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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.25 n.3 Brasília set. 2005

 

ARTIGOS

 

Velhice e família: reflexões clínicas

 

Old age and family: clinical reflections

 

 

Virgínia Lúcia Reis Maffioletti*

Laboratório de Pesquisa em Enfermagem Psiquiátrica, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A longevidade é uma característica do mundo atual. O envelhecimento da população, que ocorreu ao longo de muitas décadas nos países desenvolvidos, tornou-se rapidamente uma realidade nos países menos desenvolvidos, caracterizando uma transição demográfica em um nível sem precedentes. O impacto previsto sobre os setores econômico, social e de saúde transformou a velhice em um problema social. Diante disso, a gerontologia, tendo como referência a cidadania, vem investindo na construção de novo lugar social e uma nova mentalidade de cuidado para a velhice, através de um discurso que se apóia na educação, no trabalho e na família. Neste artigo, sob a luz da psicanálise, apresentamos uma breve historicização da construção social da velhice no ocidente, considerando sua inspiração no envelhecimento biológico, e problematizamos a sua influência nos discursos atuais, nas relações familiares e suas ressonâncias no mosaico de modos pelos quais a velhice, em si mesma, será bem ou mal percebida pelos sujeitos.

Palavras-chave: Velhice, Família, Psicanálise, Cultura.


ABSTRACT

Longevity is a characteristic of the present world. The aging of the population, which had happened during many decades in the developed countries, became quickly a reality in the less developed countries, marking a demographic transition in an unexampled level. The foreseen impact on the economic, social and health sectors transformed old age into a social problem. In such case, gerontology, with reference to citizenship, has been investing in the building of a new social place and a new mentality of care for the elder, through a discourse based on education, work and family. In this article, under the light of psychoanalysis, we introduce a brief historical development of the social construction of old age in the western world, considering its inspiration in biological aging. We also put in doubt its influence in the present speeches, in the family relationship and identify its resonances in the mosaic of manners by which old age itself will be well or badly perceived by the subject.

Keywords: Old age, Family, Psychoanalysis, Culture.


 

 

Mobilizada pela problemática da velhice e seus efeitos sobre a subjetividade, temos procurado, nos últimos anos, através da nossa pesquisa - debruçadas sobre a clínica psicanalítica com velhos -, trazer uma reflexão crítica que contribua para melhor assistência à saúde mental dessa população. Com a finalidade de participar da proposição de uma infra-estrutura sensível às suas especificidades e, ao mesmo tempo, capaz de reconhecer as diferenças, tomamos os ensinamentos da psicanálise - enquanto campo de saber e intervenção - como referência balizadora da nossa escuta e análise.

Ao tomar a psicanálise como referência, não poderíamos desprezar a influência do meio, dos valores, costumes e tradições que absorvem o homem e são por ele absorvidos na construção da subjetividade e dos impasses presentes no sofrimento psíquico. O funcionamento psíquico, nessa concepção, é alimentado não só pelas experiências que um indivíduo vivenciou fisicamente como por aquelas que experimentou emocionalmente - através de relatos, por exemplo - e introjetou como suas, sofrendo, delas, os efeitos.

Ressaltamos, assim, o fato de que, na clínica, lidamos com o sujeito do inconsciente - inconsciente esse que é estruturado como uma linguagem, que fala a língua da sua ancestralidade, da sua cultura, da sua comunidade.

Em seus textos: Totem e Tabu (1913d), e O Mal-estar na Civilização (1930), Freud se debruçou sobre essa íntima ligação entre os valores culturais e históricos de uma sociedade e o inconsciente de seus integrantes.

Neste trabalho, tentamos fazer uma breve reflexão sobre as implicações que alguns discursos que afetam a família, no ocidente, têm sobre a saúde psíquica dos seus velhos, considerando os processos de individualização e minimalização que aquela vem sofrendo ao longo dos anos.

Inicialmente, reportamo-nos brevemente à construção histórica do conceito de velhice na cultura ocidental a partir de uma pesquisa bibliográfica, revisão de um passado que sinalizou o caminho percorrido até a constituição de uma categoria social, a dos idosos. Essa investigação se justificou, pois que partimos da hipótese de que a identificação e diferenciação dessa população, ao longo dos últimos séculos, estabeleceu os sentidos e significados do que é a velhice para nós. Com isso, essa construção também favoreceu o estabelecimento de uma norma que parece regular a vida dos sujeitos, e nela intervir quando submetidos à contingência que denominamos velhice, sendo a família um de seus instrumentos de atualização. Para tanto, identificamos, em conseqüência, a contribuição dos saberes médico e psicológico nesse processo (Debert, 1996).

O corpo físico, como elemento concreto e visível que denuncia um processo orgânico em andamento, é, ao mesmo tempo, peça fundamental na constituição do psiquismo humano. Tendo este trabalho a aspiração de contribuir para uma reflexão sobre algumas questões implicadas no e concorrentes para o sofrimento psíquico dos velhos - presentes em sua fala quando procuram tratamento -, encontramos, no envelhecimento orgânico, um ponto nodal. A sua repercussão no adoecer psíquico é abordada pelos estudiosos a partir de diversas perspectivas.

Quando o envelhecimento orgânico é considerado pela Antropologia, alguns estudiosos afirmam que ele contribui para a construção do conceito de velhice, fornecendo substrato para uma representação fatalista, naturalista e universalista, gerando máximas culturais, estabelecendo padrões de comportamento, etc. (Groisman, 1997).

Tomado como referencial pela Psicologia, o envelhecimento orgânico estimula investigações sobre as alterações cognitivas e comportamentais, as quais vêm contribuindo para a caracterização dos estágios da vida e gerando uma espécie de compreensão ordinária dos processos psíquicos que decorreriam da utilização de uma causalidade mecânica, supondo que exista uma forma de sentir e entender o mundo que é decorrente do envelhecimento e universal. Com isso, a Psicologia vem sustentando significações que, ao longo dos anos, vêm contribuindo como material para a construção e manutenção dos estereótipos e da crença na existência de um "envelhecimento psíquico", que sacrificam o lugar do velho na família e na sociedade (Eizirink, et.al., 1998).

