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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.26 n.2 Brasília jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Reality shows - uma abordagem psicossocial

 

Reality shows - a psychosocial approach

 

 

Marília Pereira Bueno Millan*

Universidade Paulista

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Desde os primórdios da civilização, o ser humano mostra necessidade de representar cenicamente seus dramas pessoais e vicissitudes existenciais. O "reality show" é uma das versões pós-modernas da encenação da vida humana. Este artigo, por meio de uma pesquisa bibliográfica, analisa criticamente as relações existentes entre o "reality show" e aspectos psicossociais do comportamento humano. Conclui-se que tais programas televisivos são o retrato da contemporaneidade, ou seja, revelam a morte do sujeito, a fugacidade das experiências vividas, a desvalorização da história e o culto à imagem e à superficialidade. Por meio da sedução do espectador, mobilizam-se aspectos primitivos de seu psiquismo, fazendo com que ele se sinta narcisicamente poderoso e onipotente e se acredite dono do destino dos participantes do programa. Sugerem-se novos estudos que contribuam para a reflexão crítica e maior conscientização.

Palavras-chave: Reality shows, Televisão, Pós-modernidade, Espectador, Imagem.


SUMMARY

As from the earliest period of civilization, human beings have shown their need to perform their personal dramas and existential vicissitudes on stage. The reality show is one of the postmodern versions of human life staging. Based on a bibliographical research, this article analyzes on a critical basis the relations between the reality show and psychosocial aspects of human behavior. Such TV programs portray contemporaneous life, that is, they disclose the subject's death, the fugacity of life experiences, the history devaluation and the cult of image and superficiality. By seducing the spectator, the reality show mobilizes primitive aspects of the spectator's psychism, thereby making him feel narcissistically powerful and omnipotent, and able to decide the participants' fate. New studies that contribute to critical considerations and deeper consciousness would be advisable.

Keywords: Reality shows, Television, Post-modernity, Spectator, Image.


 

 

Desde a Antigüidade, temos notícia da necessidade de o ser humano representar seus dramas pessoais, suas vicissitudes existenciais ou, simplesmente, os fatos comuns do seu cotidiano. O teatro grego foi, por excelência, a manifestação máxima de tal necessidade, conduzindo a encenação das famosas tragédias que, até os dias de hoje, são admiradas por milhares de espectadores (Bertheld, 2000; Brandão, 2001).

Com o desenvolvimento tecnológico ocorrido fundamentalmente do século XX em diante, a combinação de enredo, imagem e representação ganhou novas roupagens através do cinema, da televisão e, mais recentemente, do computador. Um fenômeno atual que ganhou notoriedade, sobretudo na última década, foi o "reality show", filmagem ao vivo de pessoas comuns convivendo em um espaço fechado durante um tempo determinado.

O programa televisivo que pretendemos discutir é a versão brasileira de um "reality show" que também foi produzido em outros países. Foi criado originalmente por John de Mol e Joop van den Ende em 1999, na Holanda, e recebeu o título de "Big Brother". Tal termo já fora usado por George Orwell, em seu livro "1984", para designar um olho eletrônico que espionava as pessoas com o intuito de manter o domínio de um Estado totalitário sobre tudo e todos.

Trata-se de um programa de entretenimento que consiste no confinamento voluntário de pessoas em uma casa, que se dispõem a ser filmadas durante todo o tempo que ali permanecerem. A duração é de cerca de dois meses e, semanalmente, um dos participantes é eliminado de acordo com votações feitas pelo público e pelos outros integrantes do grupo. A finalidade última do jogo é que apenas uma pessoa consiga permanecer, o que lhe dará o direito de receber um prêmio em dinheiro.

O telespectador acompanha o programa assistindo diariamente a imagens, ao vivo ou previamente editadas, de tudo o que ocorre entre os participantes, desde os atos mais cotidianos até conflitos, brigas e namoros.

A idéia e mesmo o nome do programa apontam na direção da busca da realidade in natura. Sendo assim, a estratégia discursiva central é a criação de efeitos que mimetizem, ao máximo, a realidade (escolha de pessoas comuns, imagens de atos cotidianos, linguagem coloquial, técnicas de filmagem, etc).

Para atrair a atenção do público, enriquecer as imagens e adequar-se à lógica televisiva, a construção simbólica do programa é feita a partir de tarefas e desafios propostos aos participantes que desencadeiam reações, atitudes e conflitos entre eles.

