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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.25 n.3 Brasília set. 2005

 

EXPERIÊNCIA

 

Reflexões sobre a clínica no ambulatório público

 

Reflexions about the attendance at a public clinic

 

 

Silvia Lira Staccioli Castro*

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem o objetivo de relatar a experiência de um psicólogo inserido no ambulatório público e comprometido com o trabalho multidisciplinar. Defendo a idéia de que este não pode ficar engessado numa prática de consultório; deve, portanto, transformá-la de acordo com a demanda da clientela da instituição e a dos demais serviços, sem, entretanto, permitir interferências quanto à ética de seu trabalho. Nessa via de raciocínio, procuro discutir as vantagens e dificuldades de um trabalho psicanalítico em grupo.

Palavras-chave: Psicanálise, Clínica, Grupo, Instituição.


ABSTRACT

The article has the objective of describing the experience of a psychologist who works at a public clinic and is also engaged in multidisciplinary work. I support the idea that he can not stay attached to the office activities and that he should adapt his performance to his institutional client's demand and the other services' demand, preventing any interferences in his ethical practice. Following this line of thought, I present the pros and cons of the psychoanalitical group work.

Keywords: Psychoanalysis, Clinic, Group, Institution.


 

 

Fiz parte do setor de Psicologia do Centro de Fisiatria e Reabilitação (CFR) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que era composto por cinco psicólogos, de outubro de 2002 a setembro de 2004, vindo a coordenar o serviço por um ano, aproximadamente. Apesar de tratar-se de pouco mais de dois anos de trabalho, acredito ter vivido, nesse período, uma experiência a ser registrada.

Inicialmente, gostaria de apresentar o funcionamento do Centro, para fazer, em seguida, algumas observações referentes ao serviço de Psicologia, em especial. O CFR oferece um serviço ambulatorial gratuito para policiais militares, na ativa e aposentados, e seus dependentes, nas seguintes unidades:

• Unidade neurológica - atende pacientes com seqüelas neurológicas decorrentes de doenças encefálicas, medulares e lesões nervosas periféricas;

• Unidade de amputados - atende pacientes que sofreram amputação, normalmente em decorrência de complicações causadas pela diabetes;

• Unidade de traumato-ortopedia - atende pacientes acometidos por problemas traumato-ortopédicos e reumatológicos;

• Unidade cardio-respiratória - atende pacientes submetidos à cirurgia de revascularização do miocárdio;

• Unidade de hidroterapia (piscina) - atende pacientes de diferentes patologias, como, por exemplo, doenças reumáticas, lombalgia, etc.

O ingresso ao serviço de fisiatria e reabilitação se dá através de consulta médica, realizada por fisiatras, que, após avaliarem o paciente, encaminham-no aos diferentes setores e serviços. Essa informação é escrita no prontuário e passada para o serviço social, setor responsável por fazer os encaminhamentos.

A equipe do CFR é multidisciplinar, isto é, formada por funcionários, civis e militares, da área de Medicina, fisioterapia, Psicologia, Odontologia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, massoterapia e enfermagem. As trocas de informação entre os profissionais ocorrem de duas formas: informalmente, no dia-a-dia, à medida que surge a necessidade de comunicação, e formalmente, nas reuniões de equipe, que ocorrem de 3 a 4 vezes ao mês. Em regra, cada caso é levado à reunião de 3 em 3 meses, tempo programado para retorno do paciente ao médico.

