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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.25 no.3 Brasília Sept. 2005

 

ARTIGOS

 

Reabilitação neuropsicológica pediátrica

 

Paediatric neuropsychological rehabilitation

 

 

Flávia Heloísa dos Santos*

Departamento de Psicologia, Universidade Estadual Paulista - Assis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A neuropsicologia investiga a expressão comportamental das disfunções cerebrais, isto é, a interação entre estruturas cerebrais preservadas e prejudicadas e as funções cognitivas, tais como linguagem, memória, atenção e outras. A neuropsicologia pediátrica possui especificidades: maturação, estratégias cognitivas, ensino formal e cultura, e características intrínsecas à reorganização cerebral. O objetivo da reabilitação neuropsicológica é estabelecer estratégias para adaptação de funções cognitivas afetadas em relação às demandas do ambiente da criança. A reabilitação cognitiva pediátrica auxilia crianças com deficiência mental, epilepsia, traumatismo craniencefálico, síndromes autísticas, tumores cerebrais, paralisia cerebral, etc. Programas de reabilitação neuropsicológica podem ser voltados para dificuldades acadêmicas ou para funções cognitivas. A investigação da efetividade de programas de reabilitação depende de diversos fatores. O neuropsicólogo deve contribuir para o desenvolvimento de novas estratégias de reabilitação cognitiva, ser qualificado para o uso das mesmas e partilhar, com a equipe interdisciplinar, as técnicas e experiências efetivas.

Palavras-chave: Neuropsicologia do desenvolvimento, Reabilitação cognitiva, Criança.


ABSTRACT

Neuropsychology investigates behavioural expression of cerebral dysfunctions, i. e., the interaction between preserved and impaired brain structures and cognitive functions such as language, memory, attention and others. Paediatric neuropsychology has specificities: maturation, cognitive strategies, school and cultural learning, and intrinsic characteristics related to brain reorganisation. The objective of neuropsychological rehabilitation in children is to establish strategies to adapt impaired cognitive functions in contrast to environmental demands. Pediatric cognitive rehabilitation helps children with learning disabilities, epilepsy, traumatic brain injury, autistic syndrome, brain tumours, cerebral palsy, etc. The investigation of the rehabilitation program effectiveness depends on many factors. The neuropsychologist must contribute to develop new strategies of cognitive rehabilitation, be qualified to use them and share with the interdisciplinary staff the effective techniques and experiences.

Keywords: Developmental neuropsychology, Cognitive rehabilitation, Children.


 

 

Neuropsicologia é a ciência dedicada ao estudo da expressão comportamental das disfunções cerebrais (Lezak, 1995). O enfoque central é a interação entre estruturas cerebrais prejudicadas e preservadas e funções cognitivas, tais como linguagem, memória, atenção, entre outras, (Nassif, Andrade e Santos, 2003). A neuropsicologia tem colaborado amplamente para a evolução efetiva das neurociências, na medida em que instrumentaliza outras áreas de investigação, como neuroquímica, neuroimagem, etc. (Andrade e Santos, 2004).

Embora a neuropsicologia seja um ramo de conhecimento interdisciplinar, a avaliação neuropsicológica é tipicamente realizada pelo psicólogo (Lefèvre, 1989), que deve especializar-se no entendimento da dinâmica do funcionamento cerebral e cognitivo (da criança ao idoso) e dos aspectos transculturais (Nassif, Andrade e Santos, 2003). A avaliação neuropsicológica contribui para o diagnóstico, prognóstico e reabilitação de funções cognitivas, podendo ser fundamental para diagnóstico diferencial (exemplo: entre um quadro de depressão e demência), na avaliação da efetividade de um tratamento medicamentoso, na determinação de riscos e benefícios neurocirúrgicos, no abuso de substâncias e em muitas outras circunstâncias clínicas (Nassif, Andrade e Santos, 2003).