Há, também, a presença de um apresentador que tem a função de organizar o programa, interagindo com os participantes, direcionando os julgamentos e opiniões dos telespectadores e mediando as diversas situações apresentadas (Marcondes Filho, 2002; Curvelo, 2004).

Por tratar-se de uma produção televisiva recente, observa-se que ainda não há literatura abundante a respeito do tema. Entre os trabalhos existentes, encontra-se o de Bucci (2002), que desenvolveu um importante estudo crítico sobre a televisão enquanto meio de comunicação na atualidade do capitalismo superindustrial e da crise do sujeito contemporâneo. Relaciona comunicação, Sociologia e psicanálise para embasar sua teoria a respeito da fabricação de significações sociais pela exploração do trabalho e pela apropriação capitalista do olhar social. Afirma que a televisão, por meio do recurso da imagem ao vivo, constitui-se no telespaço público da contemporaneidade.

Em linha semelhante, abordando diretamente os "reality shows", Olórtegui (2000) também analisa a dissolução das fronteiras entre o público e o privado, provocada, sobretudo, pela televisão, o que marca profundamente a atual crise de sociabilidade. Sugere que os "reality shows" são programas que revelam um indivíduo-telespectador espetacularizado e banalizado em suas relações mediadas pela TV, em que o vazio e a sedução são preponderantes.

Baudrillard (2001), em sua contundente crítica sobre os "reality shows", afirma que o homem moderno, sem um destino objetivo ou metas de vida, lança-se em uma experimentação sem limites de si mesmo. A reclusão voluntária é uma espécie de laboratório de uma "sociedade telegeneticamente modificada". Sugere que, a partir do momento em que a TV e as mídias se tornam incapazes de dar conta dos acontecimentos insuportáveis do mundo, descobre-se a banalidade existencial como o fato mais mortal, como a atualidade mais violenta, como o lugar do crime perfeito. As pessoas ficam, ao mesmo tempo, fascinadas e aterrorizadas pela indiferença de sua própria existência: não há nada a dizer nem nada a fazer.

Por outro lado, alguns autores questionam a utilização do termo "reality", uma vez que se trata de uma representação fora do contexto de vida dos participantes, ou seja, são pessoas que se encontram em um ambiente artificialmente criado e, portanto, não existe a autenticidade propalada (Hill, 2002; Kujundzic; Dorrell, 2002).

Vê-se, portanto, a relevância do tema aqui proposto, pois, sendo os "reality shows" um fenômeno contemporâneo mundial, é mister que seja analisado criticamente do ponto de vista psicossocial, com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre o existir humano na pós-modernidade.

O objetivo deste artigo é analisar, do ponto de vista psicológico e social, o significado dos programas televisivos denominados "reality shows", mais especificamente o Big Brother Brasil.

 

O sentido da encenação

Os processos de identificação parecem estar na base do sucesso das representações da vida real, ou seja, a possibilidade de encontrar eco para as próprias experiências pode ser um meio de sentir-se incluído no mundo dos humanos, de encontrar elementos que auxiliem na elaboração de vivências e de amenizar a solidão intrínseca à própria existência humana.

Buscamos, nas manifestações artísticas, o familiar, aquilo que nos conecta com a subjetividade, com experiências emocionais que se reatualizam e ganham forma através da representação do artista.

A imitação da vida nos permite compartilhar a essência humana com os outros: o estritamente pessoal ganha o terreno social. Já não somos os únicos; é possível compreender as situações humanas à luz da esfera cultural. Não estamos completamente sós, pois os outros participam do drama que julgávamos exclusivamente nosso.

Por outro lado, assistir a um espetáculo cênico significa ausentar-se da própria vida, abandonando provisoriamente o lugar ativo de gerir a própria existência. O ator passa a representar a cena real na ficção, assumindo a atividade do viver. A suspensão da atividade permite o descanso necessário à elaboração das experiências vividas. No entanto, à aparente passividade do espectador, corresponde a atividade de observação de si mesmo no outro, o movimento afetivo-cognitivo de compreensão da essência humana.

A lembrança do caráter fictício da encenação tranqüiliza o espectador, oferecendo-lhe condições de experimentar emoções e sentimentos, mantendo-o sob controle, além de poder pensar a respeito do que vê e sente. Do ponto de vista psicológico, podemos dizer que o quantum de energia psíquica mantém-se em um nível suportável, permitindo ao ego colocar seus recursos a serviço da percepção, conscientização, rememoração e elaboração das experiências vividas.

