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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.26 no.3 Brasília Sept. 2006

 

ARTIGOS

 

A lei antimanicomial e o trabalho de psicólogos em instituições de saúde mental

 

Legal changes and the practice of psychologists in mental health institutions

 

 

Tatiana Camargo de Sant'Anna*, Valéria Cristina de Albuquerque Brito**

Universidade Católica de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o objetivo de clarificar o impacto da lei antimanicomial sobre o trabalho do psicólogo em instituições de saúde mental, este texto apresenta uma pesquisa qualitativa, realizada com profissionais que atuam no contexto público e privado do sistema de saúde em Brasília.A análise das entrevistas, efetuada a partir do conceito de papel proposto por J. L. Moreno, aponta diferenças no discurso dos profissionais da área pública e privada e revela que as diferenças podem ser compreendidas com base na cultura profissional das instituições em que estão inseridos. Discutem-se as implicações dos resultados para a efetiva implementação dos princípios da lei antimanicomial e a participação das entidades de ensino na formação continuada dos profissionais em Psicologia.

Palavras-chave: Psicologia, Loucura, Lei antimanicomial, Instituição.


ABSTRACT

This qualitative research investigates the impact of a legal change concerning the treatment of mental patients in the practice of psychologists in Brasília, Brazil. The interview analysis is based on the concept of role developed by J. L. Moreno and compares the individual and collective dimensions of psychologists who work in public and private mental institutions. The differences between private and public psychologists' discourses are attributed to the collective dimensions regarding their professional culture. Considering these results we discuss the obstacles to the effective implementation of the new law and the university participation in the continuous education of psychologists.

Keywords: Psychology, Mental health, Mental patients' rights, Institutions.


 

 

A loucura intriga e fascina alguns, e assusta e afasta outros. No decorrer da história ocidental, profissionais de diversas áreas do conhecimento estudam e tratam os loucos em espaços delimitados. A partir da segunda metade do século XX, psicólogos se integram às instituições de saúde mental, enfrentando, criando e reproduzindo desafios que começam na escolha de uma orientação teórica e desembocam em sua atuação cotidiana. Considerando que lei antimanicomial, promulgada em 2001, pretendeu instaurar mudanças na concepção do tratamento da loucura, cabe questionar como os psicólogos inseridos no sistema de saúde entendem e desenvolvem seu trabalho nesse novo contexto. No intuito de contribuir para a discussão sobre o tema, o presente artigo apresenta uma pesquisa qualitativa desenvolvida com o objetivo de compreender e discutir como os psicólogos de Brasília, especificamente, entendem e desempenham suas funções em instituições de saúde mental.

No decorrer do presente texto, empregaremos os termos louco e loucura para evidenciar o foco interpessoal que sumimos na compreensão do fenômeno. Nomes técnicos, tais como alienado, doente mental, psicótico ou portador de transtornos mentais refletem a trajetória do trato com a loucura em diferentes discursos teóricos (Pessoti, 1995). Por outro lado, o termo louco remete a um papel social constituído e reconhecido historicamente também, mas não apenas, pelo discurso científico.

O conjunto de teorias e métodos psicológicos que descreve e trata da loucura é amplo e variado. Em termos gerais, a Psicologia compreende a loucura como alteração mental, como sofrimento psíquico, como uma desorganização das relações ou da personalidade. Via de regra, as diferentes teorias associam o sofrimento, a desorganização psicológica, à condição de vida social do indivíduo, às suas relações com a família e outros grupos e com suas próprias experiências. Em meio à multiplicidade de abordagens, os profissionais de Psicologia têm dificuldade em estabelecer os princípios que devem ser aplicados no cuidado com os loucos, no que tange ao aspecto psíquico, à história de vida, à cultura em que se encontra inserido, etc. Ademais, como membro do sistema de saúde, psicólogos devem trabalhar em redes, em equipes interdisciplinares, possibilitando trocas, ações coletivas e integradas, com o desafio de evitar o isolamento e a superposição de ações de ciências distintas (Ribeiro, 1998).

Para compreender como os psicólogos de nossa comunidade atuam e em que medida a lei antimanicomial influi sobre seu trabalho, inicialmente traçamos um breve histórico do tratamento dispensado aos loucos na sociedade ocidental e apresentamos algumas reflexões sobre as limitações que tal histórico interpõe à intervenção psicológica junto aos pacientes de instituições de saúde mental.

Na seqüência, empregamos o conceito de papel (Moreno, 1979) como recurso teórico para descrever as dimensões coletivas e individuais e o processo de desenvolvimento da ação dos profissionais de Psicologia e descrevemos as estratégias de pesquisa. Os resultados descrevem a experiência de profissionais em instituições de saúde pública e privada e são discutidos em termos de elementos individuais e coletivos na construção do papel de psicólogo. Finalizando, apresentamos algumas reflexões sobre a participação das instituições de ensino universitário na formação e aperfeiçoamento de profissionais da área.

 

Loucura e doença mental

Considerar o louco como uma pessoa que necessita ser compreendida e tratada em sua totalidade e respeitada como cidadã é uma conquista recente. Desde meados do século XVII, proliferam locais "especiais" a fim de "acolher" os que estavam à margem da sociedade. Com o objetivo maior de promover o bem-estar da burguesia, tais instituições reuniam aqueles que incomodavam por seus atos contrários aos padrões de conduta social (Pessotti, 2001). Os locais especializados em tratar especificamente os alienados, os loucos, proliferaram no século XIX, com duas características básicas: estratégia médica e precaução social. Ao médico alienista, o psiquiatra, foi dado o poder para afirmar a verdade sobre a doença, visto que detinha um saber sobre a mesma, e, em conseqüência, um total poder sobre o dito "doente". Alçado ao posto de "mestre da loucura", o médico adquiriu status diferenciado entre os demais encarregados dos loucos nos hospícios, como detentor do saber sobre a loucura, que só ele dominava e apaziguava (Foucault, 1997).

O saber e poder da intervenção médica sobre os loucos nos manicômios começou a ser desmitificada, inicialmente, frente à necessidade de se diminuir a superlotação dos manicômios devido ao aumento de internações, ao custo da loucura para os cofres públicos. As soluções propostas foram manter o "doente" junto à família e a criação de colônias agrícolas anexas aos asilos, ou seja, propostas voltadas para solucionar os problemas do Estado e da sociedade, e não para beneficiar os internos (Pessotti, 2001).

