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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.25 no.4 Brasília Dec. 2005

 

EXPERIÊNCIAS

 

"A psicologia no Provita: trajetórias da subjetividade e cidadania"

 

"The psychology underlying Provita: routes of subjectivity and citizenship"

 

 

Cássia Maria Rosato*

Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo versa sobre o lugar da Psicologia no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas - PROVITA - numa perspectiva de território e espacialidade. Esse tema possui um caráter altamente dinâmico e cotidianamente atravessado por outras questões. Nesse sentido, torna-se também premente uma Psicologia atenta aos temas centrais que atualmente estão postos, como a cultura da violência e os rebatimentos dessas práticas na subjetividade contemporânea. Este artigo busca, ainda, trazer a heterogeneidade dos processos que atravessam o cotidiano do Programa com o objetivo de demonstrar a necessidade de uma Psicologia transversal e que estabeleça interlocução junto a outras áreas do conhecimento. Nos dias de hoje, uma prática profissional isolada não dá conta de responder questões acerca da complexa subjetividade humana, sendo imprescindível a participação de outros olhares na compreensão do ser humano.

Palavras-chave: Testemunho, Trabalho em equipe, Subjetividade e violência.


ABSTRACT

The article reports the Psychology performance underlying the Protection of Victims and Threatened Witnesses Program - PROVITA- in the context of territory and space. This issue comprises a highly dynamic process and is commonly immersed within other questions. Therefore a careful Psychology attendance is required according to the central themes such as the culture of violence and the reverberations of this practice in the contemporary subjectivity. This article also brings up the heterogeneity of the questions routinely found in the Program what demonstrates the necessity of transversal Psychology strategies interacting with other areas of knowledge. Currently an isolated professional support does not give answers the complex human subjectivity, what makes absolutely necessary the contribution of other points of view for the human being comprehension.

Keywords: Testimony, Team work, Subjectivity, Violence.


 

 

A criação e o funcionamento do PROVITA - Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas

A partir de um contexto de impunidade e altos índices de criminalidade, o GAJOP _ Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares - uma ONG de direitos humanos, fundada em 1981, que se situa em Recife (PE), implementou um projeto piloto de proteção a testemunhas e vítimas ameaçadas em 1996. A referida entidade, que, no início, tinha como foco de atuação a questão do solo urbano, dirigiu suas ações e projetos institucionais para o direito à justiça e segurança.

Para criar o projeto de proteção a testemunhas, o GAJOP buscou informações e programas de outros países, já que não havia, à época, nenhuma experiência brasileira similar que pudesse embasar essa iniciativa pioneira no País. Num primeiro momento, a Inglaterra, os Estados Unidos, a Holanda e a Itália foram os países contatados que disponibilizaram dados a respeito de seus programas. Chama a atenção o fato de os programas internacionais de proteção, em sua totalidade, serem executados por órgãos policiais, e, dentre estes, somente o programa inglês contar com a participação da sociedade civil organizada.

A partir dessas experiências internacionais, foi elaborado um projeto misto, em Pernambuco, que conta com a participação de órgãos governamentais e não governamentais. Ainda que se tenha a certeza e a compreensão de que segurança é uma responsabilidade do Estado, sabe-se que, no contexto brasileiro, a conjuntura política ainda não permite que órgãos estatais protejam testemunhas, já que um dos maiores violadores de direitos humanos é o próprio Estado, através de seus agentes. Desse modo, a proposta almejava mostrar ao Estado que proteger testemunhas é possível.

O objetivo primeiro do Programa de Proteção é o combate à impunidade e à diminuição dos índices de criminalidade, através da quebra da lei do silêncio, esta entendida como a situação em que testemunhas, por estarem em situações de risco ou grave ameaça, não têm coragem de denunciar graves violações aos direitos humanos. Protegidas pelo Programa, essas pessoas podem exercer seu direito de testemunhar sem ameaças ou riscos à sua integridade física ou psicológica, colaborando com a justiça. Em síntese, o PROVITA caracteriza-se, hoje, como uma política pública que coloca a serviço da população brasileira o acesso à justiça através de proteção e segurança para aqueles que dela necessitam, com o objetivo mais amplo de transformação social da violência.

Inicialmente, o trabalho de proteção a testemunhas consiste em uma equipe interdisciplinar (advogado, assistente social e psicólogo) que atende os casos encaminhados por diversos atores sociais (autoridades judiciárias, Ministério Público, órgãos públicos e privados de direitos humanos ou o próprio interessado). Essa equipe realiza uma triagem, que consiste em um procedimento de coleta de informações acerca do histórico de vida da testemunha ou vítima e seus familiares. Tais dados vão subsidiar o parecer da equipe que, após discussão do caso, irá opinar pelo ingresso ou não dos interessados no Programa de Proteção.

O órgão responsável pelas deliberações referentes aos casos do Programa de Proteção é o Conselho Deliberativo do referido Estado, sendo essa instância soberana em suas decisões. Portanto, a equipe tem o papel de observar os requisitos necessários para o ingresso e instruir o Conselho de forma fundamentada para que este delibere, de acordo com os seguintes critérios contidos na Lei Federal nº 9.807/991:

• Situação de risco (art. 1º, caput);

• Colaboração (art. 1º, caput);

• Personalidade ou conduta compatíveis (art. 2º, § 2º);

• Inexistência de limitações à liberdade (art. 2º, § 2º);

• Anuência do interessado (art. 2º, § 3º).

Isso significa dizer que os potenciais usuários do Programa serão pessoas que se encontram em situação de risco ou ameaça, decorrente de colaboração em investigações ou processos criminais em que figurem como testemunhas ou vítimas. Além disso, que sejam pessoas com personalidade ou conduta compatível com as restrições de comportamento exigidas pelo Programa, que estejam no gozo de sua liberdade e que desejem voluntariamente ingressar no PROVITA.

Durante a triagem, essas restrições são trabalhadas junto aos potenciais usuários do Programa de Proteção pela equipe interdisciplinar; cabe colocar que, em síntese, se tratam de normas de segurança que o usuário terá que seguir para garantir sua proteção frente à situação de risco ou ameaças ora vivenciadas. Referem-se, essencialmente, às comunicações, aos deslocamentos, além da manutenção do sigilo a respeito das questões do Programa e pontos da história de vida que tenham relação com a situação de risco.

Em caso de decisão favorável do Conselho Deliberativo pelo ingresso no Programa, a equipe passa a ser a referência para o grupo familiar no que tange todo o acompanhamento psicossocial e jurídico. Considerando que seria extremamente difícil uma equipe acompanhar diversas pessoas, o Programa conta com a colaboração fundamental de uma rede solidária especialmente articulada para apoiar o trabalho desenvolvido pelo PROVITA. Essa rede é constituída por pessoas físicas e jurídicas que conhecem o Programa e compartilham do objetivo de promoção e defesa dos direitos humanos. Trata-se, em última análise, do principal diferencial do modelo brasileiro em relação às experiências internacionais de proteção a testemunhas.

No Programa, coloca-se em prática o projeto de acompanhamento aos usuários no que se refere à (re)inserção social e retomada de atividades que os vinculem àquele novo local. A meta primeira em relação às famílias se refere a ter uma vida o mais próximo possível de uma vida comum, trabalhando constantemente junto a esses usuários a idéia de que, seguindo as orientações e regras do Programa, será possível reconstruir uma vida sem ameaças.

 

Atualizações sobre o PROVITA: notas sobre a proteção aos usuários

Essa experiência pioneira ganhou visibilidade e apoio por parte de órgãos governamentais, principalmente em função do êxito apresentado. Em 1998, os Estados da Bahia e Espírito Santo adotaram a experiência pernambucana de proteção a testemunhas. A partir disso, o processo de divulgação e expansão do PROVITA ganhou fôlego, culminando na efetivação do Programa de Proteção como política pública. Esse momento significou uma conquista histórica da sociedade civil organizada na formulação de políticas públicas, quando, em 13 de julho de 1999, foi promulgada a Lei Federal nº 9.807, que regulamenta os Programas de Proteção a Testemunhas Ameaçadas2.