A neuropsicologia brasileira surgiu nos anos 50, tendo como um dos pioneiros o médico Antônio Frederico Branco Lefèvre (1916-1981), autor do primeiro tratado brasileiro de neurologia infantil e organizador do exame neurológico evolutivo (ENE) (Lefèvre, 1972), cujas atividades como pesquisador e docente nortearam os primeiros estudos de funções cognitivas em crianças. Nos anos 80, a psicóloga Beatriz Lefèvre publicou o livro Neuropsicologia Infantil (Lefèvre, 1989), que demonstra a importância e o perfil da avaliação neuropsicológica em diversas patologias (para revisão histórica da neuropsicologia, ver Kristensen, Almeida e Gomes, 2001).

Um marco recente foi a Resolução nº 002/2004, do Conselho Federal de Psicologia, que regulamentou a prática da neuropsicologia no Brasil - diagnóstico, acompanhamento, tratamento e pesquisa das funções cognitivas, das emoções e do comportamento - como especialidade em Psicologia.

O objetivo deste artigo é descrever a metodologia empregada na reabilitação neuropsicológica pediátrica, enfatizando aspectos de interesse do neuropsicólogo e informações relevantes para os demais profissionais da área da reabilitação, como terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e comunidade médica, em especial, pediatras e neurologistas.

A recuperação de funções cognitivas depende tanto de plasticidade neural - habilidade do cérebro de recuperar uma função através de proliferação neural, migração e interações sinápticas - quanto de plasticidade funcional - grau de recuperação possível de uma função através de estratégias de comportamento alteradas (McCoy et al., 1997). As habilidades do paciente para formular, planejar e implementar comportamentos intencionais, ou seja, atenção seletiva para estímulos, processamento e retenção de informação, compreensão de situações problemáticas e habilidade para comunicar-se são objetos da avaliação neuropsicológica com vistas à reabilitação (McCoy et al., 1997).

As avaliações neuropsicológicas, tal como as avaliações neurológicas antes do ENE, utilizavam, em crianças, instrumentos desenvolvidos para adultos. A psicologia contribuiu para o desenvolvimento de testes cognitivos ponderados para idade e escolaridade (Hartlage e Long, 1997). Nos últimos anos, tem aumentado a produção de dados normativos brasileiros para instrumentos de avaliação neuropsicológica infantil (por exemplo, Brito et al., 1998; Pompéia, Miranda e Bueno, 2003; Santos e Bueno, 2003) (para ilustrar uma bateria neuropsicológica adequada para crianças brasileiras, ver Costa et al., 2004).

A investigação neuropsicológica em crianças, adultos e idosos pode ser feita por baterias fixas (por exemplo, WISC-III) para investigação global de funções cognitivas, como atenção, memória, linguagem, entre outras, ou flexíveis, em que o examinador seleciona alguns testes para investigação aprofundada de uma função específica (Bernstein e Waber, 1997). A escolha da bateria dependerá do objetivo da avaliação, da queixa e dos achados propriamente ditos. Tanto a anamnese quanto a observação rigorosa do comportamento infantil podem acrescentar informações relevantes (Lefèvre, 1989). Essas informações retratam o comportamento cotidiano da criança, e podem, portanto, facilitar a compreensão da família acerca dos resultados da avaliação e fortalecer tanto a participação da mesma no programa de reabilitação quanto a escolha de estratégias.

Entretanto, peculiaridades da infância em relação a outras fases do desenvolvimento humano devem ser consideradas. Cérebros imaturos são regidos por princípios próprios, os quais são influenciados por maturação cerebral, evolução no uso de estratégias cognitivas, a aquisição de conhecimentos via ensino formal e cultura, bem como, no caso de lesões cerebrais, características intrínsecas à reorganização cerebral (Santos, 2002). Portanto, a recuperação é primeiramente determinada pela idade, localização neural e função envolvida, mas também por fatores como patologia bilateral, presença de convulsões, estágio de desenvolvimento da função cognitiva, entre outros (Hartlage e Long, 1997). Para ilustrar essas peculiaridades, são ressaltadas, a seguir, algumas diferenças entre a neuropsicologia pediátrica e a de adultos.