Somente no século XX, surgiu na Itália um movimento de demolição do aparato manicomial que extinguia o modo violento e humilhante de tratar os internos, voltado para a construção de novos espaços e formas de lidar com a loucura. Liderado por Franco Basaglia, esse movimento originou mudanças polêmicas e gerou iniciativas similares em outros países. No Brasil, as idéias de Basaglia inspiraram o movimento dos trabalhadores em saúde mental, em 1978, o Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado, nos anos 80, e, após doze anos tramitando na Câmara, a Lei Federal nº10.216/01, de abril de 2001. Conhecida como lei antimanicomial, essa legislação tem como objetivo redirecionar o modelo de assistência psiquiátrica brasileiro visando a garantir aos internos em instituições de saúde mental melhores condições de saúde, além de direitos de cidadania (Santos et al., 2000). A Lei prevê a proteção dos indivíduos "[...] acometidos de transtorno mental" (Lei nº10.216/01, art.1); são seus direitos: terem acesso ao melhor sistema de saúde, serem tratados com humanidade e respeito "[...] visando a alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade" (Lei nº 10.216/01, art.2, parágrafo único). Nesse contexto, pode-se prever que os psicólogos que trabalham em instituições de saúde mental atuariam interdisciplinarmente, integrando equipes de profissionais de áreas diversas, serviço social, Antropologia, Medicina, etc. O trabalho integrado, marcado por reciprocidade e enriquecimento mútuo bem como pela democratização, favoreceria a compreensão do indivíduo portador de transtorno mental, a loucura, como fenômeno complexo que demanda vários saberes no trato com o mesmo indivíduo (Vasconcelos, 2000). O profissional de Psicologia atuaria como agente de reintegração na vida do louco, desvinculando-o da instituição, viabilizando o resgate da cidadania, combatendo a cronificação, tentando evitar novas crises e demonstrando que o louco tem direito a buscar e realizar seus desejos, como o de estudar, trabalhar, ter e conquistar seus direitos plenos (Ribeiro, 1998).

 

O papel do psicólogo na instituição psiquiátrica

Usualmente, o termo papel é empregado para evidenciar a importância da ação de determinado agente, e, assim, poderíamos considerar que a lei antimanicomial amplia o papel dos psicólogos em instituições de saúde mental. No entanto, as mudanças na concepção da profissão de psicólogo, nas últimas décadas, geraram uma ampliação das áreas e das maneiras de atuar de psicólogos em diversas instâncias, o que acarreta uma diversidade de definições possíveis sobre o papel do psicólogo na sociedade (Bock, 1993). Assim, o termo papel é, em si, pouco descritivo e pode mais facilmente mascarar do que evidenciar e distinguir as ações esperadas e concretamente realizadas.

O termo papel é largamente empregado, mas poucas vezes definido como um conceito. Várias teorias, em diferentes áreas do conhecimento, empregam o termo, mas este pode referir-se a conceitos diferentes. No presente trabalho, papel é definido como a representação simbólica das formas funcionais que a pessoa assume em uma situação específica, percebida pelo indivíduo e pelos outros (Moreno, 1961, citado por Cukier, 2002). O conceito, na forma como foi desenvolvido pelo criador do psicodrama, J. L. Moreno, descreve a dimensão inter-relacional das ações humanas e seu caráter simultaneamente coletivo e individual, histórico e livre. No desempenho de um determinado papel, a pessoa integra, em uma relação específica, elementos que constituiu em sua participação na cultura às suas características pessoais, de modo que, quanto mais desenvolvido um papel, mais livre é a manifestação daquela pessoa quando o desempenha.

Os papéis desenvolvem-se em três etapas: role-taking, tomada de papel; role-playing, desempenho de papel, e role-creating, criação de papel (Cukier, 2002). Por tomada de papel, entende-se estar em um papel na própria vida, nos limites de seu contexto, que é relativamente coercitivo e imperativo, como, por exemplo, ser mãe, pai, policial, etc. Desempenhar um papel é personalizar os costumes sociais, que têm ou, pelo menos, aparentam ter, forma finalizada. Em um estágio mais desenvolvido, a pessoa amplia e aprofunda os limites do papel e desempenha-o de maneira mais livre, mais criativa.

Nessa perspectiva, para compreender o papel do psicólogo na instituição psiquiátrica, é necessário considerar que suas ações se inserem na história de sua profissão, na história das instituições psiquiátricas e da loucura, e incluem as características pessoais de cada profissional e da instituição em que está inserido, em uma combinação dinâmica que não se atualiza imediatamente a partir de uma lei.

 

Método

A Lei nº 10.216 não versa especificamente sobre a atuação do psicólogo, mas assegura, no art. 4, 2º parágrafo: "O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros." O texto da Lei prevê a atuação do profissional de Psicologia nas instituições de saúde mental, mas não descreve seu campo de atuação e nem sua relação com os demais profissionais. Considerando a pluralidade de teorias e práticas no campo da Psicologia e as variadas concepções sobre a loucura que mantiveram as instituições de saúde mental como espaços de exclusão, cabe questionar o impacto da lei antimanicomial sobre os psicólogos que atuam nessas instituições.

Tomando como referencial o conceito moreniano de papel e empregando metodologia qualitativa (Kude, 1997; Brito, 2002), a presente pesquisa investiga como os psicólogos que atuam em instituições de saúde mental compreendem seu trabalho após a lei antimanicomial. A pesquisa qualitativa, sendo primariamente naturalística, permite que o tema seja investigado em profundidade, nas condições em que concretamente ocorre. A situação de pesquisa mantém-se complexa e multifacetada, permitindo uma compreensão mais ampla e detalhada, uma convivência entre pesquisadores e participantes em que as dimensões verbais e não-verbais da experiência se integram. Sob um referencial qualitativo, o recorte que permite identificar dimensões novas sobre o tema é feito durante a interação e nas reflexões que subsidiam as discussões, e não na escolha do método; assim, contradições e superposições são mais facilmente identificadas do que em estudos do tipo misto ou quantitativo (Denzin e Lincoln, 2003).

