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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.27 no.3 Brasília Sept. 2007

 

ARTIGOS

 

Modos de trabalhar e de ser de motoboys: a vivência espaço-temporal contemporânea

 

Modes of working and being of motoboys: contemporary space-time experience

 

 

Carmem Lígia Iochins Grisci*, Priscila Daniel Scalco**, Mayara Squeff Janovik***

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho discute a experiência de instantaneidade, velocidade e urgência que vem caracterizando a sociedade atual e que traz à cena novos personagens, como ilustra a figura do motoboy. Trata-se de uma pesquisa exploratória descritiva que contou com vinte participantes - motoboys de estabelecimentos de delivery de alimentos, e o presidente do sindicato da categoria. Os dados foram coletados através de entrevistas individuais semi-estruturadas, da realização de um grupo focal e de fontes documentais. A análise de conteúdo dos dados considerou o entendimento qualitativo da realidade social à luz da literatura pertinente. Os resultados indicam que o trabalho tipicamente imaterial dos motoboys condiz com a premissa de que "tempo é dinheiro". Em relação aos seus modos de trabalhar e de ser, ressaltam-se: a auto-imagem e a imagem de motoboy na mídia, a imposição e o controle dos frenéticos ritmos temporais pela organização do trabalho, a relação ambígua estabelecida com a sociedade da urgência e o cotidiano do trânsito, que expõe frágeis laços de solidariedade de uma categoria cujos membros não querem ser motoboys para sempre.

Palavras-chave: Motoboys, Ritmo de trabalho, Auto-imagem.


ABSTRACT

The present study discusses the experience of immediacy, speed and urgency that characterizes the present society and brings new figures to the scene, such as the motoboy (motorcycle delivery rider). This is a descriptive exploratory study that included 20 participants - motoboys from food delivery establishments, and their union president. The data were collected in semi-structured individual interviews, during a focus group meeting and in documental sources. The analysis of the data content considered the qualitative understanding of the social reality as perceived in the pertinent literature. The results of the study indicate that the characteristically immaterial work of the motoboys fits the slogan "time is money". The notes in relation to their modes of working and living are: the self-image and the image of the motoboy in the media, the imposition and control of the frenetic temporal pace by the organization of the work, the ambiguous relationship established by the urgency of society and the daily routine in the traffic that exposes the fragile ties of solidarity among a group of people who do not want to be motoboys forever.

Keyword: Motoboys, Work pace, Self image.


 

 

A percepção do tempo e espaço contemporâneos vem se alterando, entre outros, em decorrência dos ritmos temporais impostos pelo crescimento dos centros urbanos, dos novos modos de gestão do trabalho e de suas implicações nos modos de viver o cotidiano. Nesse cenário, tornam-se crescentes uma oferta e uma busca por serviços diferenciados, a anunciarem necessidades de instantaneidade, praticidade e conforto demandados pelo novo perfil de consumidor forjado nesse contexto.

Associada às possibilidades trazidas pelo novo paradigma tecnológico (Castells, 1999), a lógica do trabalho capitalista produz excedente de mão-de-obra e também produz o imperativo da velocidade retratada na urgência, na demanda pelo atendimento "aqui e agora" a fim de fazer valer a máxima "tempo é dinheiro". Observa-se, entretanto, que a mesma premência relativa a essa experimentação do tempo que torna obsoletos os produtos, os serviços e as trajetórias dos trabalhadores abre uma brecha à inclusão e coloca em cena a figura do motoboy.

Simultaneamente produtor e produção de um modo de viver calcado na urgência e na instantaneidade, o trabalho vem oportunizar, então, o surgimento de uma categoria de trabalhadores bastante peculiar: a categoria dos trabalhadores do motofrete, representante da antecipação temporal da satisfação do consumidor. Na presente pesquisa, são focados os motoboys do delivery de alimentos. Em geral, esses trabalhadores provêm de situação de desemprego. Com a compra de uma moto usada ou nova, a ser paga em inúmeras prestações, jovens do sexo masculino, em sua grande maioria, vislumbram a possibilidade de se verem incluídos no mercado de trabalho, mesmo nas condições de desregulamentação e precariedade que permeiam as atuais relações de trabalho.

A categoria dos motoboys foi apenas em 2003 reconhecida como profissão no Brasil pelo Ministério do Trabalho e Emprego, embora a atividade venha sendo exercida mesmo antes de ter sido oficializada. Conforme a Classificação Brasileira de Ocupações, registro nº 5191-10, os motoboys "coletam e entregam documentos, valores, mercadorias e encomendas. Realizam serviços de pagamento e cobrança, roteirizam entregas e coletas. Localizam e conferem destinatários e endereços, emitem e coletam recibos do material transportado. Preenchem protocolos, conduzem e consertam veículos" (Ministério doTrabalho e Emprego,2006). Ressalta-se que essa descrição das atividades dos motoboys não faz referência à velocidade com que elas devem ser desenvolvidas. A velocidade não visualizada no registro da profissão é, entretanto, visualizada nas ruas e nas falas dos motoboys, que vêem, na velocidade da entrega, o sentido do seu trabalho.

Além disso, o motoboy pode ser tomado como um dos agentes da transformação da relação produção/consumo, uma vez que é solicitado a ser sujeito do trabalho, disponibilizando cordialidade e afetividade, mesmo que essas sejam características que se extinguem no exato momento da entrega do produto. Essa combinação de cuidados, aliada à mobilização da inteligência para a construção das estratégias de locomoção a serem adotadas nas vias públicas, por exemplo, relaciona-se à percepção espaço-temporal e ao trabalho imaterial (Lazzarato e Negri, 2001). Dessa combinação, podem resultar uma sensação de bem-estar para o consumidor que recebe o alimento em casa e uma percepção de encurtamento do tempo, tanto para o consumidor como para o motoboy. É nessa perspectiva que se toma o motoboy como um dos agentes a ilustrar uma outra organização da sociedade em termos de flexibilidade espaço-temporal.

Em estudo intitulado "Pelo espelho retrovisor: motoboys em trânsito", Stiel Neto, Mufat e Avlasevicius (2006), a partir da problemática socioeconômica de uma cidade brasileira como a capital paulista, lançaram um olhar antropológico sobre a categoria dos motoboys e a sua relação com a cidade. Concorda-se com a observação inicial dos autores de que são raros os estudos que focam esses trabalhadores. Encontram-se, mais freqüentemente, referências aos motoboys em reportagens relativas aos acidentes que os vitimam, uma vez que são considerados "aqueles que surgem do nada", ou em reportagens alocadas nas páginas policiais, pois, como eles próprios observam, "tem muito motoboy que faz muita coisa errada e todos acabam pagando" (motoboy A).

Sendo o motofrete uma profissão assumidamente de risco e com um alto número de acidentes registrados todos os dias nas grandes cidades, percebe-se uma movimentação no sentido de dirigir um olhar mais atento a esses trabalhadores, que tomam conta das ruas da cidade e disputam espaço com carros e pedestres. Segundo dados do Informativo do Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Rio Grande do Sul, há, em Porto Alegre, cerca de doze mil motoboys, e, em 2004, do número total de vítimas fatais no trânsito de Porto Alegre, 35% foram motociclistas (INFORMATIVO SINDIMOTO, 2004). Em decorrência disso, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), na cidade de Porto Alegre/RS, realiza seminários que visam, justamente, a alertar para os riscos da profissão e a buscar soluções, no intuito de abrandar a alta taxa de internação e mortes por acidente de moto.

A pesquisa que se apresenta expõe o seguinte problema: como os modos de trabalhar e de ser dos trabalhadores do motofrete - motoboys - ilustram a experimentação espaço-temporal contemporânea? Ao se propor como objetivo estudar os motoboys enquanto categoria relativamente nova no cenário do trabalho e da cidade e tecer algumas relações com os modos de experimentar o tempo na contemporaneidade, busca-se poder contribuir para ampliar a compreensão dos modos de trabalhar e de viver na sociedade contemporânea no que diz respeito ao imperativo da rentabilização do tempo que não mais comporta a espera.

Na primeira seção, apresentam-se as considerações teóricas sobre o tema, e, na seção seguinte, apresentam-se os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa. Em seguida, apresentam-se os resultados e as análises. Por fim, apresentam-se as considerações finais.

 

Considerações teóricas sobre o tema

Autores como Harvey (1993), Virilio (1996) e Bauman (1999, 2001, 2003) mostram-se cruciais à compreensão dos modos de viver na contemporaneidade. Harvey contribui no que diz respeito às mudanças vinculadas aos novos modos de experimentar o tempo e o espaço, principalmente aquelas referentes ao mundo do trabalho. Virilio traz a idéia de um sujeito que habita uma velocidade que elimina os ancoradouros, e Bauman faz a análise de como tempo e espaço organizam a vida humana compartilhada na perspectiva da fluidez que caracteriza o que denomina modernidade líquida. Eles nos instigam a pensar os modos de existência que se configuram a partir do trabalho que se imaterializa, da experiência do tempo atravessado pela velocidade e do sujeito hipersolicitado.

O tempo contínuo, da instantaneidade, da velocidade, apresenta estratégias de subjetivação que inventam os sujeitos da hipersolicitação. Tal sujeito resulta do que Harvey (1993) chama de acumulação flexível, que envolve um movimento por ele denominado "compressão espaço-tempo". A acumulação flexível, conforme Harvey, apóia-se, caracteristicamente, na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados, dos produtos e dos padrões de consumo.

Em especial, no que se refere aos padrões de consumo, Bauman (1999) revela o crescente empenho em satisfazer o consumidor quase que instantaneamente. Essa análise, vinculada aos modos de viver que primam pela comodidade e facilidade e à necessidade de segurança frente à violência urbana, permite compreender que o delivery se expande ao proporcionar a satisfação imediata ao "alcance do telefone".

Diante da lógica de orientação de mercado e do ritmo acelerado em que se vive, o que se nota é a busca incessante pelo domínio do tempo e do espaço. É no sentido de domínio que o tempo é compreendido, segundo Bauman (2001), como ferramenta para vencer a resistência do espaço ao voltar-se para o encurtamento das distâncias, o que revigora a máxima "tempo é dinheiro". A velocidade transforma a cidade em um grande corredor que força uma movimentação e cria uma rede onde pessoas, imagens e mercadorias circulam em velocidade máxima (Marcondes Filho, 1996).

Tendo em vista que espaço também é mercadoria, a cidade contemporânea é arquitetada através da dinâmica entre os sujeitos que, com sua força de trabalho, constroem e modificam o espaço. Os centros urbanos são palco de disputas dos mais variáveis tipos, mas sempre guiadas pela orientação de mercado, pela produção que cada atividade gera.

No plano da organização do trabalho e da produção, mudanças que vêm sendo empregadas pelas empresas produzem sujeitos com peculiares modos de experimentar o tempo. Compreender tais modos significa tomar o trabalho do tempo como processo de subjetivação (velocidade e formatações dos sujeitos) através do trabalho no tempo (as transformações do próprio trabalho).