Atualmente, quando se pensa em cidadania e assistência, no Programa de Proteção, fala-se de uma estratégia para assistir os usuários de acordo com o princípio de autonomia, ou seja, o acompanhamento às famílias significa colaborar para que o processo de emancipação se instale e os usuários possam ter direitos e deveres garantidos, ou, pelo menos, no cenário brasileiro, que esses cidadãos possam ter o conhecimento desses direitos e deveres para buscar o acesso e as estratégias de luta para alcançá-los. Segundo Demo (2000, p.26),

A assistência não é incompatível com a emancipação, mas a trai facilmente, porque pode introduzir o componente (...) de subserviência, trocando a autonomia pelo benefício. Esta é a dialética do benefício: é melhor para o beneficiente, porque dele não precisa; pode ser péssimo para o beneficiário, porque dele passa a depender. E este é o drama da assistência: fabrica beneficiários, ou, pelo menos, confirma a situação de beneficiário. Na dialética contrária e complexa entre assistência e emancipação, esta começa a surgir quando se consegue dispensar a ajuda. Assim, ninguém se emancipa sem ajuda, mas emancipar-se é especificamente saber dispensar ajuda.

As discussões que permeiam qual concepção de assistência desenvolvida no Programa podem ser, em parte, traduzidas pela nomenclatura utilizada para nomear as testemunhas, vítimas e familiares. Inicialmente, o termo técnico para se referir ao público atendido pelo Programa era beneficiário, sendo esse termo constante na Lei Federal que regulamenta o PROVITA. No entanto, os avanços conquistados e o processo de amadurecimento do trabalho permitiram a mudança de paradigma; aos poucos, pode-se constatar que o termo beneficiário tem sido substituído por usuário nas várias práticas discursivas que atravessam o Programa, representando um entendimento de que, cada vez mais, a testemunha e os familiares que buscam a proteção não são os beneficiários tradicionais, de acordo com Demo (2000), e sim, sujeitos sociais, usuários de diversos serviços através das políticas públicas.

Constata-se também que esse trabalho adquiriu visibilidade, seja pela conjuntura nacional de falta ou ineficácia de políticas efetivas de combate à violência, seja pela efetividade da proteção, sendo importante frisar que aumentaram os desafios para o Programa no que se refere ao público atendido.

Primeiramente, é necessário trazer a afirmação de Soares (2002) acerca das práticas ilícitas: "Não existe o crime, no singular. Há uma diversidade imensa de práticas criminosas, associadas a dinâmicas sociais muito diferentes. Por isso, não faz sentido imaginar que seria possível identificar apenas uma causa para o universo heterogêneo da criminalidade (destaque do autor)".3

Essa realidade coloca-se também para o Programa de Proteção, não sendo possível padronizações a respeito dos crimes denunciados em função da própria diversidade de manifestações da violência; entretanto, existem alguns consensos. Os crimes, na atualidade, dificilmente são cometidos individualmente; observa-se a atuação das diversas quadrilhas, seja no contrabando de cargas, no tráfico de drogas e armas, no crime organizado que envolve esferas públicas estatais, seja nos agentes do Estado envolvidos em grupos de extermínio.

Esses crimes apontam a necessidade de testemunhas altamente qualificadas e capazes de apresentar provas contundentes que desbaratem essas quadrilhas. Para tanto, constata-se que a grande maioria de pessoas que potencialmente podem ocupar esse lugar são aqueles que fazem ou fizeram parte desses grupos. Isso aponta a solicitação cada vez mais freqüente de testemunhas com envolvimento criminoso.

Afora esse público, surgem também os adolescentes desacompanhados, muitas vezes com vivência de rua, desvinculados de laços de parentesco, geralmente pertencentes a gangues. São vítimas ou sobreviventes das ações bárbaras dos grupos criminosos acima citados que, expostos à situação de rua, tornam-se alvos ou presas fáceis. Esse último grupo de testemunhas costuma ter, associado, o uso ou abuso de drogas, e, muitas vezes, trazem agravantes no que se refere ao cumprimento de normas.

Obviamente, trata-se, aqui, de ilustrar a complexidade dos casos que se têm apresentado ao Programa, não significando, no quesito quantitativo, que seja esse o público mais atendido pelo PROVITA.

 

A Psicologia no PROVITA

Preliminarmente, faz-se necessário afirmar que o lugar da Psicologia no PROVITA tem como diretriz a concepção contemporânea de direitos humanos a partir dos pressupostos de universalidade e indivisibilidade desses direitos. Além disso, o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas possui, como um de seus principais eixos metodológicos, a interdisciplinaridade4. Nessa linha, a concepção contemporânea de direitos e a interdisciplinaridade caracterizam-se como suas principais diretrizes ético-políticas.

No que tange à metodologia de trabalho, cabem as considerações feitas por Benevides (1998, p. 47) a respeito das diferenças entre multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar:

Como aproximação inicial, diríamos que a perspectiva multidisciplinar mantém fixo o objeto de análise, variando os olhares dos especialistas que sobre ele emitem seus pareceres. No caso da interdisciplinaridade, observamos uma tentativa, às vezes bem sucedida, de construção de um outro objeto, implicando, todavia, uma outra disciplina, um outro especialismo. A lógica mantém-se - a cada novo objeto, uma nova disciplina, um novo especialismo. A proposta transdisciplinar insere-se, justamente, numa outra lógica; admite-se, nesse caso, uma desestabilização do objeto e o que se busca não é sua estabilização numa outra disciplina, mas acompanhá-lo em seus múltiplos desenhos, que impõem a criação de outros territórios provisórios e transversalizados. É o lidar com sistemas em constante transformação que norteia a proposta transdisciplinar. São os especialistas que são deslocados de seus já estabelecidos lugares de saber/poder em prol de um movimento em que cada um é convocado em sua capacidade de risco e invenção.

O que inicialmente se apresentava no PROVITA como multidisciplinar, tendo em vista que os conhecimentos específicos - Direito, Psicologia e serviço social - eram somente agregados sem uma interlocução propositiva, atualmente se coloca numa perspectiva menos estática e mais dinâmica, ou seja, existe a troca de saberes e o início da superação de sobreposições ou hierarquia de campos teóricos. Nesse aspecto, as fronteiras do conhecimento já não estão tão demarcadas e encontram-se menos rígidas; isso sinaliza minimamente para uma interação entre os conhecimentos, apontando para o estatuto de interdisciplinaridade.

Vale ressaltar que tímidas ações têm tomado corpo em determinadas intervenções e se apresentado com características transdisciplinares, na medida em que o objeto de análise se encontra em constante transformação, não sendo criada nenhuma outra disciplina ou especialismo para apreendê-lo e, sim, somente uma mudança de posição. Por esse ponto de vista, a desestabilização do conhecimento basicamente faria parte do processo de trabalho no PROVITA; todavia, frente aos inúmeros desafios de efetivamente se conseguir não só uma diretriz transdisciplinar, mas principalmente uma práxis que assuma esse caráter, a interdisciplinaridade se mantém ainda como principal metodologia do Programa.

 

A violência como conseqüência

Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos básicos. E, sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.
Sigmund Freud5

Não há como se furtar da imensa complexidade do processo de proteção de vidas humanas, através da garantia de integridade física e psicológica das pessoas que buscam o Programa. Desse modo, um dos principais elementos - senão o principal - com os quais as equipes se deparam no trabalho cotidiano do PROVITA refere-se ao contato direto com as inúmeras manifestações da violência.

São casos que representam o ponto a que chegou a violência social/urbana/rural e também em que parâmetros a sociedade se organiza na contemporaneidade, ou seja, qual a qualidade e a relevância das interações sociais em seus diversos aspectos. Nota-se que uma das leituras possíveis da violência contemporânea expressa justamente a despreocupação e a não importância com o outro, sejam pessoas, sejam instituições. A dimensão da alteridade como aquele outro provocador de mudanças e reflexões a partir do diferente, a partir da distinção e do não-eu, torna-se secundário.

O alvo por excelência das ações humanas, seja enquanto investimento, seja enquanto preocupação, acaba residindo no bem-estar individual. Esse cenário de irrelevância do outro e valorização do intimismo, no sentido de um mundo privado em que as relações familiares e adjacentes ocupam um espaço significativamente maior, colabora para o enfraquecimento dos espaços públicos. Desse modo, a violência vem também preencher parte desse vazio coletivo, inclusive como resposta à falta de ações que mudem o que está posto.

