SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número1Freud, Lacan e o conto da ilha desconhecida: reflexões psicanalíticas acerca de um conto de SaramagoPsicanálise e ciência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.25 n.1 Brasília mar. 2005

 

ARTIGOS

 

Gramáticas discursivas da educação especial

 

Discourse grammars of the brazilian special education

 

 

Fabiana Wanderley Moreira*

Universidade Federal de Pernanbuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nos anos 80, houve uma proliferação das idéias gramscianas no cenário psicopedagógico brasileiro. Influenciados por elas, os temas “exclusão”, “transformação social” e “cidadania” apareciam como células semânticas em torno das quais se elaborava e se sedimentava uma gramática discursiva constituída a partir de variáveis intimamente vinculadas: a político-ideológica e a pedagógica. Frente a esse panorama, a política de Educação do Estado de Pernambuco 1988-1991 propunha resgatar a cidadania como uma de suas metas básicas, estendendo os seus raios de ação e intervenção ao universo do portador de deficiência. Assim, com o intuito de apreender os elementos dinâmicos das políticas e práticas discursivas sobre a educação para portadores de deficiência no Brasil, realizamos uma pesquisa qualitativa, retraçando o sentido da intervenção no Estado de Pernambuco que tentava articular, pioneiramente, cidadania-trabalho-deficiência mental. Utilizamos, como eixo teórico, o conceito de episteme1 foucaultiano, respaldado pelo instrumental histórico-discursivo da linguagem.

Palavras-chave: Cidadania-deficiência mental, Exclusão e educação especial.


ABSTRACT

In the eighties there was a proliferation of the gramscian’s ideas in the Brazilian pedagogical scene. Influenced by these ideas, the themes “exclusion”, “social transformation” and “citizenship” appeared as semantical cells around which a discursive grammar was being elaborated and consolidated, a grammar made out of closely linked variants: the ideological-political and educative ones. Facing this situation, the State of Pernambuco’s policy of Education, through the State Plan 1988-1991, intended to rescue citizenship as one of its basic goals, expanding its limits to the universe of the handicapped. Thus, with the intention of apprehending the dynamic elements of the polices and practices about education for handicapped in Brasil , in the present research we try to retrace the meaning of the State intervention in the field of Special Education, especially in Pernambuco, that tried to articulate, pioneerly, citzenship-work-mental deficiency. We used as theoretical hub the concept episteme by Foucault, supported by the historical-discursive instrumental of language.

Keywords: Citizenship-mental handicap, Exclusion, Special education.


 

 

A história da Educação Especial no Brasil é demarcada pela presença e constituição de discursos diversos e práticas discursivas distintas. Para mergulharmos nessa diversidade, podemos valer-nos das concepções de Foucault (1967,“As Palavras e as Coisas”), citadas por Merquior (1985, p.49) sobre episteme, entendida em linhas gerais como: “(...) o conjunto de condições apriorísticas e sociohistóricas” que possibilitam o surgimento desses discursos e práticas discursivas sobre determinado campo do saber, como podemos observar na epígrafe de abertura deste artigo (no nosso caso, o saber sobre o deficiente mental e sua relação com a cidadania). As epistemes não deixam de ser camadas conceituais que sustentam vários campos de saber e que correspondem a diferentes épocas do pensamento ocidental. Para compreendê-las, é imprescindível uma análise histórica que as “desenterre” (por isso, Foucault utiliza um modelo arqueológico para compreender as ciências humanas).

Ainda sobre o conceito de episteme foucaultiana, encontramos a visão de Merquior (1985), que faz uma re-leitura das obras desse autor. Para Merquior, uma episteme pode ser vista como “(...) um porão (sous-sol) do pensamento, uma infra-estrutura mental subjacente a todas as vertentes do saber (sobre o homem) numa certa época, uma ‘rede’ (grille, na terminologia lévi-straussiana de Foucault) que corresponde a um a priori histórico”. É por isso que, numa perspectiva mais verticalizada, no nosso estudo, procuramos compreender por que, num dado momento da história da Educação Especial de Pernambuco, foi possível a emergência de um discurso que articulava, pioneiramente, cidadania e deficiência mental.