Na criança, a queixa, muitas vezes, não se relaciona à existência de uma lesão cerebral, e, sim, à identificação, descrição e tratamento da excepcionalidade (da deficiência mental à superdotação) ou de dificuldades de aprendizagem (Hartlage e Long, 1997). Em desordens como atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, por exemplo, os correlatos neurais são, por vezes, inexistentes (Bernstein e Waber, 1997).

Enquanto, na avaliação do adulto, certos comportamentos podem indicar alterações neurológicas, um mesmo sinal na criança pode apresentar um substrato neural distinto ou, como já mencionado, não ser indicativo de um dano cerebral estrutural (Bernstein e Waber, 1997).

No infante, as lesões podem ser congênitas (pré, peri ou neonatais), comprometendo a formação de uma dada função cognitiva. Assim, a intervenção pediátrica destina-se, muitas vezes, à habilitação de funções não desenvolvidas, daí o termo `(re)habilitar', em contraposição à recuperação de funções afetadas tardiamente em adultos por lesões adquiridas.

Essa especificidade indica que o neuropsicólogo pediátrico precisa integrar princípios do desenvolvimento cerebral e cognitivo bem como estabelecer relações entre o comportamento observado e o desempenho no contexto em que a criança se encontra (Santos, 2004). Também é necessário que o neuropsicólogo estabeleça predições sobre o futuro da criança. Os níveis de predição decorrentes de uma avaliação neuropsicológica variam de acordo com a experiência do profissional (Hartlage e Long, 1997). É fundamental que predições levem em consideração os fatores sociais, econômicos e culturais (Santos, 2004).

Quando uma criança apresenta dificuldades decorrentes de ineficiência ou inabilidade para processar informações, para interagir com o meio, é fundamental que haja o acompanhamento de um neuropsicólogo para avaliar, contextualizar e re-habilitar esses déficits cognitivos, propiciando condições para que a criança se desenvolva em seu ambiente e minimizando o efeito de dificuldades futuras (Santos, 2004).

O objetivo da reabilitação cognitiva é corrigir ou atenuar os efeitos de déficits cognitivos genéricos, de forma que os pacientes encontrem meios adequados e alternativos para alcançar metas funcionais específicas (Ben-Yishay, 1981). O sucesso de um programa de reabilitação cognitiva consiste na reintegração do paciente junto ao seu ambiente social e profissional, no caso da criança, a reinserção escolar (McCoy et al, 1997).

A reabilitação cognitiva pediátrica envolve a re-aprendizagem de habilidades cognitivas e a elaboração de estratégias de tratamento para amenizar ou compensar as funções afetadas (McCoy et al, 1997). Tais estratégias, porém, não devem ser um fim em si mesmas, mas refletir a generalização do aprendizado para as situações cotidianas, promovendo independência e autonomia do paciente frente às demandas de seu ambiente (Santos, 2004).

São quatro as principais abordagens (approaches) de reabilitação cognitiva: psicométrica, automatização, biológica e comportamental. Programas de reabilitação baseados nessas abordagens podem ser voltados para dificuldades acadêmicas, como leitura, escrita, entre outras, ou para funções cognitivas, tais como memória, atenção, habilidades vísuo-espaciais, etc. (para revisão das abordagens, ver Santos, 2004).