Além de todos os processos psíquicos envolvidos, a encenação promove a reunião de pessoas que compartilham o mesmo espaço-tempo da representação. A convivência une e configura um fenômeno social que propicia, por um lapso de tempo, certo sentimento de cumplicidade capaz de mover os espectadores em manifestações coletivas, que vão do êxtase à decepção, da alegria esfuziante à profunda tristeza, do riso aberto ao choro incontido. Mais do que um movimento catártico, há aqui a possibilidade de tornar público o privado, de socializar o individual, dando-lhe novo sentido.

 

O cenário contemporâneo

As últimas décadas vêm sendo caracterizadas por profundas mudanças no campo das ciências e das artes, cujas sementes já haviam sido lançadas no final do século XIX e início do século XX. Tais transformações caracterizam o que se denomina pós-modernidade, que, para alguns autores, é a amplificação do paradigma moderno em nossos dias. Sua marca registrada é a revolução tecno-eletrônica, que vem alterando sensivelmente o modo de produção do conhecimento e as relações humanas. Tais avanços tecnológicos têm como ícone a velocidade que está a serviço da otimização das performances, no que tange à produtividade, ao consumo e ao ganho de capital.

A aceleração dos processos e procedimentos da produção e do consumo acaba alterando as formas de pensar e de agir do indivíduo, e, em conseqüência, dos agrupamentos sociais. Hoje é possível obter informações em tempo real e manter contato com o mundo todo a qualquer momento. A conexão rápida dos artefatos eletrônicos vem acompanhada do enorme fluxo de informações e de contatos humanos fugazes e superficiais.

Em outra oportunidade (Millan, 2000), já havíamos discutido tais aspectos:

A aceleração de giro na produção e no consumo vem influenciando a forma de pensar e agir do indivíduo. Como conseqüência, presenciamos a crescente volatilidade e efemeridade de modas, produtos, idéias, valores e práticas sociais.

O instantâneo e o descartável permeiam nossa experiência, desde os utensílios que empregamos no dia a dia até nossa maneira de pensar, viver e nos relacionar (p.64).

Observa-se que a estética superou a ética enquanto foco de interesse intelectual e social; as imagens dominaram as narrativas; o efêmero e o fragmentário triunfaram sobre os valores perenes e universais. Em outras palavras, ocorreu a hegemonia do significante sobre o significado, o que deslocou a importância da História para um segundo plano e imprimiu valor à forma e à imagem.

Assim, a televisão e o computador são, por excelência, os representantes do ideal pós-moderno na medida em que priorizam a velocidade absoluta, tornam desnecessários os deslocamentos espaciais e anulam a importância do tempo e da duração (Pelbart,1996). Ambos disponibilizam a interatividade (sobretudo com a TV digital), convidando as pessoas a se relacionarem, cada vez mais, por meio dos artefatos eletrônicos. Os relacionamentos sociais mediados pelas máquinas concorrem para a redução dos encontros ao vivo e alimentam aqueles de natureza virtual.

Outro fator que contribui para a permanência dos indivíduos em seus espaços pessoais é a questão dos espaços públicos que outrora se prestavam à reunião social, mas hoje se tornaram adversos e estranhos, principalmente nas grandes cidades, pelo aumento da criminalidade, do trânsito intenso de veículos, da poluição, da descaracterização arquitetônica, etc.

Diante de tal cenário, fica a indagação sobre os tipos de elementos representacionais com os quais o sujeito contemporâneo poderá identificar-se.

 

Os reality-shows

uma alternativa?

Vivemos hoje a alienação decorrente de um sistema econômico que incita ao consumo constante de objetos cada vez mais descartáveis, estabelece relações rápidas e descontínuas, e torna-se "embotadora da cognição, da simples observação do mundo, do conhecimento do outro" (Bosi, 2003, p.24).

Touraine (1999) relaciona a fragmentação de nossa cultura à desagregação social e ao do mercado, das comunidades e de suas próprias pulsões. Sem parâmetros definidos socialmente de espaço e tempo, perdeu-se a noção de continuidade histórica de uma nação ou de uma coletividade territorial.

O fio da História amarra-se no presente contínuo em tempo real, que abate o passado e despreza o futuro. À hegemonia do presente, correspondem as informações ininterruptas veiculadas pela mídia que, por sua rapidez e quantidade, impedem que o indivíduo possa digeri-las e pensá-las.