O envelhecimento biológico e o suposto "envelhecimento psíquico" têm servido, também, para embasar e legitimar intervenções jurídicas e político-sociais na vida dos sujeitos. Vale observar que, em seus vários usos, eles acabam, também, autorizando e justificando, por parte dos velhos, a exigência de ganhos secundários.

A contribuição dos saberes médico e psicológico, ao identificarem a velhice como um processo de degeneração _ natural e irreversível -, ao longo dos últimos séculos, redundou numa medicalização da existência e na construção de um discurso gerontológico que tem subvencionado a gestão da velhice - nos níveis familiar e social, um discurso que sustenta a ilusão de uma homogeneidade entre os indivíduos e entre os saberes, condenando as diferenças ao silêncio e promovendo a alienação frente às contradições presentes nas condições de existência (Haddad, 1986).

O sentido que os homens conferem à existência e seu sistema global de valores definem o sentido e o valor da velhice. Inversamente: a verdade de seus princípios e de seus fins se revela através da maneira pela qual uma sociedade se comporta com seus velhos (Beauvoir, 1990).

O produto dessa pesquisa introdutória revelou que uma sociedade que valoriza a individualidade e a competitividade, o novo e o atual, cujo móvel é a produtividade e o lucro, tende a não gostar dos seus velhos.

 

A velhice enquanto categoria social

"Em verdade, em verdade, te digo quando eras mais moço, cingias-te e andavas aonde queria Mas, quando fores velho, estenderás as tuas mãos e outro te cingirá e te levará para onde não queres."

(Evangelho de São João 21, 18).

As categorias de idade- com as quais o mundo ocidental moderno está familiarizado, pois que as delimitou, organizou e legislou -, baseadas na medição da vida em períodos cronológicos, etapas que se sucedem em ciclos biológicos e apresentam características exclusivas a cada uma, seriam resultado de um desenvolvimento longo e nem sempre regular.

Cada sociedade humana, desde o grupo dito "primitivo e rudimentar", ancorada em sua história, organização e cultura, constrói seus próprios critérios, simbolizações, significados e valores aos quais seus membros são submetidos, não sendo a idade, necessariamente, um deles. Atribui a cada grupo que nomeia características, funções e necessidades exclusivas, estabelece um saber especializado sobre eles e, de acordo com seu grau de evolução, transforma-os em alvo de condutas assistenciais, políticas e mercadológicas específicas. (Beauvoir, 1990; Debert, 1998; Bosi, 1994; Maffioletti, Ribeiro, Rocha, 1999)

A periodização da existência, as idades da vida, segundo Ariès (1973), têm sido expressas de diferentes maneiras desde a Grécia antiga até os dias atuais. A utilização da idade cronológica é uma construção relativamente recente, e começou a esboçar-se, com o vislumbrar da infância, como um período singular da vida que, por sua imaturidade biológica e psicológica, demandava cuidados e orientação também singulares. Desde então, a idade tornou-se institucionalizada, determinando a inclusão ou exclusão do indivíduo de determinados papéis sociais.

Queremos dizer que aquilo a que nos acostumamos chamar de infância, adolescência, maturidade e velhice, segundo os estudiosos, é, na verdade, a elaboração simbólica de um processo biológico, tecida pelos elementos culturais e históricos de um povo ou comunidade. A maneira como esses períodos são vistos e interpretados pela sociedade, a posição que nela ocupam, o tratamento que lhes é dispensado pelas demais gerações, são determinados e coloridos pelos contextos históricos, sociais e econômicos em que vive cada cultura (Debert, 1994).

No ocidente, a literatura e as artes nos trazem, desde antanho, uma velhice estigmatizada, que a decadência e a solidão representam e que, geralmente, chora a juventude perdida. Dos alegados "ganhos" que o avançar dos anos é dito proporcionar, o que se conclui é que eles seriam graciosamente trocados pelo viço e vigor da juventude e tudo o que a eles remete (Stevenson, 1965).

Nos estudos antropológicos de povos ditos "primitivos", nos são dados a conhecer diversos tipos de atitudes adotadas pelas comunidades em relação aos seus velhos. De um lado, encontramos aqueles que têm, na velhice, a memória de sua cultura, de sua identidade, sendo os velhos o instrumento de sua perpetuação, incumbidos de passar às novas gerações o saber acumulado sobre os diversos costumes e artes particulares de seu povo. Do outro lado, tomamos conhecimento de algumas sociedades - a maioria marcada pela pobreza - que maltratam e humilham os membros da comunidade que já não podem produzir e que se tornam um peso morto, uma boca a mais para alimentar (Beauvoir, 1990; Vernier, 1991; Manoni, 1995).

A ocorrência de tal ou qual conduta, como os relatos indicam, variavam de acordo com os bens e a posição de importância e poder ocupada pelo velho dentro da comunidade; a pobreza foi sempre, como bem sabemos, um fator agravante de qualquer condição humana (Beauvoir, 1990; Manoni, 1995).

Podemos citar, como exemplo, o modo de tratamento dado aos mais velhos na ilha grega de Karpathos apresentado pelo pesquisador Vernier (1991). No relato, reconhecemos que, aos mais velhos, cabe a responsabilidade de transmitir o saber sobre as tradições daquela cultura _ e, em especial, sobre as técnicas de produção e cultivo dos meios de subsistência. Contudo, aqueles deverão, também, enquanto pais, administrar a transmissão dos seus bens entre o primogênito e o restante da sua prole, de forma a guardar para si o suficiente que lhes garanta o amparo na velhice, pois, apesar de os costumes ditarem que cabe ao primogênito zelar pelos pais velhos, isso não lhes é garantido. Os desentendimentos e mágoas familiares podem reservar-lhes destinos infelizes.