Em que bases se assenta uma análise dentro da conceituação foucaultiana ? Tomemos como exemplo a compreensão analítica que Foucault faz do saber psiquiátrico. Ao analisar o saber psiquiátrico, o autor não se restringe, unicamente, ao saber médico, mas amplia sua análise para as práticas de internamento e as instâncias sociais - Igreja, Medicina, Justiça, entre outras; não analisa apenas o saber médico sobre a doença mental mas também a sua percepção social. Por isso, ao tentarmos aprofundar os desdobramentos da relação deficiência mental - cidadania, tivemos a preocupação de compreendê-la a partir da sua configuração sociohistórica, ou seja, dentro de sua episteme.

Dentro desse quadro conceitual, podemos dizer que a Pedagogia e a Psicologia, mesmo antes de serem ciências, são tipos de saber que congregam elementos caracterizadores de uma ou várias práticas discursivas, pois, para Foucault (1972, p.220), o saber é exatamente “este conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prática discursiva e que são indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar (...)”.

Podemos observar, mais de perto, as práticas discursivas sobre a deficiência mental no Brasil resgatando sua evolução sociohistórica.

No século passado, a partir da criação de institutos especializados para a criança portadora de deficiência mental, as práticas discursivas receberam influência maciça de um modelo médico/psicologizante, impregnados das concepções de invalidez, anormalidade e excepcionalidade. Essa perspectiva começou a cristalizar a concepção da Educação Especial como espaço de aglutinação dos “diferentes” e desviantes na escola e trouxe como conseqüência a negação da escolarização universal, justificada como decorrência natural de diferenças biológico-psicológicas. Dessa forma, a Educação Especial pode ser considerada, em muitos momentos, uma modalidade pedagógica e de assistência à saúde. Junto com esse tipo de prática, pode-se supor que é introduzido, na escola, o discurso médico. Ele é construído numa “complexa dinâmica econômica e política na qual se expressam interesses e o poder de diversas classes sociais” (Donnangelo, 1989,p.33) exposto a serviço da estruturação simbólica, extensiva a todo o sistema escolar, das representações de saúde e de doença, delimitando os seus respectivos campos de manifestação. Entende-se por representação a “síntese de informações que circulam na sociedade” e “das experiências pessoais”, podendo ser definida como “elaborações cognitivas que refletem, por um lado, uma atividade psicológica, permitindo aos grupos e indivíduos definirem um campo da realidade ao qual se situam como atores sociais, e, por outro lado, a intervenção dos fatores sociais sobre o funcionamento mental” (Arruda, apud Jodelet, 1983, p. 9). Representações sociais são, portanto, a “reunião de informações e a tentativa de construir um sistema significativo” (Weber, 1976, p.66).

Nesse contexto, o aluno especial parece figurar como representante legítimo da “doença”, e precisa ter seu comportamento disciplinado através da instauração de um método, para dizer melhor, de um discurso sobre a doença. Nos anos 80, acontecerá uma mudança significativa nesse quadro (apesar de encontrarmos as marcas do discurso médico - do século XIX e da primeira metade do século XX - ainda hoje na Educação Especial): o deficiente mental começa a ser visto e percebido por um outro olhar - o pedagógico. Assim, a tônica central da década de 80 será a redefinição das modalidades de serviços prestados a portadores de deficiência e a outros “desviantes”. A partir dessa década, cada vez mais a Educação Especial se torna modalidade pedagógica, definida de acordo com diretrizes de políticas educacionais, afastando-se, assim, da tradição médica. É exatamente porque a deficiência mental sai do âmbito estritamente médico-higienista que vai poder ser anexada ao terreno discursivo da Pedagogia. Uma vez “pedagogizada”, a deficiênica mental entra no domínio da Política (cidadania), já que Educação e Política são quase termos indistintos nas formulações teóricas e pedagógicas dos anos 80.

No Estado de Pernambuco, essa mudança também se instala à medida que o próprio técnico em Educação Especial passa a condensar e aglutinar, além da função médico-pedagógica, uma função também humanitária, já que ficava quase que exclusivamente atribuída a ele a conquista, a participação, a inserção social e a própria cidadania dos portadores de deficiência. Paralelamente a esse panorama, a pressão dos portadores de deficiência, associações e entidades representativas também teve papel preponderante na busca de um debate nacional a respeito das questões intra e extra-escolares dos deficientes, o que acarretou uma ascensão dos serviços da Educação Especial a um patamar de melhor qualidade. É a partir do Ano Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiência (1981) que observamos que a tônica do debate nacional (em torno das pessoas portadoras de deficiência) começa a conferir às ações de Educação Especial uma conotação “política”. Assim, a deficiência mental passa a gravitar em torno de uma outra prática discursiva: o campo político. A partir disso, está aberto espaço para se falar em cidadania, deficiência mental e trabalho.