Por sua vez, Baudrillard (2001) lembra que o século XX presenciou toda a sorte de crimes: Auschwitz, Hiroshima e genocídios, mas o único e verdadeiro crime perfeito foi a queda do homem na banalidade, violência mortífera, que, justamente pela indiferença e pela monotonia, é a forma mais sutil de exterminação. Vivemos hoje numa sociedade que mistura todos em um imenso ser indivisível, em total promiscuidade .

É possível relacionar tal banalização à quantidade de estimulação sensorial a que somos expostos de maneira ininterrupta, sem oportunidade de processar, elaborar e pensar criticamente sobre o que nosso aparato perceptivo é capaz de absorver. Há, então, um empobrecimento do contato com nossa própria subjetividade e a concomitante alienação das experiências cognitivas e afetivo-emocionais. Permanecemos no nível mais superficial da senso-percepção, abdicando das sofisticadas potencialidades de nosso aparato psíquico.

Assolado pela angústia frente à perda de contato com sua própria subjetividade, pressionado pela velocidade do mundo da produção, destituído de seu lugar de agente nas relações sociais sem contrato, sem regras ou sistema de valores definido e impelido ao consumo desenfreado, o ser humano busca eco para suas vivências em "reality shows".

Como disse Novaes (1996), somos atraídos pelo fútil, pela curiosidade ávida de sensacionalismo e pela excitação banal, deixando de lado nossa potência de pensar e agir. Os "reality shows" nos proporcionam tudo isso, adormecendo nossa capacidade crítica já tão abalada pela alienação de nossas consciências.

A versão pós-moderna do teatro grego aparece destituída da profundidade do drama e do impacto da tragédia. As experiências humanas ficam reduzidas a uma gama de pequenos conflitos que retratam a superficialidade e o caráter fugidio das relações sociais. O que se vê é a pulverização dos relacionamentos em atitudes impulsivas, intrigas e falas desarticuladas, denotando manifestações emocionais caricatas e previsíveis.

Segundo Baudrillard (2001), o Big Brother é o espelho e o desastre de toda uma sociedade presa da insignificância que se curva diante de sua própria banalidade. É uma farsa integral, uma imagem reflexa de sua própria realidade. Para o autor, a audiência é grande graças à debilidade e nulidade do espetáculo: ou as pessoas assistem porque ali se reconhecem e/ ou assistem para se sentirem menos idiotas que os protagonistas.

Reafirmando essas colocações, pode-se dizer que, em um estilo "fast food", engolimos as ações-reações de personagens vazios, que lutam cegamente por sua sobrevivência individual.

Consumimos a exposição de pessoas que, ávidas por exibirem-se e ganharem fama, ainda que fugaz, submetem-se à superexposição. O narcisismo explícito promove o aparecimento de relações imaturas, permeadas pela escotomização e pela negação das experiências emocionais mais profundas.

Enquanto espectadores, também retornamos a um funcionamento psíquico primitivo, na medida em que ter acesso à vida de outras pessoas em tempo integral confere-nos a realização da onipresença, da onipotência e da onisciência, qualidades essas inerentes às experiências emocionais dos bebês e que mimetizam os atributos imanentes dos deuses. Se, na infância, encarnamos os super-heróis com seus ilimitados poderes, nesse momento, tornamo-nos os "super-espectadores", que realizam o desejo de participar de tudo, negando a exclusão e o limite.

Por outro lado, assistir a tais programas confere-nos a ilusão de que estamos vendo a vida real, tal qual a vivemos. Como vimos anteriormente, toda a técnica está a serviço de tornar o programa o mais real possível. O "como se", que inclui o simbólico e a abstração, dá lugar ao "é agora", numa tentativa de substituir o personagem da ficção pelo indivíduo real. O hiato entre personagem e ator desaparece, numa busca desenfreada pela verdade última das experiências humanas.

Segundo Gullo (2004), os "reality shows" são a versão moderna dos grandes circos romanos. Exploram a necessidade do ser humano de ver e participar dos problemas alheios, movido por sua incessante curiosidade, muitas vezes mórbida. Para o autor, quando o cotidiano é retratado nesses programas, torna-se uma farsa, porque tudo é programado, planejado e racionalizado: "o reality show" é o mais baixo nível do cotidiano, mostrado com tecnologia altamente elaborada com o objetivo de captar o telespectador para interesses da produção que visam ao lucro"(Gullo, 2004, p. 1).