Para tanto, foram realizadas, em setembro de 2003, entrevistas semi-estruturadas com um psicólogo que trabalha em instituições de saúde mental pública e com uma psicóloga que atua em uma instituição privada em Brasília-DF. As autoras não mantiveram ou mantêm contatos profissionais ou pessoais com os entrevistados. A escolha das instituições baseou-se na proximidade com o centro da cidade, e a seleção de profissionais foi feita pela instituição em função de sua disponibilidade de tempo. As entrevistas, com duração média de uma hora, foram realizadas na própria instituição, registradas com gravador e transcritas na íntegra. A análise das transcrições, segundo categorias criadas para reunir aspectos pessoais e coletivos, foi realizada em duas etapas. Na primeira, as duas autoras selecionaram, individualmente, trechos representativos de dimensões pessoais e coletivas e redigiram comentários sobre cada um deles. Na seqüência, comparamos as seleções individuais e compusemos a seleção final de trechos de cada entrevista, integrando observações da primeira autora sobre o local de trabalho dos participantes e uma síntese dos comentários independentes.

 

Resultados

Seguindo os princípios da pesquisa qualitativa (Turato, 2003), que visam a privilegiar a pluralidade de enfoques na descrição de um mesmo fenômeno, esta seção reúne dados coletados junto aos profissionais, observações da primeira autora sobre o local de trabalho dos mesmos e a análise da fachada das instituições visitadas.

A lei antimanicomial é o produto de uma luta que envolveu diversos estratos sociais (Amarante & Rottelli, 1992) e pode ser tomada como síntese do que a sociedade brasileira propõe como tratamento da loucura. Visando a compreender como os psicólogos se posicionam frente a tal proposta e considerando que "todo papel é a fusão de elementos particulares e coletivos; é composto de duas partes - seus denominadores coletivos e seus diferenciais individuais" (Moreno, 1979, p.69), identificamos, nas entrevistas, concepções dos profissionais acerca de seu trabalho e da instituição em que atuam e elementos da trajetória pessoal e institucional de cada um que revelam as tensões envolvidas na definição e execução dos serviços psicológicos na instituição psiquiátrica.

Esses fragmentos reunidos permitem comparar o impacto do encontro com cada um desses profissionais e verificar como a instituição em que trabalham amplia ou limita a possibilidade de realização do que entendem como suas atribuições no cuidado com os loucos.

 

Profissional em instituição pública: dimensão pessoal

Entendemos, como elementos pessoais, dados biográficos, a concepção de saúde-doença mental do entrevistado e a definição do papel de psicólogo, propriamente dito. Fragmentos das entrevistas são citados, no corpo do trabalho, a título de ilustração, e, visando a manter um tratamento personalizado sem, contudo, comprometer os princípios de confidencialidade, atribuímos nomes fictícios aos entrevistados.

O entrevistado na instituição pública, um homem na faixa dos trinta anos, que denominaremos Júlio, apresentou-se como "farmacêutico, bioquímico, psicólogo e psicanalista", e informou que estava na instituição há nove anos, sendo sete no hospital-dia e dois, no ambulatório. Considerando a faixa etária, ele acompanhou a discussão do projeto da lei antimanicomial ainda no período universitário, no entanto, sua descrição da trajetória de estudos inclui disciplinas biológicas e um treino em uma teoria psicológica específica (psicanálise) além da graduação em Psicologia. Assim, o papel de psicólogo se dilui entre outros, em uma combinação que pode tanto facilitar o diálogo na equipe quanto dificultar a definição do âmbito de sua atuação.

"Em saúde mental, geralmente a gente divide o paciente, mais neurótico, paciente mais com funcionamento psicótico, e aí esse trabalho é terapeuticamente né, as questões da vida cotidiana de cada um deles e trabalha em grupo como um crescimento mesmo desse grupo, que eles possam então, em pouco tempo, reestabelecer um pouco um funcionamento mais saudável, né, em suas vidas." A descrição que Júlio apresenta em relação à saúde mental é feita em termos patológicos, ele descreve a doença. Na descrição, emprega uma classificação típica da teoria que adota, a psicanálise, mas toma-a para "dividir", propor formas distintas de tratamento, sem menção a aspectos da história e do contexto do louco. Em relação ao papel do psicólogo, Júlio entende que seu trabalho deve ser integrado ao de outros profissionais da equipe e inclui a compreensão do sofrimento dentro do contexto específico da pessoa que sofre. "(...) eu acredito que o trabalho do psicólogo numa instituição, e aí não necessariamente nessa instituição, em qualquer instituição de saúde mental, é um trabalho de cuidar do sofrimento psíquico do sujeito, é um trabalho que permite fazer uma articulação desse sujeito com a sua contingência de vida e de poder trazer, mais pra perto, significações simbólicas de um adoecimento que, dentro da visão da psiquiatria, não tá preocupada com isso, nem dentro da visão do serviço social, nem da enfermagem, e aí tem mais a nutrição, tem outras modalidades, outras disciplinas, ah instituição, aqui, ela é multidisciplinar e trabalha em equipe, equipe de vários profissionais que assistiam um determinado grupo(...)."

Dessa maneira, percebemos que Júlio compreende teoricamente o papel do psicólogo no âmbito institucional e clínico, porém, talvez por questões individuais ou institucionais, limita-se a desenvolver seu trabalho clinicamente, sem interação com outros profissionais.

 

Profissional em instituição pública: dimensão coletiva

Segundo a definição moreniana de papel e seguindo uma linha de pesquisa sobre os profissionais que atuam em saúde mental (Hong, 2001) que compreende a atuação desses profissionais como resultante da combinação de elementos da cultura profissional com elementos da cultura institucional, definimos, como elementos coletivos do papel do psicólogo, as referências dos entrevistados à lei antimanicomial, à instituição em que trabalham e ao trabalho que desempenham junto aos usuários ("pacientes").