Adotando essa perspectiva de análise, após realizarmos estudo sobre a institucionalização da Educação Especial no Brasil, tomamos a realidade de Pernambuco como objeto de estudo, especificamente a 2a gestão Arraes (2º mandato/gestão do governador Miguel Arraes, no Estado de Pernambuco, no período de 1988-1991) . Ela surgia como pioneira na Educação Especial, inserida nessa prática discursiva política que tentava articular cidadania e deficiência mental. Podemos dizer que o interesse da nossa pesquisa foi o de analisar o discurso e os procedimentos práticos voltados para a deficiência mental, tomando como referência básica o “Plano Estadual de Educação - PE 1988/1991” (P.E.E. - PE 1988/1991), cotejado com as ações desenvolvidas em instituições e numa escola pública especial, que atenderam a uma clientela portadora de deficiência na cidade do Recife.

 

Procedimentos metodológicos

Procedeu-se à pesquisa qualitativa (o conceito de pesquisa qualitativa é apreciado por Bogdan e Biklen, apud Ludke (1986), no seu livro intitulado A Pesquisa Qualitativa em Educação. Neste, os autores enunciam os pressupostos sobre os quais se assentam a pesquisa qualitativa e exploratória. Essa pesquisa deve ter as seguintes características: 1) o ambiente estudado serve como fonte direta de dados; 2) os dados coletados são predominantemente descritivos, mas orientados por um quadro teórico definido a priori; 3) a preocupação com o processo é maior do que com o produto, e o ‘significado’ que as pessoas dão às coisas e à sua vida recebe atenção especial do pesquisador. Essa pesquisa analisava a prática discursiva desenvolvida na realidade educacional de Pernambuco, no período 1988-1991, período esse de grande relevância por apresentar uma política educativa centrada no fenômeno da exclusão e agrupar, discursivamente, sob o mesmo denominador comum, diversas situações de exclusões distintas entre si. Nesse contexto, o discurso governamental se filiava ao discurso da cidadania, que possuía características especiais ao criar a idéia de essa cidadania ser exercida por todos indistintamente. O nosso interesse maior era saber se era possível e de que forma integrar o deficiente mental no elenco dos excluídos, que podiam exercer virtualmente uma cidadania real nos mesmos moldes de outros tipos de clientela.

A investigação foi realizada, assim, a partir da caracterização do discurso presente no Plano Estadual de Educação 1988-1991, no plano operacional e nos demais textos científicos desenvolvidos e elaborados pelo Departamento/Divisão de Educação Especial da Secretaria de Educação Estadual (a partir de setembro de 1989), encarregado de coordenar as ações de Educação Especial no Estado de acordo com as diretrizes nacionais. Aos documentos oficiais, acrescentaram-se informações provenientes de depoimentos (orais e documentados) de técnicos que participaram do trabalho desenvolvido na 2a gestão, a saber: equipe de dirigentes do P.E.E., professores, pais de deficientes, equipe de triagem, capacitadores, associações dos portadores de deficiência e equipe da 3a gestão Arraes.

A área de abrangência da nossa pesquisa foi a cidade do Recife. Escolhemos cinco unidades para compor nosso universo de investigação (Escola Especial X, Centro de Reabilitação de Casa Amarela e instituições filantrópicas 1, 2 e 3). Essa escolha repousou no pré-requisito de terem atuado durante a vigência do P.E.E 1988/1991 - PE e no critério de especificidade do trabalho desenvolvido por essas instituições com os portadores de deficiência: o Centro de Reabilitação de Casa Amarela, por trabalhar no setor de diagnóstico e triagem dos alunos portadores de deficiência, tendo inclusive a incumbência de encaminhar os alunos para instituições afins; a Escola Especial X, por ser a única escola destinada ao tratamento, à escolarização, à profissionalização e à reabilitação de alunos com deficiência mental do Norte e Nordeste, e as instituições 1, 2 e 3, por trabalharem na escolarização e na profissionalização das crianças deficientes mentais. Também procuramos analisar o material documental dessas instituições para apreender a estrutura e ao funcionamento das mesmas, destacando não apenas sua operacionalidade mas também seu sentido e o método de ordenação das expressões e ações na prática institucional mais global.