Considerando a definição de sintoma social, para Zizek (2003, p. 38), teríamos a violência como um "mecanismo de defesa que cobre o vazio da incapacidade de intervir eficazmente na crise social". Frente à ineficácia do projeto político que ora se apresenta, aliado à não consecução do que se quer ou do que se precisa, as saídas têm sido cada vez mais individuais, privadas, imediatistas e violentas.

Desse complexo campo subjetivo, pinçaremos a temática da violência enquanto elemento cotidiano no trabalho do PROVITA para um maior aprofundamento. Comumente, quando se fala ou se pensa em violência, nos dias atuais, coloca-se a agressividade como seu sinônimo ou como manifestação similar, ou ainda, que o comportamento violento decorreria da agressividade instintual. Contudo, ainda que essa associação violência-agressividade possua um sentido aparentemente lógico, tal vinculação incorre numa fundamentação simplista e reducionista, sendo interessante trazer a diferenciação apresentada por Costa (1986, p. 30) entre violência e agressividade:

O motivo é evidente: esse tipo de ação (a violência) destrutiva é irracional, mas porta a marca de um desejo. Violência é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos. Esse desejo pode ser voluntário, deliberado, racional e consciente, ou pode ser inconsciente, involuntário e irracional. A existência desses predicados não altera a qualidade especificamente humana da violência, pois o animal não deseja, o animal necessita. E é porque o animal não deseja que seu objeto é fixo, biologicamente predeterminado, assim como o é a presa para a fera (destaque do autor).

Nessa lógica, pode-se constatar, portanto, que a violência contemporânea não decorre somente da agressividade humana, tendo em vista que esse impulso sempre fez parte da constituição da subjetividade, do uso desejado da violência para alcançar determinados fins.

O segundo lugar-comum associado à violência refere-se ao ato violento como necessariamente irracional; dessa forma, a violência, a irracionalidade e o descontrole emocional estariam profundamente ligados, definindo o sujeito que comete um ato violento com estereótipos diversos: impulsivo, agressivo, descontrolado, etc. Contudo, não se pode afirmar que todos os atos violentos, necessariamente, sejam destituídos de razão, ainda mais nos comportamentos premeditados; nesses casos, inclusive, pode-se afirmar que houve um planejamento anterior que culminou no ato violento em si. Significa, em última análise, destacar que o sujeito utilizou recursos racionais para cometer o ato violento premeditado.

Mesmo para os comportamentos violentos que não são premeditados, o sujeito também utiliza sua consciência ou mecanismos racionais no momento da ação, não estando, portanto, agindo de forma absolutamente irracional, salvo os casos mais graves em que o sujeito, no momento do ato, pode estar destituído de sua consciência. De acordo com Costa (1986, pp. 28-29):

A violência nem sempre é irracional, e, mesmo nos casos em que a irracionalidade dá origem à violência, não se pode dizer que essa irracionalidade seja instintivamente animal. (...) A irracionalidade do comportamento violento deve-se ao fato de que a razão desconhece os móveis verdadeiros de suas intenções e finalidades. A violência é irracional quando e porque se dirige a objetos substitutivos, na acepção psicanalítica do termo. (...) Seria esse o sentido preciso da violência como sinônimo de irracional, sentido que nada tem a ver com obscurecimento ou desestruturação da consciência, no ato de violência (destaque do autor).

A partir dessa conceituação, a irracionalidade do ato violento residiria no desconhecimento do sujeito acerca de a que ou a quem esse impulso agressivo realmente se dirige, para além do seu substituto, não reduzindo o comportamento violento a um ato de não-consciência ou a um momento em que o sujeito se encontra fora-de-si.

Nessa lógica, a violência não se resumiria ao uso da agressividade meramente, pois entende-se que não existe violência humana sem desejo, diferentemente dos animais que agem em função de uma necessidade. A segunda questão diz respeito à não associação de todo ato violento à irracionalidade, ou seja, as manifestações violentas não decorrem exclusivamente de uma propriedade do instinto agressivo.

Ambas as afirmações - que vão de encontro ao que está posto em termos de senso comum no que tange à violência contemporânea - podem contribuir para um melhor entendimento desses processos. Associar violência ao instinto agressivo e torná-la sempre irracional é também construir uma compreensão naturalizada de algo fixo e imutável; é preciso buscar fundamentações que ultrapassem o conhecimento que prioriza, de forma hegemônica, o biológico e o organicista. Banalizar a violência, colocando-a num patamar de medo e paralisação pela suposta falta de respostas, é também perpetuá-la. Há que se procurar saídas outras, já que as propostas atuais não têm tido êxito.

Nesse sentido, cabe colocar que o cotidiano do PROVITA apresenta um vasto campo de investigação da violência nos seus diversos desdobramentos, desde as inúmeras manifestações violentas, ou seja, as estratégias adotadas pelos grupos criminosos para alcançar seus objetivos, o modo de funcionamento desses grupos, as regras internas e as conseqüências para aqueles que não a cumprem, até o impacto da violência na subjetividade humana, ou seja, quais saídas o sujeito encontra para dar conta de seu sofrimento, quais as repercussões subjetivas que permitem a superação da condição de vítima, quais os mecanismos possíveis para lidar com os episódios de violência sem incorrer numa paralisação gerada pelo medo e pelas ameaças.

Todas essas questões perpassam cotidianamente a Psicologia no PROVITA, colocando-se como constante desafio para os profissionais o enfrentamento de tais pontos sem cair nas armadilhas do senso comum e da banalização da violência, ou seja, como acompanhar aquela testemunha sem torná-la vítima da própria situação, como torná-la protagonista de sua história com as regras de segurança exigidas pelo Programa, como trabalhar a cidadania num contexto em que os usuários geralmente desconhecem seus direitos e deveres, e, principalmente, suas violações.

Afora essas questões, também está atualmente posta a associação direta entre violência e poder, como se o emprego de atos violentos agregasse poder àquele que os comete. Obviamente, um sujeito que se encontra sob a mira de uma arma de fogo necessariamente está em uma situação diferenciada, e, muito provavelmente, irá assumir uma posição de submissão frente à ameaça, caso queira sobreviver. Porém, isso não significa que, fora dessa situação de intimidação, o sujeito atribua poder àquele que outrora o ameaçou.

Para Arendt (1994, p. 38), a violência seria decorrência de uma situação em que o poder se encontra em risco:

Visto que, nas relações internacionais tanto quanto nos assuntos domésticos, a violência aparece como o último recurso para conservar intacta a estrutura do poder contra contestadores individuais - o inimigo externo, o criminoso nativo - de fato é como se a violência fosse o pré-requisito do poder, e o poder, nada mais do que uma fachada, a luva de pelica que ou esconde a mão de ferro ou mostrará ser um tigre de papel.

Nesse sentido, o exemplo do sujeito que utilizou arma de fogo para adquirir materialmente o que não possui vem como estratégia última de exercer um poder que não possui. Existe uma resposta imediata que atende ou não àquilo que o sujeito busca no ato violento, ou seja, ainda que seus objetivos possam não ser alcançados, houve uma tentativa; no entanto, não se pode conferir poder a esse sujeito a partir do uso da violência. Arendt (1994, p. 44) continua sua análise, dizendo que:

Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder. Isso implica ser incorreto, pensar o oposto da violência como a não-violência; falar de um poder não-violento é, de fato, redundante. A violência pode destruir o poder; ela é absolutamente incapaz de criá-lo.

Trazendo essa relação violência-poder para o nosso contexto atual, temos como primordial a compreensão de que esses dois elementos, muitas vezes, podem estar associados nos casos acompanhados pelo Programa, porém, faz-se necessário o devido cuidado para que não sejam confundidos.

Cabe colocar que, em última análise, acompanhar e proteger vidas sinaliza também a questão do poder das equipes, que se traduz pelo binômio onipotência-impotência, sendo necessária uma constante atenção para não cair nessa dicotomia. No caso do envolvimento criminoso, observa-se uma impotência em como lidar com esse usuário, enquanto, em outras situações, incorre-se no pólo oposto da onipotência de tudo realizar pela testemunha, colocando-a num processo de vitimização. Para superar essa dicotomia, torna-se fundamental a leitura dos diversos vetores presentes no Programa, a partir dos processos e não somente dos sujeitos. Conseguir estabelecer essa análise permite uma apreensão dos processos objetivos e subjetivos que constituem aquela pessoa ou situação, escapando dos estigmas e cristalizações que geralmente surgem das análises rasas ou de causa-efeito.