Júlio só menciona a lei antimanicomial quando questionado diretamente, e demonstra um conhecimento de "senso comum"; lembra-se da longa tramitação no Congresso, refere-se ao autor do Projeto de Lei e à diminuição de leitos: "Eu acho que foi um avanço. Ela se estendeu à tramitação por vários anos e com muita pressão de ambas as partes (...)" "(...) fazer pressão pra que se modificasse o conteúdo da Lei, dos movimentos da antipsiquiatria ou do atendimento de depressão. E ela tem avanços significativos, principalmente em relação aos leitos(...)" "(...)uma perspectiva de redução, da redução dos leitos de internação (...)"

A Lei permanece como pano de fundo que não afeta diretamente sua atuação e nem mesmo a da instituição, que, no seu entender, atende aos princípios que nortearam a reforma psiquiátrica: "o instituto tem uma característica de um atendimento humanizado, que tem como princípio um atendimento multidisciplinar, um atendimento que é baseado em princípios terapêuticos, e aí, não só medicamentosos, mas também terapêuticos, sociopráticos. Práticas sociais, práticas de cidadania e também das psicoterapias. Então, efetivamente não nos modificou (a Lei), pois nós já estávamos trabalhando com essas vertentes que estão na Lei Paulo Delgado (...)".

Apesar de afirmar que a instituição atende os princípios da Lei, aponta deficiências na localização, nos recursos materiais e nas práticas da mesma: "(...) Nós não temos as salas adequadas para o público de terapia, às vezes não temos nem cadeiras, tem que transportar eles totalmente pro outro lado também, acesso aos pacientes, porque aqui tem linhas de ônibus, mas são quatro linhas de ônibus ao dia, além do nosso ônibus, aqui os pacientes tem acesso precário". "(...) é, nós temos muito pouco material lúdico, quase nada de material psicológico, nós podíamos produzir mais teoricamente se tivesse mais condições. Produzir textos, organizar congressos, organizar encontros, inclusive até com psicólogos da própria instituição. Todo mundo tá muito assoberbado de trabalho, então, não permite essas trocas de informações científicas para nossa profissão. Eu acho que isso são condições materiais que a gente não tem."

De fato, a instituição localiza-se a cerca de 40 km do centro da cidade, em uma área rural, de difícil acesso por transporte coletivo. Ocupa uma área extensa de terreno, e é subdividida em várias unidades, o que dificulta o relacionamento entre os profissionais que desempenham atividades distintas. A primeira pesquisadora esteve no local por três vezes antes de realizar a entrevista, e, em algumas unidades, não encontrou nem profissionais nem usuários. Mesmo que exista a disposição para atender os princípios de inclusão que inspiraram a Lei, as condições físicas dificultam a inter-relação entre profissionais e usuários, e praticamente impedem a relação destes com a comunidade.

No que se refere ao trabalho que desenvolve, Júlio afirma:"(...) nós precisamos de outras condições físicas, essas condições aqui são precárias, e nós temos um número muito pequeno de profissionais dentro da demanda que nos é exigida." E completa: "O paciente chegando, ele faz sua inscrição, e aí ele vai fazer uma entrevista com os psiquiatras pra ver pra que lado ele vai se encaminhar, se é um paciente de ambulatório, se é um paciente de hospital-dia, se precisa de uma indicação, se não precisa de medicação, aí ele precisa de acompanhamento psiquiátrico, quando há uma demanda do atendimento de psicologia, então, ele é encaminhado ao serviço de psicologia." Júlio considera suas condições de trabalho precárias, do ponto de vista relacional, parece sentir-se isolado e sobrecarregado e, sobretudo, entende sua atuação como conseqüência de uma decisão médica. A forma como Júlio descreve seu trabalho pouco difere do modo tradicional, manicomial, de compreender e tratar a loucura como uma doença mental, um domínio médico (Foucault, 1997; Pessoti, 2001), e, nesse sentido, o psicólogo perde sua especificidade como membro de uma equipe multidisciplinar e fica restrito a uma atuação como técnico, auxiliar do médico.

 

Profissional da instituição privada: dimensão pessoal

A entrevistada da instituição privada, que denominamos Julieta, está na faixa dos cinqüenta anos, intitula-se "socióloga e psicóloga, com formação em psicanálise." "A gente trabalhava na Universidade de Brasília, com atendimentos a psicóticos. Depois resolvemos criar um espaço de atendimento a essas pessoas." Descreve-se como "(...)uma das pessoas que fundou (a instituição) há doze anos." Julieta acompanhou os movimentos que levaram ao projeto da lei antimanicomial, desde o período da graduação, e sua inserção profissional deu continuidade aos estudos e práticas que desenvolvia durante o curso.

Sobre sua concepção de saúde-doença mental, Julieta disse: "(...) particularmente, considero a doença um momento infeliz. As coisas são tão transbordantes, os afetos, os incômodos, os sentidos, e ele não consegue realmente se organizar, então, esse momento, pra mim, é o adoecimento. Fora isso, há pessoas que têm um processo, que deliram, têm alucinações visuais, auditivas, mas que nem por isso são incapazes de conviver bem com a gente (...)." Julieta acrescenta que são pessoas capazes, com condições de convivência "harmoniosa" com a sociedade, enfatiza a importância de os profissionais que trabalham com essa população (loucos) acreditarem em sua inserção social, reorganização. Demonstra também perceber o louco como um indivíduo que sofre, doente, doença descrita como surto, delírios e alucinações que remetem à noção de doença mental como patologia, "entidades mórbidas distintas", reduzindo o sofrimento individual a uma abordagem médica que favorece o negativismo (Doron & Parrot, 1998). Julieta entende, entretanto, que a doença pode ser positiva:"(...) a quebra do sujeito num quadro de psicose se dá justamente porque é necessária. A gente tenta ver, é levado a achar que a crise é um fracasso do trabalho, um fracasso de direção. E não só é inevitável como também, às vezes, muito necessário." "(...) essa subjetividade que ele consegue construir é muito precária. Então, no momento em que isso já não funciona mais, ele precisa entrar em crise pra poder se organizar, reorganizar num delírio e outras partes que dêem a ele mais possibilidades de subjetivação (...)." "Então a gente tem que ver a crise por esse lado também, como possibilidades de criação de reconstrução da subjetividade."

Julieta demonstra entender o momento de "crise" como temporário, mas seus efeitos parecem definitivos. Ela considera a crise como uma "quebra", ou seja, considera que a pessoa que enfrenta uma crise altera ou perde aspectos que não podem ser recuperados. Esse trecho evidencia uma concepção estrutural que atribui ao louco uma essência distinta daquela dos indivíduos normais. O louco é um homem "quebrado", menor.

 

Profissional da instituição privada: dimensão coletiva

Julieta relata e descreve a lei antimanicomial de maneira crítica, demonstrando conhecimento sobre a mesma e sobre sua importância, mas questiona sua eficácia em relação às instituições e aos programas: "Eu acho que até, em termos de Lei, que, se ela for de fato aplicada, faz muito bem, o problema é que nós temos um arcabouço de leis em todas as áreas, muito interessantes até do ponto de vista da construção de uma sociedade democrática. Mas os programas não vão poder funcionar, então, o que aconteceu esse tempo todo passado antes da aprovação da Lei pra cá, muita coisa mudou completamente(...) (...) por que mudou tão pouca coisa? Por que dava muito trabalho um hospital psiquiátrico, uma instituição psiquiátrica, hospital fechado (...)."

No que tange à instituição, Julieta hesita entre caracterizá-la como centro de convivência e hospital-dia. "Aqui a gente trabalha na forma de atendimento de hospital-dia. Não é bem hospital. Na verdade, é um centro de convivência aonde os pacientes vem para passar o dia, e, à noite, fim de semana, eles estão em casa com a família." O hospital seria um local em que os doentes permanecem nos leitos e centro de convivência, seriam os CAPES. Sendo assim, Julieta se divide entre esses dois significados, pois a instituição não se caracteriza como CAPES e nem como hospital-dia.

"Aqui é uma instituição aberta, o paciente é até estimulado a vir, a família traz, mas o trabalho todo se desenvolve para ele possa vir e possa ficar aqui voluntariamente. Mas ele pode sair na hora que bem entender, a não ser aqueles pacientes que estão em quadro de crise e não têm condições de andar sozinhos na rua, os menores de idade, e com problemas que os impeçam de estar circulando pela cidade. Lá fora, eles podem andar e sair." A instituição localiza-se em uma área urbana, é cercada por lojas, consultórios e escritórios, próximo a prédios residenciais, o que possibilita a convivência entre usuários e a população em geral. "As pessoas não vêm todos os dias. Em média, todo dia, a gente tem... por volta de trinta, trinta e cinco pessoas." Apesar de a instituição ser pequena, com poucos pacientes, o trabalho desenvolvido inclui a preocupação com a cidadania, a valorização e a inclusão social dos usuários.

Julieta acredita que o funcionamento da instituição se norteie pela lei antimanicomial, na medida em que a equipe multidisciplinar divide responsabilidades, tem oportunidade para troca de experiências e treinamento continuado. "(...) nós temos uma equipe de quinze profissionais de nível superior, médicos, psicólogos, artista plástico, bailarino, uma variedade grande. Além do pessoal de apoio, a gente tem uns trinta funcionários no total. (...) são profissionais que são muito exigidos, é um trabalho muito duro, é um trabalho que a pessoa... Só de supervisão, por semana, a gente tem três horas, mais duas horas de reunião clínica, além do trabalho com os pacientes; são cinco horas dedicadas a isso, é um trabalho de formação permanente, é uma mão-de-obra difícil de se formar (...)."

Embora empregue termos que remetem à noção de doença, Julieta entende que o psicólogo tem um amplo espectro de atuação junto ao usuário e sua família, e trabalha junto a outros profissionais: "(...) o psicólogo, aqui, é um terapeuta, então, ele faz desde atendimentos individuais, com a família, acompanhamento familiar. (...) dependendo de cada caso, os grupos de psicoterapia trabalham também junto com os outros funcionários da equipe. Tem a arte-terapia, com o artista plástico que coordena esse grupo. Você tem os terapeutas, que são todos os psicólogos, e os médicos também. Então, o terapeuta é bastante exigido nesse ponto de vista. Tem o grupo, tem o individual, tem a família, e dá pra ter a convivência do dia a dia do paciente, lidar com a crise."

Julieta defende a necessidade de o profissional se atualizar, estudar sobre a população que está atendendo e salienta que a experiência institucional é distinta e mais difícil do que a de consultório."(...)ele tem que ter uma boa noção de psicopatologia, de diagnóstico. Tem que ter bastante cuidado, ele faz de tudo, o psicólogo tem uma formação muito rica, porque, depois de trabalhar aqui, o consultório, ele tira de letra, ele aprende a saber o que fazer com o paciente, com o médico, com a rede. Você tem que saber se articular com toda essa engenharia pra poder conseguir fazer realmente seu trabalho, e a gente tem um comprometimento muito grande com a psicanálise. Então, tem outra coisa que é a pessoa ter que fazer sua análise pessoal e ter que participar da supervisão e ter que aprender a falar dos riscos do trabalho."

Julieta demonstra claramente sua adesão a um determinado discurso psicológico, a psicanálise, que, mais do que qualquer lei, constitui-se em parâmetro para definir e desenvolver seu trabalho. Como dirigente da instituição, Julieta também lança mão de sua adesão a um conjunto de teorias para definir a composição e relacionamento entre os membros da equipe. No discurso de Julieta, os elementos da cultura profissional, sua concepção sobre loucura, sobre os métodos de tratamento e as funções do psicólogo em uma instituição de saúde mental harmonizam-se com elementos da cultura institucional, com o que a instituição espera e promove no cotidiano.

A fala de Julieta mostra que ela entende que a instituição em que trabalha oferece as condições necessárias para desenvolver seu trabalho da maneira que considera mais coerente com sua escolha teórica. Como co-fundadora e uma das dirigentes da instituição, Julieta tem liberdade de ação suficiente para desempenhar o papel de psicóloga segundo sua orientação teórica e inspirada pelas premissas da lei antimanicomial.

 

Discussão

Tendo em vista a literatura estudada e as entrevistas realizadas a respeito do tema proposto neste estudo: compreender o papel dos(as) psicólogos(as) em instituições de saúde mental após a lei antimanicomial, propomos discutir alguns aspectos importantes a respeito da Lei nº 10.216/01, suas propostas e concretizações, e o papel do psicólogo, se este tem conquistado o seu lugar, não somente em instituições mas também nas questões que permeiam a saúde mental, questões que são relacionadas aos indivíduos, às instituições e à sociedade como um todo: pré-conceitos, medos e leis.

Outrossim, procuramos identificar as dificuldades de profissionais que atuam em contextos distintos para pôr em prática preceitos comuns, as políticas públicas definidas pela Lei nº 10.216/01. Cabe ressaltar que, tratando-se de um estudo qualitativo, tal discussão procura aprofundar a compreensão sobre os resultados sem propor sua generalização. "Pesquisadores qualitativos podem isolar populações-alvo, mostrar os efeitos imediatos de certos programas em tais grupos e identificar os empecilhos que operam contra as mudanças políticas nesses contextos" (Denzin & Lincoln, 2003, p. 37). A complexidade das diferenças regionais no Brasil e o histórico específico do movimento antimanicomial em diferentes comunidades deve ser considerado o pano de fundo para avaliar a especificidade da experiência dos profissionais entrevistados no presente estudo. Refletimos, em termos gerais, sobre a prática de psicólogos em instituição de saúde mental, mas entendemos que esse é um cenário comum, no qual se desenrolam histórias singulares. Júlio e Julieta desenvolvem seu trabalho no contexto de uma cidade, uma comunidade, e as instituições em que atuam têm histórias articuladas a esse contexto, que pode ou não ter conexões com o de outras cidades ou comunidades. Nosso recorte pretende identificar o impacto da lei antimanicomial na atuação de psicólogos no contexto das instituições estudadas, mas não consideramos as mesmas como representativas do conjunto das instituições de saúde mental de Brasília, nem do Brasil. Contudo, pretendemos que nossa interpretação sobre o discurso desses profissionais propicie a identificação de entraves à concretização dos princípios da política de saúde mental vigente.

Em linhas gerais, a Psicologia compreende a doença mental como um sofrimento psíquico em que há uma desorganização da personalidade do indivíduo, associada à condição de vida social deste juntamente à sua família, seus grupos e experiências significativas e sua estrutura psíquica, em que condições externas devem ser entendidas como determinantes ou desencadeadoras da doença mental ou propiciadoras de saúde mental, isto é, da possibilidade de realização pessoal do indivíduo em todos os aspectos de sua capacidade (Bock, 1997). Dessa maneira, a Psicologia entende o sofrimento psíquico como uma representação da cultura em que as pessoas estão inseridas.

Atualmente, a Psicologia é composta por diversas teorias e campos de atuação que se expandem. É difícil isolar um único objeto de estudo específico, pois algumas áreas tendem a adotar uma visão genética, enquanto outras se preocupam mais com a influência das relações sociais. Nesse contexto, os psicólogos têm dificuldade em colocar-se em relação tanto às abordagens biológicas quanto às humanistas (Doron & Parrot, 1998).

O texto legislativo não adota uma perspectiva teórica específica; assim, a fundamentação teórica dos psicólogos em instituições de saúde mental é uma escolha individual. Essa afirmativa fica claramente demonstrada no discurso dos dois participantes da pesquisa: Júlio refere-se à formação "humanística" e "psicanalítica" em combinação com a "biológica", enquanto Julieta adota as perspectivas "psicanalítica" e "social". A combinação de perspectivas ancoradas em premissas diferentes, apresentada por Júlio, parece dificultar uma atuação autônoma em relação ao profissional da Medicina. A articulação entre dimensões intrapsíquicas e socioculturais explicitada no discurso de Julieta permite uma diferenciação em relação ao saber do médico, com ênfase na colaboração entre conhecimentos. Uma compreensão consistente e articulada sobre saúde mental parece ser fundamental para que os psicólogos exerçam seu papel em instituições psiquiátricas. Uma posição mais clara e consistente em termos teóricos facilita um desenvolvimento de papel simultaneamente autônomo e integrado ao de outros profissionais.

As diferenças entre as concepções teóricas são, contudo, insuficientes para compreender o papel profissional de Júlio e Julieta nas instituições em que atuam. Como ficou explícito nas entrevistas, diferenças individuais existem, e os profissionais entrevistados trazem, para seu trabalho, sua trajetória de vida e de formação profissional singular. Entretanto, a dimensão coletiva mais concreta - a instituição em que trabalham - e não a mais abstrata - o texto da Lei e como o compreendem dentro de suas perspectivas teóricas - emerge como o foco das diferenças em termos das ações que atribuem ao psicólogo, ou seja, compreendemos as diferenças nas ações que executam como resultado da adesão às normas e regras das instituições pública e privada, à importância diferenciada que atribuem ao trabalho em equipe, ao atendimento psicoterápico do louco, às relações entre equipe e família do usuário e à integração do louco à sociedade.

No que concerne às instituições psiquiátricas, tradicionalmente, os psicólogos são - assim como outros profissionais não-médicos - considerados auxiliares, na medida em que a loucura entendida como doença seria domínio do saber médico. Em estudos sobre os profissionais de saúde mental, identifica-se que a cultura institucional se combina à cultura profissional da equipe multidisciplinar, de modo que a posição de cada profissional mantém uma diferenciação hierárquica entre médicos e demais profissionais de nível superior (Hong, 2003).

O modelo manicomial persiste em nossa sociedade, e ainda se faz presente na observação das instituições estudadas. Na instituição pública, o modelo manicomial pode ser observado tanto no discurso do entrevistado quanto na localização da mesma e na disposição dos edifícios. Localizada em uma áreaa originalmente rural, distante do centro da cidade e dividida em unidades isoladas, essa instituição nos remete ao século XVIII e XIX, quando os manicômios foram instalados em locais longínquos, sem contato com o exterior, e eram compostos por diversos edifícios, um para esquizofrênicos, outro para os serviços administrativos e outro para locais de trabalho com os doentes (Pessotti, 1996). Entendemos que a permanência de tal arquitetura nessa instituição, no século XXI, é índice da permanência do modelo manicomial, que não permite troca entre os profissionais das diversas áreas. Se os edifícios estão distantes uns dos outros, como observamos nessa instituição, e, em cada um deles, há um responsável por determinado setor de atendimento, a comunicação e a troca de saberes são mais difíceis e dependem de um esforço adicional dos profissionais para realizar-se.

Sendo assim, é de se esperar que o discurso mais tradicional e socialmente valorizado, o discurso médico, prevaleça na ausência de trocas de informações, de convivência entre profissionais de áreas distintas. Se a instituição é médica, a tarefa dos profissionais "não-médicos" se limita a reeducar o usuário, garantindo a manutenção da instituição. Como assinala Foucault (1997), a ênfase da atuação desses profissionais é fazer com que o "alienado" respeite as normas e seja desencorajado a realizar condutas inconvenientes. A dimensão do cuidado propriamente dito, que inclui a compreensão conjunta dos elementos complexos da história dos usuários e a ação conjunta dos profissionais no desenvolvimento dos recursos que ensejem mudanças, fica obscurecida, e a interdisciplinariedade permanece apenas como um ideal.

Por outro lado, a instituição privada localiza-se na área central da cidade (Plano Piloto), em uma pequena área comercial, facilitando o acesso dos usuários e as trocas de diferentes saberes. Atendendo um número reduzido de pessoas, integrada ao espaço urbano, essa instituição acompanha as características de outras instituições de saúde, é mais uma clínica do que um hospital, um asilo. Assim, suas características físicas facilitam a des-estigmatização tanto de usuários como de profissionais, e são mais propícias à interdisciplinariedade.

Reunidos em um espaço pequeno, os profissionais convivem mais intensamente, têm mais oportunidades de troca e de ação conjunta no cotidiano, e os saberes diferenciados se entrecruzam com mais facilidade. A prevalência do discurso médico - em especial, nesses tempos de tanta divulgação dos psicotrópicos - talvez não seja eliminada, mas, certamente, é mais discutida. Infelizmente, sendo de caráter privado, essa instituição atinge apenas pequenas faixas da população e reproduz também, no âmbito da saúde mental, a desigualdade no acesso aos serviços de saúde.

As entrevistas também apontam diferenças no discurso da profissional da área privada em relação ao do profissional da área pública. Um dos aspectos mais distintivos é a ausência de uma elaboração por parte do profissional da área pública a respeito da loucura. Por um lado, a profissional da área privada define a loucura como "quebra", "momento infeliz", "doença", ou seja, oscila entre uma concepção estrutural e outra contingencial, demonstrando, portanto, as variações teóricas no âmbito da Psicologia (Pessotti, 1996).

O silêncio do profissional da instituição pública, por seu turno, pode ser entendido como uma dificuldade desse profissional em definir a natureza - seja estrutural ou contingencial - do fenômeno com que se propõe a trabalhar, a loucura. Ainda que a justaposição de premissas na concepção de loucura possa acarretar dificuldades para construir um projeto individual de intervenção, por outro lado, possibilita o diálogo com outros profissionais, abre caminho para a interdisciplinariedade. A ausência de uma ou mais concepções sobre a loucura no discurso de Júlio é mais preocupante porque demonstra o isolamento, uma alienação em relação à equipe e aos usuários. Assim, a indicação para intervenção, dimensão crucial do papel de psicólogo, fica à mercê do psiquiatra, ou seja, dentro de uma instituição de estrutura convencional (manicomial), mesmo pretendendo atuar com base na Lei nº 10.216/01, Júlio se vê impedido por conta das "condições materiais." Por outro lado, Julieta, talvez por ser uma das fundadoras da instituição privada, demonstra uma relação mais estreita e coerente entre a estrutura da instituição e o trabalho desenvolvido. No entanto, os dois profissionais mostram-se atrelados às políticas existentes, governamentais e institucionais. A dimensão pessoal, a face mais externa do papel, muda individualmente, mas o núcleo central, a prescrição social que distingue o papel social de psicólogo só se transforma em ações coletivas.

Ainda que com diferentes níveis de reflexão, os profissionais entrevistados demonstraram conhecer a lei antimanicomial, mas questionamos em que medida se mantêm atualizados com relação ao conjunto da legislação. Entendemos que a informação contínua sobre essas e outras leis na área de saúde é de suma importância para que os profissionais atuem como cidadãos participativos, e não apenas como executores das políticas públicas. Como categoria profissional, nós, psicólogos, precisamos ser críticos em relação à situação atual para reivindicar melhores condições de trabalho e nos fazermos presentes nas diferentes modalidades de atendimento ao sofrimento humano.

Acreditamos que a lei antimanicomial seja extremamente importante, pois sua elaboração e seu surgimento são resultados de mudanças sociais, mas as ações governamentais devem continuar, pois, se a lei antimanicomial versa sobre a interdisciplinaridade na internação, acreditamos que esse princípio deve ser estendido ao serviço ambulatorial, aos centros de convivência. Entretanto, se a política governamental fica restrita ao âmbito legislativo, sua eficácia como agente de mudança é reduzida. As instituições e a sociedade permanecem pouco informadas sobre o papel do psicólogo na instituição de saúde mental.

A lei antimanicomial propõe a interdisciplinariedade, inclui o atendimento psicológico entre as modalidades de intervenção em instituições de saúde mental, mas não esclarece seu papel. As condições físicas e o discurso dos profissionais participantes desse estudo demonstram que o modelo manicomial ainda persiste, e que um trabalho realmente interdisciplinar é um desafio que ultrapassa o cumprimento da Lei. As condições concretas de trabalho surgem como elemento decisivo para compreender como o papel de psicólogo se institui e se desenvolve nas instituições psiquiátricas.

Em condições de trabalho mais favoráveis, Julieta mostra consciência em relação aos limites e possibilidades de sua atuação; poderíamos considerar que seu papel profissional se desenvolve entre as fases de desempenho (role-playing) e criação (role-creating). Por outro lado, Júlio enfrenta maiores desafios em termos de definição da especificidade do trabalho como psicólogo na instituição; o papel de psicólogo está pouco diferenciado em relação a outros, e podemos situar seu papel profissional em um estágio inicial de desenvolvimento (role-taking). Compreendemos essas diferenças em termos de desenvolvimento de papel menos como decorrência de elementos individuais, como tempo de atuação ou de orientação teórica, e mais como relativos ao contexto de atuação, às características das instituições em que trabalham.