Entre os dois extremos citados, acontecem nuances e camuflagens, interpretadas por alguns autores como caminhos diferentes na aparência, mas que levam a um mesmo horizonte de desrespeito, indignidade e exclusão (Beauvoir, 1990). Nessa perspectiva, olhando para que lado for, na história das sociedades humanas, encontraremos um velho que, por sua virtude ou abjeção, acaba sempre numa zona nebulosa, fora da humanidade. Ou é o velho sábio, venerado, repositório da cultura, ou é o rebotalho, resto inútil, descartável, indicando a estranheza que a velhice causa em todo ser humano (Maffioletti, Ribeiro e Rocha, 1999, p. 16).

Em nosso estudo, percebemos que os relatos históricos de observações sobre a velhice não são, exatamente, o que se poderia chamar de pródigos, no sentido de oferecer um quadro da sua evolução relativo às determinantes que distinguem uma categoria social inserida em dada cultura. No entanto, consideramos pertinente localizar historicamente o momento em que, na cultura ocidental, a velhice se diferenciou como uma etapa do curso da vida, ganhando contornos próprios, despertando mais e mais interesse, até tornar-se uma das "ameaças" para a economia das nações.

Da velhice, sabe-se que já privou com a loucura da companhia de marginais e miseráveis, tanto nas errantes naus sem porto da Idade Média quanto nos primeiros asilos, que a todos juntava como um só e mesmo lixo (Foucault, 1978). No final do século XVIII, início do XIX, foram distribuídos em instituições "especializadas", num remanejamento que se orientava pela capacidade ou incapacidade destes de cumprirem seu contrato de direitos e deveres enquanto cidadãos, riqueza da sociedade por sua força produtiva (Maffioletti, Ribeiro e Rocha, 1999, p. 17).

Os critérios e normas da idade cronológica são impostos nas sociedades ocidentais não porque elas disponham de um aparato cultural que domina a reflexão sobre os estágios de maturidade, mas por exigência das leis que determinam os deveres e direitos dos cidadãos (Debert, 1994, p.17).

Ao velho despossuído, incapacitado, inapto para o trabalho, impossibilitado frente ao cumprimento dos deveres básicos de cidadania, foi destinado um tipo de prática institucional, filantrópica, que se constituiria posteriormente nos asilos só para a velhice, tendo sido o da Salpetrière, nascido em meados do século XIX, talvez o núcleo que tenha introduzido os chamados asilos de velhos (Leme, 1996).

Por essa época, a Medicina tomou-se de interesse pela velhice, ou senescência, como um processo que associava o avanço dos anos não apenas ao enfraquecimento ou declínio geral mas também a condições corporais específicas, inspirando, com isso, o desenvolvimento de um conhecimento médico baseado na idade. Em sua esteira, surgiu a geriatria, que tomou para si o encargo de edificar um corpo de saber médico-científico que caracterizasse e distinguisse essa etapa do curso da vida. Com o avanço da Medicina e sua crescente transformação em áreas especializadas de saber, que, desde a Revolução Francesa, se haviam posto a serviço da ordem social, coube à geriatria oferecer o material de suas observações e descobertas sobre o processo de envelhecimento, colocando-os a serviço da reestruturação do espaço social.

O pensamento vigente de então era marcado por idéias e crenças no desenvolvimento e aperfeiçoamento das relações entre os homens, transformando a indigência, a miséria e a doença em problemas sociais. Ao mesmo tempo, e a partir de uma estratégia biopolítica, que se apropria do corpo enquanto força de trabalho socializado e exerce controle sobre a vida do indivíduo, a população de velhos tornou-se um estorvo para os ideais da sociedade, pela "improdutividade" e pela demanda de gastos com cuidados e assistência médica. No entanto, por ocupar um lugar, no imaginário, de derrocada, finitude, morte, ao estudar-se a velhice e o processo de envelhecimento, poder-se-ia alcançar novos conhecimentos sobre como não se chegar a ela, ou então, como fazê-lo de maneira menos inglória, mais satisfatória (Groisman, 1998).

A busca da imortalidade - ou da eterna juventude, que vigora estilizada em nossos dias - foi, por essa época, final do século XIX e início do XX, um dos elementos propulsores de pesquisas que acabaram por redundar num campo diferenciado de saber, a gerontologia, que englobou a geriatria como saber médico e passou a tratar a velhice de maneira multifacetada, em todos os seus aspectos e necessidades, biológicos, psicológicos e sociais. Mesclando-se, mais tarde, a uma visão epidemiológica, passou também a denunciar o envelhecimento como uma ameaça para a ordem social, na medida em que ele implica um progressivo aumento das classes dependentes e marginalizadas.

O conhecimento científico das questões do envelhecimento, apesar da variedade de referenciais teóricos que o constitui, ainda mantém a tentativa de compor um discurso naturalista e científico em relação à velhice, e tende a postular como verdade absoluta a hipótese de que a maioria dos fenômenos biológicos que se alteram com a idade, bem como alguns atributos psicológicos e sociais, são de natureza evolutiva, regulares através do tempo e lugar e agenciados por um tipo de ordem interna, específica das espécies, e, portanto, universal. Com sua colaboração, a gestão da velhice tornou-se encargo do Estado, deixando de restringir-se exclusivamente ao âmbito da família e da sociedade - ou de ser alvo, unicamente, de filantropia -, para tornar-se uma questão pública (Debert, 1996).

