SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27 número3Modos de trabalhar e de ser de motoboys: a vivência espaço-temporal contemporâneaDa experiência da fala de sujeitos usuários na clínica psicológica às suas possíveis repercussões índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.27 n.3 Brasília set. 2007

 

ARTIGOS

 

Estratégias de produção de si e a humanização no SUS

 

Strategies of self-production and the humanization of SUS

 

 

Anita Guazzelli BernardesI,*, Neuza GuareschiII,**

I Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul- Faculdade Cenecista Nossa Senhora dos Anjos
II Programa de Pós-graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo visa a problematizar a relação entre as estratégias de produção de si e a Política Nacional de Humanização como um dos princípios do SUS no campo da saúde pública, assim como busca refletir a condição de existência da Humanização no campo da saúde coletiva. Para tanto, discutem-se as maneiras como essa política articula produções discursivas sobre o modo de subjetivação do indivíduo, os mecanismos de controle que intentam forjar modos que transcendem uma condição humana. Para produzir tal discussão, utiliza-se uma abordagem fundamentada em teóricos contemporâneos, principalmente os conceitos foucaultianos de tecnologias de si e modos de subjetivação, que entendem o discurso de forma a enaltecer não o que significa um conceito, mas sim, o que se produz a partir deste.

Palavras-chave: Política Nacional de Humanização, Tecnologias de si, Modos de subjetivação.


ABSTRACT

This article aims at the discussion of the relationship between the strategies of self-production and the National Humanization Policy as one of the principles assumed by SUS in the public health field, attempting to reflect on the condition of Humanization in the collective health field. To do so, we discuss the ways this policy has articulated discoursive productions about the individual subjectivation mode and the control devices that intend to shape modes that transcend the human condition. In order to produce such a discussion, we have used an approach based on contemporary theorists, mainly foucauldian concepts of technologies of self and subjectivation modes that take discourse so as not to extoll what a concept means, but what is produced from it.

Keyword: National Humanization Policy, Technologies of self, Subjectivation modes.


 

 

Este artigo tem, como objetivo, a discussão da relação entre a Política Nacional de Humanização1 e as formas de subjetivação no campo da saúde pública. Entende-se a política de Humanização como uma das estratégias políticas estabelecidas pelo SUS no campo da saúde. Essa política provoca uma formação existencial - a humanização - e torna-se a marca que produz modos de viver. Para tanto, é analisada a cartilha "HumanizaSUS" (BRASIL, 2003) mediante as ferramentas foucaultianas.

A humanização da saúde é uma política pública intitulada Política Nacional de Humanização, desenvolvida em meio às discussões de qualificação do Sistema Único de Saúde. A proposta sustenta-se nas proposições do SUS de que saúde é um direito de todos e um dever do Estado, em que se lida com a defesa da vida por meio do direito à saúde. Trata-se de uma política, e não de um programa, pois o intuito não é apenas "tecnologizar" os sistemas de saúde, mas modificar o modo de compreensão dos princípios que norteiam a concepção de saúde estabelecida constitucionalmente como uma questão plural. É importante explicitar aqui a diferença entre política e programa. Tanto a política como o programa dizem respeito a uma forma epistemológica e uma forma substantiva, porém as políticas são diretrizes do sistema de saúde, enquanto os programas são modos de operacionalizar essas diretrizes.

A Política Nacional de Humanização é tanto um atributo substantivo, no que diz respeito às formas de qualificação dos sistemas de saúde, como capacitações, treinamentos e modificação na forma de atenção à saúde, quanto uma questão epistemológica, envolvida na produção de conhecimento sobre as formas, cuidados e atenção à vida. O conceito de humanização é entendido, pela Política Nacional, como o "aumento do grau de co-responsabilidade na produção de saúde e de sujeitos; mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho", e fundamenta-se "na troca e construção de saberes, no diálogo entre profissionais, no trabalho em equipe, na consideração às necessidades, nos desejos e interesses dos diferentes atores do campo da saúde" (BRASIL, 2003, p.10).