O trabalho se caracteriza, portanto, como uma via privilegiada à compreensão das mudanças culturais nos modos de perceber, sentir, agir e pensar sobre a experiência cotidiana do tempo tramada no social, logo, no viver. Ao trabalho, coube papel fundamental na produção de estilos de vida e de modos de subjetivação. Perpassado pelo que se pode denominar tempos mutantes, em contraste com os tempos modernos forjados pela modernidade (Grisci, 2003), o trabalho pós-industrial, ou o da modernidade líquida ou o da pós-modernidade, ou do novo capitalismo, conforme denominações propostas por autores como Harvey (1993), Bauman (2001) e Sennett (2003), produz um outro sujeito, um sujeito que habita a velocidade, já que o tempo se dilui a olhos vistos, como diz Virilio (1996). Tal sujeito se encontra diante do que Lazzarato e Negri (2001) tomam por trabalho imaterial. O trabalho imaterial, conforme Lazzarato e Negri (2001, p.45), é aquele que "se encontra no cruzamento (é a interface) dessa nova relação produção/consumo. É o trabalho imaterial que ativa e organiza a relação produção/consumo". Nesse sentido, tanto a cooperação produtiva quanto a relação social com o consumidor se materializam em um processo comunicativo. Ao atualizar constantemente esse processo comunicativo, o trabalho imaterial materializa as necessidades e os gostos dos consumidores. Embora não resulte em um bem material e durável através da produção de bens e produtos de consumo materiais como uma televisão ou um par de sapatos, o trabalho imaterial é assim considerado por produzir coisas imateriais como informação, antecipação das necessidades dos consumidores, cuidado, conforto, tranqüilidade, segurança, satisfação, sentimento de bem-estar, valores, contato e interação humana, entre outros. O trabalho imaterial, nesse sentido, torna-se produtivo.A particularidade do trabalho imaterial é que o seu produto, ao ser consumido, não mais permanece com o consumidor como permaneceria o produto do trabalho material, mas ele é produtivo porque transforma o consumidor naquilo que diz respeito ao seu modo de pensar e agir, ao seu estilo de vida. Isso leva o trabalhador do imaterial a caracterizar-se pela contínua inovação das dinâmicas de produção. Para esse sujeito, os roteiros previamente traçados, as instruções claras e os sinalizadores herdados da modernidade sólida já não atendem às novas demandas.

O trabalho imaterial é trabalho corporal e trabalho intelectual. Ele mobiliza aspectos intelectuais e afetivos dos trabalhadores em geral. Anuncia liberdades ampliadas pela diminuição da alienação do trabalho e das fronteiras e dos meios de confinamento, uma vez que passa a solicitar características como iniciativa, inteligência, cooperação, domínio do processo, tomada de decisão, envolvimento afetivo e diálogo com os clientes, mas também anuncia outras formas de controle e servidão que extrapolam as previsões das antigas formas de poder. Conseqüências humanas perversas podem advir do engajamento, da mobilização e da disponibilidade total que os trabalhadores devem oferecer diante das demandas apresentadas pelo trabalho imaterial sempre no momento presente. Essas conseqüências podem ser exemplificadas por uma lógica organizacional que imprime a velocidade como um modo de gestão voltado para o aqui e o agora. Isso permite tomar o trabalho imaterial como uma via privilegiada para a compreensão de estilos de vida ou modos de existência que vêm se configurar na denominação de subjetividade (Lazzarato e Negri, 2001; Hardt e Negri, 2001; Pelbart, 2003; Lazzarato, 2004). Nas palavras de Lazzarato e Negri (2001, p. 25), o novo management, hoje, prescreve que "'é a alma do operário que deve descer na oficina'. É a sua personalidade, a sua subjetividade, que deve ser organizada e comandada". O trabalho imaterial se reorganiza incessantemente e se caracteriza cada vez mais pela hipersolicitação, uma vez que a gestão, a partir de formas sutis de controle intermediadas também pelas possibilidades que oferecem as novas tecnologias da informação, passou a demandar, dos trabalhadores, mobilização subjetiva sem precedentes que os leva a atuar em prol da rentabilização de si.

Para Zarifian (1999) e Gadrey e Zarifian (2002), inclusive, a noção de competência diz respeito a uma nova unidade entre trabalho e trabalhador, numa lógica em que o trabalho reincorpora o sujeito ao buscar mobilizar e expandir os saberes e a inteligência imaginativa desse sujeito em prol do conhecimento e da interpretação das necessidades do cliente, que deverá resultar na produção efetiva do serviço. Em face do trabalho imaterial, encontram-se as novas práticas de gestão e os novos modos de controle, que visam fundamentalmente a gerir, regular e homogeneizar o trabalho imaterial, como se ele fosse dissociado do sujeito.

No modelo fordista de produção do trabalho, para que o controle impedisse os movimentos autônomos, impusesse a disciplina e homogeneizasse o comportamento, ainda se fazia necessário manter os indivíduos fixos sob o foco da vigilância. No modelo pós-fordista de produção ou trabalho imaterial, em que o trabalhador é chamado a ser sujeito do trabalho, além de o controle prescindir da imobilidade dos corpos para se exercer, a demanda por certa diversidade e mobilidade se faz notar. Isso permite tomar o trabalho imaterial como uma via privilegiada à compreensão de estilos de vida ou modos de existência que vêm se configurar sob a denominação de subjetividade.

Tomar-se a subjetividade como social, histórica e coletiva (Deleuze e Guattari, 1996) e como resultante da transição que leva o trabalho em transformação à denominação de trabalho imaterial implica, necessariamente, conduzir o pensamento à luz de situações indicativas de que a lógica que vem permeando a vida cotidiana se caracteriza mais por transições ou passagens do que por finitudes ou rupturas nitidamente estabelecidas.

Colocados na posição de responder ao que se apresenta sob a noção de trabalho imaterial, os motoboys controlam e rentabilizam a si próprios, o que evidencia uma subjetividade que, ao atender as demandas da gestão, contribui para construir a sociedade contemporânea. Desse modo, embora os motoboys compartilhem o sentimento de serem apenas "um vulto no trânsito", a eles cabe disponibilizar sua personalidade e seus afetos de modo a adequar o atendimento às necessidades específicas de cada consumidor em particular. Isso exige que os motoboys adotem estratégias de aproximação e abordagem únicas, cujo resultado é um produto intangível, imaterial. Na interface da nova relação produção/consumo, o motoboy trabalhador do delivery não somente satisfaz as necessidades de urgência e instantaneidade do consumidor, mas contribui para criar essas demandas.

 

Procedimentos metodológicos

Problema de pesquisa

Conforme já apresentado, coloca-se o seguinte problema de pesquisa: como os modos de trabalhar e de ser dos trabalhadores do motofrete - motoboys - ilustram a experimentação espaço-temporal contemporânea?

Método de pesquisa

O delineamento do estudo é de caráter qualitativo. Trata-se de uma pesquisa exploratória descritiva realizada, no decorrer de 2005, em estabelecimentos de delivery de alimentos que, no Brasil, se encontram em ascensão. Diz respeito, especificamente, à atividade de motoboy, que tem como meta de trabalho atender as necessidades dos consumidores em tempo reduzido e criar, assim, uma relação espaço-temporal baseada nas relações de produção/consumo estabelecidas pelo mercado.

Participantes da pesquisa

Os motoboys que participaram desta pesquisa são todos do sexo masculino e apresentam algumas especificidades. No que diz respeito à vida pessoal, possuem idade entre vinte e três e trinta e sete anos, a escolaridade máxima é o ensino médio, exceto o presidente do sindicato, que tem ensino superior incompleto; o número de casados e solteiros, no grupo observado, é exatamente igual, dez casados e dez solteiros, e geralmente moram em áreas mais afastadas do seu local-sede de trabalho. Em relação ao trabalho, quatro são sindicalizados. O tempo de experiência profissional variou entre nove meses e quinze anos. Excluindo-se o presidente do sindicato, sete são de cooperativas e doze são empregados diretos de estabelecimentos de delivery. Dos vinte participantes da pesquisa, apenas um nunca sofreu acidentes.

Coleta de dados

A coleta de dados do presente estudo foi realizada através de fonte documental, grupo focal e entrevista semi-estruturada. A fonte documental provém do próprio sindicato da categoria, através de uma amostra de doze exemplares distribuídos ao longo dos anos 2002, 2003, 2004 e 2005 do Informativo do Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Rio Grande do Sul, em formato de jornal, com oito páginas, em média e tiragem mensal de dez mil exemplares e distribuição gratuita, e da mídia impressa, através de reportagens veiculadas em jornais e revistas de grande circulação, que permitiram verificar como se dissemina a imagem de motoboy. Duas fotografias representativas das falas dos motoboys entrevistados foram tomadas também como fonte documental, no sentido de que a imagem "oferece um registro restrito, mas poderoso, das ações temporais e dos acontecimentos reais - concretos, materiais. Isso é verdade tanto sendo uma fotografia produzida quimicamente ou eletronicamente, uma fotografia única, ou imagens em movimento" (Loizos, 2000, p. 137). O grupo focal contou com quatro participantes, o número que se mostrou possível diante da movimentação que caracteriza a categoria, e as entrevistas semi-estruturadas somaram vinte motoboys trabalhadores de quatro empresas prestadoras de serviços de delivery de alimento situadas na cidade de Porto Alegre, localizada ao sul do Brasil, inclusive os quatro do grupo focal. Ressalta-se que o presidente do sindicato da categoria também fora entrevistado, e que houve uma certa dificuldade de acesso a um maior número desses trabalhadores, dado que os mesmos se encontram sempre com pressa e, na maior parte do tempo, em movimento. A coleta de dados realizou-se nas dependências dos estabelecimentos e também na sede do sindicato.

O cenário onde se desenvolveu a coleta de dados denota condições de trabalho insalubres. Os motoboys encontram-se expostos às intempéries, ou confinados, com suas motos, em pequenos anexos sem ventilação apropriada. Todas as entrevistas foram gravadas em fita cassete e, em seguida, transcritas com a autorização dos entrevistados.

Embora tenha havido a existência de um roteiro pré-estabelecido no sentido de guiar as entrevistas, nem sempre elas fluíram de modo a ilustrar a construção de uma argumentação elaborada e o encadeamento das idéias que se sucediam, o que mais tarde se configurou como material de análise. Mesmo assim, elas foram imprescindíveis à compreensão da rotina e do ambiente que cerca esses trabalhadores.

Análise dos dados

A análise dos dados provenientes das entrevistas semi-estruturadas e do grupo focal, assim como das fontes documentais, priorizou o entendimento qualitativo da realidade social à luz da literatura pertinente, por meio de categorias de cunho coletivo, conforme orientações de Minayo (1994). Procedeu-se, seqüencialmente, a uma pré-análise do material, que permitiu a definição das unidades de sentido, a uma exploração do material, com mapeamento dos temas emergentes, que possibilitaram, a partir do objetivo da pesquisa, a caracterização dos dados, e, por último, a interpretação dos dados à luz da teoria.

 

Apresentação e análise dos resultados

A experimentação espaço-temporal contemporânea: modos de trabalhar e de ser dos motoboys

A auto- imagem e a imagem de motoboy na mídia

Tomam-se duas fotografias provenientes das fontes documentais como ponto de partida para a apresentação e análise dos resultados. Elas possibilitam compartilhar com o/a leitor/a duas cenas do trânsito da cidade que ilustram falas representativas do coletivo dos motoboys entrevistados. As falas são: "Nós não temos imagem, nós somos um vulto" (presidente do sindicato dos motoboys), e "Meu trabalho é andar como um louco no meio do trânsito e entregar pizza" (Motoboy M). As fotografias destacam as falas através da ausência de nitidez do corpo que passa em velocidade, e da escrita no baú, que anuncia um modo de viver.

Fotografia 1: "Nós não temos imagem, nós somos um vulto"

 

 

Fonte: fotografia de Tadeu Vilani (jornal Zero Hora, 23/05/2005)

Fotografia 2: "Meu trabalho é andar como um louco no meio do trânsito e entregar pizza"

 

 

Fonte: Pedro Friedman http://www.pucsp.br/publique/media/pedrofriedman_237.jpg)

Os motoboys não podem ser tomados de modo dissociado de suas motocicletas. Os entrevistados para esta pesquisa informam possuir motocicleta de sua propriedade, adquirida em um grande número de prestações. Conforme dados da Associação Brasileira de Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares - ABRACICLO, em menos de uma década, a produção de motocicletas cresceu em torno de 900%, sendo as de cem, cento e vinte e cinco e cento e cinqüenta cilindradas as mais requisitadas (http://www.abraciclo.com.br, acessado em 06/04/2006). A motocicleta, enquanto instrumento de trabalho, é considerada pelos motoboys "uma opção barata. Eu financiei a moto e pago uma prestação de R$220,00 por mês... meio por cima, ganho R$1200,00, eu pago tranqüilo a prestação da minha moto" (Motoboy I). Em razão disso, relatam que a maioria dos motoboys trabalha com moto própria, confirmando os dados divulgados já em 2003, de que 98% dos motoboys de Porto Alegre trabalham com moto própria e ganham, em média, R$700,00 a R$800,00 por mês (Manoel, Vasconcellos, Velho, 2003). Relativo à motocicleta, há, contudo, a vivência de outro aspecto que se revelou um fator de desconforto e estresse para os motoboys. Trata-se do medo de terem suas motocicletas roubadas e, em conseqüência, seu trabalho inviabilizado, pois, como dizem, "A gente é autônomo; trabalhamos por conta própria, se tu não trabalha, tu não ganha. É por isso que a gente se cuida bastante. A manutenção da moto, o teu próprio cuidado pessoal, com tua saúde e também no trânsito, para não estar fazendo besteira, como diz o ditado, `fazendo gracinha para o diabo rir'" (Motoboy G), confirmando que as empresas não se responsabilizariam pelos gastos com a manutenção da moto ou pelas multas de trânsito que os motoboys venham receber durante o percurso para a entrega. Além disso, revelam que poderia haver motoboys que reforçariam a prática de roubo de motocicletas, pois comprar uma motocicleta roubada seria muito mais barato do que comprá-la legalmente, além de permitir um breve retorno às suas atividades sem maiores prejuízos.

Das fontes documentais utilizadas para a presente pesquisa, fazem parte manchetes que anunciam, muitas vezes, reportagens especiais em veículos de grande circulação. "Loucos pelo perigo" (Granato, 1999), "Ao alcance do telefone" (Manoel, Vasconcellos, Velho, 2003), "Os motoqueiros não têm noção do risco", "A morte vem sobre duas rodas" (Torma, 2005), "Uma profissão necessária, mas malvista e de alto risco" (Uma profissão..., 1999) são manchetes recorrentes na mídia local e nacional, e contêm as idéias de risco, de pressa e imediatismo que, personalizadas na figura dos motoboys, representam a experiência de flexibilização espaço-temporal que rege a sociedade atual.

Como também fora verificado no estudo dos motoboys da capital paulista (Stiel Neto, Mufat e Avlasevicius, 2006), percebe-se que muitos deles não se sentem confortáveis em falar sobre suas rotinas de trabalho. Na presente pesquisa, responderam com frases curtas, e cada um permaneceu sempre atento à possibilidade de ser o próximo chamado para realizar entrega. Aqueles que conseguiram melhor detalhar o cotidiano de um motoboy expressaram insatisfação pelo tratamento que recebem no trânsito e até mesmo no momento da entrega. Em geral, dizem que "Tu pára do lado de um carro e os caras já levantam os vidros e trancam as portas. É na hora. Tu vês direitinho" (motoboy E).

De acordo com o estudo de Stiel Neto, Mufat e Avlasevicius (2006), ao se caracterizarem como motociclistas profissionais, os motoboys buscam diferenciar-se daqueles que tão somente usam a moto para transitar pela cidade sem objetivos profissionais. Para os motoboys, o motoqueiro "é o cara que pega a moto sem baú, sem nada, e vai passear. Quem está com baú na moto é porque precisa" (motoboy B). Nota-se que a motocicleta atrelada à profissão possui um caráter de sobrevivência por parte de quem a conduz.

No que diz respeito à percepção da própria imagem, os motoboys dizem claramente e de imediato: "Meu trabalho é andar como um louco no meio do trânsito e entregar pizza" (motoboy M), e "Não temos imagem, somos um vulto" (presidente do sindicato dos motoboys). A idéia de "vulto" associa-se à velocidade com que transitam pelas vias públicas e que, de certo modo, os impede de serem vistos com nitidez. Ela é complementada pela percepção de que a "imagem é péssima, do bagunceiro, do desrespeitador, do assaltante, de tudo" (motoboy D). Para eles, a profissão não permite que se construa uma boa imagem, por se tratar de uma categoria à parte das outras. Em sua busca pelo encurtamento do tempo e das distâncias, não se sentem unidos nem legitimados como consideram que sejam os motoristas de táxi ou de ônibus.

 

O trabalho imaterial e a organização do trabalho que controla os frenéticos ritmos temporais

O Ministério do Trabalho, através do Código Brasileiro de Ocupação nº 5191-10, elenca, em seu site (http://www.mte.gov.br), itens que, entre outros, se referem a como o motoboy deve estabelecer o roteiro das áreas de entrega, priorizando, por exemplo, a entrega de bens perecíveis, proceder em situações de entrega e coleta de documentos e produtos, de transporte de valores, remédios e refeições, e como atentar para o manuseio de documentos e realização de serviços bancários. No que diz respeito à condução e conservação do veículo, sugere que o motoboy dirija defensivamente e mantenha a moto em bom estado. No quesito que elenca as competências pessoais do motoboy é que se evidencia o trabalho imaterial. O quadro a seguir apresenta uma síntese das recomendações do Código Brasileiro de Ocupação no que tange à demonstração de competências pessoais à luz das falas dos próprios motoboys, e corrobora a noção de competência a partir de uma lógica em que o trabalho reincorpora o sujeito:

 

 

Cabe ressaltar que itens como demonstrar solidariedade e dar provas de auto-estima, embora presentes no Código Brasileiro de Ocupação (nº 5191-10), não foram contemplados no conjunto das falas dos motoboys entrevistados.

Um dos estabelecimentos em que se realizaram algumas das entrevistas continha afixado, na parede do local onde os motoboys permaneciam aguardando os chamados de entrega, um quadro que listava as competências necessárias para que alguém se destacasse como funcionário, o que incluía os motoboys. O quadro continha os seguintes itens: assiduidade e pontualidade, comprometimento com a empresa, domínio e desenvoltura da função que ocupa, excelente relacionamento interpessoal, disponibilidade para trabalhar em equipe, atendimento personalizado, domínio do script, bom humor e sorriso em primeiro lugar, cortesia e educação bem como a valorização e o encantamento do cliente.

A partir do que nos ensinam Lazzarato e Negri (2001) e Hardt e Negri (2001), pode-se tomar o trabalho do motoboy como trabalho imaterial. Cabe lembrar, inclusive, segundo os autores, que o trabalho imaterial é trabalho intelectual e corporal. Do modo como evidenciamos neste estudo, o trabalho imaterial se caracteriza pela hipersolicitação presente no delivery, ao mobilizar aspectos como cuidado, interação e comunicação humana, cujos produtos são intangíveis ao proporcionarem um sentimento de tranqüilidade, de bem-estar, satisfação, ou até mesmo a sensação de estar simplesmente conectado ou de pertencer a uma comunidade, por mais que isso tudo possa ser estandartizado, caricatural e interesseiro. Para Pelbart (2000, p. 36), de certo modo, "isso é o que hoje mais se vende, ou se alardeia, ou se oferece: efeitos afetivos que constituem, ao mesmo tempo, o conteúdo cultural da mercadoria".

Tudo isso está presente na rotina das atividades desses trabalhadores, desde o cuidado que devem dispensar à moto até a interação no momento da entrega do produto. Nesse ínterim, devem ter, para si, o melhor roteiro a seguir, combinando o tempo de entrega com o fluxo do tráfego e, acima de tudo, devem ser solícitos com os consumidores. Como demonstra a fala a seguir, os motoboys têm consciência de que seu trabalho é corporal e intelectual: "Não é só pôr a pizza no baú ou pegar um serviço de banco, não é assim. Chega lá e acontece alguma coisa, e aí? Tem que saber se desdobrar, achar o que está errado pra saber consertar. Até pra poder informar, pra dizer que não deu certo por isso ou por aquilo. Não pode chegar pro cliente e dizer que não deu certo e `não sei, não sei porque' e não saber explicar. Assim, no começo, a gente fica todo burro, e aí o cliente pede, se tu não sabe... Aí o psicológico começa a pesar" (motoboy A).

Frases curtas e entrecortadas abundam nas entrevistas realizadas com os motoboys. Elas representam, de certo modo, a fragmentação do próprio trabalho cotidiano em exíguas parcelas de tempo que se sucedem de entrega em entrega. Essa experiência cotidiana do tempo é vivenciada pelos motoboys como um permanente estado de alerta do corpo. Esse estado de alerta toma tanto o corpo parado à espera do próximo chamado para entrega como o corpo em movimento sob a imagem de "um vulto" nas vias públicas. Em um dos estabelecimentos, inclusive, tal qual se observa nas cozinhas de grandes redes de restaurantes onde os equipamentos soam um alarme ao término de suas funções, o ritmo de trabalho dos motoboys é cadenciado pelo soar de uma sirene que avisa a chamada para a próxima entrega, o que contribui para o permanente estado de alerta referido anteriormente. O corpo também é alvo de desgaste devido às muitas horas do dia em cima de uma motocicleta, percorrendo grandes distâncias.

Também se observou, como prática dominante da categoria, uma carga horária extensiva, que os obriga a permanecerem à disposição da empresa incondicionalmente mesmo em dias que, teoricamente, seriam seus dias de folga. Alguns argumentam que as relações familiares e o convívio social acabam sendo prejudicados, seja pela constante apreensão no que se refere à incerteza do retorno, seja nos desencontros em termos de convivência com a esposa e os filhos, caso os tenham. Por vezes, a exigência de um tempo que se configura flexível, a disponibilidade total frente a um chamado não datado previamente, resulta em rupturas. Isso se ilustra nas seguintes falas: "Se ninguém faltar no teu dia de folga, se não for feriado no teu dia de folga, se ninguém cair, se nenhuma moto estragar. Senão, tu não estás de folga" (motoboy F). "Porque tu passas a maior parte da vida aqui... A família... Eu me separei por causa do meu emprego. De segunda a segunda aqui, dentro da loja..." (motoboy G).

Apesar de os motoboys se colocarem constantemente no limite da capacidade de trabalhar mais rápido para cumprir prazos exíguos, a organização do trabalho os vê sempre como devedores em relação à flexibilização, otimização e rentabilidade do tempo. Para a organização do trabalho nos estabelecimentos de delivery, o objetivo a ser cumprido é a própria implosão do tempo. Nesse contexto, como motoboy, "O máximo que tu pode ser é bom. Até porque motoboy é aquele negócio: sempre é uma coisa atrasada. Ótimo, tu nunca é" (motoboy A).

Os modos de controle observados junto a esses trabalhadores estão de acordo com o que Bauman (2001, 1999) assinala sobre o fato de que, no modelo pós-fordista de produção ou trabalho imaterial, o controle prescinde da imobilidade dos corpos para se exercer. No presente estudo, inclusive, a demanda por mobilidade é inerente ao trabalho, e vem construir os estilos de vida dos motoboys. Desse modo, o controle organizacional se nomadiza, tal qual os motoboys em vários centros permanentemente móveis: ora ele se ressalta no soar da sirene, ora no quadro afixado na parede, ora na mídia, ora nas regras que, segundo eles, os impedem de fazer coisas erradas, ora no pagamento por entrega, que torna seus salários variáveis, ora no próprio motoboy, quando diz : "A gente não é forçado a andar pela empresa, a gente é forçado a andar pela gente mesmo. Por salário" (motoboy E).

Há de se considerar, entretanto, a existência de brechas nos modos de controle, uma vez que alguns deles conseguiram expressar como a organização exerce o controle e os mantém sempre dispostos a fazer mais entregas. Um dos entrevistados relata o seguinte: "Isso é comum, os patrões entrarem na cabeça dos empregados para eles correrem. O patrão diz: `Vou te dar mais entregas porque eu sei que tu é bom, que tu faz rápido.' Então tu vai ver que tu estás sozinho; depois que tu bater, aí eles dizem: `quando tu consertar a tua moto, ficar legal, tu volta e a gente conversa'" (motoboy E).

Outro aspecto a se destacar é a existência de uma hierarquia entre eles; há um gestor no grupo que se responsabiliza por suas próprias entregas e também pelo controle das entregas dos colegas. Ele verifica a assiduidade do grupo, os cuidados dispensados às motos, bem como o asseio pessoal de todos: cabelos bem cortados, barba feita, etc. Ao avaliar seu próprio trabalho, esse motoboy/gestor almeja ascender para a área administrativa, na própria cooperativa por eles organizada. Diz ele: "Cada loja tem um gestor [...]; já teve casos de pessoas que fizeram coisas erradas aqui que eu tive que penalizar. Já tinha dado uma chance, duas, três. Dependendo do que se faz aqui na loja, se for muito grave, não tem nem gancho, nem nada. Pega e vai embora da loja" (motoboy B).

A velocidade na condução das motocicletas ressalta como os motoboys são incitados interna e externamente com o objetivo de atender à pressão por produtividade que lhes é imposta. Desse modo, passam a reger a própria vida a partir da premissa de que "o motoboy que corre mais, que arrisca mais, ganha mais" (motoboy C).

A relação ambígua com a sociedade da urgência retratada no cotidiano do trânsito, que também expõe os frágeis laços de solidariedade da categoria

Envolvidos diretamente com a rotina freqüentemente estressante do trânsito, os motoboys desenvolvem peculiares formas de convívio entre si e com a cidade, o que desperta sentimentos contraditórios entre aqueles que compartilham as vias públicas. Em certos casos, dão margem à imagem pejorativa que dizem buscar combater. Diante da não aceitação das barreiras do espaço público na condução das motocicletas, e por se sentirem de alguma forma humilhados pelos outros agentes do trânsito, acabariam reagindo agressivamente a partir do momento em que perceberiam que a moto poderia ser utilizada como símbolo de poder ao permitir que saiam de cena de modo veloz, como ilustram as falas dos entrevistados ao afirmarem que "A moto tem muito mais poder do que um carro porque ela é pequena para andar. Tu não vai ficar ali discutindo com ele. Vai arrancar o espelho e vai embora. Porque, se tu fizer isso, é porque o cara mereceu" (motoboy C), ou "Eu nunca fiz, mas, se um dia, por acaso, eu tiver que arrancar o espelho de alguém, vou arrancar e vou embora" (motoboy J). Falas desse tipo retratam o imperativo da velocidade que, segundo Honoré (2005, p. 23), leva à "fúria do trânsito, à fúria aérea, à fúria das compras, à fúria dos relacionamentos, à fúria do escritório, à fúria das férias, à fúria da ginástica. Graças à velocidade, vivemos na era da fúria".

Percebe-se que os motoboys compartilham um unânime comportamento de bravura, até mesmo de heroísmo, frente à profissão e aos riscos que lhe são característicos. Na grande maioria dos relatos, falas como "Tu tem que ter sangue. Sangue frio... porque olha como é que está o trânsito agora..." (motoboy F), e "motoboy, hoje, é ser um artista para poder aceitar as regras do jogo: estressante, desconfortável, humilhante, baixo salário" (presidente do sindicato dos motoboys), têm ares de estratégias defensivas coletivas (Dejours, 1999). Elas não só indicam uma tentativa coletiva de colocar à prova os limites individuais de enfrentamento do risco no cotidiano do trabalho como também contribuem para formatar uma imagem de valentia e audácia que lhes é favorável compartilhar diante da relação ambígua que estabelecem com a sociedade em geral. As seguintes falas retratam claramente tal ambigüidade: "Se tu estás com fome, eu sou bom, mas, se tu estás de carro, sou ruim" (motoboy F). "Todo mundo precisa de motoboy hoje. A pessoa que está no sinal reclamando não sabe que foi a mulher dele que ligou e quer a pizza quente em casa. É a sociedade que faz o motoboy correr, porque ela quer o motoboy agora" (motoboy H). Ou ainda, "O cliente quer tudo pra ontem e com urgência [...] Solicita que o motoboy execute o serviço o mais urgente possível. É por isso que nós somos taxados de não respeitar o trânsito, passar sobre a calçada... Porque, para não perder o emprego, o motoboy acaba desrespeitando as normas de trânsito" (presidente do sindicato dos motoboys).

Embora algumas tentativas de construção de um discurso de empolgada solidariedade que, no conjunto das entrevistas realizadas, não obteve sustentação, o que se observa é o descortinamento de uma solidariedade frágil e sutil que se associa a dois elementos principais: a imagem de motoboy e a pressa inerente à profissão. Em relação a isso, é preciso considerar que a imagem negativa que os motoboys dizem ter a sociedade em relação a eles é a mesma que pode estar atrapalhando a construção de vínculos de confiança associados à solidariedade entre eles como categoria. Além disso, o Informativo Sindimoto constantemente veicula textos alusivos à necessidade de mais união na categoria. No caso dos motoboys cooperativados, encontra-se a prática de se manter uma reserva de dinheiro para uso dos associados que se acidentam e ficam impossibilitados de trabalhar por algum tempo. Conforme diz um motoboy, "A gente tem um seguro pela cooperativa. A gente paga toda a semana um X para seguro contra terceiros, caso eu bata ou alguma coisa assim" (motoboy B).

É em relação à pressão pela rapidez e agilidade, que legitima a existência e necessidade dos motoboys como categoria de trabalho perante uma sociedade que se caracteriza pela noção de velocidade e urgência, entretanto, que eles justificam, inclusive, o abandono dos colegas frente aos acidentes que os vitimam. Nas palavras de um deles, evidencia-se a fragilidade que caracteriza os atuais laços de solidariedade: "Solidariedade entre aspas. No discurso é bonito, mas a grande maioria está ali para fazer suas entregas e se puder passa por cima de ti, é cada um por si" (motoboy I).

A idéia de "cada um por si" vai ao encontro do pensamento de Bauman (2003) acerca da ausência de uma experiência de comunidade, uma vez que, entre os motoboys, não se detectou uma história duradoura ou uma expectativa de longa e freqüente interação em que suas biografias pudessem ser compartilhadas. Resulta disso a diminuição das lealdades pessoais e a construção de uma imagem de herói e artista, como dito anteriormente, que busca auxiliá-los no enfrentamento do cotidiano do trabalho, mas nem por isso é coerente com a realidade que se apresenta.

De acordo com Bauman (2003, p.48):

O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em relação ao futuro que assombram homens e mulheres no ambiente fluido e em perpétua transformação em que as regras do jogo mudam no meio da partida sem qualquer aviso ou padrão legível, não une os sofredores: antes os divide e os separa. As dores que causam aos indivíduos não se somam, não se acumulam nem condensam numa espécie de `causa comum' que possa ser adotada de maneira mais eficaz, unindo as forças e agindo em uníssono.

Em uma profissão que tem por exigência a pressa e o constante movimento, a construção de vínculos é prejudicada, uma vez que é no semáforo, numa situação mais próxima de um monólogo do que de um diálogo propriamente dito, que os motoboys trocam "duas ou três conversinhas: `como é que está o serviço? Hoje, para mim, está ruim'. `Para mim está tranqüilo, hoje'" (motoboy L). Carlos (1994, p. 18), em estudo realizado acerca da cidade, comenta com muita propriedade essa questão:

O sinal dá a idéia do tempo e do entendimento sobre o tempo. O semáforo é o símbolo da cidade de hoje, do seu ritmo febricitante, dos signos que emitem ordem. Do tempo visto como sinônimo da pressa. De um tempo social diferencial construído por relações produtivistas. O decurso do tempo entre o `verde-amarelo-vermelho' marca o tempo da conversa, do relacionamento com o outro. Impõe o corre-corre, subtraindo do tempo a vida, no cotidiano do cidadão da grande cidade. O tempo passa a mediar a vida das pessoas, do seu relacionamento com o outro, uma relação coisificada, medida pelo dinheiro e pela necessidade de ganhá-lo. `Time is money'.

Para os motoboys, o que prevalece é a auto-imagem calcada na idéia de que "no discurso é bonito, pois tu vês, nos adesivos dos motoboys, `raça tri'" (motoboy I), numa referência cultural regional a algo que é bom, mas que não encontra sustentação nem no que diz respeito à categoria nem no que diz respeito à sociedade em geral, uma vez que, na percepção dos motoboys, "se tiver algum acidente, pessoas que nem viram nada dizem: `esses motoqueiros são todos loucos, tem mais é que matar'" (motoboy I).

 

Considerações finais

Os acelerados ritmos temporais do cotidiano, marcados por uma sensação de urgência, indicam uma voraz busca pela rentabilização do espaço-tempo e também dos sujeitos contemporâneos. O motoboy pode ser tomado como um dos agentes que personificam essa realidade, e, ao colocar em evidência o imperativo do aqui e do agora, revela a contemporaneidade marcada por uma sociedade onde tudo é mercadoria e circula. A alta mobilidade no trânsito da cidade, na busca do encurtamento das distâncias, aliada aos cuidados dispensados ao consumidor, caracteriza a relação espaço-temporal do trabalho imaterial presente na profissão dos motoboys. Por um lado, o trabalho imaterial do motoboy se mostra a partir da solicitação para que ele seja sujeito do trabalho, o que se observa, por exemplo, através da construção mental que faz de mapas da cidade para viabilizar as estratégias de ocupação do espaço público a partir do conhecimento que detém dos fluxos urbanos. Por outro lado, observa-se, por exemplo, a hipersolicitação, o constante estado de alerta em que permanece o corpo, os frágeis laços de solidariedade e uma ambígua relação com a sociedade.

Sob constante pressão do tempo em um contexto que prima pela antecipação das necessidades dos consumidores, o local de trabalho expandido nas vias públicas transforma-se em um universo de controle do tempo. Uma nova disciplina do tempo se impõe, se entranha na vida social e altera e cria novos hábitos que incidem sobre os modos de ser e de viver na sociedade em geral, ou seja, sobre a subjetividade contemporânea. Ela reforça a fragilidade desses trabalhadores enquanto categoria que busca uma imagem diferente da, até então, estabelecida. Tal fragilidade se evidencia nos momentos de dificuldade, como no caso dos acidentes, em que o tempo de entrega ainda prevalece como prioritário à permanência com o colega; também se evidencia nas relações de amizade superficiais, tão curtas quanto a passagem do vermelho para o verde nos semáforos da cidade. Enquanto categoria relativamente nova no cenário do trabalho e da cidade, quando questionados sobre o futuro, os motoboys foram unânimes em responder: "Todo mundo pensa em trocar. Ninguém quer ser motoboy pra sempre" (motoboy H).

Permanece como indagação: o futuro os alçará a uma condição diferenciada enquanto categoria de trabalho ou permanecerão como "apenas um vulto" no trânsito da cidade?

 

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Endereço para correspondência
Carmem Lígia Iochins Grisci
Escola de Administração
Rua Washington Luis, 855 sala 424
90010-460, Porto Algre, RS, Brasil
Fone /Fax (51) 33083856/33082991
E-mail:Cligrisci@ea.ufrgs.br

Recebido 16/08/06
Aprovado 25/01/07

 

 

* Professora da PPGA/EA/UFRGS-pesquisadora do CNPQ
** Graduanda-bolsista do IC/CNPQ/
*** Graduanda-bolsista do IC/FAPERRGS