No entanto, uma dupla fala se evidencia: se por um lado a velhice socializada passa a ser alvo de investimentos públicos e promove uma crescente especialização dos saberes, ampliando um mercado de especialistas, por outro lado, a família permanece como responsável direta por seus velhos, sendo, contudo, submetida aos "especialistas da velhice", que desqualificam seus meios e recursos, desautorizam suas estratégias e acusam-na de incompetência caso seus tutelados - os velhos - não correspondam aos ideais prescritos. Esse movimento segue a mesma lógica de responsabilização e controle exercida pela Medicina sobre a família, com relação ao cuidado com as crianças, evidenciado por Donzelot (1986).

Ultimamente, essa multidão de anônimos marcados por sua velhice - um grupo supostamente homogêneo em características e necessidades -, tem sido o foco de uma tentativa de mudança do discurso gerontológico, que, de forma fragmentada, busca transformar as idéias sobre a velhice e o envelhecimento - as quais ele ajudou a construir -, desenhando novas perspectivas e alternativas de qualidade de vida para essa nova geração de "envelhecentes".

A criação da "terceira idade", com seu começo aos sessenta e cinco anos, coincidindo com a aposentadoria, regulamentada, assistida e orientada pelos diversos "departamentos" da vida humana, é uma conseqüência desse novo olhar em construção - ou reconstrução - sobre a velhice e o envelhecimento. Tenta apagar, de uma etapa que amedronta a todos nós, as cores sombrias que desenham perdas, sofrimento, doença e abandono, oferecendo, em troca, a irresistível imagem de uma etapa pródiga em prazeres possíveis, dantes inimagináveis.

Contudo, a Agenda 21 - Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 - colocou os velhos como integrantes dos grupos vulneráveis, com os pobres urbanos e rurais, populações indígenas, crianças, mulheres, desabrigados, doentes terminais e incapacitados.

Dessa forma, o processo de socialização da gestão da velhice, no mundo ocidental, respaldado nas investigações gerontológicas, continua sustentando um discurso inspirado em uma representação desta como um processo contínuo de perdas, marcado pelo abandono, pela ausência de papel social, doenças, etc. Esse estereótipo que vitimiza o velho tem servido também a outros propósitos. Assim, tratar da velhice no Brasil exige atenção ao duplo movimento que acompanha a sua transformação em uma preocupação social. Se o idoso divulgado pela mídia é, por um lado, um ser participante, lúcido, ativo, cujo único desafio é buscar a sua realização pessoal, já que se encontra pronto para viver um dos momentos mais felizes de sua vida, por outro lado, nesse contexto de massa, traçar o perfil do idoso como vítima privilegiada da miséria foi uma perspectiva fundamental para dar-lhe visibilidade e sensibilizar a sociedade brasileira para a problemática do envelhecimento. Era preciso estabelecer laços simbólicos capazes de demonstrar uma identidade entre indivíduos que, apesar de heterogêneos, precisavam agrupar-se para assumir a cena como ator político (Debert, 1996).

Nesse movimento pendular, no delineamento das soluções para o problema, o discurso naturalista sobre a velhice cede espaço. Na nova idéia, tudo se processa como se fosse possível, através da ação conjunta do Estado e da ciência (geriatria e gerontologia), através dos discursos e programas implementados pelas suas diversas instituições sociais _ inclusive a família -, pôr termo ao que é denominado problemática social da velhice. Os objetivos expressos postulam normas apontadas como fundamentais para se alcançar um envelhecimento sem velhice. Investem na construção do que consideram a arte de saber envelhecer, a qual deverá ser aprendida pelos envelhecentes.

Contudo, essa oferta de um mundo novo para os velhos, com seus artifícios e eufemismos, fica longe de aproximar-se de soluções razoáveis para a vida do idoso, principalmente o doente, pobre e desamparado, aquele que fica no outro extremo da corda da chamada terceira idade, a qual se refere aos velhos que têm ainda vigor e poder aquisitivo. Para estes, resta a "reprivatização" da velhice, que volta a ser uma responsabilidade individual e da família (Debert, 1999).

Os discursos - o velho decadente, miserável e solitário, e o "jovem da terceira idade", o "reconstrutor" e ator político -, recaem sobre o velho carregados de exigências, estabelecem uma norma que acaba por regular e intervir sobre os atos do sujeito, com a qual ele terá que se identificar sob pena de ser reiteradamente excluído.

Por sua vez, os sujeitos que integram, um a um, essa categoria, confrontados com a contingência da velhice, acabam fazendo desse discurso oficial a interpretação "verdadeira" - imaginária ou não - de suas angústias, a compreensão e explicação dos seus problemas, sem, no entanto, obterem daquele soluções e amparo.

Seguindo, de certa forma, essa perspectiva histórica, alguns estudiosos afirmam que todos os problemas sociais da velhice são decorrentes do processo de modernização, teoria essa que é questionada por pressupor que, nas sociedades ditas "primitivas", o lugar e prestígio social reservado ao velho seriam de maior respeito, o que é difícil de ser comprovado, tendo em vista, como comentamos anteriormente, os poucos registros encontrados.

Essa teoria da modernização ressalta as conseqüências da transformação da organização do trabalho, a urbanização, o surgimento da família nuclear, a educação de massa e a crise geracional como provocadores do processo de marginalização sofrido pelos velhos do novo século.

Acontece, contudo, que, se as sociedades atuais tendem a ser antes urbanas que rurais, nelas a proporção dos mais velhos tende também a crescer. E cresce, embora aí até as mais fundamentais condições de vida, como o morar e o locomover-se, se tornem adversas aos mais idosos, e levem estes a se verem transformados em empecilhos aos compromissos e desempenhos ocupacionais de jovens e adultos de sua própria família. É o que vem ocorrendo no Brasil, país em que a previdência é uma quimera e a situação do aposentado pode resultar numa cruel condenação a vicissitudes (Queiroz Jr., 1986, p.9).