No presente estudo, a lei antimanicomial parece ter tido um impacto limitado na mudança das situações concretas de trabalho do psicólogo que atua na instituição mais tradicional, a pública. A instituição privada, fundada no período de discussão que desembocou na aprovação da mudança legislativa, parece ter incorporado seus princípios desde o início, e não como resultado da sua promulgação, em 2001. Assim, o nível de desenvolvimento do papel de psicólogo surge como indicativo da adesão institucional aos princípios da lei antimanicomial, que, no caso em estudo, é a instituição privada.

As políticas públicas de saúde constituem um conjunto de medidas em vários âmbitos, e a entrada em vigor da lei antimanicomial é um marco importante, mas não suficiente para criar as condições de um atendimento genuinamente interdisciplinar, voltado para o cuidado integral do louco. Nossa pesquisa mostra que o desenvolvimento do papel de psicólogo na instituição de saúde mental é um fenômeno complexo, que transcende o conhecimento e a adesão pessoal às políticas governamentais. Mais do que seu regime jurídico, público ou privado, é a adesão da instituição a um modelo mais ou menos manicomial que propicia o trabalho genuinamente interdisciplinar.

O papel de psicólogo é forjado na formação pessoal, mas realiza-se como ação articulada, coletiva. Pesquisas que investiguem sob que condições atuam os psicólogos e em que medida os princípios que defendemos como categoria, em um sistema de saúde de qualidade para todos, são efetivamente praticados no cotidiano de nossa atuação profissional podem contribuir para o aprimoramento de nossa formação como agentes de mudança social.

 

Considerações finais

Aplicada à investigação do impacto de políticas públicas, a pesquisa qualitativa possibilita ampliar a compreensão sobre o alcance e os entraves às mudanças efetivas. Em artigo recente, um consultor do Banco Mundial (Rist, 2003) destaca que a implementação, manutenção e avaliação de políticas públicas nas áreas sociais são temas complexos e discute o potencial da pesquisa qualitativa para colaborar nesses diferentes momentos. Podemos considerar a presente pesquisa como um recurso de acompanhamento do impacto de uma política pública, a lei antimanicomial, relativa à atuação de psicólogos que trabalham em instituições psiquiátricas.

A sociedade organizada foi eficiente para lutar pelas mudanças legislativas, mas parece não ter o mesmo sucesso no que diz respeito à sua implementação. O panorama que traçamos aqui permite identificar a grande relevância da lei antimanicomial em termos sociais, mas as diferenças no desempenho e no desenvolvimento do papel de psicólogo na instituição psiquiátrica parecem estar mais associadas às condições de trabalho e à formação teórica, e estas não parecem ter sido afetadas pela mudança legislativa. A Lei, sem dúvida, mudou o perfil das instituições psiquiátricas, mas algumas de suas características persistem como entraves para a realização dos princípios que prescrevem.

A pesquisa sobre os limites e possibilidades do papel de psicólogo permite evidenciar as contradições entre os princípios que o conjunto da sociedade estabeleceu por meio da legislação e as condições oferecidas para que os mesmos sejam concretizados. Como adverte Bravo (2004, p.194), em tese sobre presos psiquiátricos, "sem considerar a dimensão sociopolítica, corre-se o risco de, a partir de um discurso amparado em novos disfarces teóricos, epistemológicos ou técnicos, continuar reproduzindo um tipo de prática que mantenha os mesmos conteúdos ideológicos." Entendemos que os movimentos sociais, idealmente associados a entidades de classe dos profissionais da área de saúde, têm muito a contribuir para que as instituições ampliem e aprofundem as mudanças, no sentido de promover um atendimento interdisciplinar efetivo aos usuários da instituição e à integração do louco ao contexto social.

Por outro lado, consideramos que as mudanças sociais incluem a formação profissional, na medida em que a educação também deve fazer parte do conjunto das políticas públicas na área de saúde. Pesquisas sobre o perfil de outras categorias que atuam na área de saúde (Bravo, 2004; Hong, 2004; Souza, 2003) ressaltam que a formação profissional, tanto na graduação como na pós-graduação, constituem-se em momentos privilegiados para o desenvolvimento dos conhecimentos e habilidades requeridas para a atuação interdisciplinar. No que tange ao papel de psicólogo que atua em instituição de saúde mental, consideramos que cursos de graduação e pós-graduação devem considerar as instituições de saúde mental como parte do sistema de saúde mais amplo e promover reflexões e atividades práticas que configurem o papel de psicólogo em instituição de saúde mental como uma modalidade específica de psicólogo da saúde, e, em conseqüência, do papel do psicoterapeuta e dos outros profissionais de saúde.

As mudanças nas políticas públicas em saúde mental, que incluem a lei antimanicomial, são frutos de um extenso e longo trabalho de uma variedade de movimentos sociais, contudo, a participação da comunidade acadêmica é muito limitada (Paulin e Turato, 2004). Neste artigo, descrevemos alguns aspectos que apontam as vicissitudes do desenvolvimento do papel dos psicólogos que atuam em instituições de saúde mental pós lei antimanicomial e apresentamos a graduação como momento privilegiado para lançar as bases para que esse papel possa ser desempenhado em consonância com os princípios que levaram às mudanças legislativas. Entendemos que outras pesquisas qualitativas, especialmente as que envolvem equipes interdisciplinares, podem contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas articuladas que permitam a concretização de uma compreensão mais ampla da loucura e de um tratamento realmente humano e inclusivo do louco.

 

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Endereço para correspondência
Tatiana Camargo de Sant'Anna
SHIGS 706 Bloco C casa 03
70350-753, Brasília, DF, Brasil
Tel.: (61) 32423374.
E-mail:tatysantanna@gmail.com

Recebido 17/06/05
Reformulado 06/06/06
Aprovado 08/06/06

 

 

* Psicóloga. Estudo desenvolvido durante o período em que a primeira autora era aluna de graduação de Psicologia da Universidade Católica de Brasília.
**psicóloga, Doutora em Psicologia, Professora da Universidade Católica de Brasília.