 

As classes perigosas

Em 1997, um automóvel de placa oficial trafegava em velocidade normal por uma avenida de São Paulo. No carro, que era novo e caro, iam três homens. Num cruzamento, um policial mandou o carro parar.

Fez com que os três homens desembarcassem e os manteve durante uma hora de mãos para cima, e de costas, enquanto os interrogava insistentemente, querendo saber onde tinham furtado o veículo. Os três homens eram negros. Um deles, Edivaldo Brito, era o Secretário de Justiça do governo de São Paulo. Os outros dois eram funcionários da Secretaria. Para Brito, aquilo não era novidade. Em menos de um ano, já lhe acontecera cinco vezes a mesma coisa. O policial também era negro. Eduardo Galeano6

Numa perspectiva sociohistórica, a partir da constatação de que a exclusão social no Brasil tem cara e tem cor, cabe afirmar que a maior parte do público atendido pelo Programa se origina das classes mais desfavorecidas: possuem, em média, ensino fundamental incompleto, intitulam-se negros ou pardos e, na conjuntura atual, diversos usuários tiveram envolvimento criminoso.

Torna-se, portanto, de suma importância refletir acerca do público atendido, atualmente, pelo PROVITA, a partir de uma retrospectiva do processo histórico brasileiro, principalmente no que tange à constituição dos espaços urbanos e os critérios utilizados ou priorizados na urbanização das principais metrópoles brasileiras.

Segundo Coimbra (2001), o conceito de classes perigosas surgiu na primeira metade do século XIX enquanto referência ao segmento populacional que se encontrava fora do mercado de trabalho. Nessa condição de não-trabalho, situação construída e reforçada pelo capitalismo, considerando que, na medida em que o acúmulo de capital produz - além do lucro - a própria miséria, essas pessoas, por não desenvolverem nenhuma atividade trabalhista, passaram a ser associadas à vagabundagem e mendicância.

Aliado a essas condições, o processo de urbanização no Sudeste brasileiro avançou sensivelmente nos séculos XIX e XX, dando à pobreza e à miséria não só um componente socioeconômico mas também espacial, ou seja, a exclusão não só tem cara e cor, mas também lugar. Nessa lógica, a associação pobreza - violência/criminalidade está colocada como algo natural e dado, quando, na realidade, trata-se de construções que estão servindo a determinados segmentos.

Essa associação equivocada considera a urbanização brasileira nas grandes metrópoles, situação em que essa parcela da população foi espacialmente excluída das zonas nobres, ao mesmo tempo em que o movimento higienista trouxe concepções médicas eugênicas acerca de enfermidades justificadas pela origem racial. O processo de exclusão espacial/social, com o movimento higienista, cria, então, esse conceito de classes perigosas em que vai incidir a noção de periculosidade e que será foco de ação das medidas repressivas.

Ainda para Coimbra (2001, p. 105):

Está, pois, estabelecida/cristalizada a relação entre vadiagem/ociosidade/indolência e pobreza e entre pobreza e periculosidade/violência/criminalidade. Mesmo autores mais críticos têm caído, ao longo dos anos, nessa armadilha de, mecânica e ingenuamente, vincular pobreza e violência por meio de estudos baseados nas condições estruturais da divisão das sociedades em classes sociais e no antagonismo e violência resultantes dessa divisão. Tais estudos têm produzido vigilância e repressão contra os pobres, tão defendidas pelas elites em muitos momentos da nossa história.

É preciso, desse modo, manter a atenção redobrada justamente para não cair nesse tipo de engodo que costuma ser veiculado como algo natural e dado. Em determinados casos, a longa trajetória em atos ilícitos leva as equipes a considerar que, muitas vezes, os usuários esbarram na conduta incompatível pela quebra de normas. Faz-se necessária a adequação do Programa a essa realidade apresentada, até porque, no mundo do crime, existe um sistema de valores muitas vezes desconhecido para as equipes, o que exige, portanto, maior exercício de reflexão e análise do ponto de vista transdisciplinar, já que se trata de algo que tecnicamente inexiste nas áreas específicas, sendo necessária a construção desse conhecimento.

Em função disso, o que se vê atualmente é a força do estigma de periculosidade que incide naquele sujeito que cometeu ilícitos, ou seja, o indivíduo que praticou atos criminosos necessariamente ganha a característica de um perigo social e a penalidade aplicada, cada vez mais, tem menos efeitos no que tange ao seu caráter preventivo ou ressocializador. Segundo Foucault (2003, pp. 84-85):

A penalidade no século XIX, de maneira cada vez mais insistente, tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos (...) Toda penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas em nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer.

Nessa lógica, o que está em jogo no ato ilícito cometido pelo indivíduo é a busca de controle do que esses sujeitos podem realizar, ou seja, através de mecanismos de vigilância, cria-se a ilusão de é possível saber ou supor atos futuros dos sujeitos. Em decorrência de crimes cometidos anteriormente, necessariamente vai incidir no indivíduo seu potencial de periculosidade, tendo em vista a possibilidade de tais atos se repetirem, e, ampliando esse leque para o restante da população e não somente para os perigosos sociais, outras instituições são criadas também com o objetivo de controle social. Ainda de acordo com Foucault (2003, p. 86):

A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade em nível de suas virtualidades e não em nível de seus atos; não em nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam. (...) É assim que, no século XIX, desenvolve-se em torno da instituição judiciária, e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos em nível de sua periculosidade, uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência; instituições pedagógicas como a escola, psicológicas ou psiquiátricas como o hospital, o asilo, a polícia, etc. Toda essa rede de um poder que não é judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui nesse momento: função não de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades.

Entra-se na ortopedia social e na sociedade disciplinar baseando-se no controle dos sujeitos. A estratégia, por excelência, passa a ser o exame e a vigilância das pessoas. As diversas instituições (escola, hospital, fábrica, etc) não tinham por finalidade excluir os sujeitos, mas fixá-los. Ainda que se possa ter como efeito a exclusão das pessoas, o objetivo primeiro dessas instituições é ligar os sujeitos a um determinado aparelho, seja de transmissão do saber, seja de produção, seja de correção ou ajuste. Enfim, tinha-se como finalidade garantir que os sujeitos estivessem atrelados a algum aparelho "normatizador". Nessa lógica, colocando os sujeitos nessas instituições, indiretamente controla-se o tempo das pessoas e também seus corpos. Nesses locais, também atuam mecanismos de punição e recompensa para além de seus objetivos explícitos de produção, correção ou aprendizagem a que Foucault chama de micropoder.

Desse dispositivo de controle e vigilância, deriva um tipo de saber decorrente da observação dos indivíduos: um saber, de certa forma, clínico, do tipo da psiquiatria, da Psicologia, da psicosociologia, da criminologia, etc. No contexto do Programa, as análises feitas por Foucault são extremamente frutíferas por permitir leituras correlatas dos dispositivos de controle, de vigilância e dos aparelhos "normatizadores" presentes no nosso cotidiano.

 

A proteção aos usuários: o lugar da vítima

Nesse contexto, o profissional da Psicologia é, então, convidado a integrar um trabalho em direitos humanos para contribuir com seu saber específico sobre a subjetividade humana na temática da violência. Ainda que pesem os ditos "especialismos" nas atividades interdisciplinares, o psicólogo adentra o Programa de Proteção para acompanhar, com os demais membros da equipe técnica, os usuários protegidos.

Considerando as diversas fases pelos quais os interessados em ingressar no Programa passam, o primeiro desafio para a Psicologia diz respeito às triagens dos casos em que o profissional elabora pareceres técnicos referentes à personalidade ou conduta dos usuários, conforme aponta a Lei Federal nº 9.807/99 em seu art. 2º § 2º: Estão excluídos da proteção os indivíduos cuja personalidade ou conduta seja incompatível com as restrições de comportamento exigidas pelo programa.

Cabe ao psicólogo elaborar um estudo acerca do funcionamento psíquico daquele possível usuário e opinar pelo seu ingresso no Programa, caso tenha identificado que o indivíduo possui condições de compreender e cumprir as regras exigidas pelo PROVITA, ou pelo não ingresso, caso entenda tratar-se de uma pessoa que não tem personalidade ou conduta compatível com as restrições do Programa.