A velhice assume visibilidade hoje, sendo portadora da mensagem de que algo não vai bem no social. Muitos trabalhos que se dedicam à análise da situação social do velho tendem a sobrepor à velhice os fardos do subdesenvolvimento ou das contradições do modo de vida das sociedades capitalistas. Os velhos são assim, transformados em mensageiros de uma série de reivindicações que, apesar de os penalizarem também, transcendem a velhice em si e estendem-se, de acordo com os direitos humanos, a toda a humanidade. Essa tarefa, carregada de valores positivistas, acaba por estabelecer uma nova forma de assujeitamento.

Podemos reconhecer que a velhice, através dos novos discursos, segue o curso da história e encontra-se capturada pelo paradigma da pós-modernidade, de acordo com a teoria de Bauman (1998).

Filhos da modernidade, nossos velhos cresceram confiantes em que a felicidade seria o produto do sacrifício da liberdade individual em nome da segurança.

Acreditavam que o "mundo perfeito" seria um que permanecesse para sempre idêntico a si mesmo, um mundo em que a sabedoria hoje aprendida permaneceria sábia amanhã e depois de amanhã, e em que as habilidades adquiridas pela vida conservariam sua utilidade para sempre (Bauman, 1998, p.21).

Em conseqüência, consideram difícil encontrar um lugar num mundo onde a liberdade de procura do prazer justifique e tolere uma parcela de segurança pequena demais, uma nova ordem onde o valor reside no começo permanente, fazendo surgir uma nova condição onde as coisas comuns e familiares convertem-se em inúteis em pouco tempo, e sem se aperceberem disso. Essa condição atinge até os próprios indivíduos, pois é inerente a um mundo permanentemente em mudança, a uma era de incerteza e desconfiança.

Sustentando-se num fio de navalha, os velhos são facilmente transformados em "consumidores falhos" (Bauman, 1998), pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor, pois a plasticidade exigida vai na contra-mão dos valores em que fundamentaram suas vidas. Com a aposentadoria, passam a ser vistos como meros dependentes dos fundos públicos e passam a ser vítimas das políticas do "menor custo".

Percebidos como estranhos por não corresponderem ao mapa cognitivo, moral e estético do mundo, espelhos da transitoriedade e inexorabilidade da vida, estão impossibilitados de qualquer reparo. Não se pode livrá-los da sua humanidade, que é percebida como defeito (Bauman, 1998).

Trata-se de um mundo onde os laços não são duradouros nem tratados como tais; pelo contrário, têm cláusulas embutidas até segunda ordem, podendo estas ser retiradas unilateralmente, não implicando definição de direitos e deveres. Tudo é passageiro, e a construção de sentidos, sem sentido, onde a arte de esquecer é um bem, talvez, maior que a arte de lembrar.

 

A velhice e a família

"Cada um guarda em si, como mediador da fala, a imagem de quem inicialmente o ajudou a viver, a falar, a amar" (Maud Manoni).

Segundo Freud, toda a história da civilização é uma exposição dos caminhos que empreenderam os homens para dominar seus desejos insatisfeitos, de acordo com as exigências da realidade e as modificações nela introduzidas pelos progressos técnicos (Freud, 1913a, p.218).

Para a psicanálise, o desassossego humano em relação ao sentido de uma existência que pouco dá e tudo exige teria conduzido o homem à criação das grandes instituições culturais - religião, moralidade, justiça, filosofia... -, para que pudesse dar conta de todos os aspectos do seu "estar no mundo". Frente ao desamparo, nelas buscaria asilo, fazendo-as mediadoras entre ele mesmo e as vicissitudes da vida, a "Lei do Outro", da qual desconhece os blefes, artimanhas e desejos. Reputa-lhes a função de guardiãs de uma garantia de continuidade, ou seja, do desejo de imortalidade.

Quando a igreja, a família, a política e a ciência falham em suas promessas, propósitos e expectativas, muitas vezes resta ao homem o recurso da neurose como tentativa de resolver individualmente a questão crucial da frustração e compensação dos desejos (Maffioletti, Ribeiro e Rocha, 1999).

Freud (1930) nos fala que o sofrimento nos ameaça a partir de três direções: do nosso corpo, condenado à decadência, pois o adiamento do processo não elimina a promessa de dissolução nem a angústia que se origina na premência dos sinais de advertência que acompanham o envelhecimento; do mundo externo, a natureza, que pode surpreender-nos com sua força devastadora, e do outro, tanto do social quanto dos nossos relacionamentos mais íntimos, e que, talvez, seja o mais penoso.

Na velhice, o sofrimento que advém do corpo e do outro ganham intensidades que promovem uma fragilização progressiva, pressionando os sujeitos a serem mais modestos nas suas reivindicações de felicidade, contentando-se mais do que nunca com a simples evitação do sofrimento, ficando a tarefa de obter prazer em segundo plano. Como já fizemos referência no início deste trabalho, a família é considerada por muitos estudiosos como uma instituição cultural onde as representações sociais - valores, sentidos, crenças...- são atualizadas. Por essa razão, ela compõe, atualmente, o tripé - educação, trabalho e família -, no qual se assentam as idéias, noções, valores e normas, isto é, o conjunto de representações sobre a velhice, formuladas pela ciência gerontológica, configurando um modelo de existência que deverá ser utilizado pelo homem para relacionar-se com seu corpo, com os outros homens e com a vida.

Os resultados do último censo (2000) revelaram que, no Brasil, a maior parte dos idosos reside com a família. A institucionalização é um último recurso, e não se dá sem culpas, a não ser para aqueles cuja ausência de uma rede social, incluindo a família, os coloca em condição de risco social. A institucionalização, por sua vez, não implica, necessariamente, a diminuição do risco social, podendo ser um agravante deste (Camarano, 2000).