A rotina administrativa mensal dos setores consiste na avaliação periódica do paciente, cuja evolução deve ser registrada no prontuário, e na contabilidade da estatística. Entretanto, para o setor de Psicologia, a adequação à padronização referente à exposição do quadro clínico e da evolução do paciente tornou-se problemática, porque, em primeiro lugar, nem a Psicologia nem a psicanálise são ciências exatas, e, em segundo, não primam pela objetividade, buscada pelas demais ciências, em detrimento da subjetividade; por fim, lidam com a realidade psíquica, e não material. Desse modo, ao contrário do que ocorre nos demais setores, para a Psicologia, a ênfase do tratamento não recai sobre a doença, e, sim, sobre o doente. Assim, o cumprimento de determinações gerais no CFR, criadas para se uniformizar os serviços, esbarrava no risco de se quebrar o sigilo, se estigmatizar o paciente ou até de se aumentar suas fantasias sobre o diagnóstico, já que ele poderia vir a ler o prontuário. Lembro-me do caso de uma paciente, atendida por mim durante alguns meses, com forte dor de coluna, que, após diversos exames, através dos quais não foi encontrada nenhuma causa orgânica para o sofrimento físico, teve escrito em seu prontuário no hospital: "simulação?", o que lhe trouxe enorme mal-estar.

Então, surgiram dificuldades no cotidiano desse trabalho, como por exemplo, no momento de redigir o relatório para a reunião de equipe, isso porque o setor de fisiatria instituiu algumas normas para orientarem a confecção do documento: devia-se descrever o estado em que o paciente chegara para o início do atendimento e como se encontrava naquele momento, quais tinham sido os objetivos alcançados e quais ainda eram almejados. Sendo assim, esperava-se do psicólogo que objetivasse o que era de ordem subjetiva. Apesar de não ser possível atender a essa demanda, o setor de Psicologia supôs que pudesse contribuir para a construção de um trabalho multidisciplinar se informasse aos demais profissionais como estava sendo conduzido o caso, isto é, qual era o estado emocional do paciente, se ele se encontrava investido ou não no tratamento, se era assíduo e se estava progredindo, tudo isso sem comprometer o sigilo, que devia ser preservado.

Acredito que o fato de o psicólogo fazer parte de uma equipe de saúde multidisciplinar impele-o a atuar não apenas clinicamente mas também no âmbito das relações interpessoais, pois, de fato, há uma vertente institucional que norteia seu trabalho. Dessa forma, ele pode auxiliar os colegas se, por exemplo, a relação entre um deles e seu paciente passar a prejudicar o tratamento, ou seja, quando algum aspecto da transferência estiver interferindo no andamento do caso. Sabemos que muitos profissionais não estão atentos a essas relações, conforme notara Freud. Segundo ele (1913/1996), a transferência não é exclusiva da análise, pois é própria da neurose; portanto, o rapport também será estabelecido, por exemplo, na relação entre o fisioterapeuta e o usuário do serviço.

Cabe ressaltar que há uma particularidade no lugar dado à transferência pela psicanálise, isso porque ela é estruturada de uma maneira específica; é, pois, utilizada como ferramenta de trabalho, constituindo-se "o modus operandi da psicanálise" (Miller, 1987/2002, p.55). Aliás, Freud (1913/1996, p.154) salienta que qualquer comunicação ao paciente deve ser feita "somente após uma transferência eficaz ter-se estabelecido". Vale reproduzir um comentário de Miller a esse respeito:

"A transferência tem o seu valor porque permite ver o funcionamento de um mecanismo inconsciente na própria atualidade da sessão. Por isso, Freud pode aconselhar, a todo terapeuta que esteja começando, que interprete somente quando a transferência já teve início, pois a emergência da transferência assinala que os processos inconscientes foram ativados" (Miller, 1987/2002, p.62).

Assim, no momento inicial de uma análise, deve-se apenas ouvir o paciente, furtando-se de interpretar; "(...) deixa-se o paciente falar quase todo o tempo e não se explica nada mais do que o absolutamente necessário para fazê-lo prosseguir no que está dizendo" (Freud, 1913/1996, p.140).

Em meu trabalho, percebia que não somente os pacientes depositavam em nós o saber sobre aquilo que os afligia, sobre seu sintoma e sua dor, como também, com freqüência, os próprios profissionais de outras áreas o faziam. Produzia-se, dessa forma, o efeito do sujeito suposto saber que "é, para nós, o pivô no qual se articula tudo o que se relaciona com a transferência" (Lacan apud Miller, 1987/2002, p.56).