Vale ressaltar que o saber psicológico, em outras épocas históricas, já se propôs a trabalhar na perspectiva do determinismo e da previsão de comportamentos humanos; no entanto, é preciso ter em mente que - na contemporaneidade - o trabalho de avaliação psicológica funciona muito mais como instrumento direcionador de uma intervenção e enquanto hipótese diagnóstica do que no sentido de afirmar efetivamente uma conduta compatível ou não, ou seja, existem indícios indicadores que apontam um funcionamento psíquico, porém, há que se considerar as diversas variáveis presentes que constituem o comportamento da pessoa entrevistada além da própria dinamicidade da subjetividade humana.

Com o ingresso da testemunha e familiares na rede de proteção, a equipe realiza o acompanhamento do grupo em diversas esferas, desde a identificação do novo local de moradia, a aquisição de mobília, a alimentação, até o mapeamento de equipamentos sociais e infra-estrutura na comunidade que permitam a (re)inserção da família com segurança.

Trata-se de um trabalho complexo, na medida em que cada família tem sua dinâmica de funcionamento e, diante da intensa situação de risco, lida de formas diversas com o perigo e o medo. Tais situações, muitas vezes, não são identificadas/reveladas no processo de triagem, e cabe ao psicólogo apontar indicativos desse funcionamento assim como construir uma proposta de intervenção para o grupo durante a permanência no Programa.

Dessa forma, o psicólogo fica responsável por prestar apoio psicológico aos usuários nas ocasiões necessárias, colaborando também em audiências ou depoimentos em juízo, entendendo que a natureza dessas atividades não se resume somente à questão jurídica. Segundo Mira Y Lopez (1955, p. 171):

O testemunho de uma pessoa sobre um acontecimento qualquer depende essencialmente de cinco fatores: a) do modo como percebeu esse acontecimento; b) do modo como sua memória o conservou; c) do modo como é capaz de evocá-lo; d) do modo como quer expressá-lo; e) do modo como pode expressá-lo (grifo do autor).

Com essa afirmativa, fica evidente a relevância da subjetividade em todo o processo, ou seja, no plano mais objetivo, os elementos notados ou não pela testemunha no acontecimento, a capacidade cognitiva da pessoa de registrar esses fatos, e, de acordo com sua história, seu repertório, sua condição socioeconômica-cultural, como é possível para a testemunha expressar o acontecimento em questão, aliado ao que ela, de fato, deseja manifestar.

No plano subjetivo, qual foi a leitura da testemunha acerca do episódio e o modo como isso vem à sua lembrança consciente, sem esquecer a complexidade do funcionamento psíquico, em que entram em cena mecanismos de defesa como o recalque e a censura, que podem atuar no sentido contrário à lembrança dos fatos. Há que se ter a noção e a compreensão que, muitas vezes, esses mecanismos são inconscientes, ou seja, não basta desejar lembrar conscientemente, existem outros fatores que impedem essa lembrança.

Para tanto, torna-se de fundamental importância a escuta diferenciada do psicólogo e a intervenção junto ao usuário para que - na medida do possível - fatores de ordem emocional não modifiquem o conteúdo do depoimento ou trabalhem para desencadear insegurança por parte da testemunha em afirmar o que sabe, contribuindo para a desqualificação das declarações a serem dadas.

Afora esse trabalho mais específico, o psicólogo fica responsável por encaminhar os casos necessários para atendimento específico (psicoterapia, ambulatório, consulta psiquiátrica, etc). Esses exemplos atestam que o lugar da Psicologia no PROVITA não é a clínica em seu sentido standard, ou seja, o profissional não tem o papel nem a atribuição de ser o psicólogo da testemunha ou vítima; terá, sim, uma intervenção junto à equipe a respeito dos casos na medida em que trabalha com a escuta diferenciada. No entanto, sua intervenção é focada no acompanhamento dos casos, o lidar com as regras e o seu cumprimento ou não, a adaptação dos usuários, o impacto da violência, as saídas possíveis para o enfrentamento das dificuldades, etc.

Coloca-se como ponto central para a Psicologia a questão da saúde mental dos sujeitos que ingressam na proteção. Não se trata, aqui, de uma proposta para garantir a saúde mental dos usuários através da prevenção e, sim, de pensar na saúde mental no contexto possível do PROVITA, colaborando para que o sujeito consiga enfrentar a nova realidade de vida no Programa de acordo com os limites e restrições que estão postos.

Significa afirmar que, necessariamente, os usuários, quando ingressam na proteção, passam por alguma crise; aqui, crise não está colocada em sua acepção pejorativa e, sim, no sentido de mudança de referenciais. De algum modo, o ingresso no Programa sugere uma reformulação no conjunto de referências anteriormente estabelecidas pelo sujeito; entrar no PROVITA significa que os laços sociais da testemunha terão que ser rompidos e o modo de enfrentamento dessa situação diverge de acordo com cada usuário.

Observa-se que, muitas vezes, existe o reconhecimento da necessidade, ou seja, o sujeito tem consciência de que o Programa é sua única opção de garantia de vida, porém somente a compreensão racional não é suficiente para enfrentar a situação. Para esses casos, muitas formas de conflito podem surgir junto aos usuários, desde a "vitimização", a agressividade, a negação, enfim, sem incorrer nos mecanismos de defesa existentes para lidar com aquilo que nos desestabiliza e nos amedronta, cabe à Psicologia colaborar para que essa crise signifique uma passagem possível e não uma constante.

Nesse sentido, um dos principais desafios para o psicólogo reside no impacto subjetivo que o Programa geralmente desperta na testemunha e nas estratégias para que o ingresso e a permanência na proteção não repercuta de forma prejudicial nos usuários. Cabe ressaltar que, nesse aspecto, não há garantias, ou seja, trabalhar com vidas humanas significa sempre contar com a imprevisibilidade e a capacidade de invenção; entretanto, frente a essa condição, existem estratégias e técnicas psicológicas que permitem o lidar com determinadas situações que envolvem a subjetividade humana.

Para efeitos didáticos, consideraremos 03 (três) posições subjetivas que ilustram a trajetória dos usuários no Programa. Inicialmente, pode-se afirmar que o usuário encaminhado ao PROVITA, ainda que testemunha de algo, geralmente chega no lugar de vítima. Tal constatação baseia-se, principalmente, pela condição de vulnerabilidade que apresenta o usuário nos primeiros contatos com a equipe; nesse momento, predomina a desestabilização de seus referenciais e a emergência de uma crise, decorrente da situação de risco vivenciada.

Considerando as peculiaridades do Programa e o fato de a política pública de proteção constituir-se medida última para garantir a integridade física e psicológica das pessoas ameaçadas, não é qualquer caso de violência que ingressa no PROVITA. Em função do próprio impacto que significa estar sob proteção, as rupturas com o local de origem e as restrições comportamentais, entende-se que somente os casos que não podem ser protegidos pelos meios convencionais da segurança pública são indicados para o Programa.

Nessas circunstâncias, fica evidente o grau de vulnerabilidade e impotência do usuário perante sua própria vida, tendo em vista que se torna imperioso o abandono - nem sempre voluntário - de seus referenciais para ingressar em algo que, por mais que seja colocado pela equipe, significa algo absolutamente desconhecido: não sabe para onde vai, não sabe como sua vida será gerenciada, enfim, o usuário sabe muito pouco a respeito de seu futuro. Tal condição de instabilidade pode ser aterrorizadora se não houver o devido suporte. Nesse momento, torna-se imprescindível que a equipe não confirme a posição de vítima do usuário; ainda que ele se encontre numa situação bastante difícil, não se pode incorrer nas armadilhas da onipotência de tudo fazer pelo usuário.

Em termos de acompanhamento, significa a necessidade de superação da condição de vítima, pelo menos em seu aspecto psicológico, ou seja, aquela pessoa que se coloca numa posição passiva diante da realidade e da sua própria história. No âmbito do Programa, não se trata de criar mais uma categoria nem uma especialidade que atenda as vítimas da violência, e, sim, trabalhar na perspectiva de uma posição subjetiva, mais especificamente, a condição de vítima em seu sentido paralisante e inerte, apagando sua condição de sujeito. Mais grave se torna a questão quando as equipes realizam a manutenção dessa condição de vítima, estabelecendo uma relação de dependência e zelo excessivo. O usuário torna-se um dependente do Programa, acaba por não colaborar com a sua (re)inserção social e passa somente a receber os benefícios e cobrar por aquilo que perdeu. Trata-se de uma das maiores armadilhas dentro do Programa.