Em função do lugar de importância que lhe é atribuído pelos próprios velhos e por nossa cultura, a família se tornou alvo de críticas, elogios e intervenções variadas, sendo submetida aos diversos mecanismos de controle e vigilância.

Por um lado, o seu papel enquanto instituição reprodutora da cultura vem sendo criticado: O fulcro do problema se localiza nas características da família de hoje que, reproduzindo os mecanismos e processos da sociedade, não oferece condições para que seus membros mais velhos vivam integrados no seu seio (Silva Apud Haddad, 1986, p. 32).

Em uma escala microdimensionada, ela é acusada de atualizar o esquema de segregação que a sociedade maior determina, sendo uma das responsáveis pela marginalização a que é submetido o velho na sociedade contemporânea, modernizada, consumista, cientificista e tecnológica.

Essa é uma conjuntura na qual as pessoas têm medo de envelhecer, pois não reconhecem, em suas instituições, o acolhimento que as deixaria seguras. O desamparo a que estão submetidas permeia seu lar.

Com o objetivo de transformar a realidade, a gerontologia social põe em ação o seu programa educativo, regida por normas claras: os velhos não podem ser um peso para o social, deve-se evitar o desamparo e a solidão, os velhos devem tomar consciência do que é clinicamente a velhice como estratégia para que administrem suas vidas com consciência e mantenham-se úteis, garantindo um envelhecimento sem velhice.

A idéia geral é que o homem precisa ser educado para a velhice, e para tanto, a família vem sendo transformada em alvo das suas intervenções educativas, na busca de sensibilizá-la, vigiá-la, assisti-la, protegê-la, para que não falhe com os velhos, para que assuma o papel de protetora da velhice. Parte do princípio de que a família precisa aprender a situar-se com relação aos seus velhos. Para tanto, é benéfico orientá-la sobre como tratá-los, o que lhes oferecer, o que lhes pedir, como relacionar-se com eles nas diversas esferas da vida familiar e social. Busca-se conscientizá-la, ou melhor, convencê-la, de que as pessoas com mais de sessenta e cinco anos continuam sendo úteis (Wagner Apud Haddad, 1986).

Nessa perspectiva, a velhice parece transformar aquele sujeito, familiar até então, repentinamente em um estranho. A história compartilhada já não possibilita o reconhecimento; as particularidades, a intimidade, não servem como referência balizadora para o cuidado a ser oferecido. O saber sobre o próximo vem de fora.

A ciência geriátrica, posicionando-se como uma ciência neutra, e, como tal, imune às contradições da cultura, procura resgatar a família para que exerça o seu papel de servidora da ordem social, a serviço do Estado, a partir dos esclarecimentos e orientações recebidas dos especialistas. Assim, exerce seu papel protetor, que alivia a família de tensões e angústias causadas, supostamente, pela falta de conhecimento e de alternativas sobre como agir.

Sustentam a crença de que a dependência, a insegurança, a solidão, enfim, o desamparo, seriam privilégios da velhice, ou de alguns desprivilegiados, e que o conhecimento e a conscientização dos problemas implicariam uma mudança de atitude suficiente para resolvê-los. Mantém-se a crença iluminista.

Contudo, a clínica psicanalítica não se cansa de mostrar a fragilidade do homem adulto, cuja aparente independência é alcançada pela maturidade biológica e psicológica que o habilitam com força física e capacidade de discriminação e escolha. No entanto, essa suposta capacitação, o alargamento das informações recebidas sobre as ameaças e perigos de que a vida é capaz, levam-no à pouco auspiciosa dedução de que, no fundo, na essência, continua tão desamparado e exposto às ameaças quanto na infância. Parece perceber que, frente ao mundo, à sexualidade, à morte, ao amor e à dor, continua sendo a criança que já não mais pensava ser (Freud, 1913b).

Por outro lado, a família também é reconhecida como vítima do sistema, assim como os velhos.

A problemática da velhice seria mais uma conseqüência de certas condições físicas próprias das áreas metropolitanas e da modernidade, como falamos anteriormente, tais como, falta de moradias, transporte, nuclearização da família, conflitos entre as gerações, individualismo, asilamento, além das complicações que podem apresentar-se acompanhando o envelhecimento, como, por exemplo, problemas de saúde com maior dependência física e/ou psíquica, que aumentam a carga de trabalho e os gastos.

No Brasil, o último levantamento demográfico evidenciou que mais de 50% dos domicílios são multigeracionais (Camarano, 2000).

Diante desse fato, os estudiosos alimentam a idéia de que a manutenção das estruturas tradicionais de família garantiria aos velhos a necessária inserção social e proteção econômica. As intervenções assumem, assim, a característica de promover o aumento da rede social, através da mobilização comunitária, numa tentativa de compensação. Através da sua ação educadora, a ciência gerontológica busca a formação de uma atitude positiva em face da problemática da velhice, de forma a agregar a solidariedade comunitária, por meio do trabalho voluntário, como recurso complementar e auxiliar da família, e para atuar como efeito multiplicador na integração do velho no contexto família /comunidade.

O objetivo é: através da mobilização comunitária, assegurar, dentre outras coisas, a manutenção do idoso na família, para que esta assuma o seu papel no processo de valorização dos velhos.

Devemos pontuar que esse esforço para criar um lugar para os velhos na cultura, no desejo dos familiares, acaba por evidenciar a presença da falta de lugar, a estranheza.

Observamos que permanece firme a crença que o destino de cada um depende de suas escolhas, e que estas são produto de racionalizações objetivas, pautadas no acumulo de experiência e conhecimento e, seguindo os princípios da teoria da educação permanente, que postulam ser a aprendizagem um processo que depende da pessoa, atribuem ao próprio velho a responsabilidade de construir para si uma velhice positiva. A felicidade no fim da vida dependerá da coragem que ele tiver para enfrentar o fantasma da velhice.