Durante todo o desenvolvimento da pesquisa, tivemos o cuidado de não perder de vista a compreensão que uma parcela de espaço passa, necessariamente, pela consciência do todo e, especificamente, pela consciência da complexidade do sistema educacional brasileiro e da distribuição dos recursos técnico-financeiros pelas diversas Regiões e suas formas de organização socio-econômica, político-administrativa e cultural diferenciadas.

Acreditamos que o cotejo das unidades escolhidas possibilitou-nos trabalhar variáveis capazes de caracterizar e apontar aproximações e distanciamentos entre as instituições que trabalham com os portadores de deficiência . Nesse sentido, podemos indicar algumas delas sem a preocupação de selecionar o grau de dependência ou a maior ou menor representatividade das variáveis como deflagradoras do perfil de cada tipo de instituição. Por exemplo:

• origem socioeconômica dos pais ou dos responsáveis ;

• formação/escolaridade dos pais ou dos responsáveis;

• formação/escolaridade dos professores;

• estratégias de reintegração do deficiente mental;

• sexo da clientela;

• idade da clientela;

• tempo de escolarização especial;

• diagnóstico;

• reavaliação diagnóstica.

A origem socioeconômica e a formação/escolarização dos pais foram mensuradas pelos seguintes indicadores: nível de instrução, renda familiar, idade de ingresso do deficiente mental à escola e sexo do aluno, que foram encontrados através dos discursos dos mestres e dos registros da escola (fichas do aluno). Estabelecemos tais relações visando a verificar como esses indicadores interferiam no tratamento e na escolarização do deficiente mental.

A formação/escolarização dos professores foi mensurada pelos seguintes indicadores: nível de instrução, cursos de especialização e capacitação em Educação Especial. Esses indicadores foram obtidos através de entrevistas com os mestres e dos registros profissionais dos mesmos na escola. Tabulados os dados, foram estabelecidas as seguintes relações: o nível de relação entre esses indicadores e o desempenho do professorado, avaliado mediante o cumprimento ou não dos critérios estabelecidos no Plano Operacional do Departamento de Educação Especial, cuja essência está sintetizada nos itens abaixo: a) o professor deveria adotar um planejamento individualizado, que se adaptasse às necessidades do aluno, conhecendo o seu nível de funcionamento e, assim, definindo oportunidades de construção de conhecimento para oportunizar seu potencial e minimizar suas limitações; b) traçar um planejamento semestral para cada aluno e sua metodologia de trabalho; c) compreender as relações que o aluno estabelece com o meio, através de contato/entrevistas com a família do alunado.

As estratégias de reintegração do deficiente mental nas instituições filantrópicas e na escola especial utilizaram como indicadores a reavaliação diagnóstica e o período intercalar das avaliações; os cursos de profissionalização do deficiente mental e formas de diagnóstico (anamnese; testes cognitivos/ projetivos e desempenho escolar).

O Plano Operacional e a ficha de diagnóstico dos alunos foram consultados para a obtenção desses dados.

As estratégias de reintegração foram relacionadas com a existência de cursos de profissionalização, legislação atinente ao assunto e absorção no mercado de trabalho. O tempo de escolarização na Educação Especial teve como subsídio o indicador ‘número de anos na escola’, que foi encontrado nos registros escolares (ficha do aluno) e também através dos discursos dos mestres e diretores das instituições. Tabulados os dados, tentou-se delimitar a faixa de permanência dentro da escola especial e estabelecer a relação entre tempo de escolarização, diagnóstico e reavaliação diagnóstica com vistas à reintegração “cidadã”.

Os dados primários foram coletados mediante entrevistas estruturadas com alguns membros do corpo docente da especial X: dirigentes das associações para portadores de deficiência, equipe multidisciplinar responsável pelo diagnóstico/reavaliação que atuavam nas instituições selecionadas no período de 88/91, equipe dirigente da 2a e 3a gestão Arraes, capacitadores do Plano de Educação Especial/Plano Operacional e alguns pais ou responsáveis pelos deficientes mentais.