 

A experiência da clandestinidade

Me llaman el desaparecido que cuando llega ya se ido volando vengo volando voy deprisa deprisa a rumbo perdido cuando me buscan nunca estoy cuando me encuentran yo no soy.
Manu Chao7

A título de comparação, a experiência mais semelhante de que se tem conhecimento que pode servir de referência para o Programa de Proteção refere-se à clandestinidade vivida por diversas pessoas na ditadura militar brasileira. A similaridade dessas experiências reside, essencialmente, em relação à condição subjetiva de o sujeito abrir mão de seus referenciais, abandonar o local de moradia ou de origem e assumir uma outra identidade. Essa vivência do clandestino político possui semelhanças com a testemunha sob proteção no que se refere às mudanças e à repercussão gerada no sujeito. Sobre esse aspecto, afirma Arantes (1993, p. 176):

O clandestino lida, o tempo todo com a contradição entre desejar fazer e não poder, desejar ir e não poder ir. O que, em última instância, o contém é a certeza do perigo de ser descoberto pela polícia política e militar (aqui, leia-se no contexto do Programa, os acusados, que curiosamente, em muitos casos, significa também a própria polícia) e o que o mantém clandestino é a reiterada tentativa de aceitar a escolha que fez (grifo meu).

No entanto, a diferença brutal entre o clandestino político e a testemunha protegida no Programa diz respeito à questão da escolha e das motivações: o que, nos chamados anos de chumbo, significava um determinado grupo político que coletivamente fazia uma escolha para combater um regime autoritário, no PROVITA, o ingresso na clandestinidade se apresenta não como escolha, mas geralmente como última opção para o sujeito, e ainda, em seu aspecto individual, muito distante de qualquer causa política.

Embora, em ambos os casos, o grande violador dos direitos humanos, mais uma vez, seja o próprio Estado, no Programa de Proteção, pode-se dizer que a questão política é quase sempre ausente enquanto motivação pessoal, sendo o usuário um sujeito alvo da exclusão social que desconhece seus direitos e deveres e ainda desacredita na própria justiça. Nessa lógica, pode-se afirmar que a conotação de clandestino funciona como referência para o Programa de Proteção somente no que tange às experiências subjetivas porque, em seu caráter objetivo, o usuário do PROVITA não se encontra na condição de um clandestino político e, sim, de um anônimo, ou seja, simbolicamente, sua condição é a do anonimato, é a daquele sujeito desconhecido num meio que também lhe é desconhecido.

Continua Arantes (1993, p. 176):

O clandestino não está submetido a espaços materiais inacessíveis. Ele não está preso. Ele não está fora do País. Ele poderia bater à porta de sua família, abraçar seus pais, carregar no colo os novos membros da casa, mas ele não pode porque escolheu, porque decidiu, porque assinou a passagem à clandestinidade e sobretudo porque, se o fizesse, estaria arriscando-se a ser preso, a ser morto, a ser localizado pela polícia, vulnerando sua Organização.

Numa perspectiva análoga, se o clandestino vive a contradição entre supostamente ter a liberdade de ir e vir, ao mesmo tempo em que sabe da impossibilidade e do risco de tais empreitadas, o mesmo se aplicaria ao usuário no Programa. Por mais que, objetivamente, não tenha existido essa condição de opção para a testemunha, de investimento em uma causa ou uma luta coletiva, cabe a possibilidade de escolhas dentro no Programa, já que fora dele não foi possível. Não se trata, aqui, de uma estratégia de reparação nem de permissividade no sentido de aceitar incondicionalmente escolhas e pedidos do usuário no PROVITA, e, sim, de possibilitar uma construção com ele - no curso da proteção e dentro dos limites impostos pelo Programa - com o objetivo de assumir uma nova condição de vida.

Somente com a participação efetiva do usuário, se torna possível o processo de implicação, de envolvimento; se, à testemunha, não é permitido minimamente colaborar no processo decisório que abarca sua própria vida, dificilmente haverá alguma assunção da responsabilidade. Isso significa trabalhar a cidadania e a autonomia, contribuindo para que o usuário saia de sua condição passiva de vítima, pois, caso contrário, se a equipe não permite a mínima participação do usuário, fatalmente, a testemunha assumirá a condição de beneficiário, sujeito de benesses que _ no Programa _ tem a reparação por aquilo que supostamente perdeu e entende que deve ser ressarcido.

O foco da equipe deve ser justamente na potencialidade dos sujeitos que ingressam no Programa para desenvolver novos laços sociais e não em suas faltas; por mais adversidade que os usuários tenham enfrentado, é possível o resgate da dimensão subjetiva do sujeito nessa proposta. No caso do Programa, significa a necessidade de a equipe desenvolver, junto aos usuários, o sentido dessa escolha, por mais ausente que pareça ser, ou seja, se o ingresso não pôde ser uma opção dentre outras e, sim, quase sempre a última chance do sujeito, na proteção efetiva do PROVITA, escolhas são possíveis.

 

A transição para o lugar de testemunha e cidadão

Ainda que, inicialmente, exista a condição de vulnerabilidade e exclusão social por parte do usuário, no decorrer da proteção e do acompanhamento proporcionado pelas equipes, é possível construir rumos que vão direcionar uma vida diferente para a testemunha e, nessa lógica, com investimentos que podem alcançar o estatuto de cidadania.

Portanto, o acompanhamento jurídico e psicossocial tem também como diretriz o trabalho junto aos usuários de resgate/assunção da cidadania, na perspectiva do acesso à justiça com segurança e o combate à impunidade. Na prática, significa trabalhar com a testemunha a importância de seu depoimento pela mudança de uma cultura de violência e injustiça. Porém, infelizmente, o que se observa, no mundo jurídico, é justamente o efeito contrário junto ao usuário protegido, principalmente, em função da morosidade do Judiciário, que confirma os entraves burocráticos que se sobrepõem ao andamento processual.

Essa situação revela o despreparo do sistema de justiça e segurança para enfrentar a problemática questão da impunidade e da criminalidade em consonância com os casos denunciados pelas testemunhas do PROVITA. Por parte dos usuários, aquilo que foi o objetivo primeiro de seu ingresso no Programa - a situação de risco associada à questão jurídica - muitas vezes acaba redundando em algo secundário, enquanto a assistência se torna o foco das ações das equipes. Frente a esse deslocamento da questão jurídica para a questão assistencial no curso da proteção, confirma-se, a partir dos usuários, a descrença na possibilidade de mudança de uma cultura de impunidade, tornando-se ainda maior o desafio de trabalhar a cidadania para as equipes.

A esfera macropolítica que aponta a falência do sistema de justiça e segurança - seja para punir os grupos criminosos, seja para proteger os cidadãos - traz para os usuários uma corroboração do que acreditavam inicialmente e também um misto de arrependimento e barganha. A testemunha, muitas vezes, ao reconhecer-se objeto utilitário da justiça, reproduz a mesma lógica com o Programa, ou seja, tenta subtrair o máximo de benefícios como uma estratégia compensatória frente ao que está atualmente posto em termos de Estado de exceção.

Esse complexo cenário brasileiro traz rebatimentos cotidianos no acompanhamento dos usuários, que exigem uma atenção redobrada por parte das equipes; para tanto, torna-se fundamental a conciliação de um trabalho que considere essa conjuntura política sem incorrer num processo de desmobilização e, ao mesmo tempo, não cair em mera individualização dos casos sob proteção.

Vale acrescentar que, na questão psicossocial, o entendimento de (re)inserção não deve ficar reduzido ao mercado de trabalho, estudos e cursos profissionalizantes para os usuários. Almejar a meta de (re)inserir os usuários nesses moldes traz, em seu bojo, uma lógica mecânica e assistencialista de enquadre e ortopedia social. Como exemplo ilustrativo, não cabe exigir que um adolescente desacompanhado que - anteriormente ao ingresso no Programa - pertencia a uma gangue de rua encare os estudos como uma oportunidade imperdível. Por razões outras, até pode ocorrer que haja algum interesse, porém, esperar esse interesse significa, necessariamente, uma intervenção fadada ao insucesso.

Obviamente, pensar uma (re)inserção significa considerar o trabalho e o estudo, porém, há que se incluir a dimensão subjetiva desses aspectos porque, caso contrário, a mera aplicação do tripé trabalho, estudo e curso profissionalizante, de forma padronizada e vertical, pode resultar em não-adesão por parte do usuário. Sendo um projeto ou um interesse exclusivo da equipe e não do usuário, dificilmente haverá identificação por parte da testemunha nesse processo, gerando frustração para os técnicos que se empenharam nessa busca. Sendo assim, do ponto de vista da (re)inserção social, torna-se de absoluta relevância considerar a posição subjetiva do usuário na proposta de acompanhamento enquanto implicação mínima do sujeito na gestão de sua vida.

Nesse sentido, cabe muito mais à equipe operar enquanto facilitadora dos processos a partir da singularidade dos casos e usuários do que aplicar um rol de propostas padronizadas. Ignorar a dimensão subjetiva do usuário e considerá-lo objeto de intervenções corretivas de acordo com o manual de procedimentos do Programa concorre com a analogia de "você finge que não vê e eu finjo que não faço". Nesse aspecto, torna-se fundamental que a equipe assuma o lugar da co-responsabilização e não do controle, tendo em vista que só é possível pensar nas restrições e regras impostas pelo PROVITA na perspectiva do cuidado e da segurança, e jamais da punição.

Trabalhar no prisma da penalidade e da repreensão significa, muitas vezes, massacrar a subjetividade dos usuários e também da própria equipe, que - na lógica do controle - acha que conhece o cotidiano da testemunha, ou pior, mantém intervenções policialescas na eterna busca desse controle que, verdadeiramente, não passa de uma falácia. Se o usuário efetivamente quiser cometer algum ato sem o conhecimento da equipe, não será com mecanismos pseudo-policiais que esta o impedirá ou terá acesso a essa quebra das normas de segurança.

Nesse sentido, muito mais eficácia e eficiência tem a ação do trabalho no PROVITA se a equipe mantiver uma relação, com o usuário, que funcione no esteio da clareza e da transparência, ou seja, estabelecer junto aos usuários até onde o Programa pode e deve ir, assim como a atuação técnica da equipe, e também quais os objetivos dessa intervenção e as conseqüências possíveis para aquilo que escapa à seara do Programa.

Trabalhar esses pontos com o usuário colabora para maior probabilidade de implicação e, em conseqüência, de responsabilização por seus atos. Havendo esse cenário mínimo por parte dos usuários, não só da compreensão das regras de segurança mas também, efetivamente, da introjeção da necessidade dessas restrições, ou seja, captando o porquê desses limites e acordando com as conseqüências que o seu não cumprimento acarretam, a chance de avanços no acompanhamento torna-se significativamente maior.

Porém, trabalhar com vidas humanas não é fácil, ainda mais em situações de risco e intensa vulnerabilidade como as experiências de violência que chegam ao Programa. Significa afirmar que, justamente pela condição em que se encontram, muitas vezes os usuários optam pela trajetória de não assunção de suas responsabilidades, já que a equipe está encarregada de diversas ações que dizem respeito à suas vidas.

Nessa linha, fácil também para os usuários é depositar na equipe a inteira responsabilidade pela gestão de suas vidas; aqui, o termo fácil não significa a inexistência de um custo. Evidentemente, sempre há um custo e, para esses casos, a equipe assume o risco de incidir justamente na armadilha da onipotência e da superproteção, já trabalhada anteriormente.

Para tanto, torna-se fundamental a constante capacidade de crítica e autocrítica da equipe para identificar as processualidades dos casos, ou seja, existe o tempo de cada integrante e de cada etapa que nem sempre (ou quase nunca) corresponde ao esperado. Faz-se necessário que a equipe crie condições para saber a hora de avaliar, de retomar, de parar, operando efetivamente como facilitador de processos ao invés de um mero instrumento aplicador de procedimentos e técnicas. Resgatar essa dimensão subjetiva não constitui algo simples, tendo em vista que significa trabalhar com a diferença e com a alteridade numa perspectiva em que não existe manual ou regra.

 

Considerações finais

Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. Ítalo Calvino8

Considerando as diversas facetas do Programa, tendo em vista que essa política pública, necessariamente, se articula com as demais políticas sociais e com o respectivo aparelho de justiça e segurança do Estado, pode-se afirmar que os elementos morte e poder se fazem presentes no cotidiano do Programa.

A respeito da morte, observa-se que a situação de violência e risco vivenciada pelo usuário o aproxima de forma bastante relevante do binômio vida/morte, ou seja, estar em situação de iminente risco aponta a possibilidade de ter que enfrentar sua própria finalização. Em alguns casos, costuma-se utilizar também a nomenclatura de stress pós-traumático como conseqüência clínica do ponto de vista da subjetividade frente à violência vivenciada.

De qualquer modo, é preciso considerar a capacidade mobilizadora que o episódio de violência pode desencadear não só junto ao usuário mas também junto à equipe que, indiretamente, passa a correr riscos, nesse caso, de forma deliberada, a partir do momento em que assume esse trabalho de proteção a testemunhas. No caso da equipe, torna-se imprescindível um amadurecimento pessoal e profissional para lidar com imprevistos, sobre muitos dos quais não se tem controle, sem cair nos extremos de subestimar ou superestimar o risco adjacente às situações vivenciadas no Programa.

Concomitantemente, a questão do poder se faz presente nas diversas instâncias do Programa, seja na esfera micropolítica que envolve usuário e equipe, seja entre os membros da equipe, seja dos técnicos na sua relação com a entidade gestora, assim como também na esfera macropolítica dos órgãos governamentais e do aparelho de justiça e segurança.

Na esfera micropolítica, constata-se que, mais do que lidar com as questões de poder, e principalmente com aqueles que têm/detém o poder, os usuários e as equipes também esbarram na armadilha da impotência. De um lado, o usuário que se encontra num lugar de bastante fragilidade, na medida em que, para garantir sua integridade física e psicológica, tem que se submeter às orientações técnicas com as quais, muitas vezes, não concorda, e que, ao mesmo tempo, não pode fazer nada concretamente para sanar sua situação de risco a não ser ingressar no Programa, testemunhar e aguardar que o resultado seja a condenação daqueles que acusa; por outro, a constante busca das equipes por estratégias e alternativas para modificar uma cultura jurídica morosa que se isenta de suas atribuições, ainda têm que se deparar com inúmeras dificuldades de (re)inserção dos usuários, desarticulação das demais políticas sociais, burocracia excessiva e inoperância da máquina estatal, dentre outras questões. Em relação às entidades gestoras, nota-se, em sua grande maioria, a sobrecarga de atividades, a escassez de recursos humanos para dar conta de suas ações, as dificuldades de financiamento, além do chamado estranhamento institucional acerca das peculiaridades da gestão e execução da política pública de proteção a vítimas e testemunhas.

Nesse sucinto cenário em que diversas cartografias são traçadas, fica o desafio de se trabalhar sob pressão e com situações que exigem uma alta capacidade de análise aliada à rapidez necessária do caso. Portanto, num primeiro plano, é preciso que as equipes - por estarem no acompanhamento direto dos usuários - superem a dicotomia do Programa enquanto agente que cuida e protege vidas e, ao mesmo tempo, funciona como instância de vigilância e controle. Sobre esse aspecto, vale trazer a afirmação de Barros (2003):

É porque concebemos que o homem pode agir fora da lei, da norma, guiado por suas paixões, sonhos e delírios, é que ele se torna responsável por sua ação, deve responder pelo que de si, da sua condição de sujeito, permitiu o desvio da norma. Isso não configura a condição de periculosidade e sim as condições da civilização.9

Considerando que a criação de leis tem _ em seu sentido simbólico - a regulamentação e a normatização daquilo que necessariamente escapa às normas sociais, pode-se afirmar que a lei incide onde o ser humano desvia e rompe com o pacto social. De forma mais enfática, significa dizer que, no processo civilizatório, a proibição - seja através das leis ou outras normativas - foi instituída onde existia desejo10, ou, ainda, naquilo que o sujeito não deseja, não se faz necessário uma lei que o proíba.

Tecendo um paralelo com o Programa, e, mais precisamente, com as restrições e normas de segurança, é quase esperado que o usuário quebre algumas normas, porém, imprescindível é a leitura qualificada desse ato. Se a equipe identificar o processo que incorreu na quebra de normas, não restringindo a análise apenas ao fato em si mas a todo o jogo de forças presentes no contexto do Programa, o estabelecimento de um diálogo efetivo e desencadeador de mudanças pode ser mais possível.