A escolha do enfoque, em geral, é personalizada, isto é, levará em consideração as características individuais de cada paciente, suas potencialidades e limitações específicas. No entanto, dentre as diversas estratégias de tratamento, destacam-se aquelas apoiadas no auto-monitoramento, auto-controle e meta-cognição para o treino cognitivo de funções cognitivas e gerenciamento dos ambientes escolar e familiar. O uso dessas estratégias tem demonstrado que, quando a percepção sobre as alterações cognitivas e comportamentais é ampliada, os pacientes compreendem melhor suas próprias dificuldades e são mais motivados para o tratamento e ativos na própria reabilitação (Prigatano, 1997). Essas estratégias tornam-se mais efetivas quando inseridas em um modelo de reabilitação que integre as múltiplas necessidades do paciente.

O modelo holístico, ou `comunidade terapêutica', surgiu na década de 70, e caracterizou-se por um conjunto de atividades intensivamente aplicadas que incluíam atendimento em grupo, psicoterapia, treino cognitivo, grupos com familiares e equipe, além de reorientação vocacional. Há relatos brasileiros de experiências de reabilitação cognitiva bem sucedidas em pacientes adultos com lesões adquiridas utilizando o modelo holístico (por exemplo Bolognani et al., 2000; Gouveia et al., 2000; Gouveia et al., 2001).

Uma década depois, seus expressivos idealizadores, Ben-Yishay, de Israel, e Diller, dos EUA, também dedicaram especial atenção à população pediátrica, desenhando o modelo do neurodesenvolvimento, que se caracteriza pelo ajustamento de estágios cognitivos à representação de estágios clínicos da reabilitação, a saber:

O modelo do neurodesenvolvimento foi formulado para: 1) utilizar o valor heurístico dos estágios clínico-cognitivos; 2) expandir o modelo neuropsicológico para incluir questões pediátricas; 3) incorporar elementos psicoterapêuticos holísticos no paradigma de reabilitação; 4) sustentar uma equipe interdisciplinar como componente efetivo da reabilitação.

A equipe interdisciplinar é a estrutura de assistência do paciente durante os seis estágios clínicos da reabilitação (Fletcher-Janzen e Kade, 1997). Os dois primeiros estágios, respectivamente engajamento e consciência, visam orientar o paciente para a dificuldade da tarefa, apresentar limites e expectativas e estabelecer a parceria entre o paciente e a equipe. Os estágios intermediários, domínio e controle, envolvem o aprendizado de estratégias compensatórias que são individualizadas para cada paciente e um começo de generalização das estratégias holísticas. Os últimos estágios, aceitação e identidade, requerem do paciente a incorporação de suas experiências (positivas e negativas) dentro de um auto-conceito, planejamento de ações futuras baseadas em estratégias aprendidas para deliberar e tomar decisões, podendo orientar e auxiliar pares em situações similares (Fletcher-Janzen e Kade, 1997).

Os estágios clínicos são elementos unificadores que permitem aos profissionais de diferentes especialidades comunicar e avaliar acuradamente o progresso dos pacientes a qualquer tempo. Em cada estágio, a equipe pode avaliar o progresso do paciente e pode predizer o estágio subseqüente, deliberando sobre a proposta adequada e incluindo recomendações e comedimentos coerentes com as estratégias de compensatórias a serem adotadas e o nível de controle do paciente frente às mesmas. A vantagem do modelo do neurodesenvolvimento, portanto, é oferecer um significado para avaliações quantificáveis da evolução do paciente e da efetividade de programas de reabilitação pediátrica (Fletcher-Janzen e Kade, 1997).

Uma recente experiência de reabilitação holística foi realizada na Finlândia (Honkinen et al., 2003). O programa é destinado a crianças de diferentes estágios de recuperação e de desenvolvimento bem como a seus familiares. Encontros intensivos, nos quais são oferecidos aconselhamento, informações sobre as lesões cerebrais, treinamento e vídeos para uso domiciliar, atividades recreativas e culturais (teatro, artes plásticas, música, atividades ao ar livre, etc) complementam a reabilitação multidisciplinar diária. Embora um estudo aleatoriamente controlado seja necessário, tal abordagem parece ampliar a consciência da criança frente as suas limitações e à participação familiar na recuperação.

