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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.24 no.4 Brasília Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

A representação social da violência na literatura de cordel sobre cangaço1

 

Social representations of violence in “String Literature” about cangaço

 

 

Renata Lira dos Santos Aléssio*

Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O cangaço é uma forma de banditismo social típica do Nordeste brasileiro, cujas histórias, veiculadas nos folhetos de cordel, transmitem representações acerca dos mais diversos objetos sociais, dentre eles a violência. O objetivo deste trabalho foi investigar a representação social da violência em cordéis sobre o cangaço. Foram pesquisados 12 (doze) folhetos, cuja análise, a partir do software ALCESTE, produziu quatro classes de palavras, agrupadas em dois eixos: o primeiro, ligado à narrativa jornalística do cangaço, e o segundo eixo, fortemente marcado por idéias que indicam um julgamento moral dos atores sociais envolvidos, forjando uma identidade social para nordestinos, sertanejos e cangaceiros.

Palavras-chave: Representações sociais, Violência, Cordel, Banditismo.


ABSTRACT

Cangaço is a sort of social banditism, typical of the Brazilian Northeast, whose stories published at the cordel´s pamphlets can communicate the social representation about many types of social objects, including violence. The main objective of this work was to research the social representation of violence at the cordel´s pamphlets about cangaço. Twelve (12) pamphlets were examined by the software ALCESTE which produced four (4) word classes grouped in two axes: the first one is related to the journalistic narrative of cangaço and the second axis is strongly characterized by ideas that indicate a moral judgment about the social actors involved, producing a social identity to northeastern people, “sertanejos” and “cangaceiros”.

Keywords: Social representation, Violence, Cordel, Banditism.


 

 

Se pudéssemos entrar na máquina do tempo e viajar até o início do século XX, a manchete acima poderia ser de uma notícia da última investida do bando de Lampião, de Corisco ou de Antônio Silvino. Saques, roubos e incêndios de propriedades realizados pelos grupos cangaceiros guardariam alguma semelhança com o “terror” veiculado cotidianamente em nossos meios de comunicação em relação ao tão anunciado alto índice de violência.

A violência não é um tema novo nos debates travados na mídia, na academia, nas ruas, casas e escolas. Fala-se, hoje, de violência, como talvez nunca se tenha falado, discutido ou pensado. Esse tema tem despertado grande interesse tanto do ponto de vista acadêmico, na medida em que se constitui objeto atual de debates entre intelectuais, quanto no âmbito social, uma vez que se constitui em fonte de preocupação para a sociedade como um todo.

Como um fenômeno social, a violência tem suas raízes nas relações humanas; é, por isso, um fenômeno sujeito às mudanças históricas e sociais que ocorrem nas culturas e sociedades. Se, atualmente, a sociedade trava debates sobre o tráfico de drogas, o crime organizado, o alto índice de menores infratores, a violência doméstica e outras formas de violência, até décadas atrás, o País convivia com um certo tipo de “marginal”, misto de justiceiro e vingador: o bandido social.

O banditismo social é fenômeno que parece ser um dos mais universais da História, guardando, em diferentes contextos e países, uma raríssima uniformidade. Segundo Hobsbawn (1975), os bandidos sociais são oriundos de sociedades camponesas e encarados como criminosos pelo Estado, porém mantêm-se como membros da comunidade, sendo por ela temidos, sustentados e admirados.

Para Hobsbawn (op. cit.), o banditismo social representava um fenômeno com o qual a população precisava estabelecer um modo de vida. Por ter ocorrido em áreas onde não existia um mecanismo regular de manutenção à ordem, apoiar e sustentar o banditismo tornava-se mais seguro do que chamar a atenção do Estado, com suas forças expedicionárias, que arrasavam a economia e a população em intensidade superior a qualquer investida dos bandos locais.

Facó , por exemplo, relata a violência das volantes (milícias contra bandos de cangaceiros): “onde quer que a polícia tenha chegado para perseguir cangaceiros ou ‘fanáticos’, praticou contra as populações rurais crimes mais hediondos do que os cangaceiros mais sanguinários” (Facó,1976, p.36).

