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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.27 no.2 Brasília June 2007

 

ARTIGOS

 

Porta de entrada para adolescentes autistas e psicóticos numa instituição

 

Entrance door to psychotic and autistic adolescents in an institution

 

 

Katia Alvares de Carvalho Monteiro*; Mariana Mollica da Costa Ribeiro**; Angélica Bastos***

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta resultados de pesquisa realizada em serviço público carioca, pioneiro no atendimento a crianças e adolescentes autistas e psicóticos, o NAICAP (Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica) do Instituto Philippe Pinel. Seu objetivo é fornecer subsídios para a criação e implementação de projetos de assistência em saúde mental para adolescentes, o que se justifica pela carência de dados estatísticos e serviços nesse setor. Foi estudada a população de adolescentes atendidos entre 1986 e 2003. Participaram da pesquisa crianças que se tornaram adolescentes durante o tratamento e pacientes que procuraram o serviço já na adolescência. O trabalho descreve quantitativamente a proveniência geográfica, o diagnóstico, o encaminhamento e o tempo de permanência na instituição. Descreve-se o procedimento de porta de entrada, o dispositivo para o acolhimento do paciente e de seus familiares segundo a orientação psicanalítica. A investigação aponta a necessidade de criação de novos serviços e de desenvolvimento de projetos para a adolescência.

Palavras-chave: Adolescência, Instituição, Saúde mental, Autismo, Psicose.


ABSTRACT

This paper presents the results of a survey made at a public institution in Rio de Janeiro, a pioneer center for autistic and psychotic children and adolescents: NAICAP (Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica), from the Phillipe Pinel Institute. The goal of this survey is to supply subsidies for the creation and implementation of assistance projects in mental health for adolescents and it was developed due to the shortage of statistical data in this area. We have analysed the assisted adolescent population from 1986 to 2003. The children who turned into adolescence during the treatment at NAICAP and adolescent patients who looked for the service were the ones who took part in this survey. The paper quantifies the geographical origin, the diagnosis, the patients' previous information and the length of time spent at the institution. We have also described the entrance door procedures, a common practice used for welcoming the patients and their relatives in accordance to psychoanalytical guidance. The investigation indicates the need to create new services and also to develop further adolescent projects.

Keywords: Adolescence, Mental health, Autism, Psychosis.


 

 

A carência de dados estatísticos referentes à assistência em saúde mental para crianças e adolescentes no Brasil é reconhecida. Faz-se necessário, portanto, o levantamento de dados quantitativos a respeito da real situação da população infanto-juvenil que apresenta transtornos mentais e busca atendimento na rede pública de assistência.

Segundo dados encontrados na literatura disponível, estima-se que de 10% a 20% da população brasileira de crianças e adolescentes sofra de transtornos mentais. Desse total, de 3% a 4% necessita de tratamento intensivo (MS, 2005, p.5). No Município do Rio de Janeiro, há uma incidência de transtornos mentais na população infanto-juvenil "em torno de 10 a 15%,(...), chegando até 21% se tomarmos apenas uma população de adolescentes mais velhos" (Saggese, 1997, p.11). Esses dados foram encontrados também no projeto intitulado "DiverCidade" proposto pelo Núcleo de Atenção à Criança Autista e Psicótica (NAICAP) à Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Município do Rio de Janeiro, em 2003, destinado ao tratamento dos adolescentes atendidos nessa instituição.

Levando-se em conta somente a população na faixa etária entre quinze e dezenove anos, estima-se que entre setenta e seis e cento e catorze mil adolescentes apresentariam transtornos mentais no Município do Rio. Para complementar esses dados, registra-se que "cerca de 50% desses transtornos tendem a produzir incapacidade permanente" (Saggese, 2000, p.11). A população carioca com idade até dezenove anos representa cerca de 36,5% do total da população. Atualmente, esse percentual corresponde a cinco milhões, oitocentos e cinqüenta e sete mil e novecentos e quatro indivíduos. Considerando-se a incidência de transtornos psíquicos (entre 10 e 15%) nessa faixa etária, pode-se estimar entre duzentos e catorze e trezentos e vinte e um mil o número de crianças e adolescentes que necessitam de algum tipo de cuidado quanto à saúde mental no Município do Rio de Janeiro.

Esses números representam uma forte demanda aos ambulatórios, postos de saúde e CAPSIs voltados também para o atendimento de adolescentes. Qual a situação, em termos quantitativos, da assistência à adolescência na rede de saúde mental do Município de Rio de Janeiro para os casos que apresentam graves transtornos psíquicos?

Este trabalho pretende divulgar os resultados quantitativos obtidos em pesquisa realizada no período de 2003 a 2004. Estudou-se a população de adolescentes que foram atendidos, entre 1986 e 2003, na porta de entrada do Núcleo de Atenção à Criança Autista e Psicótica (NAICAP), um serviço do Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro. As análises desses dados somam-se a considerações qualitativas da experiência clínica com a referida população, nesse dispositivo de recepção dos pacientes e de seus responsáveis.

A pesquisa teve como objetivo mapear a origem da demanda dos adolescentes no âmbito das áreas programáticas do Município do Rio de Janeiro e monitorar a conduta terapêutica utilizada pelo NAICAP em cada caso, bem como o destino dado aos atendimentos (encaminhamento interno/externo, alta institucional e abandono do tratamento). Assim, o estudo pôde verificar as áreas que apresentam maior demanda. Constatou-se a carência de serviços em algumas delas. Investigou-se a efetividade dos atendimentos e encaminhamentos do NAICAP bem como a problemática envolvida no crescimento das crianças ao longo de seu tratamento no serviço e a subseqüente passagem dos adolescentes mais velhos para a rede de saúde mental dirigida aos adultos. Além disso, levantou-se e discutiu-se a especificidade das questões clínicas que envolvem o tratamento de adolescentes com transtornos mentais graves.

Em pesquisa realizada acerca da demanda de atendimento na porta de entrada do NAICAP, verificou-se um número significativo de adolescentes em atendimento. No follow-up dos casos encaminhados para outros serviços da rede municipal de saúde mental do Rio de Janeiro para infância e adolescência, verificou-se o mesmo. A pesquisa aqui relatada1 enfocou, portanto, a particularidade da problemática que envolve o tratamento desse segmento etário.

Foi destacado, do universo total de casos atendidos no NAICAP, um percentual significativo de pacientes que, em algum momento do tratamento, estavam na faixa etária entre doze e dezoito anos, para ser, então, analisado. A faixa etária pesquisada corresponde ao segmento da adolescência segundo parâmetros estabelecidos pelo E.C.A. (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Até o ano de 1999, o Instituto Philippe Pinel pertencia à administração federal, assim como os demais hospitais psiquiátricos e alguns hospitais gerais no Rio de Janeiro, que, desde então, foram municipalizados. Essa mudança reflete o processo de reforma da saúde pública no Brasil que, de acordo com os novos princípios e diretrizes propostos pelo SUS - Sistema Único de Saúde, tem como uma de suas perspectivas a redistribuição administrativa das regiões de assistência à saúde, visando ao melhor atendimento da população.

O movimento, iniciado nos anos 70, de crítica ao modelo "hospitalocêntrico" de assistência, veio definir estratégias e rumos na implantação da reforma psiquiátrica brasileira a partir dos anos 80, tendo como referência as experiências já em andamento em diversos países do mundo. Na I Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987, no contexto dos princípios e diretrizes do marco histórico da construção do Sistema Único de Saúde, foi explicitado o impasse do modelo assistencial asilar, baseado na tutela, na loucura como objeto da psiquiatria. Esse modelo foi considerado ineficaz para os usuários e para a sociedade, pois gerava exclusão social e seqüestrava a cidadania daqueles que apresentam sofrimento psíquico e, acima de tudo, violava os direitos humanos.

A reorientação do modelo assistencial, reafirmando a saúde como direito do cidadão e dever do Estado, partiu de alguns pressupostos básicos. Os pressupostos que guiaram a nova perspectiva de assistência em saúde mental foram: a inclusão social, a habilitação da sociedade para conviver com a diferença e a emancipação das pessoas portadoras de sofrimento psíquico através do projeto de desativação de hospitais psiquiátricos e da criação de uma rede substitutiva de cuidados, territorializada e integrada.

No entanto, em 2001, durante a III Conferência Nacional em Saúde Mental, ano da regulamentação da Lei nº 10.116 (Lei Federal da Saúde Mental), constatou-se que o modelo asilar ainda permanecia hegemônico em todo o País. A partir de ampla discussão envolvendo não apenas profissionais da saúde, usuários, representantes da comunidade como também o setor jurídico e o poder público - Conselho Nacional de Saúde e o Ministério da Saúde -, a reforma psiquiátrica brasileira passou a ter maior agilidade, dando início ao projeto de uma "Sociedade sem Manicômios" (Relatório da III Conferencia Nacional em Saúde Mental, 2001).

A reorientação das ações e reestruturação dos serviços no campo da saúde mental também teve repercussão no que diz respeito ao cuidado e ao tratamento da população infanto-juvenil. Contudo, só muito recentemente puderam-se verificar mudanças significativas se comparadas ao cuidado dispensado à clientela adulta.

As promulgações da Carta Constitucional de 1988, que veio afirmar a condição de cidadã de crianças e adolescentes, e da Lei nº 8069, de 1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura seus direitos, não operaram as mudanças necessárias na assistência em saúde mental para o segmento infanto-juvenil. Era necessária a efetiva consolidação de um novo modelo de cuidados.

A consolidação de fóruns estaduais e a criação do Fórum Nacional sobre Saúde Mental da Infância e Juventude, espaços de debate coletivo, possibilitaram o estabelecimento de diretrizes gerais. As diretrizes nortearam a política de atenção em saúde mental da criança e do adolescente, concretizada no ano de 2005, pelo Ministério da Saúde, em consonância com a Organização Mundial da Saúde.

Desde os anos 80, constata-se, entretanto, o surgimento de algumas poucas instituições destinadas ao atendimento na modalidade diária e intensiva para crianças e adolescentes com graves problemas mentais. O NAICAP foi o primeiro serviço dessa modalidade, que surgiu por iniciativa de alguns profissionais do Instituto Philippe Pinel, na época unidade do Ministério da Saúde, seguido do surgimento, em 1989, do PAICAP, extinto em 2003. No Município do Rio de Janeiro, somente no final da década de 90, surgiram os CAPSI's Pequeno Hans, em 1998, e o Eliza Santa Rosa, em 2000, instituições criadas a partir da formulação de uma política pública de saúde mental onde o dispositivo CAPS assume o papel centralizador na rede de cuidados. Orientada pela psicanálise desde a sua fundação, a direção do NAICAP buscou um dispositivo capaz de acolher a criança em sua singularidade: a porta de entrada. Esta se constituiu em um espaço de recepção da fala da criança ou adolescente e de seus familiares, etapa preliminar ao encaminhamento interno ou externo da demanda de atendimento.

Atualmente, os CAPSI's, serviços públicos de saúde mental infanto-juvenil de base territorial voltados para a atenção intensiva, são hoje uma realidade. No entanto, esses serviços são ainda insuficientes em número para atender à demanda dessa clientela mais grave que, na maioria das vezes, não recebe um atendimento resolutivo na modalidade ambulatorial.

À municipalização da rede de assistência em saúde, seguiu-se uma divisão do território municipal em áreas programáticas, nas quais as unidades de saúde assumem a responsabilidade administrativa e assistencial da região em que estão localizadas. O Instituto Philippe Pinel, portanto, o NAICAP, encontra-se localizado na AP 2.1, destinando-se prioritariamente ao atendimento da população circunscrita nessa área. No entanto, o serviço atende também a população residente na AP 1.0, devido a sua proximidade geográfica e à inexistência de serviços nessa área para a clientela mais grave; porém, o NAICAP recebe diariamente, em sua porta de entrada, encaminhamentos de diversos serviços da rede pública e privada das mais diversas regiões do Município, de todo o Estado do Rio de Janeiro e de alguns Estados vizinhos.

As pesquisas realizadas anteriormente pelo NAICAP constataram que uma quantidade significativa dos casos que buscavam atendimento em sua porta de entrada possuía idade superior a doze anos, embora a instituição tivesse, como proposta inicial, o atendimento precoce à infância com grave sofrimento psíquico. Observou-se uma escassez de instituições voltadas para o atendimento aos adolescentes com esse tipo de sofrimento, o que levou o NAICAP a acolher também os adolescentes.

 

Metodologia

Participantes:

A pesquisa estudou a população de adolescentes atendida no NAICAP ao longo de dezoito anos. A população foi determinada dentro do universo de pacientes recebidos na instituição desde sua fundação. O critério para seu recorte foi a idade do paciente durante o período de atendimento no serviço. Foi encontrado um total de cento e trinta e um casos que apresentavam essas condições. Esta população foi dividida em dois grupos: o primeiro era constituído de oitenta pacientes que eram adolescentes quando procuraram o NAICAP, e o segundo, de cinqüenta e um, que se tornaram adolescentes durante o tratamento na instituição. Foi considerado também um grupo separado dos doze adolescentes que se encontram, ainda, em tratamento no serviço.

Coleta de dados:

Desenvolveu-se um programa de informática capaz de calcular as idades a partir da planilha do banco de dados, de modo que a população estudada correspondesse apenas àqueles que tivessem completado doze anos em algum momento do atendimento na instituição.

Procedimento:

Foi necessário atualizar as idades, verificar as datas de nascimento, de entrada e de saída dos mesmos. A população foi devidamente organizada em formato de banco de dados, o que possibilitou a extração das diferentes tabelas e figuras. Classificou-se a clientela de acordo com a região de moradia, a hipótese diagnóstica levantada nas entrevistas preliminares, o número de retornos após o encaminhamento, o tempo de tratamento, a conduta terapêutica (encaminhamento externo, tratamento efetivado no serviço e alta institucional), o abandono de tratamento e a identificação das instituições para as quais o NAICAP encaminhou esses adolescentes.

 

Resultados

Dos setecentos e oitenta e sete pacientes atendidos pelo NAICAP de maio de 1986 a dezembro de 2003, cento e trinta e um, correspondentes a 17% da população pesquisada, eram ou se tornaram adolescentes durante o atendimento na instituição, como aponta a figura 1.

 

 

Através da análise da área de moradia da população de adolescentes atendidos na instituição, constatou-se um número muito grande de pacientes que habitam outras regiões do Município do Rio em relação àquela (AP 2.1) de responsabilidade do serviço. Foi constatado que 52% dos pacientes atendidos residem em áreas que o NAICAP não está destinado a assistir. Encontra-se, ainda, um número significativo de pacientes, da ordem de 17% da demanda, provenientes de outros Municípios e outros Estados, como aponta a tabela 1. Desse modo, apenas 31% dos pacientes atendidos no serviço habitam a área em que o serviço está destinado.

 

 

Observamos, na figura 2, que 61% dos pacientes atendidos correspondem àqueles que procuraram atendimento já em idade superior a doze anos, ou seja, a maioria dos adolescentes atendidos no NAICAP já era adolescente quando procurou o serviço.

 

 

No que se refere aos encaminhamentos dos adolescentes para outros serviços, realizados em dezoito anos de existência do NAICAP, apenas 1% retornou uma vez à instituição após o encaminhamento, e outro 1% retornou duas vezes.

Em relação à hipótese diagnóstica levantada a partir das entrevistas preliminares com os adolescentes que tiveram atendimento no NAICAP, observou-se grande demanda de atendimento para casos de autismo e psicose. Constatamos, a partir da tabela 2, que, em 38% dos casos atendidos, levantou-se a hipótese diagnóstica de autismo e, em 27%, a de psicose.

 

 

Verificamos, na figura 3, que a maioria dos adolescentes que se tratou na instituição teve encaminhamento externo, e uma parcela significativa da população estudada (16%) abandonou o atendimento durante a assistência na porta de entrada.

 

 

Sobre o tempo de tratamento daqueles que procuraram o serviço já na adolescência, quantificado na tabela 3, 63% foram atendidos por um período de até um mês, o que indica que foram logo encaminhados. Os 9% de atendimentos que duraram de um a dois anos são caracterizados, em sua maioria, por casos muito graves que necessitaram de um trabalho mais prolongado anterior ao encaminhamento. Os pacientes que passaram mais de dois anos em atendimento, 4% de adolescentes, correspondem àqueles que foram absorvidos pelo serviço e tiveram alta institucional depois de efetivado o tratamento.

 

 

A tabela 4 demonstra que a maioria dos cinqüenta e um adolescentes que entrou no NAICAP ainda criança deu continuidade ao seu tratamento na instituição. Destes, 29% tiveram alta após a conclusão de seu tratamento na instituição. Constata-se, porém, que 27% dessas crianças foram encaminhadas quando se tornaram adolescentes na instituição.

 

 

A figura 4 apresenta a área de moradia dos adolescentes que ainda se encontram em tratamento no NAICAP. Observamos que 33% e 34% habitam em áreas atendidas pelo serviço, que somam 67% dos adolescentes ainda em atendimento, porém, encontra-se, ainda, um total de 33% (25% + 8%) que mora em outras regiões.

 

 

 

Discussão

A presente pesquisa tem origem na constatação, evidenciada na figura 1, de que um número significativo de pacientes atendidos ao longo da existência do NAICAP encontrava-se, em algum momento do tratamento, dentro da faixa etária da adolescência.

Os dados observados na tabela 1 justificam a superlotação na porta de entrada do NAICAP, o que provoca dificuldades na absorção mesmo daqueles residentes na própria região a que o serviço está destinado. Tamanha demanda provoca ainda uma sobrecarga de trabalho para os profissionais que se vêem ocupados com inúmeras entrevistas iniciais. Esses dados demonstram também a escassez de serviços voltados para o atendimento de adolescentes, tanto nas diversas regiões do Município do Rio como em Municípios vizinhos e até outros Estados. Tais números evidenciam ainda a grande dificuldade cotidiana, vivenciada pelos profissionais do serviço, no encaminhamento dos adolescentes que não residem na área de abrangência do NAICAP.

Ao longo de sua existência, o NAICAP desenvolveu procedimentos para enfrentar essas dificuldades: o trabalho de porta de entrada e uma dinâmica nos encaminhamentos. Com isso, evitam-se as filas de espera, a peregrinação anônima dos adolescentes e crianças pelos serviços da rede e promove-se uma efetividade nos encaminhamentos. A porta de entrada baseia-se em entrevistas individuais da criança ou adolescente e de sua família para todo aquele que busca tratamento, independentemente da região em que mora, da gravidade do caso ou qualquer outra variável observada. Esse é um período de avaliação diagnóstica, interrogação da demanda e preparação para a absorção do caso ou para encaminhamento externo. Durante a porta de entrada, cada caso é discutido em equipe, para que seja verificada qual a melhor indicação clínica de tratamento. A dinâmica de encaminhamento consiste no contato, caso a caso, com o serviço para o qual o NAICAP pretende encaminhar a criança e/ou o adolescente, visando às possibilidades de efetivação do encaminhamento e de absorção resolutiva do paciente no novo serviço.

No que se refere ao encaminhamento dos adolescentes, mesmo com um número restrito de serviços dispostos a recebê-los, constata-se um baixo percentual de retorno desses pacientes de volta ao NAICAP. Esse baixo índice de retorno, extremamente significativo, permite-nos constatar que a prática baseada no contato interinstitucional visando à efetiva absorção de cada caso é mais eficaz do que o encaminhamento burocratizado.

As crianças e adolescentes encontravam-se, até a década de 90 e ainda hoje, em alguns casos, sob a tutela dos chamados "abrigos para deficientes", que estão à margem do sistema formal de saúde mental e constituem asilos que não apresentam diretrizes de tratamento, mas, ao contrário, submetem essas crianças e adolescentes à banalização de sua condição humana. Chegada a maioridade, muitos deles ingressam na rede hospitalar psiquiátrica. Segundo Couto (2001), um estudo realizado pela ASM/SES, no início de 2000, mostrou que aproximadamente 70% dos Municípios utilizavam os dispositivos da rede filantrópica como principal recurso no atendimento de crianças e adolescentes no País, embora essas instituições - como APAEs e Pestalozzis - tivessem anteriormente suas diretrizes voltadas exclusivamente para o atendimento de pacientes portadores de deficiência mental. Em apenas 20% dos Municípios do País, os programas de saúde mental atendem a casos diagnosticados de autismo e psicose, sendo o tradicional modelo ambulatorial o dispositivo utilizado para a maioria deles. Pacientes autistas e psicóticos encontram-se errantes pelas instituições, sem atendimento, e submetidos à pedagogização de suas condutas bizarras e à excessiva medicalização, com graves conseqüências para suas vidas.

A reorientação frente ao impasse colocado pelas crianças e adolescentes, que parecem ocupar novo lugar nas discussões e preocupações das políticas públicas de saúde mental, nos últimos anos, é conseqüência da problemática que vem sendo levantada a respeito da loucura na infância. As crianças eram compreendidas como portadoras de deficiência ou desadaptação, como se houvesse um desvio da normalidade em seu desenvolvimento, sendo considerados "seres da desrazão" por seus tutores (mestres, médicos ou juízes). A estes caberia fazê-las retomar o curso normal de desenvolvimento, sem consideração a sua dimensão subjetiva e sem reconhecimento de seu direito à palavra (Couto, 2001).

Como ressalta Carvalho (1996), o conceito de infância, do modo como o concebemos hoje, é o resultado de uma construção histórica: no início do século XX, com a introdução do conceito de sexualidade infantil cunhado pela psicanálise, a concepção de inocência da criança será descaracterizada. A partir da práxis inaugurada por Freud, podemos conceber a criança como um sujeito que, como qualquer outro, encontra-se aprisionado numa rede discursiva de onde será impelido a responder.

A clínica psicanalítica com crianças e adolescentes não propõe a massificação com cuidados nem a normatização de seu comportamento ou a adaptação de sua desadaptação. A psicanálise aposta na possibilidade de escuta do sujeito que aparece no sintoma e de endereçamento do mal-estar inerente à condição humana. Abre-se espaço, assim, para que crianças e adolescentes se responsabilizem pela "reconstrução de sua própria história" (Carvalho, 1995, p.4), mediante a construção de uma fala autoral, que lhes permita sair da posição de objeto na relação com o outro.

Diante da grande procura de atendimento em serviços destinados especificamente a uma clientela mais grave, escassos no final dos anos 80, o Instituto Philippe Pinel, que contava com um serviço ambulatorial para infância e adolescência, através da iniciativa de alguns profissionais, criou o Programa de Cuidados Intensivos à Criança Autista e Psicótica. Verificou-se, no serviço infanto-juvenil já existente no Instituto Philippe Pinel, que, nos casos mais graves, o atendimento ambulatorial era insuficiente para o avanço do tratamento, e constatou-se que o modelo de atenção intensiva trazia maior efetividade.

A partir de 1992, o referido programa passou a ser um serviço infantil independente na instituição, o NAICAP, caracterizando-se como um serviço para assistência, ensino, pesquisa e formação de recursos humanos na área do autismo e psicose na criança. Durante o período preliminar ao tratamento no NAICAP, trabalha-se na construção de uma demanda de atendimento baseada no dito do paciente e, quando ele não fala, em seus apelos ou movimentos na direção do outro. Sua aparente bizarrice, suas estereotipias, suas automutilações são consideradas manifestações endereçadas àquele que o escuta. A aposta na transferência, condição do tratamento psicanaliticamente orientado, guia a equipe desde esses primeiros contatos. Assim, mesmo que o paciente não possa ser absorvido pelo serviço, a preocupação do NAICAP centraliza-se em seu acolhimento como um trabalho inicial na rede de saúde mental.

Depreende-se, da tabela 2, a necessidade de o NAICAP privilegiar o tratamento destinado a patologias como o autismo e a psicose na criança e, sobretudo, justifica-se a existência de serviço como ele. Podemos sublinhar ainda, com base nesses dados, a necessidade de reorganização dos serviços já existentes com a criação de propostas de trabalho dirigidas para essa clientela, se levarmos em consideração também a porcentagem de adolescentes que recebem encaminhamento externo.

De acordo com a figura 2, a maioria dos pacientes atendidos no NAICAP já era adolescente quando procurou o serviço. Esse dado indica a importância de estudos voltados para o tratamento dessa faixa etária, incluindo investigações sobre as razões que levam um número tão elevado de casos a procurar tratamento nesse momento da vida.

O número significativo de adolescentes que abandonaram o serviço corresponde, muitas vezes, a pais e/ou responsáveis, que declararam, em entrevista, terem usado o recurso de inscrever os filhos simultaneamente em filas de espera de outros serviços, dada a dificuldade de atendimento na rede de saúde mental para essa clientela. Chamados para atendimento nesses serviços, abandonaram as entrevistas preliminares no NAICAP.

O grande número de adolescentes que tiveram um curto tempo de tratamento na instituição e logo foram encaminhados, como revela a tabela 3, pode ter duas explicações. Os adolescentes moravam em regiões muito distantes cuja responsabilidade administrativa e assistencial não era do NAICAP, mas para as quais se conseguiu encaminhamento ou tratava-se de pacientes cuja melhor indicação de tratamento, segundo a hipótese diagnóstica levantada, não correspondia àquele oferecido pelo NAICAP, como, por exemplo, os casos que apresentavam quadros de síndromes neurológicas.

A porcentagem significativa de adolescentes que iniciou seu tratamento ainda criança e teve alta institucional, como apresenta a tabela 4, documenta um ponto importante. O NAICAP se preocupou em delimitar um momento de encerramento nos tratamentos, mesmo daqueles que, por apresentarem um quadro grave do ponto de vista psíquico e precisarem de acompanhamento durante toda a vida, têm um percurso de tratamento na instituição que configura um limite terapêutico alcançado em cada caso. Isso não impede que esses pacientes possam continuar seu tratamento em outro modelo de atendimento, como o ambulatorial, por exemplo. De todo modo, encontra-se ainda um grande número de crianças que, quando se tornaram adolescentes, foram encaminhadas para outros serviços. Esse resultado enfatiza a importância da efetivação de projetos específicos para o tratamento de adolescentes na instituição. Dentre tais projetos, destacam-se propostas como, por exemplo, o trabalho externo com uso de recursos da comunidade, visando à inclusão do adolescente a partir de atividades de seu próprio interesse.

Das cinqüenta e três crianças atualmente atendidas no NAICAP, doze são adolescentes. Apurou-se que semelhante proporção entre crianças e adolescentes foi encontrada também no total de pacientes atendidos no NAICAP de maio de 1986 a dezembro de 2003 (conforme figura 1). Vemos, assim, a preocupação da instituição em atender à demanda de modo equilibrado e dentro de sua capacidade de absorção. Um serviço de atenção diária e intensiva destinado a casos graves possui pouca rotatividade de sua clientela. Segundo o estudo de follow-up, o tempo médio de permanência da clientela no NAICAP é de quatro anos. Observamos a preocupação do serviço na absorção da clientela correspondente à sua área programática, conforme demonstrado na figura 4, embora o NAICAP assuma o tratamento daqueles que moram em outras regiões e não podem ser atendidos próximo a sua residência por falta de serviços adequados.

 

Considerações finais

Concluímos, a partir dos dados analisados na pesquisa, que é de grande importância o aprofundamento do estudo voltado para os adolescentes com grave sofrimento psíquico, bem como de ações públicas voltadas para essa faixa etária no Município do Rio de Janeiro. Essa conclusão se justifica pela grande demanda de atendimento para esses casos. Observamos ainda que, mesmo num serviço como o NAICAP, pioneiro na problematização e atendimento a saúde mental destinado à infância e à adolescência com graves transtornos mentais, encontram-se sérias dificuldades no tratamento dessa clientela, seja por insuficiência de recursos humanos, seja pelo pouco incentivo à efetivação dos projetos voltados para os adolescentes, seja pela dificuldade de encaminhamento encontrada quando o paciente não se beneficia do serviço oferecido pelo NAICAP. Mais uma vez, observa-se a escassez de serviços na rede pública de saúde mental para essa parcela da população.

Além do grave problema enfrentado por adolescentes que buscam atendimento na rede de saúde mental carioca e não o encontram, para aqueles que o encontram, contudo, faz-se necessária a diferenciação de seu atendimento específico, ao invés de seu atendimento em serviço direcionado, originalmente, para a criança.

A adolescência, como um tempo de assunção da puberdade, com o despertar da sexualidade e o eventual aumento da agressividade, representa, para aqueles que portam um transtorno psíquico grave, um período de extrema dificuldade no destino de suas pulsões. Por isso mesmo, esses pacientes exigem e merecem um tratamento diferenciado.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Katia Alvares de Carvalho Monteiro
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Recebido 08/06/05
Reformulado 15/09/06
Aprovado 16/11/06

 

 

* Fundadora e coordenadora do NAICAP (1987-2004), preceptora da Residência em Psiquiatria e Saúde Mental Infantil do IMPP-RJ; psicanalista.
** Mestre em Teoria Psicanalítica -IP/UFRJ; psicanalista.
*** Professora adjunta do Programa de PG em Teoria Psicanalítica - IP/UFRJ. Doutora em Psicologia, PUC-SP; psicanalista.
1 Esta pesquisa está inserida no Projeto Integrado de Pesquisa "A Constituição do Sujeito e a Direção do Tratamento na Psicose", através do convênio de cooperação técnica estabelecido entre o Instituto Municipal Philippe Pinel e o Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tanto o estudo de follow-up quanto a pesquisa que enfocou o segmento da adolescência e originou o presente trabalho contaram com o apoio da FAPERJ.