A Humanização torna-se um objeto-conceito do Sistema Único de Saúde. Para sustentar essa discussão, Foucault (2000), ao escrever sobre a formação de conceitos e objetos, explica que as regras próprias das práticas discursivas não estão em um sujeito

"cognoscente", tampouco em um sujeito psicológico, mas no próprio discurso, pois "se impõem, por conseguinte, segundo um tipo de anonimato uniforme, a todos os indivíduos que tentam falar nesse campo enunciativo" (p.70). Desse modo, a humanização é uma objetivação das práticas discursivas produzidas pelo SUS. Não é uma grande invenção, tampouco uma evolução, mas uma presença, em uma rede de relações que partem do estreitamento entre a vida e a saúde. Ao conformar um conceito de saúde, o SUS acaba também formando objetos, problematizados de acordo com a proposta de Foucault sobre uma arqueologia dos discursos (2000, p.122): Em vez de dar um sentido a essas unidades, coloca-as em relação com um campo de objetos; em vez de lhes conferir um sujeito, abre-lhes um conjunto de posições subjetivas possíveis; em vez de lhes fixar limites, coloca-as em um domínio de coordenação e de coexistência; em vez de lhes determinar a identidade, aloja-as em um espaço em que são consideradas, utilizadas e repetidas.

Os princípios doutrinários e organizativos do SUS são, eles próprios, parte de um discurso que iguala saúde a condições de vida. É um processo de lutas - princípio doutrinário e organizativo - por imposições de sentidos. A Humanização entra nessa esteira discursiva, reforçando os conceitos de universalização, eqüidade, integralidade, regionalização e hierarquização, descentralização, comando único e participação popular. Os princípios doutrinários - universalização, eqüidade e integralidade -, bem como os princípios organizativos - regionalização e hierarquização, descentralização, comando único e participação popular - fazem parte do que é possível ver e falar; são parte de um conjunto de regras em que o conceito de saúde é tomado pelos conceitos de sistema e unicidade (BRASIL, 2001).

A Humanização, neste texto, ao ser discutida como um objeto-conceito, é compreendida como uma prática-discursiva. As práticas-discursivas, assim como produzem enunciações, produzem também sujeitos, posições de subjetividade (Foucault, 2000). Essa produção de sujeitos, de subjetividades, é uma série de conformações de modos de viver, de formas de vida, de condições humanas em um determinado espaço-tempo. Isso nos permite afirmar que a Humanização é uma condição de existência no campo da saúde. Como condição de existência, ou seja, necessária para nos pensarmos como seres humanos, passa a produzir o que Deleuze (1988) nomeia sujeitos-forma, e não substância. A discussão que Deleuze (1988) faz sobre sujeito-forma diz respeito a uma crítica ao pensamento que considera que o ser humano tenha uma essência a priori, uma substância da qual parte e se desenvolve. Propõe pensarmos o ser humano como derivado de práticas sociais. Essas práticas sociais produzem os modos como as pessoas vivem, se relacionam consigo mesmas e com o mundo, ou seja, forjam formas de viver, forjam sujeitos-forma.

Assim, operar com o conceito de forma e não de substância implica analisar um conjunto de saberes e atitudes experimentais que o sujeito opera sobre si mesmo para tornar-se uma condição humana. O sujeito-forma não é, para todo o sempre, idêntico a si mesmo, visto que, ao tornar-se sujeito de uma determinada verdade, o indivíduo exercita sobre si mesmo uma série de transformações nos modos de viver. Essa temática sustenta-se em uma ontologia do presente, mediante a qual os saberes e as atitudes do sujeito sobre si mesmo são entendidos como tecnologias da vida produzidas em determinados campos, como, por exemplo no da saúde, que passam a ter não somente valor de verdade, mas criam a necessidade de ajustamento a essas verdades.