Sendo assim, muitas vezes, nossos colegas nos convocavam para resolver situações que diziam respeito à relação entre eles próprios e o doente, embora não fossem reconhecidas como tais. Éramos chamados a "apagar o fogo", isto é, a dirimir a crise emocional instalada. Para exemplificar, trago uma situação em que o setor de Psicologia foi solicitado, por um dos médicos, a atender um paciente porque sua esposa havia ficado revoltada com a alta do marido, levando-a a cobrar da instituição a continuação dos cuidados com a saúde dele. Dessa forma, o fisiatra acreditava que o psicólogo poderia fazê-los compreender que isso não era possível. Ao invés de acolher esse pedido, sugeri que fosse realizada uma reunião da qual participassem os profissionais envolvidos com o assunto e o casal, com o objetivo de conversarem e, juntos, encontrarem uma alternativa para o problema. Havia, portanto, um deslocamento de trabalho, ou seja, a transferência, para o psicólogo, de problemas na relação profissional-paciente. O exemplo citado no parágrafo anterior diz respeito a uma situação que era corriqueira no CFR, pois, não raramente, era solicitada ao psicólogo a realização de um trabalho com um paciente que não aceitara a alta; a fala "gostaria de encaminhar fulano para que a Psicologia trabalhe a alta" compunha um discurso que se tornou institucionalizado.

Ora, em primeiro lugar, devo dizer que era comum haver resistência do usuário do Centro a desligar-se da instituição, seja porque acreditava que poderia melhorar sua condição física seja porque gostava de freqüentar o espaço onde convivia com pessoas que tinham problemas semelhantes aos seus, até porque aqueles que não tinham condições de se deslocarem até lá por meios próprios contavam com transporte gratuito.

Sendo assim, a aceitação, por parte do paciente e de sua família, do término do tratamento devia ser desnaturalizada. Logo, era incumbência do Setor de Psicologia problematizar a expectativa dos profissionais de que o usuário do serviço concordasse em se desligar da instituição, já que o desejo de permanecer em tratamento devia ser até esperado, em certos casos.

Quanto à visão de que a Psicologia tenha uma função ortopédica, isto é, de "amansar" o paciente agressivo ou rebelde, cabe fazer alguns comentários. Desde que entrara para a instituição, recusava-me a aceitar esse tipo de encaminhamento por uma razão óbvia, a citar, a psicanálise não tem uma função normativa, e mais, a clínica supõe um nível de tensão peculiar ao trabalho analítico devido à manifestação da angústia. Além disso, o sujeito em análise pode piorar, aos olhos dos outros, à medida que coloca em voga o seu desejo, que se desaliena do outro. Portanto, acredito que a clínica não se presta a essas intenções.

Contudo, isso não significa dizer que o psicólogo não tenha como contribuir para a elucidação de impasses de natureza institucional. Ele não só pode como deve ajudar a equipe, através da identificação da responsabilidade do profissional em relação ao problema que levanta. Ouvindo-o, será possível localizar sua dificuldade, para então envolvê-lo na queixa, e, a partir desse ponto, o psicólogo poderá levá-lo a encontrar uma saída para a questão que, a princípio, se mostrava insolúvel. Nesse sentido, ele pode tornar-se um colaborador eficaz de uma equipe multidisciplinar, desde que esteja comprometido com o bom andamento do serviço no tocante a essas questões.

O caso trazido neste artigo, do paciente que deseja continuar inserido na instituição, é paradigmático por três razões. A primeira espelha a clientela do serviço; a segunda coloca em evidência a falta de estrutura de que dispõem os portadores de deficiência física para circularem no espaço urbano em nosso país, e, finalmente, a terceira revela a dificuldade do paciente em aceitar as seqüelas físicas.