Alguns autores consideram-no responsável pelas condições sociais a que está submetido, já que, de certa forma, ele participou da construção dessa sociedade; eles, os velhos de hoje, foram os jovens de ontem que, por opção, por adesão ou por omissão, levaram a esse tipo de sociedade (Washington apud Haddad, 1986).

Dessa forma, propõe que, em lugar de lutar pelos velhos sustentando-os no lugar de vítimas, devemos fazer com que eles próprios lutem para resolver seus problemas, já que foram criados por eles mesmos. Ao lado do sentimento de responsabilidade, é inculcado, no velho, o sentimento de culpabilidade.

Os defensores desse discurso esquecem que, no que concerne a indivíduos adultos ou velhos, não se trata somente do fato de terem participado da construção e estabelecimento das condições sociais, políticas, ideológicas e familiares em que estão inseridos - e, portanto, desejantemente implicados -, mas também de que, sob seu regime, aos homens pouco resta além de pôr em jogo suas pulsões originais: a sua agressividade, sua necessidade de amor e sua tendência a buscar o prazer e evitar o desprazer. É uma condição que os leva a lançar mão de mecanismos de defesa, a estabelecer novos acordos, ou a rebelar-se contra o estado de coisas, com vistas a obter algum alívio. A implicação subjetiva com as suas condições de existência é uma conquista de poucos que, reconhecendo o pouco controle que têm sobre suas escolhas, ações e destinos, suportam o mal-estar e esperam para só depois saber quais as suas conseqüências.

Observamos que a crença na razão como determinante dos atos e orientadora dos desejos permanece inabalada no discurso gerontológico, apesar da análise crítica dos estereótipos sociais.

O esclarecimento, seguindo fielmente os ideais iluministas, autoriza o exercício do controle e da tutela, estabelecendo uma hierarquia - Estado/ciência - família - velho - que recai com uma sobrecarga de exigências normativas sobre aqueles que se encontram mais fragilizados pelas contingências. Espera-se que os velhos acreditem em suas forças - sem desprezar a ajuda de aliados sinceros, como os especialistas, as instituições e até os políticos (Haddad, 1986, p.33). Procurem manter-se úteis, participando do dia a dia de sua família - quando ainda têm família - e da comunidade, já que a melhor terapêutica para o envelhecimento é o trabalho.

Confiem na máxima do paradigma médico, para o qual a doença e a morte são inimigas que, senão vencíveis, podem, pelo menos, ser adiadas, desde que sejam seguidas todas as instruções prescritas, o que depende de um ato de vontade. Não adoeçam, não sofram, não morram, pois, se o fizerem, serão os únicos responsáveis.

A contradição discursiva do "novo" modelo de envelhecimento proposto, "é possível envelhecer sem velhice", indica que tudo permanece igual, senão, mais grave.

Se recorrermos brevemente à pesquisa desenvolvida por Barros (1987), Autoridade e afeto; avós, filhos e netos na família brasileira, poderemos reconhecer a manutenção dos estigmas marginalizantes que assombram a velhice através de uma análise rápida dos discursos apresentados pelos entrevistados. Apesar de a população de avós estudada contrastar, segundo a própria autora, com aquela relatada pela bibliografia contemporânea sobre a velhice - que se caracteriza pela dependência, pela perda de papéis familiares e sociais, etc. -, esta permanece uma experiência temida (Barros, 1987).

Logo no início do trabalho, a autora comenta que a idade dos avós estudados, entre 50 e 72 anos, é um dos dados que os define como pessoas independentes; a manutenção da atividade profissional, o lazer, os estudos, são formas de se sentirem ativos; a independência econômica, junto com outros fatores, os impede de se avaliarem como doentes, envelhecidos e dependentes fisicamente dos filhos; todos podem ser considerados exemplos da terceira idade, da melhor idade. No entanto, apresentam o temor de perderem a autoridade, o direito à palavra e à expressão dos desejos, o que os leva a traçar os limites do apoio e da rejeição na relação com os filhos; a luta pelo poder na família adquire a conotação de uma luta contra a própria idéia de velhice decrépita e assistida.

Nesse contexto, a pesquisa da autora revela que a preservação de um espaço doméstico próprio torna-se uma estratégia para afastar a insegurança e dependência da velhice, garantindo um tempo pessoal e o respeito por parte dos filhos.

O reconhecimento de que sua utilidade, seu poder e prestígio se alteram em função da influência ou falência do modelo modernizante de família, a constatação da diferença de seu projeto de vida em relação ao dos filhos, no qual eles podem ou não estar incluídos, apesar de o primeiro ter propiciado o segundo, e o risco da viuvez, que pode representar a perda do lugar central de referência na família, podendo ser relegado a um lugar secundário ou terciário, articula-se com o ressentimento ao se sentirem elementos periféricos da vida dos filhos e netos.

Os idosos apresentam, dessa forma, uma familiaridade com a atitude vigilante e autocontroladora aconselhada pelos diversos saberes, fazendo com que o desempenho de cada indivíduo seja avaliado em função do compromisso com modelos socialmente estabelecidos (Barros, 1987).

Durante a pesquisa, a autora identificou, nos entrevistados, a necessidade de ancorar a identidade no relato da sua história de vida, sendo a referência à própria experiência infantil a matéria prima para a explicação de atitudes e sentimentos do presente, assim como a necessidade de transmitir suas experiências e saberes como estratégia de continuidade de si, vendo, na recusa de seus conhecimentos, a denúncia de sua velhice como algo negativo. Observou que, apesar de esses avós permanecerem identificados e investidos na vida, a morte já faz parte desse momento, uma presença que impõe a revisão de valores e uma certa familiaridade com a finitude.