Um marco da neuropsicologia pediátrica nos anos 90 foram os modelos integrados de avaliação e reabilitação neuropsicológica. Esses modelos são discutidos a seguir:

O modelo de intervenção REHABIT (Reitan Evaluation of Hemispheric Abilities and Brain Improvement Training) toma como referência os sistemas hierárquicos do funcionamento cerebral (Reitan e Wolfson, 1985). Primeiro, funções críticas para um processamento geral são treinadas: atenção, concentração e memória; segundo, são treinadas funções necessárias para o processamento orientado pela lateralização, isto é, funções verbais mediadas pelo hemisfério esquerdo e funções de natureza vísuo-espacial servidas pelo hemisfério direito. O nível de processamento superior inclui abstração, formação de conceitos e análises lógicas. A estrutura do programa REHABIT integra teoria, avaliação e treinamento, sendo adequado para planejamento educacional individualizado de crianças com lesões cerebrais avaliadas pela bateria neuropsicológica Halstead-Reitan.

Esse modelo apresenta duas vantagens: 1) a intervenção respeita a hierarquia operacional do encéfalo (funções críticas, lateralizadas e de processamento superior), e, portanto, facilita o processo de reorganização funcional e cerebral; 2) habilidades preservadas são acompanhadas e, em conseqüência, estimuladas, o que contribui para a automatização das mesmas. Por outro lado, duas desvantagens devem ser consideradas: 1) a bateria Halstead-Reitan não é validada para a população brasileira; 2) avaliações consecutivas podem refletir o efeito de aprendizagem pelo desempenho repetido de alguns testes, daí a necessidade de mais versões de cada tarefa empregada.

O modelo fenomenológico de intervenção caracteriza-se pela observação e descrição de fatores que interferem com a aprendizagem e desempenho acadêmico da criança em ambiente escolar ou domiciliar. A ênfase está no reconhecimento e intervenção sobre problemas de aprendizagem, e não na causa do prejuízo ocorrido, que pode ser devido a fatores do desenvolvimento cerebral ou psicossocial (Levine, 1993).

A intervenção leva em consideração a observação direta do comportamento, por exemplo, na dificuldade que uma criança apresente para planejar e organizar o seu tempo de estudo ou na dificuldade para memorizar uma informação enquanto estuda para uma prova. As avaliações incluem as esferas educacional, comportamento afetivo, desenvolvimento cognitivo e aspectos clínicos, e envolvem a participação de familiares, professores, equipe interdisciplinar e outros diagnósticos especializados (Levine, 1993).

Teeter (1997) ressalta a utilidade desse modelo para avaliação, intervenção e gerenciamento em diferentes desordens. Embora o modelo possa, a princípio, ser considerado uma conduta invasiva, na medida em que profissionais freqüentam os ambientes familiar e escolar da criança, esse fator é convertido em vantagem na medida em que as medidas adotadas assumem um caráter ecológico e centrado nas dificuldades específicas da criança relacionadas ao contexto escolar.

O modelo de intervenção DNRR (Developmental Neuropsychological Remediation / Rehabilitation) foi desenvolvido em atenção às dificuldades de aprendizagem, isto é, de linguagem falada e ou escrita, coordenação, autocontrole e atenção. O DNRR supõe sete passos. No primeiro, o perfil neuropsicológico é traçado; a seguir, esse perfil é contrastado com as demandas do ambiente (comportamento, nível acadêmico, aspectos psicossociais). No terceiro passo, são feitas predições quanto aos déficits passíveis de recuperação a curto ou longo prazo mediante a intervenção, levando em conta os recursos da família, comunidade e ambiente psicossocial. O passo seguinte é o plano de tratamento e sua respectiva monitoração. No sexto passo, o plano de tratamento é reajustado em função da monitoração. O sétimo passo é a reavaliação neuropsicológica para modificar e clarificar o plano de intervenção (Rourke, 1994).