A alta era um dos temas mais freqüentes que norteavam a discussão em grupo dos profissionais no CFR. Para que fosse bem trabalhada com o paciente, deveria ser abordada desde sua chegada ao Centro. Dessa maneira, prevenir-se-ia o surgimento de insatisfações quando o tratamento fosse encerrado. Apesar de nós, psicólogos, partilharmos essa idéia, com a qual concordavam os médicos, nunca se conseguiu adotá-la como uma rotina, talvez porque, na grande maioria dos casos, fosse impossível prever a duração do tratamento, haja vista que a evolução do quadro clínico dependeria da patologia, da participação do paciente nas atividades recomendadas, do apoio da família, da infra-estrutura de que dispunha em casa e, ainda, de sua resposta fisiológica, entre outros fatores.

Por tudo o que foi exposto até este ponto, concluo ser fundamental que se estabeleçam as regras do jogo antes de ele ser iniciado. Ademais, à medida que o paciente é informado sobre a condução do tratamento, passa a interessar-se pelo resultado e a ser também responsável por ele.

 

Atribuições do serviço de Psicologia

Atendimento individual

Nós, que exercemos a psicanálise no ambulatório público, podemos legitimar uma prática que, apesar de não se conformar com os padrões de um consultório particular, não se invalida por isso.

Figueiredo (1997) já esclareceu que, embora sejam grandes as diferenças nos dois contextos quanto ao setting analítico, à assiduidade e à gratuidade do tratamento, e ainda quanto ao nível sociocultural dos pacientes, é possível fazer psicanálise nas condições que um ambulatório público oferece.

Assim, aproveito o ensejo para expor de que forma lidava com as características do ambulatório no CFR. Em relação à assiduidade: segundo a regra geral da instituição, com 3 faltas consecutivas sem justificativa, o paciente era cortado do tratamento naquele setor, e o mesmo acontecia se houvesse 5 faltas alternadas, ainda que justificadas. Entretanto, o Setor de Psicologia levava em conta a particularidade de cada caso, pois sabia-se da existência de motivações inconscientes para as ausências; desse modo, não se podia ignorar os fenômenos da reação terapêutica negativa (Freud, 1923/1996) e do ganho secundário da doença (id., 1913/1996). De fato, o psicanalista lida com a subjetividade; por isso, um critério objetivo que interfira no tratamento deve ser relativizado. Em relação à freqüência, tinha-se liberdade para atender duas vezes por semana, quando necessário.

Quanto à gratuidade, vejo que produzia eco no andamento dos casos, pois, não raramente, dificultava tanto o investimento do paciente no tratamento como sua implicação na queixa que era trazida. O fato de não pagar pelas sessões levava alguns a estarem ali pelo desejo de um outro: do médico, da assistente social ou da própria família. Às vezes, então, o analisando perguntava ao analista se ainda precisava continuar com o tratamento, e, apesar de o analista se abster de responder a essa pergunta e devolver a pergunta ao paciente, a ele não "custava nada" voltar para mais uma sessão.

Na verdade, o paciente não sabe que está ali para perder, isso porque, no processo analítico, o gozo é decantado, diluído e o ganho secundário da doença é esvaziado. Além disso, Freud ensinou que, sem o pagamento das sessões, "o paciente é privado de um forte motivo para esforçar-se por dar fim ao tratamento" (Freud, 1913/1996, p.148).

Em relação à alta, termo empregado na instituição para nomear o desligamento do paciente, mesmo quando havia desistência (nesse caso, chamava-se alta administrativa), o Setor de Psicologia tinha autonomia para conduzir o caso pelo tempo que julgasse devido. Cabe assinalar que preferia substituir o termo "alta" por "fim de tratamento", expressão familiar à psicanálise. Devo sublinhar que, embora houvesse pressão por parte da equipe médica para que o tratamento não perdurasse por anos, os pacientes ficavam em análise pelo tempo que desejavam. Então, havia alguns pacientes que eram atendidos há anos, embora houvesse outros casos que eram encerrados num tempo mais curto, ou a pedido do analisando ou quando a transferência se havia esvaziado.

Pergunto-me se seria possível a um paciente atendido num ambulatório público chegar ao final de uma análise, uma vez que o tempo para conclusão do tratamento dificilmente seguirá os moldes do consultório. Imaginemos como seria inoperante tratar anos a fio de um paciente que não mais sofre de um adoecimento psíquico, enquanto tantos outros aguardam na fila de espera.