De um ponto de vista mais amplo, analisando a forma como se dá a constituição da subjetividade contemporânea, há que se considerar a assertiva de Coimbra acerca de como a individualização traz a rebote a culpabilidade para o sujeito desconectada do contexto sociohistórico:

Portanto, os `cidadãos' hoje, em nosso país, são muito poucos: poucos são os que se reconhecem enquanto cidadãos, poucos são os que são tratados como tal, poucos os que, na prática concreta, têm seus direitos garantidos e respeitados. Um dos efeitos dessa falta de cidadania é a `culpabilização da vítima', ou seja, além da forma como são produzidos os `bandidos', os `marginais', os `criminosos' de todos os tipos, eles ainda são construídos para se responsabilizar por sua miséria, marginalidade e criminalidade. No capitalismo, uma das mais competentes produções prende-se à individualização das responsabilidades - atribuindo à natureza humana, à história de vida ou ao seu meio ambiente certos tons ou defeitos. O indivíduo passa a ser medida de todas as coisas e o único responsável por suas vitórias ou fracassos (2001, p. 64).

É de fundamental importância que tal contexto seja levado em conta para não incidir em maquiagens equivocadas e colocar os usuários nesse lugar de culpabilidade individualizada sob a alegação de argumentos superficiais. Há que se levar em conta não só o contexto em que essa quebra de norma se deu, mas também qual o lugar da equipe e do próprio Programa com suas limitações nesse ato, porque, no não-cumprimento de normas, algo está sendo dito, não através de palavras e, sim, através da própria quebra. Nessa lógica, torna-se imprescindível considerar a dimensão subjetiva durante todo o acompanhamento, inclusive para compreender e situar a quebra de normas quando esta ocorrer; caso contrário, construir-se-á somente a perspectiva individual e cristalizada do sujeito.

Para tanto, há que se considerar a análise de Guattari e Rolnik (1999, p. 33):

A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização (destaque do autor).

No Programa, cabe à equipe conseguir criar o seu próprio processo de singularização para lidar com essa dinâmica complexa e mutante e não operar somente na reprodução estanque de procedimentos e rituais burocratizados. Só atingindo esse patamar, a equipe conseguirá funcionar junto ao usuário como facilitador de um processo de re-direcionamento de vidas e também despertar esse processo de singularização junto ao usuário, saindo da esfera de um mero grupo executor de tarefas. Trazendo essa condução a partir de um plano teórico, segundo Rauter, teríamos duas diretrizes balizadoras de uma intervenção, numa perspectiva ético-política e não somente neutro-tecnicista.

• Investigação de agenciamentos (para Guattari e Deleuze, é uma montagem produtora de inovações que constituem acontecimentos. Cada um é uma espécie de processador-agenciador, ao invés de indivíduos independentes das produções sociais) que constituem modos desejantes, através de diversos campos de subjetivação, isto é, como as formas de perceber, pensar, intuir, viver e agir no mundo são construídas social e historicamente e, portanto, passíveis de transformação;

• (...) construção de dispositivos e estratégias capazes de trazer à cena outros investimentos desejantes e outras formas de relações e práticas. Nesse sentido, estar ao lado e com os pacientes nesse processo seria estar em busca de relações ativas e produtivas, evidenciadas pela análise das implicações, pela utilização de analisadores (analisador, dentro da análise institucional, são situações espontâneas ou produzidas que realizam a análise sem necessidade de `peritos' para esclarecê-las. São formas de intervenção em nível do vivido, resgatando acontecimentos que podem ser fontes autênticas de conhecimento e de transformações sociais. "Ou melhor dizendo, revalorizam a experiência direta, o `saber das pessoas', como possíveis caminhos para a análise política, para o inconsciente político, para o acesso ao que foi e é ativamente reprimido e para os mecanismos sociais envoltos nessa repressão" _ Rodrigues, 1990, pp. 42-55), ao invés de enlaçarmo-nos em cipós intimistas que remetem ao mundo de fantasias intra e interpessoais psicologizantes.11

É importante que a equipe tenha condições de investigar esses agenciamentos a partir de um prisma sociohistórico, ou seja, afastado de leituras que cristalizem e naturalizem o sujeito e a realidade social, permitindo, assim, inovações. Aliado a isso, estaria a capacidade da equipe em construir estratégias que identifiquem outras práticas, principalmente de um ponto de vista que considere a experiência e o saber das pessoas envolvidas, saindo de uma perspectiva hierárquica e estática, compreendendo que o saber se encontra ao lado do sujeito e não fora dele.

No Programa, uma das aplicações possíveis se traduziria na capacidade da equipe em construir respostas para as problemáticas enfrentadas de acordo com sua realidade, ao invés de buscar, em outras instâncias, as saídas. Ainda que existam outros dispositivos que podem ser acionados, constata-se uma certa timidez em construir intervenções técnicas de forma protagonista. É possível observar que - em determinadas situações - as equipes preferem ou optam por solicitar uma resposta para o Outro acerca de algo que desconhecem, ao invés de propor. Tal situação revela que uma equipe que não ousa e não propõe o avanço em sua intervenção dificilmente permitirá ou conseguirá instituir o protagonismo junto a seus usuários, até porque o próprio corpo técnico ainda não assumiu esse caráter.

Segundo Rolnik (1994, p. 167), para efetivar mudanças no status quo e propiciar uma nova cultura, faz-se fundamental a "escuta das dissonâncias introduzidas pelas diferenças que vão se produzindo", assim como a "necessidade de operar com novas formas de expressão, novas cartografias".12

Ou seja, antes de escutar e vislumbrar o que já está dado e posto enquanto realidade, o desafio, não só para a Psicologia mas também para as equipes em geral, encontra-se justamente na capacidade de identificar aquilo que difere. Esses pequenos indicativos são as dissonâncias inovadoras que podem introduzir os avanços necessários. Conseguir vislumbrar essa alteridade é fundamental para inventar e criar novos jeitos de lidar com a complexa realidade no PROVITA.

 

Referências

ARANTES, Maria Auxiliadora Almeida Cunha. Clandestinidade, Política e Escolha. In Riquelme, Horácio (org). Era de Névoas: Direitos Humanos, Terrorismo de Estado e Saúde Psicossocial na América Latina. São Paulo: EDUC, 1993.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Cássia Maria Rosato
E-mail:cassiarosato@hotmail.com

Recebido 18/02/05
Reformulado 24/11/05
Aprovado 20/12/05

 

 

* Psicóloga do GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares), Especialista em Psicologia Jurídica pela FAFIRE/PE e Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina/USP E-mail: cassiarosato@hotmail.com
1 Para acesso na íntegra do texto legislativo, ver www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Leis/L9807.htm
2 O Programa de Proteção encontra-se, atualmente, implantado em 17 (dezessete) unidades da Federação (Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo). Pelo Programa, já passaram mais de 1.000 (mil) pessoas e, no atual contexto, aproximadamente 500 usuários estão protegidos e sistematicamente acompanhados pelas equipes técnicas estaduais.
3 Soares, L. E. Para fugir à armadilha da simplificação.Revista Veja: 23/01/2002. Também disponível em http://www.luizeduardosoares.com.br Acesso em: 15 de abril de 2004.>
4 Nos primórdios do Programa, o termo utilizado era multidisciplinariedade; atualmente, considerando os avanços no processo de trabalho das equipes técnicas e no acompanhamento dos casos, pode-se afirmar que a proposta já assume um caráter interdisciplinar.
5 Freud, S. Por que a guerra? In Obras Completas de Sigmund Freud, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
6 Galeano, E. De Pernas pro Ar: a Escola do Mundo ao Avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 59.
7 Trecho da música "Desaparecido", do compositor franco-espanhol Manu Chao, em seu primeiro disco, "Clandestino".
8 Calvino, I. Cinco Propostas para o Próximo Milênio. 9 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
9 Barros, F. O de. A violência, a cidade e o "fora-da-lei". Curso ministrado em dezembro de 2003, em Recife, Pernambuco.
10 Para aprofundamento do tema, ver Freud, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI, pp. 67-148.
11 Rauter, Cristina. et al (2002, p. 118).