Segundo Teeter (1997), o DNRR é um paradigma integrado para avaliação e tratamento de dificuldades de aprendizagem, cuja estrutura permite a identificação de fatores críticos úteis também para o desenho de intervenções em outras desordens. Seu grande mérito está na constante reavaliação da evolução do paciente.

De fato, progresso acadêmico, atividades diárias e ajustamento emocional devem ser regularmente avaliados, pois o curso clínico na criança se modifica tanto pela recuperação espontânea das funções cerebrais quanto pela continuidade de mudanças próprias do desenvolvimento. Dada essa natureza dinâmica da recuperação, o programa de reabilitação pediátrica precisa ser revisto e modificado com maior freqüência do que em adultos (McCoy et al., 1997). Além disso, as intervenções adotadas devem corresponder às peculiaridades de desordens neurológicas específicas, conforme ilustra a tabela 1.

 

 

O tratamento medicamentoso de sintomas residuais pela administração de antidepressivos, anticonvulsivantes, anxiolíticos e anti-histamínicos em pacientes com lesões cerebrais deve ser constantemente monitorado, pois efeitos colaterais, como sedação, confusão e prejuízos de memória podem influir em ambos, avaliação neuropsicológica e reabilitação cognitiva (Prigatano, 1987). Por essa razão, o diálogo entre os médicos e o neuropsicólogo a esse respeito é essencial.

A avaliação funcional, isto é, das atividades de vida diária e autonomia, também deve ser considerada. Sabe-se, nos dias de hoje, que a melhora atribuída para a reabilitação neuropsicológica pode ser separada do progresso no funcionamento, que ocorre espontaneamente. Pacientes com traumatismo craniencefálico (TCE) apresentam uma recuperação mais rápida nos primeiros 6 meses após o insulto, mas podem continuar lentamente a recuperar-se até 24 meses pós-lesão (Bond, 1975). De fato, ganhos progressivos em independência pessoal, doméstica e comunitária ocorrem cerca de 5 anos pós-lesão, alcançando, porém, um plateau no nível funcional ou de atividade cognitiva após um interstício de dez anos. Os pacientes se mostram mais conscientes do impacto cognitivo e dos problemas de comportamento na vida cotidiana, porém aspectos emocionais (ansiedade, depressão e isolamento social) permanecem freqüentes (Olver et al., 2003).

É importante dizer que a maioria dos pacientes necessita de reabilitação de outras funções, além das cognitivas, e em diferentes fases de seu acometimento. Assim, neurologia, psiquiatria, fisiatria, fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional, entre outras especialidades, interagem constantemente com a neuropsicologia. Por exemplo, crianças com lesões adquiridas e adultos jovens se beneficiam da mobilização e estimulação para recuperação da consciência, a chamada neurorreabilitação (Eilander, 2003). No caso de lesões congênitas, grupos de estimulação neuropsicomotora precoce e de psicopedagogia contribuem para o desenvolvimento de habilidades necessárias para a interação com o meio. Quanto mais cedo o pediatra e/ou neurologista encaminhar o paciente para programas de reabilitação cognitiva, maiores serão as oportunidades de a criança e sua família receberem atendimento e orientação especializados, o que propiciará a estimulação adequada de suas capacidades intelectuais.

Muitas lacunas, porém, existem quanto ao treino cognitivo, as quais refletem a inexistência de pesquisas conclusivas quanto às estratégias mais adequadas a certas patologias. Fatores como heterogeneidade de localização das lesões cerebrais, idades de insultos, déficits específicos e dificuldades pré-mórbidas precisam ser consideradas na realização de estudos comparativos entre técnicas e estratégias para investigação da efetividade de programas de reabilitação (Santos, 2004). Esses aspectos fazem da reabilitação neuropsicológica pediátrica um campo de atuação, formação e pesquisa carente de investimentos. Os estudos multicêntricos se apresentam como a metodologia mais adequada para responder a inúmeras questões diante da velocidade com que os avanços nas neurociências estão se dando.