As entrevistas estruturadas sempre tinham em comum três questões básicas: a definição de cidadania, a conceituação de deficiência mental e como, na visão dos entrevistados, se articulavam essas duas categorias - deficiência mental e cidadania. Além dessas questões, não deixamos de investigar assuntos como: o papel assumido por eles nas instituições em que estavam alocados, tipo de trabalho desenvolvido, natureza dos contatos estabelecidos com outros serviços de Educação Especial e demais técnicos e avaliação de desempenho da 2a gestão Arraes.

A distribuição quantitativa das entrevistas pelos diversos atores envolvidos foi considerada mediante uma amostra de, aproximadamente, 5% do total de profissionais de cada unidade, distribuídos nas seguintes categorias: dirigentes e equipe técnica do P.E.E. 1989/1991-PE e 3a gestão; direção das associações para portadores de deficiência; responsáveis pela triagem (Escola Especial X / Centro de Reabilitação de Casa Amarela) e capacitadores. Permanece o mesmo percentual de seleção (5%) aplicado à categoria professores e pais de alunos ou responsáveis que receberam tratamento especial, selecionados com base nos seguintes critérios:

Professores:

• estarem na vigência do Plano;

• permanência durante o desenvolvimento do P.E.E.;

• formação em várias áreas do conhecimento;

• submetidos a capacitações no período.

• Pais ou responsáveis:

• alunos que tivessem permanecido desde o P.E.E.;

• nível de instrução.

A Tabela 1 nos fornece uma visão panorâmica dos diversos atores envolvidos. Ao todo, foram entrevistadas trinta pessoas, sendo que, na categoria pai dos deficientes, tivemos que desprezar uma entrevista por não estar dentro dos critérios previamente definidos (o sujeito não estava na escola no período 1988-1991).

 

 

Utilizamos como ferramenta para proceder à análise do material coletado, no período de junho de 1996 a junho de 1997, o referencial da Análise do Discurso (Pêcheux, 1969): ponto de vista da ciência lingüística, cujos pressupostos constituem a Semântica Discursiva, que objetiva ultrapassar os limites da palavra e da frase na direção do discurso. A formação do discurso ocorre em determinadas condições de produção, que compreendem: o contexto sociohistórico, o lugar social e as intenções dos interlocutores, além dos mecanismos de ordem lingüística e normas sociais, elementos que aparecem no discurso “(...) na medida em que o sujeito fala de diferentes lugares a diferentes interlocutores (...) sobre os quais ele tem diferentes imagens, como nos fala Suassuna (1995,p.100). São pressupostos que se adaptam às noções de episteme foucaultiana. Não podemos esquecer que, no discurso, vamos encontrar apenas uma representação da realidade, entre as possíveis, sendo o seu sentido múltiplo, como são múltiplas suas marcas e significações. É essa consciência representacional de um texto oficial que norteou as nossas intenções interpretativas, direcionando-nos na tentativa de desvelar as concepções de “cidadania”, “deficiência mental” e da relação cidadania-deficiência mental contidas no Plano Estadual de Educação (PEE) 1988-1991. Para isso, os depoimentos dos atores envolvidos em nosso estudo nos deram uma visão de como e por que, em Pernambuco, o discurso cidadania-deficiência mental foi possível e ganhou estatuto institucional.

Especificamente, as análises estavam pautadas nos seguintes procedimentos: em primeiro lugar, traçamos e construímos o que chamamos de perfil por categoria, apontando, nos discursos dos sujeitos entrevistados, convergências e divergências que nos ajudaram a estabelecer elos entre as categorias, os quais nos deram uma visão sobre elementos, diretrizes, perspectivas do P.E.E. e binômio cidadania - deficiência mental.

 

Perspectivas e prospectivas finais da pesquisa

O material que coletamos e analisamos ao longo deste estudo permitiu-nos perceber, antes de tudo, que, mais do que a realização de uma intenção humanista com respeito à deficiência mental, o Plano Estadual, nas suas declarações de intenções e profissões de fé, desejava que ao d.m. fosse atribuído o estatuto de diferente e que sua integração à vida social ordinária se desse não na ordem de uma esfera profissional restrita ou precária, mas de uma cidadania crítica e ativa.

Investigar a história discursiva da deficiência mental a partir dos supostos teóricos que escolhemos parece mostrar-nos que, mais do que a existência real de sujeitos desviantes da normalidade (o que também já constitui um discurso), essa história é a de uma constante apropriação por uma ordem (psiquiátrica, psicológica, pedagógica, política) do objeto “deficiência mental”, re-instituindo-se a cada passo. A sua subtração do universo específico do discurso psiquiátrico e sua anexação ao domínio do pedagógico proporcionaram, ao nosso ver, a possibilidade de que aquele “objeto” ganhasse uma dimensão política inaudita numa cultura em que o pedagógico é compreendido como epifenômeno do político; fazer da deficiência mental campo de re-educação é permitir, rapidamente, o seu trânsito para a “intervenção (política) na realidade”.

No decorrer do nosso mapeamento histórico, fizemos rápida alusão ao Dr. Itard e à sua relação com Victor, o “menino-lobo” encontrado na floresta de Aveyron (1801). O fato de aquela criança ter sido objeto de cuidado e acompanhamento médicos ao longo de alguns anos inaugura e ratifica algo de novo: a crença moderna no caráter aperfeiçoável do homem pela via da educação ou da re-educação. Ali se encontravam os rudimentos de um vastíssimo programa (moderno) de produzir o Outro pedagogizável. Não se trata de entender, simples e expeditivamente, tal programa como medida racionalizante de tudo e a todos submeter o olhar vasculhante do poder iluminista, para quem o outro da não-razão representaria uma ameaça. Trata-se de observar a mudança operada na forma como o discurso tratará, a partir de então, de cuidar (num duplo sentido de estar atento e de curar) e instituir o “louco”, o “desviante”, como objeto de uma ação institucional.

Esse discurso, no entanto, pode apresentar muitas variantes; uma delas vimos em ação ao longo deste texto. Como foi possível que, num determinado momento, o “deficiente mental”, já previamente transformado em campo de ações pedagógicas (socialização, integração, profissionalização), galgasse um estatuto ainda mais elevado: o de sujeito político integral, exercendo plenos direitos e poderes de cidadania? As respostas não são simples.

Em primeiro lugar, elas não se encontram em nenhum documento de uma forma imediatamente decifrável. Claro que a articulação existe no interior dos textos; elas revelam a convicção necessária de um discurso que precisa obter aderentes, elas obtêm o efeito persuasivo dos discursos que têm alvo definido; produzem e reafirmam a identidade de seus ouvintes, mas esses ouvintes (do discurso que articula deficiente mental e cidadania) não são os próprios deficientes e, em certa medida, tais articulações lhes são estranhas e realizadas à sua revelia. Assim como quando se fala do analfabeto, ele nunca está presente - e podemos até afirmar que o discurso sobre o analfabeto não se dirige a este e de certa forma o exclui porque o tem por deficitário para compreendê-lo - o discurso sobre o deficiente mental também não se dirige ao seu portador: ele é elaborado numa linguagem sistemática, analítica, demonstrativa, heurística, que pertence ao universo da cultura letrada, acadêmica, clínica, anexo à “normalidade” da razão analítica. Nesse sentido, podemos dizer que este texto - nosso próprio texto - trata, a partir da nomeação, da localização teórica e discursiva de um objeto de sociedade e de cultura, do deficiente. Ele, no entanto, não está aqui “presente” senão como campo, como temática, como objeto de avaliação, como “política pública”. Ele não pode me ouvir, e, nesse sentido, “estudá-lo” é tratá-lo como “exterior”, como o outro de nós, pesquisadores: em uma palavra, excluí-lo. Assim, a própria gramática gerativa, que rege o discurso sobre ele, deficiente, ao decidir o que ele é e como deveria ser tratado social e pedagogicamente, revela a ambigüidade e o tom tutelar de um discurso “cidadão”, o que faz desse mesmo discurso uma irresolúvel aporia, mesmo que nosso intento não seja falar dele, mas de uma política que o elegeu como campo de fala.

O alvo desse discurso somos nós, ouvintes “de razão”. Por um lado, o discurso insta nossa sensibilidade para um problema que precisa ser visto como social, o que nos compromete a todos; por outro, ele se incorpora, no mesmo movimento, às demandas gerais da sociedade que clama por participação e por integração à ordem das decisões coletivas. Talvez, mais do que um discurso “a favor” dos deficientes mentais, da manifestação de uma simpatia pelos “diferentes”, seja um discurso contra o poder. É o poder que é tematizado aqui, no momento em que o deficiente mental é localizado no “exterior”, na exclusão e, com ele, advoga-se sua cidadania plena e ativa.

Em segundo lugar, poderíamos arriscar a idéia de que a fala dos atores e propositores de uma política educativa que tentou articular deficiência mental e cidadania funcionava mais como expressão da “voz de uma época”, da mentalidade mais ou menos aceita em um determinado ambiente social e cultural e em função de um “dicionário” corrente e consensualizado em um dado tempo, do que como reservas exclusivas de uma inteligência individual que significa e institui algo pela simples operação de uma consciência intencional. Em outras palavras: esses atores falavam pela sua época e como pessoas de uma época. Isso não implica subtrair-lhes a responsabilidade pelo que disseram, mas explica o fato de muitos deles dizerem, ao longo deste trabalho, que, se aquilo representou uma mudança, ela era não apenas “ambiciosa”, mas resultado de discussões vindas da Universidade e introduzidas num terreno no qual, naturalmente, encontraram imensas dificuldades de realização como programa. Esses propositores já não fariam da mesma forma. Logo, nem puro jogo de retórica pedagógica, nem inconseqüência política, mas algo que ultrapassa os próprios atores e coloca-os numa relação com a linguagem, a cultura, os anseios e os desejos de um tempo social que os situa como enunciantes e reprodutores de um texto em constante diálogo com outros textos.

O texto social original (se assim podemos chamá-lo) refletia-se e condensava-se, naquele momento de transição democrática, em algumas palavras de ordem que, duramente, lograram alcançar êxito lingüístico e político: democracia, exclusão, cidadania, hegemonia popular, sociedade civil, pluralismo... faziam parte de um dicionário da época que, rapidamente, se transformou nas divisas dos chamados “governos populares”. Esses “governos” (e, naquele momento, poucas pessoas arriscariam não identificar o governo Arraes como “popular”) representavam uma espécie de “retorno do recalcado”: da derrota popular de 64, da repressão que se seguiu, reemerge o “reprimido” (o banido, o exilado), não para se vingar de seus censores, mas para realizar a obra sublime. Se a estratégia pulsional da burguesia “clássica”, como queria Marcuse (1968), era orientar a instituição para o mundo “sublime” da produção e do trabalho, desviando-a de objetos exteriores heréticos e subversivos, ali, naquele momento, a estratégia pulsional “popular” dirigia-se para outro alvo: a participação ativa na esfera pública, com vistas à transformação da qualidade de nossas relações sociais. Nesse contexto, estava “dada a ordem” que nomearia todos os banidos, os reprimidos, os recalcados, os exilados do mundo civil em “excluídos”, e, se a exclusão é sinal de “objetivação”, a integração ativa ao espaço público é signo de “assujeitamento”, tornar-se Sujeito, para usar as concepções de Figueiredo (1995), sujeito político, evidentemente, dotado de consciência, poder de palavra e de ação, para interferir no curso de seu próprio destino, formulador de suas próprias demandas.

O deficiente mental, já incorporado ao campo pedagógico da “re-educação”, surge, agora, não apenas como objeto pedagogizável mas também “politizável”. Anexado à esfera indistinta dos “excluídos” e abolida toda diferenciação interna, toda possível hierarquia, toda fronteira distintiva que pudesse separar os diferentes, os excluídos, ou hierarquizá-los segundo interesses sociais, culturais, profissionais, lá estava ele, o deficiente mental, alçado à condição de cidadão ativo (em potencial), bastando, para tanto, um trabalho (de novo) de re-educação da sociedade inclusiva que a preparasse para acolhê-lo como membro igual e singular. Ao menos... nos papéis.

Numa sociedade que nem sequer se aproximou de um ideal democrático e republicano, do domínio público dos iguais, para a qual a diferença é traduzida em hierarquia e esta em privilégio, é compreensível que o entusiasmo da “re-democratização” tenha assaltado os espíritos: realizar a igualdade solicitada pela democracia, como ação e como conceito. E esse ideal de igualdade talvez tenha obtido dominância sobre a idéia de democracia como convivência pública dos diferentes, mas, como “diferença”, já o dissemos, indica hierarquia, logo... o diferente deve ser incorporado ao solo dos iguais. Assim, os oprimidos e excluídos se encontraram anexados à ordem dos “cidadãos” de pleno direito, dever e competência.

Quanto aos resultados de tal política, os depoimentos traduzem um certo sentimento de impotência, e não apenas em razão da precariedade das condições materiais em que funciona o sistema mas também em função da própria “virada discursiva” que representou a política para a Educação Especial. Mantendo uma certa distância, qualquer observador menos contaminado pela bibliografia canônica que orientou os discursos da época perguntaria o que Gramsci estava fazendo ali. Se recuasse ainda mais, poderia perguntar até que ponto um “governo popular” manipula símbolos sociais reprimidos, prometendo e, de certa forma, “realizando” vicariamente a libertação que a sociedade toda deseja, ou, pelo menos, a parte dela mais afetada pela exclusão e pelo descaso público. Num contexto semelhante, falar de cidadania ativa e interveniente tem a vantagem de obter adesões fáceis, porque mobiliza esferas do desejo reprimido, de fantasia de reconciliação, integrando o que se está separado. Se não é exagerada a comparação, diríamos que esse discurso aciona o “sentimento oceânico” de que falava Freud (1927-1931) em “Mal-Estar na Civilização”.

Finalmente, no fundo de um louvável ideal humanista e democrático, residia um pulso voluntarista que, não raras vezes, esbarrou em um desagradável “princípio de realidade”.

 

Referências

ARRUDA, H.M.S. Estudo das Representações Sociais: uma Contribuição à Psicologia no Nordeste. Fortaleza, 1983.         [ Links ]

COUTINHO, Gilda Maria Dias; ARAGÃO ALBUQUERQUE, Rosemary Casamiro. Proposta para a Área da Deficiência Mental. Recife: Departamento de Educação Especial,1991.        [ Links ]

DONNANGELO, M.C; PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. 2a ed. São Paulo: Duas Cidades, 1989.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização e outros Trabalhos. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, (1927) 1931.        [ Links ]

FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Modos de Subjetivação no Brasil – e outros Escritos. São Paulo: Ed. Escuta, 1995.        [ Links ]

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Lisboa: Portugália, 1967.        [ Links ]

_________________. Arqueologia do Saber. Petrópolis: Vozes, 1972.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização e outros Trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, (1927) 1931.        [ Links ]

LUDKE, M; ANDRÉ, M.E.D.A A Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo: EPU, 1996.        [ Links ]

MARICEVICH, Dinora Borges Rodrigues. “Considerações Básicas sobre Intervenção Pedagógica em Educação Especial”. Cadernos de Educação Especial. Série Ensino, Recife, 1991.        [ Links ]

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização – uma Crítica Filosófica ao Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.        [ Links ]

MERQUIOR, José Guilherme. Michel ou Niilismo de Cátedra. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1985.        [ Links ]

MOREIRA, F.W.S.Expressões e Silêncios do Discurso Cidadania-Deficiência Mental – uma Abordagem Histórico-Discursiva do Plano Estadual de Educação 1987-1991. Recife, UFPE, 1997.         [ Links ]

PECHEUX, M. Analyse du Discours. Paris:Dunot, 1969.         [ Links ]

SUASSUNA, Lívia. Ensino da Língua Portuguesa: uma Abordagem Pragmática. Campinas –SP: Papir, 1995.         [ Links ]

WEBER, Silke. Aspirações à Educação. Petrópolis: Vozes, 1976.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fone (81) 32423009/ 96142979
E-mail:fwsmoreira@gmail.com / fwsmoreira@uol.com.br

Recebido 14/04/04
Aprovado 15/07/05

 

 

* Psicóloga. Doutoranda em Psicologia Cognitiva – UFPE. Professora e coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da Infância e da Adolescência da Fafire. Mestra em Educação pela UFPE e pesquisadora na área da Educação Especial. Professora da graduação da Faculdade Frassinetti do Recife (Departamento de Psicologia).
1 Uma episteme é o ‘a priori’ histórico que, “(...) num dado período, delimita na totalidade da experiência um campo de saber, define o modo de ser dos objetos que aparecem naquele campo, apresenta modelos teóricos à percepção cotidiana do homem e define as condições em que pode sustentar um discurso sobre coisas que são reconhecidas como verdadeiras.” Michel Foucault