O cangaço é uma forma de banditismo social característica do Nordeste brasileiro, que surgiu entre 1870 e acabou em 1940, data em que morreu Corisco (Dória, 1982, Hobsbawn, op. cit.). O banditismo, no Nordeste, tem como uma de suas causas principais a crise econômica pela qual passavam as cidades do interior.

As sociedades onde surgiram os bandidos sociais eram sistemas culturais nos quais existia uma forte tradição moral, ligada à propriedade da terra, patriarcal e tradicional. Esse complexo de valores conservadores convivia, de forma conflituosa, com a industrialização e a crescente capitalização das cidades interioranas.

Os bandidos sociais surgiram como defensores dos valores morais da família, combatendo a injustiça causada pela crescente desigualdade social. Podem ser identificados, pela população simples, como ladrões nobres ou, simplesmente, justiceiros.

O cangaço significava violência e medo, para uns, e heroísmo, valentia ou justiça para outros, revelando-se, portanto, como um objeto polimorfo cercado de significações das mais diferentes. É um objeto social que se encontra enraizado nas práticas culturais do homem nordestino, estando sua representação em constante reelaboração.

As formas de circulação e comunicação de idéias sobre a violência também estão sujeitas às transformações complexas pelas quais passa esse fenômeno ao longo da história social. Há algumas décadas, destacava-se, no Brasil, uma forma peculiar de comunicação de massa: os folhetos de cordel.

Não se sabe ao certo a origem dos folhetos de cordel no Brasil; segundo Galvão (2001, p.27), “a denominação ‘literatura de cordel’ foi atribuída aos folhetos brasileiros, pelos estudiosos, a partir de um tipo de literatura semelhante encontrado em Portugal”. Na Espanha e em Portugal, costumava-se pendurar livretos em cordões ou barbantes nas feiras ou mercados populares.

São desconhecidas, também, as razões pelas quais o cordel conheceu grande desenvolvimento no Nordeste brasileiro. Para Galvão (op. cit.), emerge de muitas explicações a naturalização do Nordeste, que aparece de maneira homogeneizada, a-histórica e predominantemente rural.

Nesse sentido, o grande desenvolvimento do cordel explicar-se-ia por ser o Nordeste uma região de atraso, imobilidade, folclore e ruralismo. A literatura de cordel, nessa perspectiva, seria uma produção rude, ingênua, rústica, arcaica e rural, cuja existência seria ameaçada pelo “progresso” da vida moderna.

Segundo Dória (op. cit., p. 07), “a arte reinterpreta o cangaço transformando-o num outro conjunto de significados (...) atualiza o tema do modo a torná-lo elemento da moderna cultura nacional”. A arte, como a literatura de cordel, é um produto humano que confere novos sentidos a fenômenos coletivamente compartilhados e implicados no cotidiano social, como a violência.

Nesse sentido, apreender o mundo popular significa mergulhar nos significados produzidos pelos objetos sociais no interior de determinado grupo social. O cordel, como um sistema de símbolos articulados, é uma forma ampla de conhecimento que encerra outras formas de saber como teorias de senso comum. Essas teorias podem ser chamadas de representações sociais.

As representações sociais configuram-se como sistemas de interpretação da realidade que produzem e se constituem de valores, crenças e atitudes (Jodelet, 2001). De acordo com Moscovici (1961, apud Jodelet, op. cit., p.22), “as sociedades contemporâneas caracterizadas por: intensidade e fluidez das trocas e comunicações, desenvolvimento da ciência, pluralidade e mobilidade sociais” apresentam, como especificidade, a construção de fenômenos representacionais.

A comunicação social assume uma “condição de possibilidade e de determinação das representações e do pensamento sociais” (Jodelet, op.cit., p. 30), visto que, em primeiro lugar, “desempenha um papel fundamental nas trocas e interações que concorrem para a criação de um universo consensual”, e, em segundo lugar, “remete a fenômenos de influência e de pertença sociais decisivos na elaboração dos sistemas intelectuais e de suas formas”.

Se, por um lado, as representações são fenômenos que contribuem para a comunicação do grupo, por outro, elas são construídas nesse processo de comunicação. É através da comunicação que as representações são transmitidas no interior de um grupo social. “As representações sociais circulam nos discursos, são trazidas pelas palavras e veiculadas em mensagens e imagens midiáticas, cristalizadas em condutas e em organizações materiais e espaciais” (Jodelet, op. cit., p.17).

A comunicação social exerce, assim, funções primordiais na construção e disseminação de representações, pois “engaja processos de interação social, influência, consenso ou dissenso e polêmica” (Jodelet, op. cit., p.32).

A literatura de cordel, como meio de comunicação, caracteriza-se por ser um diálogo ou uma narrativa na qual o cordelista tem a intenção de travar, com o ouvinte ou leitor, uma conversa. A comunicação entre o ouvinte e o cordelista é marcada pela intenção do último de convencer o público acerca da veracidade de suas histórias. Ao mesmo tempo em que cria mitos ou lendas em torno do cangaço, o cordel contribui para a reelaboração constante desse fenômeno, objetivando e transformando uma realidade social.O presente estudo teve como objetivo, portanto, investigar como as idéias sobre violência circulam nos folhetos ao apreender a representação social da violência na literatura de cordel sobre o cangaço, revelando seus mecanismos de formação em termos de objetivação e ancoragem.

 

Metodologia

Foram analisados 12 (doze) folhetos de cordel sobre o cangaço, pertencentes ao catálogo da Fundação Joaquim Nabuco – PE:

1.Bode, cangaço e lutas – Dila e José Cavalcanti

2.A chegada de Antonio Silvino na Vila Macaparana – José da Costa Leite

4.Encontro de Dúbal Ribeiro com o bandido Zé Cabelo – Severino Cesário

5.O encontro de Antonio Silvino com o valente Nicácio da Vila Trapiá – João de Barros

6.Jararaca, o cangaceiro – Dila

7.O interrogatório de Antonio Silvino – João Martins de Ataíde

8.A história de Antônio Silvino e o negro Corrupião – Francisco A. Martins

9.O terror do banditismo e o defensor da honra sertaneja – Manoel Camilo dos Santos

10.O terror dos cangaceiros da Paraíba do Norte – João Severo da Silva

11.Lampião e Maria Bonita tentados por Satanás – João de Barros

12.A vida de Lampião e Maria Bonita – José da Costa Leite

Os cordéis foram gravados e, posteriormente, transcritos para análise textual através do software ALCESTE. Esse software divide o texto em classes de palavras hierarquizadas através do teste qui-quadrado, que revela as oposições de vocabulário mais fortes, extraindo, então, as palavras de cada grupo. A análise dos dados realizada neste estudo procurou reconstituir os sentidos das classes de palavras à luz da teoria das representações sociais.

 

Os Sentidos da Violência

É grande a tentação de se classificar a produção literária do cordel como uma atividade rústica, arcaica, própria do meio rural, este último objetivado enquanto espaço do exótico e pitoresco, “atrasado” por excelência, sobretudo quando se fala do interior nordestino.

Nessa perspectiva, o autor do folheto não sabe bem o que escreve, não segue uma lógica formal de raciocínio, e as ambigüidades próprias da manifestação de uma cultura popular são apenas identificadas, desconsiderando-se as raízes que cimentam as idéias veiculadas nas histórias acerca dos mais variados objetos.

Os pesquisadores interessados em estudar a literatura de cordel sob o prisma da teoria das representações sociais devem, assim, retornar a Moscovici (1986) em suas discussões acerca do sábio ingênuo e do sábio profissional, ou seja, acerca das propriedades do conhecimento do senso comum e das propriedades do conhecimento científico. É Moscovici quem inaugura uma perspectiva na qual as representações não são tomadas como categorias lógicas e invariantes, porém como uma forma de conhecimento dinâmica.

Os resultados encontrados neste trabalho foram interpretados com a intenção de apreender a representação social da violência presente nos folhetos estudados e reconstituir valores, normas e crenças a ela subjacentes.

A análise dos cordéis pelo ALCESTE produziu quatro classes de palavras, como mostra o dendrograma2 abaixo. É preciso ressaltar, primeiramente, que os dados analisados se apresentam divididos entre dois grupos: o primeiro, concernente às classes 1 e 2, e o segundo, relativo às classes 3 e 4.

 

 

A Narrativa Jornalística da Violência

A classe 01 corresponde a 33, 12% do corpus analisado, e apresenta as seguintes palavras como umas das mais significativas: atirando, bala, bandido, gritou, ouviu, tiro, pulo, punhal, rifle, terreiro, moça. Essa classe parece estar ligada à narrativa e descrição dos crimes, ataques, lutas e enfrentamentos travados entre bandidos, cangaceiros, autoridades das mais diferentes patentes e instituições e pessoas comuns, que ora são vítimas dos cangaceiros ora são salvas pelos bandidos.

Numa primeira leitura, as palavras podem parecer desconectadas, porém é possível recuperar o seu sentido reinserindo-as no contexto do qual foram extraídas: “a moça foi e voltou/ trazendo a corda e ligeiro / o rapaz enforcou o moleque bandoleiro”, “[ele] desamarrou o bandido / e um punhal lhe entregou”, “meteu o rifle no rosto / cinco tiros disparou / foi cinco balas perdidas / aí Silvino gritou”.

A classe 2, por sua vez, corresponde a 16, 88% do corpus analisado, e agrupa palavras ligadas ao ambiente das histórias - as cidades visitadas pelos bandidos, as rotas de fuga e as descrições dos lugares e das situações em que ocorreram as ações, como podemos observar a partir das palavras da classe chegou, correu, correndo, estrada, fugiu, Ingá, Pajeú, perto, povo, soube, Trapiá, vila, viu, bem como a partir dos contextos de onde as mesmas foram destacadas: “quase que morre de sede / atravessando um grutão /, numa estrada esquisita / não existia um cristão / viajando fatigado / naquele vasto sertão” .

Ao cordel está associada a idéia de jornal do povo devido à característica de ser uma narrativa de fatos ocorridos nas cidades e nos povoados. A narrativa jornalística caracteriza-se, no cordel, por apresentar a descrição de um fato (a investida dos cangaceiros, por exemplo) tomado como verídico (os autores insistem que suas histórias são verdadeiras) e proveniente de uma fonte segura. Esse primeiro eixo, formado pelas classes 01 (relativa à descrição dos crimes e enfrentamentos) e 02 (descrição dos cenários), parece, então, estar ligado à narrativa jornalística dos acontecimentos relativos à atividade do cangaço.

 

O Julgamento Moral da Violência

Enquanto o primeiro eixo está ligado à descrição e ao relato de formato jornalístico, o segundo eixo, formado pelas classes 03 e 04, está fortemente marcado por idéias que indicam um julgamento moral dos atores sociais envolvidos no cangaço.

É o que podemos observar na classe 03 (12.10 % do corpus) a partir das palavras: justiça, céu, cajueiro, cristo, cuidado, encontra, Pedro, satanás, senhor, vivo. A influência da religião é a idéia subjacente a essa classe, como podemos conferir a partir dos contextos dos quais as palavras dessa classe foram destacadas: “baixou a várias sessões / mas nunca foi apoiado / no lugar onde chegava / sempre era recusado / sofreu até que ficou / sem dever nenhum pecado / Resolveu ir para o céu / ver se achava um lugar / Tocou a campainha São Pedro / mandou entrar / mas disse o senhor / aqui no céu não pode ficar! ”

Idéias ligadas à religião delimitam não só essa classe. A religião, em seus valores e crenças ligados ao pensamento cristão, aparece como fio condutor da representação de violência e apresenta uma função de divinização e naturalização do tempo e da vida social.

À violência, encontra-se atrelado um imaginário mágico-religioso que naturaliza e diviniza as relações sociais. Nessa perspectiva, o cangaceiro é “naturalmente” um bandido, pois já nasceu assim: “o bandido apresentou-se com o seu instinto malvado”, “na sombra da injustiça, trilhando seu mal destino”.

Poderíamos supor que essa divinização e naturalização, ancoradas em valores religiosos, forneceriam os elementos para florescimento da perspectiva na qual o Nordeste é representado enquanto espaço do pitoresco, do exótico e do arcaico.

É preciso ressaltar, antes de tudo, que essa atribuição de causalidade encontrada no cordel não é um erro de lógica nem tampouco um artifício do exótico. Trata-se de mecanismos de interpretação da realidade construídos através da cultura e da História e compartilhados em forma de um saber que diz algo sobre um estado da realidade.

Não podemos esquecer que os elementos religiosos fortemente arraigados na sociedade sertaneja e nordestina, de forma geral, resultam de um longo processo de colonização no qual as empreitadas econômicas e religiosas tiveram ascensão.

Uma concepção de sociedade ancorada nos ditames católicos herdados do Brasil colônia e caracterizada pelo patriarcalismo encontra-se subjacente à representação de violência - objetivada segundo a perspectiva do delito e do crime: assassinatos, torturas, “deflorações”, atentados contra a propriedade.

Nos folhetos analisados, existiam, predominantemente, três tipos de histórias: uma, na qual o cangaceiro é desafiado por um “valentão” que é ora uma vítima em busca de vingança, ora é pago pelo Estado para capturá-lo; uma segunda, na qual o “valentão” salva mulheres ou famílias das garras do “bandido malvado”, representado pelo cangaceiro, e uma terceira, caracterizada pelo relato das ações violentas dos bandos de cangaceiros chefiados por Lampião ou por Antônio Silvino.

A violência, nos folhetos, é re-significada em função do contexto no qual ocorre a ação: é representada como valentia, coragem, restabelecimento da moral e da ordem quando o ator é “bem intencionado” e procura defender-se ou salvar uma vítima indefesa ou, ainda, quando procura vingar a morte de familiares. Nesses casos, o autor é um vingador, justiceiro, um herói.

Entretanto, se o ato se configura como um atentado à lei, à tradição, ao patriarcado, a violência é representada como crime, delito, e o autor assume, então, o papel do bandido cruel, um cangaceiro infame e perverso cujo caminho para a violência foi traçado pelo destino.

Dessa forma, o respeito à moral, aos bons costumes e à religião fornece a instrumentalização social da representação de violência. A atribuição de sentidos à violência é realizada tendo em vista a adequação dos comportamentos dos atores sociais aos valores e às normas vigentes.

A construção desse herói cangaceiro em seus valores de valentia e coragem foi, por sua vez, enfatizada na classe 04. As categorias de vingador, justiceiro, herói ou pistoleiro, matador, bandido e fora-da-lei são construídas ancoradas nas diferentes atribuições de sentido da violência. Subjacente a essa construção, encontra-se uma visão de homem como ser provido de valentia, coragem, bravura e habilidade: “o povo deve saber / quem foi Antonio Silvino / valente mas generoso / embora que assassino / tinha boas qualidades / desde o tempo de menino”.

Os valores de valentia, coragem, fama e prestígio são elementos que conferem uma base de legitimidade social às ações violentas praticadas pelos homens com o objetivo de punir, vingar ou defender sua honra. Nesse contexto, o homem que não defende a sua honra e não se vinga encontra-se moralmente morto. A violência constitui-se, nesse quadro, em um elemento que constrói e organiza a identidade do homem sertanejo, do cangaceiro e, em última instância, do nordestino.

 

Considerações Finais

É preciso, inicialmente, salientar alguns dos limites deste trabalho. O primeiro deles é relativo à data dos folhetos. A ausência das datas de publicação e de confecção dos cordéis significa a impossibilidade de reconstituir o contexto de criação dos folhetos e de traçar, mesmo que superficialmente, um quadro dos elementos históricos, sociais e culturais que poderiam influenciar o processo de criação artística.

Um segundo limite diz respeito à classificação dos cordéis. Tendo em vista a dificuldade em se classificar a produção de folhetos em temas específicos – tarefa que ultrapassaria os objetivos deste trabalho pela complexidade e polêmica – optou-se por utilizar a classificação temática proposta pela Fundação Joaquim Nabuco, porém são desconhecidos os critérios que foram utilizados nessa classificação.

Sobre as classificações realizadas por alguns autores, Menezes (1999) afirma que, geralmente, estas sofrem de uma a-historicidade, pois não consideram as mutações pelas quais passam os autores e consumidores da literatura de cordel ao longo do tempo social. O autor sugere que essa classificação seja realizada levando em consideração etapas históricas da literatura de cordel, revelando temáticas predominantes de cada época.

É possível, atualmente, encontrar “folhetos virtuais”, difundidos e veiculados na internet, sobre os mais variados temas, evidenciando que o desenvolvimento de tecnologias da comunicação tem produzido mutações no que nos habituamos chamar “poesia popular”.

Em face de tantas modificações, os conceitos de popular, erudito, arcaico, moderno são algumas das categorias de análise que se tornam, pouco a pouco, mais complexas e de difícil elucidação.

Como expressão da comunicação social, os folhetos analisados fabricam, reproduzem e disseminam representações sociais sobre a violência, justificando, coordenando e ordenando, em seu interior, a identidade de grupos tais como os nordestinos, os sertanejos e os cangaceiros.

As obras artísticas, como produtoras de saber, de sentidos, de significados, colaboram para a reelaboração constante da realidade social. Tem-se, assim, uma literatura dita não-oficial, a literatura popular, produzindo e instaurando uma realidade também “não-oficial”: a história recordada e marginal dos bandidos sociais.

 

Referências

DÒRIA, C. A. O Cangaço. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1982.        [ Links ]

FACÓ, R. Cangaceiros e Fanáticos: Gênese e Lutas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.        [ Links ]

GALVÃO, A. M. O. Cordel: Leitores e Ouvintes. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.        [ Links ]

HOBSBAWN, E. J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1975.        [ Links ]

JODELET, D. Representações Sociais: um Domínio em Expansão. In Jodelet, D. (org). Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.        [ Links ]

MENEZES, E. D. B. de. Das Classificações por Ciclos Temáticos da Narrativa Popular em Verso. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.5, n.12, 1999, pp.279 - 294.        [ Links ]

MOSCOVICI, S. L’Ère des Représentations Sociales. In Doise, W.; Palmonari, A. (org.). L’Étude des Représentations Sociales. Delachaux & Niestlé: Neuchâtel – Paris, 1986.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Renata Lira dos Santos Aléssio
R. Dr. Otávio Bandeira, 117, IPSEP
51190-140, Recife, PE, Brasil
E-mail:Renatalira@yahoo.com.br

Recebido 07/04/04
Aprovado 25/08/04

 

 

1 Este trabalho é parte de monografia para conclusão do bacharelado em Psicologia e foi orientado pela professora Fátima Santos, a quem agradecemos profundamente.
* Psicóloga, bacharel em Psicologia, professora substituta da Universidade Federal de Pernambuco.
2 Logo acima, encontra-se um valor R. Esse valor varia de 0 a 1, sendo o número 0 atribuído a todo o corpus de análise devido à ausência de classificação e conseqüente diferenciação entre as palavras. Quanto mais nos aproximamos do 01, os resultados indicam haver uma grande diferenciação entre as palavras, e, por conseguinte, maior relação entre as classes.