No Brasil, a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação realizou um estudo no qual crianças com TCE foram aleatoriamente distribuídas em dois grupos de intervenção. O primeiro foi tratado diariamente pela equipe hospitalar, e o segundo recebeu atendimento domiciliar por membros da família que foram previamente treinados e monitorados para realizarem exercícios de estimulação motora e cognitiva. A comparação entre a avaliação basal e os escores, após um ano em medidas como a Escala Wechsler de Inteligência, revelaram melhores resultados para crianças cuja família participou ativamente do tratamento (Braga, 2003).

Experiências recentes têm incentivado atividades como jardinagem, música e arte à reabilitação. Também tendem à expansão o uso da teleconferência para que as famílias recebam em casa orientação dos profissionais de reabilitação a qualquer tempo (Tam et al., 2003) e de treinamento vocacional para escolha ou retorno às atividades educacionais e profissionais (Lindstedt, Rosqvist e Svennungsson, 2003).

O futuro da reabilitação neuropsicológica encontra-se relacionado aos estudos de neuroimagem funcional; assim, além dos profissionais já mencionados, também os neurorradiologistas contribuirão para a avaliação dos programas de reabilitação cognitiva implantados. O uso da imagem por ressonância magnética funcional (IRMf), entre outras técnicas, em amostras pediátricas, tem aumentado progressivamente para a localização de funções críticas (Logan, 1999), avaliação de correlatos neurais da plasticidade cerebral (Hertz-Pannier et al., 2000), para estabelecimento da relação entre função e estrutura no decorrer do desenvolvimento cognitivo cerebral (Nelson et al., 2000) e para comparações entre etapas de treinamento cognitivo (Olesen, Westerberg e Klingberg, 2004). A participação do neuropsicólogo é fundamental, tanto na elaboração dos paradigmas cognitivos empregados em neuroimagem funcional quanto na interpretação do valor clínico dos resultados obtidos.

Em resumo, a reabilitação neuropsicológica pediátrica é um campo de atuação recente no Brasil e, portanto, ávido por investimentos em formação, atuação e pesquisa científica. Programas de reabilitação cognitiva objetivam o restauro funcional e o estabelecimento de estratégias compensatórias para funções cognitivas afetadas em relação às demandas do ambiente familiar e escolar da criança portadora de desordens neurológicas. Requerem a colaboração interdisciplinar de profissionais da área de saúde. Apesar das limitações das estratégias compensatórias, o impacto da reabilitação neuropsicológica quanto à adaptação do paciente ao seu meio é evidente. Perspectivas futuras se direcionam para o uso de técnicas de neuroimagem funcional tanto para compreensão dos mecanismos subjacentes aos fenômenos plásticos cerebrais como para avaliação dos programas de reabilitação cognitiva implantados.

Como conclusão, o neuropsicólogo deve contribuir para o desenvolvimento de novas estratégias de reabilitação cognitiva, qualificar-se para o uso das mesmas e partilhar, com a equipe interdisciplinar, as técnicas e experiências efetivas. É de suma importância, porém, que as atividades implementadas pela família, escola, e todos os profissionais envolvidos na reabilitação neuropsicológica respeitem a natureza lúdica da criança, em outras palavras, nesta "cirandinha, vamos todos cirandar"!

 

Referências

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Endereço para correspondência
Avenida Dom Antônio 2100 - Parque Universitário
19806-173, Assis, SP, Brasil
E-mail:flaviahs@assis.unesp.br

Recebido 01/07/04
Reformulado 20/05/05
Aprovado 30/06/05

 

 

* Psicóloga, Especialista em Psicologia da Infância pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Doutora em Ciências (UNIFESP) e pesquisadora do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis.