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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.27 n.2 Brasília jun. 2007

 

EXPERIÊNCIAS

 

Vínculo e confiança em atendimento psicoterapêutico psicodramático grupal com presidiários

 

Bond and trust in group psychodrama psychotherapy care with prisoners

 

 

Daniel Gulassa*

Sociedade de Psicodrama de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discorre sobre experiências de atendimento a presos realizadas em instituições penitenciárias de Franco da Rocha, numa proposta psicoterápica grupal utilizando a metodologia do psicodrama. Busca-se demonstrar a importância de trabalhos dessa natureza, a partir de um foco na questão do vínculo terapêutico e da co-criação de vínculos de confiança. O relato, baseado na prática de atendimento a um grupo, caracterizado por quatorze encontros com onze detentos durante o segundo semestre de 2004, também considera a troca de experiências com colegas de trabalho, membros do grupo Mentes sem Grades. O desenvolvimento de vínculos de confiança possibilita novas experimentações de papéis, que podem estimular esperança, amor e talvez a superação de um ciclo que envolva isolamento e exclusão. O resultado do trabalho indica um aumento da tolerância dos presos em relação a sua própria condição, além de melhora nas relações interpessoais entre estes e também entre os não-presos.

Palavras-chave: Psicoterapia psicodramática grupal, Vínculo, Confiança, Presidiários.


ABSTRACT

This article reports care experiences with prisoners carried out in the penitentiary institutions of Franco da Rocha, in a group psychotherapy proposal that used psychodrama methodology. The aim is to demonstrate the importance of the work of this nature, focused on the issue of the therapeutic bond and of on the co-creation of trust bonds. The report, based on the practice of care given to a group, totalizing fourteen meetings and was composed of eleven prisoners during the second semester of 2004, also considers the exchange of experiences with coworkers, members of the group Minds without barriers/prison bars. The development of trust bonds allows them to experience new roles, stimulating hope, love and making it possible to help them overcome a cycle that involves isolation and exclusion. The work results indicate an increase of tolerance of the prisoners toward their own condition, in addition to an improvement in their interpersonal relationships with other prisoners as well as with non-prisoners.

Keywords: Group psychodrama psychotherapy, Bond, Trust, Prisoners.


 

 

A modalidade de atendimento psicoterápico psicodramático grupal foi iniciada na penitenciária de segurança máxima Mario de Moura e Albuquerque (Franco da Rocha 1), em março de 2002, a partir da finalização de uma parceria dessa instituição com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Com o término da atividade, estudantes e ex-alunos da mesma universidade, numa iniciativa independente de trabalho voluntário, deram continuidade à prestação do serviço, que veio a expandir-se também para a penitenciária Nilton Silva (Franco da Rocha 2) e para a unidade semi-aberta. O grupo realizador de tais atendimentos, auto-intitulado Mentes sem grades, era constituído, no primeiro semestre de 2005, por um supervisor, três psicólogos (diretores) e três estudantes (egos-auxiliares) do quinto ano de Psicologia da PUC-SP1.

Os atendimentos, realizados em grupos - temáticos ou não - eram coordenados por unidades funcionais de um diretor e um ego-auxiliar. Cerca de quinze detentos eram convidados a freqüentar cada grupo, que se reunia com freqüência semanal e tinha a duração de uma hora e meia. Os grupos eram mantidos por um semestre e eram priorizados os participantes que não haviam freqüentado nenhum dos grupos anteriores de psicoterapia, para dar oportunidade a um número maior de pessoas.

O trabalho foi bem recebido pela instituição carcerária, carente de investimentos e atividades relacionadas com o lado humano do presidiário. Acreditamos que os atendimentos beneficiaram o preso, por lhe oferecerem um momento diferenciado em sua rotina, quando a ele foi permitido colocar-se de uma maneira mais criativa para poder refletir sobre sua vida.

 

Algumas particularidades deste trabalho em presídio

Para a fluência de nosso trabalho, foi necessário, dentre outras coisas, adquirirmos certa familiaridade tanto com as leis da cadeia quanto com seu vocabulário. Lá dentro, deveríamos ser imparciais, no sentido de não assumirmos propriamente nem o lado dos presos, nem o da carceragem, nem o da diretoria, mas precisávamos cultivar o apoio de todas essas instâncias - também não poderíamos desempenhar o papel de "zé-povinho" (termo pejorativo usado pela população carcerária relativo ao homem comum que ignora a realidade e a cultura de uma cadeia).

Para uma compreensão básica do funcionamento de uma cadeia, diria que a rotina de um presídio sofre influência de duas grandes forças normativas em seu cotidiano. A primeira é constituída pelas regras sistematizadas pela própria instituição carcerária, que controla o local a partir dos espaços que disponibiliza e dos horários que regulamenta. Em relação aos espaços - áreas físicas dentro do presídio -, há os pavilhões (ou "raios"), onde se localizam as celas (ou "barracos"), ao redor de uma quadra de futebol, que é onde os presos se exercitam e tomam sol. Também existe o "castigo" (ou "pote", apelido que faz referência ao tamanho do lugar), que é o local para onde vai o preso como punição por ter feito algo de errado, do ponto de vista da carceragem, e o "seguro" (ou "amarelo", fazendo referência à cor de quem fica ali, após muito tempo sem sol), que é onde ficam aqueles presos que estão jurados de morte por outros presos (muitas vezes estupradores ou justiceiros). O controle a partir dos horários refere-se aos momentos de abertura das celas, de seu fechamento - a "hora da tranca" -, de almoço e jantar, de visita, etc.

Já a segunda força normativa, determinada a partir da primeira, organiza o dia a dia dos presos com um complexo sistema de normas ditadas por uma hierarquia construída por eles mesmos. Está, em geral, condicionada às funções inerentes ao cotidiano do presídio, ou seja, quem tem mais poder são os responsáveis pela limpeza (os "faxinas") e pela comida (os "bóias") - e, acima destes, as lideranças entre os presos; são os denominados "pilotos". Até por sua superioridade numérica e contato próximo, essa força normativa dos presos tem um controle interno, digamos, mais minucioso sobre o que acontece lá dentro do que a carceragem, muitas vezes para além das vistas desta última, o que significou também que, não raramente, tivemos de lidar com pessoas de hierarquias diferentes dentro de cada grupo psicoterápico.

Pode-se perceber, então, que uma cadeia está longe de ser um local sem moral - uma "terra de ninguém". Pelo contrário, é um local em que há um código próprio entre os presos, inclusive muito mais rigoroso que no mundo fora dali. Transgredir essas leis é cometer "patifaria", e a punição pelos companheiros é rápida e pode chegar à pena de morte.

Para quem observava de fora nosso trabalho, era comum achar que estávamos correndo grandes riscos na sua realização. Claro que existia algum, já que "uma cadeia é sempre uma pequena caixa de surpresas" (como descreveu uma vez um dos funcionários). Mas a prática também nos ensinou que os presos aprendem a valorizar nosso trabalho: se um de nós fosse agredido por algum deles, por exemplo - o que, de fato, nunca ocorreu -, a sensação que compartilhávamos era de que este poderia acabar sendo agredido por outros presos. Tudo isso tem a ver com o vínculo de confiança que fomos construindo com todas as forças que interagiam no ambiente da penitenciária - e que eram nossa maior segurança lá dentro.

Vale dizer também que priorizamos o atendimento em dias próximos ao final de semana, já que o clima na cadeia, como um todo, era mais tranqüilo quando se aproximava o dia da visita (aos sábados ou domingos).

Focaremos, ao falar sobre os atendimentos, a questão do vínculo terapêutico, que já é um tema-chave de qualquer trabalho de natureza terapêutica, e talvez aqui seja ainda mais, pela particularidade dos locais dos atendimentos em questão - instituições penitenciárias -, cujo ambiente estimula a desconfiança e o isolamento em detrimento da inclusão social.

 

Considerações sobre o vínculo terapêutico

Uma das características importantes de um processo psicoterápico grupal é o estabelecimento do vínculo de confiança entre o terapeuta, o grupo e o indivíduo. Luiz Amadeu Bragante, nosso supervisor, comenta acerca dos três cs necessários para o bom desenvolvimento de um processo psicoterápico grupal: contrato, continência e confiança.

 

Contrato

O contrato está na base do trabalho, sendo parte fundamental do mesmo - é o estabelecimento das regras que vão reger nosso espaço terapêutico, sustentar nosso papel profissional e garantir o desenvolvimento do trabalho.

Com exceção da unidade semi-aberta, que teve uma configuração de grupo e um contrato próprios, os demais contratos estabelecidos nos grupos psicoterápicos pelos profissionais do Mente sem grades foram sugeridos aos integrantes de cada grupo a partir de uma linha comum, sendo esta a seguinte:

• A freqüência ao grupo não é obrigatória.

• Os participantes com 75% ou mais de presença recebem um diploma de participação (costumávamos dizer-lhes que não garantíamos que o certificado fosse ajudar no "abrandamento" da pena de nenhum de seus freqüentadores).

• No certificado, irá constar o reconhecimento (por questões burocráticas) de que esse é um grupo de "reabilitação", mas trata-se, efetivamente, de um grupo de "psicoterapia".

• Como grupo de psicoterapia, é importante que haja sigilo sobre o que é conversado em grupo (que significa que ninguém deverá conversar sobre o que aconteceu fora do ambiente grupal) e isso vale para nós, psicoterapeutas, também _ que não conversaremos sobre tais assuntos com a carceragem, nem com a diretoria. Nossa única exceção é nossa supervisão, e poderemos escrever sobre o assunto, mantendo qualquer nome sob sigilo (a função dessa regra era de que eles pudessem sentir-se confortáveis em nos trazer questões delicadas, bem como de que houvesse um clima de respeitabilidade pelas questões trazidas pelos colegas).

• Os assuntos discutidos virão do próprio grupo.

• Caso, por algum motivo, os terapeutas não possam realizar um encontro, seus freqüentadores serão avisados com antecedência.

• Data para o término do grupo é preestabelecida e já informada no primeiro encontro.

• Cada encontro tem a duração de uma hora e meia - das 9h30 às 11h, às quintas-feiras.

• Alguns outros esclarecimentos sobre o trabalho: não somos da reabilitação, não damos palestra, não temos vínculo empregatício com a instituição penitenciária, não fazemos nenhum tipo de favor, como "levar pipa" (passar recado).

• O que ganhamos com esse trabalho: é um trabalho voluntário que nos proporciona ganhos em experiência profissional.

Vê-se que esse contrato também está relacionado com a confiança, na medida em que ele também é um compromisso nosso, e, se cumprimos o que prometemos (que é algo extremamente importante na cadeia), há uma demonstração prática de que somos dignos de confiança. Se houver necessidade, poderemos reformular alguma parte de nosso contrato verbal, mas sempre levando em conta que, se alguma regra é mudada, a mudança servirá para todos os do grupo.

Sem propriamente desrespeitar nenhuma regra da carceragem, nem da organização dos presos, os grupos foram, então, criando regras próprias, numa dinâmica diferenciada, valorizando a expressão e agindo como um sensibilizador para um refletir criativo sobre a realidade.

 

Continência

Esse conceito é utilizado no sentido de acolhimento - todos os do grupo têm o direito de falar e expressar seus sentimentos, que devem ser respeitados e legitimados. Essa é uma função que o grupo constrói e deve ser explicitada, mas o seu cumprimento é determinado pela prática, que deve ser exercitada a cada momento, cabendo aos diretores e egos-auxiliares direcionarem o trabalho nesse sentido. Saber ouvir é uma das principais bases da continência, e nisso, nós, psicólogos, exercitamos uma das maiores qualidades de nossa profissão: a escuta qualificada.

A continência em si pode não ser uma tarefa simples, mas a necessidade de um espaço de expressão é especialmente importante quando se está permanentemente num ambiente em que se circula e se pratica o ditado: "A língua é o chicote do corpo", que nada mais é do que uma versão implacável da máxima: "Tudo o que você disser poderá e será usado contra você".

Exemplificando, algo que emergiu com bastante freqüência em muitos dos grupos atendidos, a partir dessa possibilidade de expressar-se livremente, referiu-se ao desejo constante dos presos por uma compreensão maior por parte da sociedade. Essa reivindicação, além de ser pronunciada com todas as letras, também transpareceu a partir de uma curiosidade em relação ao que nós, terapeutas, que estávamos no "mundo livre" e, sendo "cidadãos de bem", pensávamos deles, com perguntas como: "O que vocês fariam se encontrassem algum de nós na rua?"; "Vocês nos evitariam?"; ou frases do tipo: "Nós não somos aqueles monstros que vocês vêem na televisão", entre outras.

No caso do grupo que aqui será nossa referência (chamá-lo-ei de grupo X), esse questionamento, associado ao conceito de realidade suplementar, gerou uma dramatização de um programa de entrevistas ao estilo Programa do Jô. O apresentador - representado por um dos presos - entrevistou alguns representantes da população carcerária, que puderam falar de todas as suas insatisfações. Nesse sociodrama, eles puderam, representando sua "categoria", expor suas crenças e mostrar quem eles realmente são, do seu ponto de vista. Concomitantemente, também puderam representar outros papéis, como o de produtores do programa, familiares de presos, "zé-povinhos", e até familiares de vítimas de crimes e outros mais. Houve estímulo para que os participantes do grupo experimentassem representar mais de um papel nessa dramatização, mostrando-lhes a possibilidade de visões múltiplas sobre o mesmo evento, além de testar sua aceitação e a dos colegas no desempenho de uma ação diferente.

 

Confiança

O velho dicionário Aurélio define confiança como: "Segurança íntima de procedimento; crédito; boa fama; segurança e bom conceito que inspiram as pessoas de probidade, talento, discrição, etc.; esperança firme; familiaridade".

No mesmo dicionário, probidade significa "Qualidade de probo; integridade de caráter; honradez, pundonor". Não parece paradoxal querer desenvolver um vínculo de confiança nesses termos justamente com aqueles que a sociedade julga serem pessoas destituídas de tais qualidades?

Essa questão deve ter perpassado a mente de nossos pacientes em questão, pois notamos que, com uma considerável constância no processo inicial dos nossos grupos psicoterapêuticos, alguns deles traziam como relato terem sido vítimas de um sistema perverso que os condenou injustamente por algo que não fizeram. Esse relato, tão comum nos primeiros encontros, teve sua freqüência diminuída, tendendo a cessar completamente com o tempo. Outros, acompanhando o mesmo movimento, levavam os relatos para o lado oposto, dizendo-se "maus" mesmo, e que matavam mesmo, por honra ou pelo que fosse (aparentemente, ser "mau" também pode trazer seus benefícios ali, como o respeito de companheiros). Outra explicação, mais sóbria, que ecoou mais de uma vez pelas salas de nossos grupos, foi a de que "ninguém aqui é santo, e todo mundo foi condenado, mas cada um está cumprindo a pena que foi estabelecida pela sociedade - e estamos pagando pelos nossos erros".

No início do grupo X - que dirigi com a ajuda da então estudante de Psicologia Thaís Guimarães, como ego-auxiliar - havia muita desconfiança em relação a nós. Esta era verbalizada por um porta-voz que sempre questionava os "verdadeiros motivos" de estarmos ali, não apenas por sermos pessoas estranhas àquele ambiente, mas também por nos apresentarmos como psicólogos. Até então, apenas um dos integrantes do grupo havia tido uma experiência com psicólogo, e o imaginário que predominava sobre nossa categoria era o de contratado pela instituição que dava laudos de habilidade para liberdade condicional.

Só viemos a descobrir esse imaginário do grupo quando as perguntas e comentários desconfiados passaram a se repetir, junto a pedidos de que fizéssemos diagnósticos deles. Às vezes eles diziam que "fôssemos logo ao ponto" para que descobrissem o que ambicionávamos, o que realmente estávamos fazendo ali, o que queríamos deles e o que ganhávamos com isso. Nossas respostas não os satisfaziam.

Essa situação foi recorrente, e, depois de ouvirmos algumas vezes que nunca entenderíamos a verdadeira condição deles, pois não vivíamos essa realidade, decidimos realizar uma dramatização em que os presos atuaram como psicólogos, e a ego-auxiliar, como preso. Coube, então, a cada um dos "psicólogos", avaliar o "preso", a partir de entrevistas, para decidir se este poderia sair em liberdade condicional. No final, ainda houve uma reunião do "conselho de psicólogos", em que discutiram o caso: a avaliação final destes, por unanimidade, concluiu que o preso não podia ter sua liberdade provisória concedida "porque ele estava mentindo". Depois, nos comentários, disseram que o tempo era curto demais para fazer uma avaliação mais consistente. Com essa dramatização, que se baseou na técnica de inversão de papéis, eles puderam diferenciar nosso trabalho real a partir da concepção que permeava o imaginário do grupo. Depois desse dia, só se repetiram perguntas desconfiadas por parte de quem havia faltado a essa sessão em particular.

O grupo começou a se configurar de outra forma. Não havia mais uma desconfiança tão forte em relação a nós, psicólogos; pelo contrário, um vínculo positivo se instalou entre nós. Um obstáculo importante havia sido superado, mas isso também tornara visível a desconfiança que os próprios presos tinham uns dos outros.

Já na semana seguinte, começamos a exercitar a confiança entre eles. Pedimos para que cada um expusesse algo que nunca fora falado antes. Notamos que muitos tinham mais facilidade de compartilhar suas experiências em pequenos grupos (suas panelinhas). Aos poucos, alguns presos foram se sentindo confortáveis ao abordar questões pessoais no "grupão". Um deles falou, inclusive, de uma ocorrência recente: uma fuga planejada que incluía o envenenamento de funcionários - um plano que não dera certo, pois eles haviam sido descobertos antes de sua efetuação. Pensamos: Até que ponto queremos que eles se abram para nós? Seria desejável que eles nos contassem esse plano, se o mesmo ainda estivesse em andamento? Esse talvez tenha sido um dos limites da nossa confiança, exatamente para evitar possíveis futuras desconfianças.

Já quase no final do semestre, o mesmo preso que se mostrara porta-voz da desconfiança disse que gostaria de conversar sobre "o que é o amor", pois não sabia o que era isso. O tema foi acolhido pelo grupo e ocupou o encontro seguinte inteiro, sem chegarmos a um consenso. Fizemos um levantamento e percebemos existir, para eles, várias formas de amar - além de constatarmos que "amor" e "traição", no imaginário dos integrantes desse grupo, eram conceitos que caminhavam juntos.

Nas últimas sessões, fomos trabalhando o encerramento do grupo - e também a diferença entre abandono e finalização. Dentro do presídio, normalmente se evita conversar sobre sofrimentos, perdas e saudades, e essa foi uma boa oportunidade para falarmos de tais assuntos. No último dia, comemoramos com um pequeno ritual de finalização. Levamos um bolo. Os presos prepararam uma carta de agradecimento; em determinado trecho, manifestaram: "... do fundo do coração, por todos os momentos que nós passamos juntos, creio que, no fundo, buscamos as mesmas coisas (...) terás sempre a nossa lembrança..." Eles chegaram a arrumar um presente para Thaís, mas não o trouxeram, pois não encontraram um presente para mim. Resolveram, então, não entregar nenhum presente, para não parecer que eles "gostaram" mais dela do que de mim. Essas atitudes sugerem o desenvolvimento de vínculos de respeito e sinceridade interessantes.

Enfim, os três cs representam, então, etapas na co-construção de um vínculo terapêutico: o contrato contextualiza a natureza da relação terapeuta-paciente; a continência oferece um espaço de escuta e acolhimento, construindo a base para o vínculo de confiança. Logo, este último não existe sem haver um espaço desenvolvido de continência, e esta, por sua vez, não é possível aos nossos propósitos sem um contrato também adequado.

 

Alguns desafios relativos ao vínculo e à confiança com presidiários

O estabelecimento de vínculos de confiança de um detento com a sociedade costuma ser uma tarefa dificultosa. Cito aqui um exemplo que ocorreu com o próprio J. L. Moreno, pai e fundador do psicodrama, que aparece em sua autobiografia:

Tínhamos, na ocasião, um cozinheiro chinês, um dos melhores cozinheiros que tivemos. Gretel [e Regina] eram fascinadas por ele, e se tornaram bons amigos. Um dia um oficial de condicional veio para checar o cozinheiro. Descobri que ele havia assassinado sua mulher e acabara de cumprir uma pena longa em Sing Sing2. Como eu tinha uma clínica psiquiátrica, não podia aceitar ter um assassino condenado dirigindo minha cozinha. Gretel e Regina ficaram transtornadas quando o despedi, mas não tinha outra escolha (...) Levou muito tempo para elas me perdoarem por ter despedido o cozinheiro... (Moreno, 1997, p. 135).

Essa situação sugere que certo nível de confiança para com um ex-preso tende a estar perdido de forma quase irremediável. Nesse contexto complexo, muitas relações tendem a ser marcadas pelo preconceito, que é sofrido pelo preso, mas que, notamos, também é reproduzido por ele, sendo algo que o distancia ainda mais das pessoas. A preocupação dos presos é legítima, no sentido de que eles realmente são depositários de muito daquilo que a sociedade tem de ruim. E ficar preso numa cela por meses ou anos lhes oferece muito tempo para pensar nisso - e muitos deles reclamam que a falta de atividades os fazem "pensar demais".

Nery (2003) desenvolve o conceito de "lógica afetiva de conduta" (LAC), sendo esse um aprendizado emocional derivado de experiências vinculares que orienta a dinâmica psicológica da pessoa a partir de expressões racionais mais ou menos conscientes. Tendo em vista esse conceito, parece que muitos presidiários desenvolvem uma LAC construída com base no papel de presidiário, com uma lógica do tipo "o mundo está contra mim, então não posso confiar em você nem em ninguém", ou "se não posso confiar, também não serei confiável". Até o rigor extremo aplicado às regras internas do presídio pelos próprios presos parece ser uma compensação pela falta de confiança generalizada. O papel estigmatizante dos presidiários ainda tende a acompanhá-los quando estes saem da cadeia, agregado à preposição "ex", mas com a mesma lógica afetiva de conduta construída no presídio, que, possivelmente, se expandem para outros papéis sociais de sua vida, o que gera isolamento psíquico, sofrimento e outras conseqüências desastrosas, ou, como uma vez disse um deles em tom profético: "Preso, quando sai da cadeia, acaba no hospital, paraplégico ou no cemitério".

Moreno (1999) comenta que vivemos em grupo desde o nascimento, e que muitas de nossas perturbações são determinadas pelo mundo que nos rodeia, cujo ambiente deve ser integrado à situação terapêutica, ou seja, problemas criados em grupos são mais bem tratados também em grupo. A cura é vista como um processo que ocorre pelas forças grupais, e não pela atuação do terapeuta. No centro da psicoterapia psicodramática, está o conceito de "encontro", no qual, a partir de um método clínico sistemático, se investe na interação e no relacionamento interpessoal para tratar de problemas psíquicos e sociais, com indivíduos em grupo.

Fonseca (1980) parte da idéia moreniana de que o homem sadio é aquele aberto para o encontro, para afirmar que a capacidade de se inverter papéis (uma técnica também moreniana, em que A experimenta B, e B experimenta A) pode ser uma forma de mensuração de saúde _ ou doença. Nesta, a incapacidade total de inversão seria a presença máxima de psicose e, portanto, de isolamento extremo. A inversão plena de papéis, no outro extremo, seria a possibilidade total de encontro, que representa a culminância de um processo de desenvolvimento do ser humano. O recurso de inverter papéis pode indicar o desenvolvimento de uma percepção mais realista de si, do outro e do mundo, a partir da experimentação dos papéis e de sua contraposição (os contra-papéis).

Nos atendimentos, um fator possível de mensuração da tolerância e desinibição do preso pode ser a experimentação de variados papéis nas dramatizações. A experiência mais próxima à inversão de papéis, no caso do grupo X em particular, aconteceu entre os presos e a ego-auxiliar (descrita no item "confiança") e gerou uma aproximação entre os presos e nós, psicólogos.

Os papéis mais difíceis para os presos desempenharem dramaticamente eram aqueles relacionados à diretoria da prisão, aos policiais e aos carcereiros. O contato com tais papéis ocorreu - no grupo X - inicialmente por intermédio de uma cena dramatizada pela ego-auxiliar representando um carcereiro, cujo nome fictício acidentalmente coincidiu com o nome real de um destes. Depois de alguma comoção e muita reclamação em relação a ele, um preso confidenciou que, numa ocasião, o mesmo o ajudou, ao buscar socorro quando estava gravemente doente. A partir daí, puderam-se discriminar as várias formas possíveis de se perceber ou ser carcereiro: o maldoso, o que faz seu trabalho, o insensível, o brincalhão, dentre outros, caracterizando um processo de "humanização" dessa categoria. Outro contato mais próximo - ainda que indiretamente - com a carceragem foi desempenhado pelos presos numa cena em que alguns deles assumiram a função de "porta" da cadeia, com a proposta de que a porta falasse. Dessa forma, eles puderam, sutilmente, se permitir experimentar o papel de funcionário da prisão e vislumbrar esse outro lado da situação em primeira pessoa.

O princípio da inversão (ou pelo menos tomada) de papéis pode ser uma forma de mensuração e uma técnica de alargamento da percepção dos presos em relação ao mundo, além de uma preparação para um futuro em que sejam permitidas novas escolhas, talvez com experiências libertadoras, em que o papel de (ex)preso deixe de ser o principal/único veículo de relação com o resto da sociedade. Para tanto, é na co-construção de um ambiente regido por vínculos de confiança que está um dos maiores valores terapêuticos do trabalho: a pessoa com maior chance de desenvolver um comportamento espontâneo, sendo ela mesma, (re)experimentando papéis e buscando uma reaproximação e readequação ao grupo, num ambiente de flexibilidade a partir do exercício prático da tolerância.

 

Considerações finais

O período de um semestre por grupo seguiu alguns critérios práticos: poderíamos atingir um número maior de presos; seria mais fácil aos terapeutas se comprometerem com um atendimento voluntário como este por um período mais curto, podendo rever, ao final de cada semestre, sua permanência ou não no trabalho; seria mais fácil garantir a permanência dos presos no atendimento durante o processo inteiro do grupo (já que eles estão sujeitos a variáveis que podem retirá-los do grupo, como serem transferidos, por exemplo, entre outras). "Mas será que um tempo tão curto gera algum efeito significativo?", questionamos. Ainda mais se, na situação particular que é atender num presídio, a tendência é demorar mais para atingir um grau de vinculação e confiança significativo. Chegamos a pensar se não estávamos finalizando um processo justamente na hora em que ele estava ficando mais produtivo, e nos questionamos sobre a possibilidade de nos dedicarmos a um grupo por mais tempo.

Avaliando o processo dos grupos nesse período, e do grupo X em particular, pudemos pensar na hipótese de que o desenvolvimento da confiança poderia não ser somente uma prerrogativa, mas, no caso, uma finalidade terapêutica em si. Na circunstância de estar preso, aprende-se uma única realidade, e ninguém ali espera poder confiar em ninguém. As leis se tornam tão rígidas que o mundo parece ser visto somente de uma perspectiva. No grupo X, por exemplo, falou-se de carcereiros como totalmente "maus" e de uma sociedade que vê os presos também como "maus" - idéias que se tornaram menos absolutas a partir de uma relação construída com os psicoterapeutas, que deixou de se basear na desconfiança para se tornar algo diferente. Experimentar novos papéis, ou papéis antigos de novas formas, revela múltiplas perspectivas, revela a possibilidade também de fazer escolhas, e, com isso, tornar-se sujeito ativo da própria história e menos vítima das circunstâncias externas.

Na definição do Aurélio, a palavra confiança também significa "esperança firme", e o interesse pelo amor manifestado no grupo X pode ter sido uma possibilidade de nova esperança. Esta, sendo genuína, pode tornar a rotina ali mais suportável e trazer a perspectiva de uma vida melhor e mais humana. Moreno, quando falava em uma nova ordem mundial, em saúde social, no homem como um ser cósmico e sobre sua responsabilidade para com todo o universo, escreveu: "Um procedimento verdadeiramente terapêutico deve ter como objetivo toda a espécie humana" (Moreno,1992, p. 117). Quem sabe para nós, psicoterapeutas, também possa ser a esperança de um mundo melhor.

 

Referências

FONSECA FILHO, J. S. Psicodrama da Loucura: Correlações entre Buber e Moreno. São Paulo: Agora, 1980.        [ Links ]

MORENO, J.L. J. L. Moreno: Autobiografia. São Paulo: Saraiva, 1997.        [ Links ]

________. Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Campinas: Livro Pleno, 1999.        [ Links ]

________. Quem Sobreviverá? - Fundamentos da Sociometria, Psicoterapia de Grupo e Sociodrama, vol. 1. Goiânia: Dimensão, 1992.        [ Links ]

NERY, M.P. Vínculo e Afetividade : Caminho das Relações Humanas. São Paulo: Agora, 2003.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Daniel Gulassa
E-mail:danielgulassa@hotmail.com

Recebido 06/10/05
Reformulado 04/07/06
Aprovado 11/09/06

 

 

* Psicólogo, psicoterapeuta, socionomista Membro da Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP)
1 Integrantes do grupo Mentes sem grades: Daniel Gulassa, Diego Bragante, Roberta Amaral (psicólogos); Lygia Dorigon, Maya Foigal, Thais Guimarães (estudantes), sendo esta última colaboradora neste artigo, e Luiz Amadeu Bragante (supervisor).
2 Sing-Sing: mesmo local em que Moreno desenvolvera um trabalho com presos mais de uma década antes, no início dos anos 30.