Segundo Foucault (1990), a investigação sobre o modo como os indivíduos têm desenvolvido, na cultura, diferentes saberes sobre si mesmos deve amparar-se na relação entre jogos de verdade e as tecnologias políticas. Essas tecnologias passam a ser formas de governo de si e do outro. Encontramos, na contemporaneidade, tanto nas palavras quanto nas coisas, enunciações e visibilidades humanizadoras. Seriam condições de diferentes enunciados, de diferentes modos de subjetivação que se estendem pelo tecido social. Como orienta Foucault (1970), é preciso "rachar" as palavras e as coisas, é preciso colocar em suspenso a naturalização dos processos políticos que, entre outras dimensões, têm como objetivo a humanização. Esse exercício torna-se necessário na medida em que problematizar as formas de subjetivação no contemporâneo implica uma discussão sobre a ética; ética como exercício de reflexão sobre as formas de viver, sobre as condições de existência, sobre a possibilidade de o sujeito apropriar-se da história de sua vida; ética como uma categoria da alteridade, como uma provocação aos modos de viver que se instituem (Foucault, 2004).

As tecnologias da vida são operações sobre os modos de viver, sobre as possibilidades de vida. Os conceitos de operações sobre modos de viver e possibilidades de vida são formas de considerar que o humano é produzido por práticas sociais, e não por um substrato, uma essência interior. Essas práticas sociais são entendidas como ações, como operações sobre si mesmo e o outro, como argumenta Nietzsche (1998, p.36): "não existe tal substrato, não existe ser por trás do fazer, do atuar, do devir; o agente é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo". As tecnologias referem-se às relações que existem entre a constituição do sujeito com os jogos de poder e verdade. Dessa forma, ao produzirem sujeitos, as tecnologias são edificações que tomam o corpo e a vida como objeto tecnocientífico, no contemporâneo, no intuito de transpor aquilo que tornou o humano objeto de conhecimento: a finitude. Irrompe, no campo da saúde, por meio de políticas públicas, a necessidade premente de humanização dos sistemas de saúde face aos mecanismos tecnocientíficos da saúde. A humanização aparece, então, na esteira de discussões do SUS, como mais um de seus princípios, "lidar com a dimensão subjetiva que toda prática de saúde supõe" (BRASIL, 2003, p.6). Surge o personagem humanizado, nos sistemas de saúde, que deve olhar o outro em sua dimensão de sujeito-vida, "sujeito da história de muitas vidas" (BRASIL, 2003).

Assim, a discussão deste texto volta-se para a objetivação e a reflexão da Humanização como modos de viver, como formas de subjetivação constituídas no campo da saúde. A Humanização será discutida, então, como tecnologia da vida que forja determinadas maneiras de o indivíduo relacionar-se consigo mesmo, de tornar-se objeto de si por meio da humanização de si - um si edificado pela relação que se estabelece entre saúde, vida e tecnologias (Foucault, 1996, p. 6). Para desenvolver essa problematização, em um primeiro momento, é feita uma análise das objetivações da humanização em diferentes formações históricas. A partir disso, é discutida uma aproximação da humanização com o campo da saúde mediante o Sistema Único de Saúde. A análise da política de Humanização tem, como ferramenta, as tecnologias de poder subsidiadas pelo pensamento de Foucault (2003): tecnologias de controle, tecnologias epistemológicas e tecnologias de si.

 

Humanização: a vida como política

A forma de pensar a Humanização diz respeito à interrogação que fazemos sobre a maneira como essa se torna objeto de estratégias políticas. Foucault (1984) descreve como, na modernidade, a Razão foi tomada como vetor de subjetivação no discurso psiquiátrico/psicológico. Com isso, criaram-se taxionomias e reforçou-se a epidemiologia com base na produção de sujeitos da razão. O sujeito da razão amparava-se em condições de possibilidade da noção cartesiana do "penso, logo existo", ou seja, o pensamento, como forma de conhecer a si mesmo, tornava o indivíduo um sujeito da razão. Aqueles sujeitos que, de alguma forma, não se enquadravam na categoria "razão" eram enquadrados na da "des-razão". Para Foucault, na História da Loucura (1978), a "des-razão" é considerada o inverso da razão, ou seja, ou se tinha o atributo da razão ou não. Essa discussão do outro (des-razão) deriva da problematização de Canguilhem (1978) sobre a formação das categorias de normal e patológico. Desse modo, a Razão é colocada em relação a um conjunto de objetos, entre eles, a loucura, com seu domínio de coordenação e coexistência, ao passo que o homem é colocado no centro do universo enquanto estratégia de produção de conhecimento. Essas mesmas condições - razão e produção do conhecimento - criam a possibilidade do desaparecimento, visto que, ao tornar-se objeto da ciência, o homem entra na esteira de classificações dos seres vivos e, como tal, está fadado a morrer (Foucault, 1970).