Do mesmo ponto de vista, Couldry (2002) e Jones (2003) afirmam que o espectador é iludido ao acreditar que está vendo a realidade, o que lhe confere uma sensação prazerosa. Porém, na verdade, o que se vê é o resultado do desenvolvimento de estratégias da técnica televisiva, que visam a mimetizar o real, produzindo um programa repleto de ambigüidades, que mais se aproxima dos mitos e da novela-documentário ("docu-soap").

Diante disso, parece que já não somos capazes de mergulhar na fantasia, no jogo de sombra e luz da ficção e que vai demandar a ação do pensamento enquanto abstração, análise e síntese. Assim, não há o que pensar, há apenas o que consumir.

Os brinquedos ganharam vida pela magia sedutora das câmeras escondidas do Big Brother. Além de todos os artefatos tecnológicos, desejamos agora brincar com "gente de verdade".

O prazer de assistir também advém da crença de que o outro vive o drama da sobrevivência em nosso lugar: tornamo-nos ingênuos e pueris, por um lado, e sádicos e triunfantes, por outro.

O caráter bufo e satírico do teatro do passado permanece: cada integrante que perde e sai do jogo comemora, paradoxalmente, de maneira esfuziante, seu próprio fracasso, negando qualquer vislumbre de dor. Em uma celebração coletiva, personagem e espectadores compartilham sentimentos de triunfo e desprezo, sinais evidentes da falta de contato com os aspectos inerentes à subjetividade.

É curioso observar que cada integrante que deixa o programa provoca tristeza nos concorrentes que ficam e alegria na torcida uniformizada que os espera do lado de fora. O "non sense" da situação é patente: quem está ganhando chora e quem perde comemora - uma clara inversão de valores que desloca afetos, turva consciências e banaliza a experiência humana. O herói perdedor sai triunfante, com ares de celebridade, é entrevistado pelo apresentador e conversa com os telespectadores via internet, com o intuito de relatar sua grande aventura. É lamentável que essa espécie de Dom Quixote pós-moderno não traga consigo qualquer indagação ou pensamento profundo e, ao contrário do original, nada busque a não ser o exibicionismo e a fama.

Mais surpreendente ainda é que as pessoas em geral não questionam, simplesmente assistem e consomem com voracidade, esperando sempre a próxima versão do programa porque o anterior já foi esquecido, como um dos tantos objetos descartáveis que usamos e dispensamos.

Concluindo, mencionamos a necessidade de o indivíduo representar suas vivências como meio de elaboração e desenvolvimento psicossocial. Consideramos os "reality shows" como uma das versões pós-modernas do teatro grego, surgidas a partir do crescente desenvolvimento tecnológico e das transformações ocorridas no cenário socioeconômico mundial desde o século passado.

Diante do que foi dito, tais programas são retratos fiéis do mundo em que vivemos. A morte do sujeito, a fugacidade das experiências, a desvalorização da história e o culto à imagem são difundidos sem crítica ou reflexão.

Houve um achatamento do hiato existente entre a ficção e a realidade, o que impede os processos de simbolização e abstração inerentes ao pensar. Somos hoje consumidores por excelência, sem capacidade para questionar o que ingerimos, adormecidos em uma passividade aviltante.

O sucesso do "Big Brother" confirma a volatilidade da experiência humana pós-moderna: não queremos sentir, pensar ou agir, abdicamos da angústia existencial para que outros, nem atores e nem personagens, vivam por nós, hipomaniacamente, o que restou do verdadeiro e profundo sentido de nossa existência.

A subjetividade desvalorizada e satirizada é substituída pela superficialidade do real in natura, em que a imagem é soberana.

Portanto, a função desse tipo de programa é aprofundar a alienação, impedindo os processos de pensamento crítico. Para isso, mobilizam-se aspectos primitivos do psiquismo humano através da sedução do espectador, ou seja, acreditando-se poderoso e capaz de decidir o destino dos participantes, o público deixa-se levar pela imagem narcísica refletida na tela. O prazer advém do triunfo e da onipotência, o que acaba criando um círculo vicioso de consumo e audiência.

Apesar de considerações pouco promissoras sobre os espectadores do presente, podemos ainda, como expectadores, antever novos estudos sobre esse tema que visem ao aprofundamento e à reflexão crítica, contribuindo para a conscientização de todos nós.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Maranhão, 1019, ap8
01240-001, São Paulo, SP, Brasil
Tel.: 3668-6463 / 3258-7362
E-mail:mariliamillan@uol.com.br

Recebido 06/10/05
Reformulado 10/03/06
Aprovado 13/03/06

 

 

* Prof.- adjunto da Universidade Paulista - UNIP. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.