Essa questão, da duração longa de uma análise e de como conciliar a função de analista com a demanda da instituição em extinguir ou fazer andar a fila de espera, tinha um agravante no caso do CFR, pois não se podia convidar o paciente a continuar o tratamento no consultório particular do analista que o atendia. Lembro-me de ter sugerido a alguns pacientes, que haviam chegado ao fim do tratamento, que dessem continuidade à sua análise num consultório particular com outro analista, mas nenhum deles manifestou esse desejo.

Atendimento em grupo

No momento em que uma colega de profissão e eu nos inserimos no CFR, o serviço de Psicologia se destinava exclusivamente aos atendimentos individuais. Todavia, mobilizadas pela demanda dos demais setores para que passássemos a realizar atendimentos em grupo, incrementando nossa participação no trabalho de equipe, deparamo-nos com a perspectiva de desenvolver uma nova prática.

No primeiro momento, hesitei em participar de um trabalho dessa natureza, já que minha formação é lacaniana. Entretanto, cheguei à seguinte conclusão: ser analista é "exercer uma função" (Lacan,1998/1953, p.352), que buscaria operar com meus pacientes no ambulatório público, fosse individualmente ou em grupo, ainda que houvesse diferenças irremediáveis entre os dois trabalhos. Por que não me arriscar a fazer o que nunca havia feito anteriormente, que seria conduzir um grupo terapêutico? No entanto, estava convencida de que, ainda que tivesse a proposta de atender em grupo, não abdicaria do projeto de conduzir um trabalho clínico de vertente psicanalítica. Assim, lancei-me ao desafio de participar dessa nova experiência. Para isso, entretanto, opus-me à idéia de contar com a participação do setor de serviço social no atendimento, conforme me propôs uma das assistentes sociais em virtude de não querer constituir uma atividade com enfoque pedagógico ou instrutivo.

Estava imbuída do propósito de formar um espaço coletivo de intervenção clínica, ainda que estivesse ciente dos limites inerentes a um trabalho dessa natureza. Buscava realizar um atendimento psicanalítico de vertente lacaniana nos moldes de um grupo de recepção1, cuja experiência indica que "o pertencer a um grupo, compartilhar experiências alheias e participar ativamente de um movimento de reflexão coletiva tem-se mostrado um poderoso instrumento de diagnóstico e terapêutico" (Levcovitz, 2000, p.27), porém com as seguintes distinções: não seria um espaço de passagem e não contaria com a coordenação de técnicos de diferentes áreas, mas, sim, de um psicanalista.

O grupo de crônicos, nomeado assim pelos setores de fisiatria e de fisioterapia, foi criado para acolher aqueles que haviam sofrido acidentes neurológicos e, apesar de já terem concluído seu tratamento, ainda queriam dar prosseguimento a ele. Alguns haviam tido mais de um AVC (acidente vascular cerebral) e freqüentado o CFR por vários anos, isso porque, depois de concluído o tratamento, retornavam à consulta médica ainda queixosos de seus sintomas. Assim, pelo motivo de esses usuários do Centro terem demanda de tratamento fisioterápico apesar de portarem seqüelas irremediáveis para as quais a fisioterapia não traria melhoras, nasceu a idéia de formar esse grupo. Dito isso, pode-se compreender porque tanto o setor de fisioterapia como o de serviço social, também envolvido nesse projeto (era responsável pelo contato telefônico para marcação de avaliação na fisioterapia2), defendiam ser fundamental o trabalho da Psicologia. Afinal de contas, existiam outras motivações, de ordem subjetiva, que mobilizavam o paciente a buscar reabilitar-se no CFR, e a esse aspecto deveria ser dada importância.

A intenção do Setor de Psicologia, por sua vez, era de dar oportunidade de fala ao paciente, ou seja, propiciar um espaço de reflexão sobre seu mal-estar. Assim, os pacientes poderiam se ouvir, uns aos outros, e, dessa forma, se engajarem na construção de um projeto terapêutico coletivo.

Os integrantes do grupo compareciam ao Centro uma vez por semana, num horário menos concorrido (sexta-feira à tarde), e não contavam com transporte gratuito (estrategicamente, dessa maneira, estariam ali apenas aqueles que sustentassem o desejo de realizar tal trabalho). Eram atendidos na fisioterapia durante 50 minutos, onde praticavam atividades lúdicas, como jogos de bola e passos de dança. Também recebiam orientação para praticarem exercícios em casa, com a finalidade de torná-los mais independentes.

Em seguida, eram reunidos no Setor de Psicologia, no qual tínhamos um encontro de cerca de 45 minutos, tempo que poderia ser estendido ou encurtado; afinal, o tempo para a psicanálise é lógico, e não cronológico. Esse grupo terapêutico era aberto; assim, recebia novos integrantes de vez em quando. Antes de ingressarem, passavam por uma entrevista realizada por mim, a fim de que fosse certificada sua elegibilidade para o atendimento (não era possível receber pacientes com grandes transtornos neurológicos, como, por exemplo, afásicos de expressão ou com forte confusão mental ou desorientação). Os que, durante essa conversa, demostravam ter uma demanda para atendimento individual eram encaminhados para esse tratamento, concomitantemente ao atendimento em grupo.

Tive a proposta inicial de ouvir as queixas para então transformá-las em demandas, ou seja, em desejo de saber sobre seus sintomas e sua implicação em relação a eles. No primeiro momento, conduzi-os a falarem sobre o que lhes havia ocorrido, sobre as seqüelas físicas com as quais conviviam diariamente e os sintomas dos quais se queixavam, e mais, provoquei a discussão sobre as expectativas que tinham desse trabalho, tanto no Setor de Psicologia como no de fisioterapia.

Nos dois primeiros encontros, notei a dificuldade de se comunicarem; uns não prestavam atenção nos outros, estavam dispersos e pareciam desinteressados. Então, dispus de alguns recursos, como a literatura infantil e dinâmicas de grupo adaptadas à situação específica, com o propósito de introduzir temas para a nossa discussão, tais como memória, envelhecimento, morte, etc.

Depois de algum tempo, percebi que já estavam utilizando o espaço para falarem de si sem auxílio de estímulo; então deixei os recursos de lado. Qual não foi minha surpresa ouvi-los dizer que a mudança havia sido para melhor, já que, dessa forma, dispunham de mais liberdade para falarem.

Após seis meses de trabalho, já era possível notar efeitos terapêuticos, como a diminuição de ansiedade. Eles estavam, de modo geral, mais articulados, desinibidos e participativos. Contavam sobre seus problemas pessoais e relatavam suas histórias de vida, revivendo momentos marcantes e inesquecíveis. Sobre a condição de saúde, alguns não se conformavam com as limitações físicas e, nesse sentido, ainda acreditavam que, com a fisioterapia, superariam as dificuldades. Além disso, mostravam-se dependentes daquele espaço de reabilitação.

Na direção de esvaziar a relação simbiótica mantida com a instituição e que, por conseguinte, poderia ser estabelecida com a analista, e, como não poderia deixar de ser, já que defendi, aqui, a idéia de se trabalhar com o paciente a noção de término do tratamento, introduzi a questão de haver um tempo finito para nossos encontros. Alguns, com uma transferência mais intensa comigo e com os colegas, se viram assustados e amedrontados; outros compreenderam de imediato, e ainda alguns sequer entenderam o que eu havia dito, pois, naquele momento, não "podiam ouvir" o que lhes dissera.

Para dimensionar o progresso do trabalho em grupo, descrevo uma bela produção psíquica do mesmo, que foi sua renomeação como "grupo da esperança". Nesse dia, mostraram-se insatisfeitos com o estigma de "crônicos" que carregavam no nome. Puderam expressar-se como sujeitos desejantes de alcançarem melhores condições de vida, seja no âmbito físico, seja no psicológico. Curioso foi o ato falho de um paciente, que, ao invés de dizer "grupo da esperança", falou "grupo da felicidade". Sua fala reproduziu, em ato, o que todos do grupo já haviam comunicado, a dizer, a satisfação pela oportunidade de desfrutarem de um espaço de cuidado físico e psicológico. Esse feedback foi muito importante para os dois setores, de fisioterapia e Psicologia, pois indicou que a criação dessas atividades fora acertada. Não se deve esquecer que, em grupo, "cada membro (...) pode atuar como agente terapêutico e, por outro lado, sofrer a ação das opiniões, sugestões ou a solidariedade dos demais" (Levcovitz, 2000, p.28), o que foi experimentado na nossa prática.

Posteriormente, o Setor de Terapia Ocupacional foi convidado a participar desse projeto e então passou a dividir o tempo e espaço com as atividades desenvolvidas pelo Setor de Fisioterapia.

Inclusive, depois de alguns meses, levei gravações de um programa semanal sobre portador de deficiência física produzido por uma emissora de TV pública, apresentado por uma tetraplégica, a fim de que comentassem sobre o que veriam, suas impressões sobre outras estórias, algumas até semelhantes àquelas vividas por eles. Foi muito interessante o resultado, pois, de fato, as cenas assistidas mexeram com as emoções deles, e puderam falar de si através do outro.

De fato, devo marcar o aparecimento de um grande impasse na condução desse trabalho. Posso indagar-me sobre o fato de me referir a um atendimento psicanalítico tendo, em alguns momentos, estimulado a fala através de temáticas específicas e até feito uso de alguns materiais sobre os quais refletiriam a respeito. Entretanto, acredito que a psicanálise em extensão engendra uma situação que é peculiar e distinta da psicanálise em intenção. É preciso dizer que eu estava ali com meu desejo de analista, levando-os a se interrogarem sobre suas vidas; assim, convocava-os a pensarem sobre o adoecimento psíquico a partir do adoecimento físico.

O Setor de Psicologia ainda criou um outro grupo terapêutico, para a família dos usuários do serviço. Foram abertas inscrições na recepção, e a divulgação foi feita através de cartazes e no "boca-a-boca".

A idéia de compor o grupo de familiares surgiu da noção de que a família poderia estar adoecendo psiquicamente junto com o paciente. Eram pessoas, trazidas no transporte coletivo da instituição, que acompanhavam seus parentes por horas seguidas no Centro e viviam, junto a eles, uma rotina estressante, não só pelos cuidados que deviam dispensar a eles como também por sofrerem transtornos gerados por suas seqüelas físicas e psicológicas. Para se ter uma idéia da dimensão desse problema, havia alguns, em cadeira de rodas, em cuja casa não podiam deslocar-se devido à falta de espaço; dessa maneira, mantinham-se dependentes na locomoção. Sendo assim, os pacientes e seus familiares conviviam com dificuldades que impediam e limitavam a independência, e, aqui, não me refiro a obstáculos de ordem imaginária, mas, sim, real.

O grupo atendido por mim era formado por quatro mulheres: duas filhas, uma mãe e uma esposa de pacientes usuários do serviço de reabilitação. Havia, entre elas, uma adolescente de 18 anos. Não achei que a diferença de idade fosse um fator impeditivo, já que não era isso que importava e, sim, o fato de que ela ocupava o lugar de cuidadora. Isso aconteceu porque o paciente em reabilitação no CFR, seu pai, desenvolveu uma paranóia e passou a ter alucinações em que sua mulher mantinha relações sexuais com outros homens. Desde então, ficou muito agressivo e impediu que sua mulher o acompanhasse, só confiando na filha mais nova, a quem sempre fora mais apegado.

Inicialmente, três das quatro participantes já endereçavam à analista uma demanda, a quem transferiam o desejo de saber sobre sua dor. No entanto, não houve tempo para um maior progresso clínico. Esse grupo se dissolveu num curto período de poucos meses, pois o ônibus que as trazia quebrou e, quando foi consertado, já era tarde. Não foi mais possível a elas sustentarem o desejo de se reunirem novamente.

 

Considerações finais

Hoje, dou-me conta do quanto foi importante para o crescimento profissional vivenciar uma nova experiência de atuação, que é a da psicanálise em extensão, isto é, aplicada ao trabalho em grupo.

Não fui a primeira pessoa a se questionar sobre um trabalho psicanalítico dessa ordem3. Inegavelmente, há um certo desconforto naquele que sustenta o desejo de analista no atendimento clínico em grupo, mas recorro a estas palavras como um alicerce para apoiar-me: "Quando nos colocamos a escutar aquele que nos procura, convocamos o sujeito a falar daquilo que não pode ser dito" (Maron, 2000, p.53); dessa forma, o analisando "experimenta a sua falta a ser, a impossibilidade de tudo dizer e encontrar respostas além das palavras" (ibid., p.53). Ademais, no grupo, cada sujeito é ouvido em sua particularidade e é chamado a falar em nome próprio. Na medida em que o analista leva o sujeito a produzir um saber sobre seu sintoma e sobre sua própria existência, pode levá-lo a sair do estado de impotência em que se encontra e torná-lo sujeito ativo de seu bem-estar.

Ainda que defenda a pertinência da prática da psicanálise em um espaço coletivo, acredito que haja algumas dificuldades e impasses em sua aplicação, de acordo com o que relatei aqui, mas estou certa de que não devemos fugir do desafio; cabe a nós problematizar uma função que foi teorizada tendo como contexto o consultório particular.

Neste artigo, procurei mostrar as vicissitudes de atuação de um psicólogo preocupado em participar ativamente do trabalho de natureza multidisciplinar. O olhar clínico e a experiência de manejo da transferência puderam ajudar-me a identificar problemas no âmbito interpessoal, entre os colegas de serviço e entre estes e o paciente. Dessa forma, aprendi que, desde que o psicólogo experimente a alteridade, ou em outras palavras, que lance um olhar estrangeiro para as práticas estabelecidas, seja as de saúde ou as de caráter social, estará atento à naturalização daquelas que são danosas por comprometerem a eficiência e a qualidade do serviço. Talvez possa até questioná-las, inclusive através da proposição de práticas alternativas, tornando-se, desse modo, um colaborador-chave para o desenvolvimento e crescimento da equipe.

Além disso, o fato de estar inserido numa instituição leva o psicólogo a lidar com aspectos normativos. Sendo assim, para realizar um bom trabalho, sobretudo ético, terá de desvencilhar-se de entraves institucionais que venham a prejudicar sua atuação profissional. Algumas vezes, será, inclusive, necessário opor-se a alguns deles e justificar sua posição, conforme esbocei neste artigo.

Para finalizar, gostaria de registrar as vantagens trazidas para a instituição pela incrementação dos serviços do Setor de Psicologia, pois este ampliou a atuação do psicólogo em relação à equipe e trouxe benefícios à própria clientela: um maior número de pacientes passou a ser atendido em menor tempo; inclusive aqueles que não seriam encaminhados ao atendimento individual puderam beneficiar-se de um espaço clínico coletivo. Assim, finalizo esta exposição com a certeza de que temos de nos arriscar a enfrentar o desconhecido gerado pela inserção num contexto institucional complexo e específico. Sei que o que é novo causa estranheza assim como motiva defesas; dessa maneira, a tendência é buscar conservar o que é familiar diante dele. Contudo, dessa forma, perde-se a oportunidade de transformação. Assim, escrevo essas palavras com o intuito de encorajá-los a abrir novos caminhos e criar novas possibilidades.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Av. Armando Lombardi, 633, c.05, Barra da Tijuca
22640-020, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail:silviaflira@yahoo.com.br

Recebido 05/01/04
Reformulado 13/05/05
Aprovado 30/09/05

 

 

* Psicóloga da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Psicologia Clínica (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).
1 Vide Cadernos IPUB, IPUB/UFRJ, v. VI, n.17, 2000.
2 Quanto ao Setor de Psicologia, os contatos eram feitos por mim.
3 Vide Carrera & Ferreira, 2000.