A possibilidade de vida encontra-se na liberdade que se alcança por meio de tecnologias de conhecer a si mesmo, ou seja, uma racionalidade que possibilite ao sujeito dar-se a conhecer a si mesmo. Esses atributos de liberdade e conhecimento de si conformam a razão como um atributo humano; entretanto, não qualquer humano, mas aquele que tem a possibilidade de, por meio do pensamento, perceber que existe. A humanização, nesse momento, diz respeito ao sujeito da razão. A humanização do sujeito que conhece a si mesmo por meio do pensamento tem, como regras de existência, a racionalidade cartesiana. Nesse sentido, a humanização, na modernidade, alojava-se em um espaço considerado da Razão. A humanização, assim considerada, fazia parte do progresso da humanidade, tornando-se a antítese da loucura, da psicopatologia, e conferia um conjunto de posições possíveis de razão e des-razão que a humanização utilizava.

O recrudescimento da ciência, no final do século XIX e início do século XX, em que se separam as "ciências naturais" das "ciências do espírito", passa a "tecnologizar" a vida e a afastar o que poderia obscurecer o acesso à verdade da vida. O que se considerava, pela ciência, como impedimento a uma neutralidade (sentimentos, emoções, intuições) começa a ser controlado por métodos que se propõem anular a possibilidade de intervenção desses domínios no acesso à verdade da vida. O que humaniza o sujeito tem de ser controlado. Isso difere do pensamento do século XVIII, em que a humanização era uma forma de objetivar o sujeito da razão. Nos períodos seguintes, a necessidade de neutralidade científica objetiva a humanização como aquilo que deve ser controlado. A humanização passa a ocupar um lugar de domínio dos sentimentos, emoções e intuições que impedem o exercício da razão. O humano tem que deixar de ser o centro do universo, ao passo que a razão e o método passam a ser os ideais para o progresso da humanidade. O que, com a morte de Deus, fez emergir o Homem - a finitude - cria as condições de emergência da necessidade de neutralizar essa limitação, essa finitude característica do Homem que lhe conferia um valor de humanidade. Já a forma-Homem2 (Deleuze, 1988) é forjada na modernidade que a objetiva, trazendo também consigo a necessidade de controlar tudo o que poderia levar essa forma a impedir o progresso da humanidade. Para tanto, com essas estratificações - forma-Homem, finitude, método, razão -, estabelecem-se linhas de força, ou diagramas, que criam estratégias políticas de controle das populações. O controle das populações torna-se necessário na medida em que a urbanização da sociedade impõe novas problemáticas, tais como as epidemias e endemias, bem como a possibilidade de desorganização social. Torna-se necessário criar formas de governo por meio da disciplina e de biopolíticas, que são estratégias do biopoder. O biopoder é uma conformação do poder em que os jogos de força investem na vida, fundamentalmente nas formas de viver da população. O biopoder tem, como finalidade, o fazer viver. O controle das populações investe na humanidade, no controle dos modos de viver: habitação, natalidade, mortalidade, casamentos. A humanização, aqui, ao mesmo tempo em que conforma a forma-Homem, é o que deve ser governado para o progresso da humanidade. A humanização é um mal que deve ser combatido por meio de estratégias disciplinares e biopolíticas do biopoder.

A humanização, dessa forma, aparece em relação à razão como forma de colocar o humano no centro do universo. Porém, ao mesmo tempo, é por meio da racionalidade tecnocientífica que os atributos humanos começam a ser impeditivos para o desenvolvimento da humanidade, estabelecendo-se uma relação entre humanização e necessidade de controle de si e das populações. São formas distintas de objetivar a humanização: humanização/razão/progresso e humanização/desorganização social/ governo.