O tema da velhice localiza-se, assim, nessa interseção de relações familiares e surge para denunciar e apresentar uma queixa do abuso ou desrespeito na relação de troca estabelecida entre eles e seus filhos. (...) Através da ênfase dada à idade, elaboram a importância de sua presença junto aos netos em termos de experiência de vida, (...), e mostram os limites impostos pela idade e pela doença na participação mais efetiva das tarefas domésticas. O desenvolvimento desses argumentos constrói, na verdade, um discurso do poder no grupo familiar enfrentado pelos avós e pais (Barros, 1987,p.128)

 

Considerações finais

Sabemos que, para a psicanálise, é fundamentalmente o destino de cada sujeito e de como ele se arranja com o real da sua existência que está em jogo. Contudo, é preciso reconhecer que o envelhecimento social e o envelhecimento biológico - com suas teorias e exigências - e as transformações do curso de vida, como descritos anteriormente, não são estranhos ao mosaico de modos pelos quais a velhice em si mesma será bem ou mal percebida pelos sujeitos, o que, todavia, não impede que sejam vividos de maneiras muito diferentes de um indivíduo para outro (Manoni, 1995).

Dessa forma, as ressonâncias de uma velhice carregada dos estereótipos sociais e da prometida deterioração física, que a associa à idéia da proximidade da morte e, com isso, altera os lugares que o sujeito ocupa na sociedade e na família, concorrem para que, em alguns sujeitos, instalem-se conflitos entre as instâncias psíquicas, que podem extrapolar os limites da suportabilidade, o que tem por conseqüência a eclosão da neurose.

Por sua vez, as soluções neuróticas, quando entendidas unicamente como produtos da responsabilidade individual ou de deformações biológicas decorrentes do desgaste do corpo - desconsiderando a implicação dialética dos fatores sociais e psicológicos que as engendram -, transformam os sujeitos em caricaturas estigmatizadas, exilados não apenas pelo caráter associal das neuroses, que tendem todas a expulsar o indivíduo da sociedade, substituindo o asilo que antes lhe presenteava o claustro pelo isolamento que a doença traz consigo.Condena-os ao silêncio da ruminação das mágoas, da dor das reminiscências e ao sentimento de culpabilidade, dominantes em tantas neuroses (Freud, 1913c, p. 221).

Uma brusca deterioração do estado físico - que desvele ao sujeito sua fragilidade e os graus de dependência a que está exposto - pode acontecer, por enfermidade, em qualquer idade da vida. No entanto, suas repercussões serão profundamente diferentes, caso aconteça aos vinte ou aos oitenta anos. Na velhice, a sentença de morte que foi decretada automaticamente no nascimento - mas da qual, na infância e juventude, o indivíduo pouco se ocupa -, se exibe, inegociável, e desvela a angústia do confronto com o objeto, que é o lugar desse vazio sem limite, lugar do inominável, lugar da morte. A velhice, de uma maneira ou de outra, foi sempre considerada a antecâmara da morte, sendo a consciência desta última, a marca da nossa humanidade. Fronteiras que delimitam a vida, o nascimento e a morte são as certezas do homem, apesar de, sobre elas, ele não possuir representação em seu inconsciente. Não há "lembrança" do nascer, assim como não há como "saber" o que é morrer. Portanto, entre esses dois extremos, onde se desenrola sua própria vida, o sujeito é assombrado pelo fantasma do aniquilamento, pois que, consciente de si, da sua subjetividade, o ser humano não pode "viver" a sua própria morte, a sua nadificação. Dela, só os outros podem falar.

A importância da família na saúde mental dos seus velhos transcende o social e remonta à pré-história de seus membros. Na dinâmica do cotidiano e do jogo de relações, o passado, o presente e o futuro perdem seus contornos e mesclam seus registros na intimidade de cada um e da coletividade, a saber, a influência dos acontecimentos da primeira infância, a pré-história de um sujeito, a maneira como afetou e foi afetado pelo seu entorno inicial, pelas marcas do seu contexto afetivo e as fixações libidinais que dela decorrem - e que podem, por sua vez, serem atualizadas em um rearranjo, numa espécie de retranscrição.

Quando ao excesso da experiência com o próprio corpo físico soma-se um presente em que o velho não encontra mais lugar, onde o olhar do outro, longe de sustentá-lo, transforma-se em seu demolidor - como vimos ser a realidade social, ainda, imposta aos velhos na civilização ocidental - a velhice pode assumir a dimensão de um verdadeiro desafio, supostamente o último.

O presente, se vivido como uma privação de si mesmo, inviabiliza uma articulação com a imagem e a fantasia que o sujeito guardava de si e para si, o eu ideal e o ideal do eu, podendo ocorrer que as vias do desprazer lhe ganhem a preferência, despertando afetos e representações recalcadas e atualizando conflitos até então silenciados pelas estruturas defensivas.

Sabemos que uma mudança de mentalidade requer tempo. No entanto, consideramos que as reflexões sobre o envelhecimento e suas vicissitudes, ao problematizar os estereótipos negativos que ainda alimentam as representações sociais sobre a velhice, deve atentar para a tendência a negar a existência das especificidades dessa experiência e de seus determinantes culturais e econômicos. A construção de representações idealizadas, seus eufemismos e promessas, ao realizar a foraclusão da dor de existir que se presentifica cotidianamente, torna-se uma outra fonte de sofrimento psíquico.

 

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Endereço para correspondência
Av. Pasteur, 120/401, Botafogo
22290-240, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Fone: 8128-9667
E-mail:vmaffioletti@hotmail.com

Recebido 29/05/03
Reformulado 19/10/05
Aprovado 03/11/05

 

 

* Psicanalista, psicóloga do Centro para Pessoas com Doença de Alzheimer e outros Transtornos Mentais na Velhice, Especialista em Psicogeriatria e Mestre em Saúde Mental - IPUB/UFRJ, membro do Laboratório de Pesquisa em Enfermagem Psiquiátrica - LAPEPS/IPUB/UFRJ.