando, além de ter construído um texto consistente sobre alguns aspectos da Comunicação Social, ter podido transmitir, da melhor forma, tanto nossa intenção de reflexão crítica da teoria e da prática psicológica quanto nossas escolhas éticas e políticas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rafael Andrés Villari
Av. Trompowski, 84/702
88015-300, Florianópolis, SC, Brasil
E-mail: r.villari@newsite.com.br

Recebido 07/04/04
Aprovado 25/08/04

 

 

* Psicólogo formado pela Universidade Federal de Santa Catarina.Psicanalista. Mestre em letras. Doutor em literatura.
1 Cf. Melman, Ch. (2003). Novas Formas Clínicas no início do Terceiro Milênio. Porto Alegre: CMC Editora.
2 Como diz J. Strachey (1997), editor inglês das obras de Freud, “O título original para ele escolhido por Freud foi ‘Das Unglück in der Kultur’ (‘A Infelicidade na Civilização’), mas ‘Unglück’ foi posteriormente alterado para ‘Unbehagen’, palavra para a qual foi difícil escolher um equivalente inglês, embora o francês ‘malaise‘ pudesse ter servido. Numa carta à sua tradutora, a Sra. Riviere, Freud sugeriu ‘O Desconforto do Homem na Civilização’, mas foi ela própria que descobriu a solução ideal para a dificuldade no título finalmente adotado.” (1997). O kultur do título foi traduzido de diferentes formas. Assim, encontramos tanto Civilização quanto Cultura.
3 Cf. Roudinesco, E. (2002) La famille en désordre. Paris: Arthème Fayard.
4 Cf., entre outros, Virno, P. (2003) El recuerdo del presente. Ensayo sobre el tiempo histórico. Buenos Aires: Paidós.
5 Cf. Derrida, J. & Roudinesco, E. (2003) Y mañana, qué ... Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.