A vida e a saúde enquanto objeto político

Por meio de estratégias de governo, cria-se o que passa a ser nomeado políticas públicas. As políticas públicas são formas de administração da população, ou seja, são biopolíticas. No século XX, no Brasil, as políticas públicas voltam-se para os campos da saúde, da educação, da habitação, entre outros, e passam a gerir a vida por meio da relação entre ciência e economia. As formas de governo têm, como correlatos, campos de saber que objetivam a saúde, a educação, a habitação, a alimentação, mas, sobretudo, objetivam certo modo de ser. Esses modos de vida estabelecem maneiras de humanização sustentadas na necessidade de progresso social. Entretanto, o progresso social, por estabelecer relações com o capital, acaba por produzir um empobrecimento cada vez maior da população, que se torna gradativamente dependente de políticas públicas para ter acesso a bens sociais, como saúde, educação, alimentação, moradia. A entrada de campos distintos nas políticas públicas, por meio de movimentos sociais, e a redemocratização do País, a partir da década de 80, geram outras formas de governo da população, as quais começam a se contrapor ao que se estabeleceu de forma hegemônica como estratégia política: o liberalismo e o progresso mediante recursos conceituais e financeiros do capital privado.

Desse modo, no Brasil, na década de 80, elabora-se a constituição do SUS, em 1988, a partir de movimentos que emergem na área da saúde, tais como os de técnicos da saúde, sindicatos e trabalhadores, agrupados no que se denominou reforma sanitária. São traçadas diretrizes políticas para o campo da saúde, amparadas tanto em dados epidemiológicos quanto em ideais a serem atingidos em termos de saúde coletiva e cidadania. O avanço tecnocientífico não se torna um advento em termos de promoção de saúde da população e sim, critério de universalização, eqüidade e integralidade.

As biopolíticas da saúde pública, entre as décadas de 60 e 80, haviam promovido o recrudescimento do setor privado, na medida em que se assentavam no seguinte tripé: "a) o Estado como financiador do sistema por meio da previdência social; b) o setor privado nacional como o maior prestador de serviços de assistência médica; c) o setor privado internacional como o mais significativo produtor de insumos, em especial de equipamentos médicos e medicamentos" (BRASIL, 2001, p.294). As ações em saúde, nesse período, dividiam-se em assistência médica de cunho eminentemente privado e cuidados primários decorrentes da Conferência de Alma-Ata3, que implicavam a necessidade de desenvolver e ampliar a cobertura para os segmentos populacionais excluídos do setor privado. Os princípios dessa Conferência são considerados, neste texto, como condições de possibilidade para a emergência do movimento sanitarista da década de 80. O movimento sanitarista é responsável pela formulação do projeto da reforma sanitária brasileira. O que se entende com isso é que um dos efeitos da consolidação e crescimento da rede privada em saúde seria a implantação da rede pública em termos de atenção primária e participação comunitária (BRASIL, 2001).

A reforma sanitária abre espaço para outras formas de objetivação da humanização. A razão e o progresso por meio do capital privado deixam de ser vetores fundamentais na constituição da humanização, e esta passa a assumir uma outra forma. Essa outra forma é marcada pelas discussões em saúde coletiva, isto é, tomam-se por base as formas de objetivação do sujeito segundo um conjunto de regras e relações de força, sustentado pelas lutas entre o campo tecnocientífico e a reforma sanitária. Enquanto o campo tecnocientífico se caracteriza pelas aplicações científicas na vida cotidiana e pelo estreito vínculo com o capital privado, a reforma sanitária toma como base as necessidades sociais, tais como saúde, educação, moradia, alimentação. A humanização começa a ser tecida nesse solo que articula relações entre ciência e necessidades de sobrevivência da população. A humanização começa a engendrar-se sobre as noções de coletivo, de comunidade e de redemocratização, e não mais sobre a razão. O indivíduo passa a ser tomado pelo coletivo no campo da saúde pública, visto ser por meio das objetivações em um conjunto de população que a epidemiologia tenta se deslocar de bases mercadológicas para bases coletivas. As ações em saúde direcionam-se, enquanto políticas públicas, para as comunidades. A comunidade, como objeto de governo, de formas de governo, vem a ser utilizada por caracterizar-se de modo mais específico que a população. Segundo Mendes (2004), o tropo da população em comunidades ampara-se na heterogeneidade que os grupos representam dentro de uma população. Quando Foucault (1999) propõe o conceito de biopolíticas para analisar as formas de investimento e o controle da população, trata-o como um objeto homogêneo. A população caracterizava-se pelos fenômenos que a objetivavam: natalidade, moradia, habitação, mortalidade, etc. Assim, a noção de comunidade vem demarcar a heterogeneidade da população como forma de controle. As comunidades são os diferentes grupos que conformam uma população, nas palavras de Mendes (2004, p.58):

São vários os mecanismos de controle contemporâneo em torno das comunidades de risco, comunidades de rap, comunidades gays, comunidades de jogadores. Essas e outras comunidades identificam grupos de sujeitos sob os mais diversos objetivos para a conduta(...); contudo, essas conceituações e administrações, como também as comunidades a elas ligadas, não existem a priori; existem, sim, como invenções momentâneas que constantemente mudam de configuração e sentidos.

Nesse caso, as biopolíticas voltam-se para os grupos: saúde da mulher, saúde do trabalhador, DST/AIDS, usuário de drogas, entre outros, que vão desenhar comunidades. A forma-Homem transforma-se em forma-Comunidade. É nas comunidades que as biopolíticas passam a investir, visto o conceito de saúde ampliar-se como condições e acesso a possibilidades de vida, e não mais apenas ausência de doença. Comunidade, aqui, é formada por coletivos da periferia, usuários e trabalhadores da rede pública de saúde que se tornam focos de estratégias políticas (controle e prevenção) e produção de conhecimento (epidemiologia e qualidade de vida). Nessa esteira da constituição de reformas na saúde, estabelecidas, em 1988, no Sistema Único de Saúde, emerge o discurso da Humanização, atravessado pelas biopolíticas e pela forma-Comunidade.

 

Humanizar a saúde

A Humanização da saúde, como estratégia de governo, volta-se justamente para as comunidades, pois deve considerar o "sujeito da história de muitas vidas" (BRASIL, 2003). Essas "muitas vidas" caracterizam a heterogeneidade do campo da saúde, ao mesmo tempo em que criam a necessidade de diferentes tecnologias de governo. A Humanização investe sobre a diferença, sobre um "sujeito histórias de vida", ou seja, humanizar é considerar, no campo da saúde, a diversidade da população, das histórias de vida e conformá-las em categorias formuladas pelas noções de epidemiologia e vulnerabilidade, entre outros. A Humanização, como biopolítica, não se volta para a vida, mas para as distintas formas de vida. O que se quer apontar com isso é que, ao considerar a Humanização uma biopolítica, aponta-se o fato de não ser possível escapar do conjunto de regras que a constituem e que, portanto, marcarão o modo como se articula no tecido social. A Humanização também implica certas experiências, certas formas de vida que estabelecem regras e códigos, normatizações e controle, bem como formas de subjetivação. Tomar a Humanização como um efeito do discurso do SUS não é considerá-la como a etapa final desse discurso, mas como a própria possibilidade de existência do discurso. A Humanização não é exterior ao discurso, mas possível pelo discurso. Por meio da descrição do discurso é que se delineia o sistema de regras colocadas em prática para que surjam certos objetos, conceitos e sujeitos. Saúde, enquanto direito do cidadão e dever do Estado, ramifica-se em usuários, trabalhadores, rede pública de saúde, integralidade, universalização, eqüidade, o que dá forma à Humanização (BRASIL, 2001). A política de Humanização sustenta-se nas regras do SUS, nos seus objetos, conceitos e sujeitos, mas, ao mesmo tempo, começa a formar seus objetos, conceitos e sujeitos: co-responsabilidade na produção de saúde, o sujeito história de muitas vidas. Enfim, não se trata de definir o que é a Humanização, e sim, o que ela produz. A partir disso, marca-se o modo como problematizamos a Humanização.

A Humanização é forjada como uma linha que atravessa todo o Sistema Único de Saúde, reforçando-o por meio de estratégias políticas, isto é, a Humanização estabelece um conjunto de regras coercitivas que colocam em jogo a relação entre gestores, trabalhadores da saúde e usuários. Como política nacional, a Humanização torna-se uma estratégia de controle dos sistemas de saúde, uma forma de estabelecer o modo de funcionamento e as maneiras de relacionamento que devem caracterizar as relações entre gestores, trabalhadores da saúde e usuários.

É importante entender que falar em discurso, aqui, é marcar um modo de entender aquilo que organiza o tecido social, ou seja, quem é usuário, quem é trabalhador, quem é gestor, a quem se destina o SUS, de que modo essas doutrinas e princípios organizativos se materializam no cotidiano. Nesse sentido, a Humanização entra como uma micropolítica, pois, com os modelos de atenção integral à saúde, bem como com a educação permanente em saúde, vai produzir corpos e sujeitos do Sistema Único de Saúde. Micropolítica é uma ferramenta conceitual utilizada por Foucault (2003) para problematizar as relações de poder. Ao considerar que o poder não é um atributo do indivíduo nem tampouco uma superestrutura, o autor entende que o poder se refere às relações de força, de jogos políticos que se estendem por todo o tecido social, nas relações do cotidiano, nas micropolíticas entre homens e mulheres, entre crianças e adultos, entre alunos e professores, entre trabalhadores e o trabalho, por exemplo.

Essa produção de corpos e sujeitos acontece mediante a noção de que a atenção tem que ser integral: deve-se voltar para o humano em sua integralidade, ou seja, para aquilo que está visível enquanto sinais e sintomas enunciativos do campo da saúde bem como para os modos de viver, para o modo como o sujeito narra a si mesmo (Foucault, 1999). Entende-se que, para compreender o usuário como um sujeito integral, um ser que vive, trabalha e fala, é necessária uma formação permanente do trabalhador. Nesse sentido, entra, na esteira de discussões e articulações do SUS, a necessidade de formação, ou seja, um programa de educação permanente do trabalhador.

A educação permanente, como estratégia de produção de trabalhadores, acaba por sustentar-se em duas noções distintas. A primeira considera o humano historicamente e, desse modo, é necessária uma transformação perene no modo como se objetiva o humano, pois ele não é uma forma estável, e sim, efeito de uma série de transformações históricas. A segunda diz respeito ao que um modelo de acumulação flexível determina como fundamental para o trabalhador.

Em um mercado flexível, a formação tem que ser permanente, não se dando mais por meio de migrações de um espaço para o outro, como nas sociedades disciplinares, mas na exigência de um mercado que se modifica continuamente. Os jogos são compostos por regras que, assim como forjam um discurso, são sustentadas e alimentadas por esse discurso. As regras não são resultado de uma sedimentação histórica, mas de um conjunto de jogos anônimos que possibilitam a formação de objetos e de conceitos (Foucault, 2000). O sujeito, aqui, é o modo como um indivíduo, ou um grupo, se posiciona na rede discursiva do Sistema Único de Saúde, na forma-Comunidade. Assim, descrever o discurso no jogo de sua instância é voltar-se para a formação de objetos, conceitos e sujeitos que só se tornam possíveis pelo discurso do Sistema Único de Saúde.

 

Humanizar-se: tecnologias de produção

A Humanização é considerada política (BRASIL, 2003), e não programa, por instituir-se como diretriz transversal que atravessa todas as instâncias e ações em saúde. É por meio dessa política que programas devem ser elaborados localmente. Uma política estabelece a estrutura de um sistema, a maneira como este deve funcionar e sustentar os objetivos propostos. Elaboram-se, assim, técnicas para a conduta das pessoas consigo mesmas e com o sistema de saúde. Essas técnicas propostas pela política de Humanização amparam-se em três formas de tecnologias, que são utilizadas como estratégias de análise para problematizar a política de Humanização: estratégias de controle (relação entre gestores, trabalhadores da saúde e usuários); questões epistemológicas (sujeitos de muitas vidas, saúde como uma questão plural), e tecnologias de si (modelos de atenção à saúde do usuário e do trabalhador). No entanto, para ter efetividade, essas técnicas têm que conformar sujeitos, como o próprio documento assinala: "pautar-se pela construção de trocas solidárias, comprometidas com a dupla tarefa de produção de saúde e produção de sujeitos" (idem, p.10). Os sujeitos produzidos devem ser objetivados em relação à saúde e à solidariedade e separados em três instâncias de ações - profissionais da saúde, usuários e cidadãos (idem, p.11), pois ainda, conforme esse documento (BRASIL, 2003, p.6), afirma-se que a tarefa de Humanização do SUS convoca a todos: "gestores, trabalhadores e usuários". Posteriormente, encontra-se a estratificação em "profissionais da saúde, usuários e cidadão" (p.11). Quando o documento passa a descrever os princípios norteadores da política de humanização, as marcas, estratégias, definições e orientações, estes passam também a operar com os conceitos de usuário, trabalhadores e gestores, abandonando o conceito de cidadão.

Tecnologias de controle

As tecnologias de controle giram em torno do modo como é proposta a política de Humanização. Considerar-se a co-gestão, a co-responsabilidade e a participação são estratégias de governo que não agem sobre os outros no sentido de orientar como devem ser as atitudes apenas, mas determinam como esse outro deve ser, de que modo deve relacionar-se consigo mesmo para tornar-se parte do processo de Humanização da saúde. São ações impositivas em que o sujeito deve se tornar gestor, responsável e participante na produção de saúde. A noção de saúde como dever do Estado e direito do cidadão implica a integração desse personagem às formas de produtividade da saúde. Não pode mais ser um personagem passivo, como se considerava o paciente (que aguardava pelas ações), mas um sujeito ativo _ ativo em sua comunidade, um agente de saúde. Não é uma questão de poder participar, mas de dever participar, é um estado de direitos e de deveres. Para tornar-se cidadão e não ser apenas usuário, o sujeito, assim como tem direito de acesso aos sistemas de saúde, tem o dever de co-gerir e de se co-responsabilizar pela estruturação e funcionamento desses sistemas. Controlam-se o dever e o direito mediante a co-gestão e a co-responsabilização. O "eu" é um sujeito protagonista e autônomo, uma empresa de si próprio que, ao ter que gerir, também se responsabiliza e participa, organizado em coletivos por meio da cooperação e da solidariedade.

A Humanização objetiva a desconstrução dos processos burocráticos da saúde, mas cria outras formas que também produzem divisões sociais: gestores, trabalhadores e usuários (BRASIL, 2003, p.6). Para dar conta dessas diferenças estabelecidas, o discurso da Humanização as equaliza (gestores, trabalhadores e usuários) por meio do personagem cidadão que participa, se responsabiliza e gere os cuidados com a própria saúde e a saúde de sua comunidade.

As formas de controle de si encontram diretrizes nas formas de controle da política de Humanização, pois, ao fazer-se enquanto política, a Humanização deve:

instituir sistemática de acompanhamento e avaliação, incluindo indicadores relacionados à PNH (Política Nacional de Humanização), articulados com os processos de avaliação do MS (Ministério da Saúde) no Programa de Avaliação de Serviços Hospitalares e Pactos de Atenção Básica, entre outros. (BRASIL, 2003, p.16).

Essas práticas de avaliação, acompanhamento e criação de indicadores produzem tanto um modelo de atenção à saúde quanto o sujeito desse modelo. Esse modelo de atenção implica o sujeito tornar-se ator desse processo de institucionalização da Humanização, que deve ser sistematicamente avaliado e acompanhado por meio de indicadores. Os indicadores são conjuntos de regras que estabelecem o que é da ordem do verdadeiro, como, por exemplo, indicadores de saúde sobre taxas de natalidade, mortalidade, saneamento básico e habitação, que estabelecem o grau de saúde de uma determinada comunidade.

Assim, a saúde não é apenas ausência de doença, e essa concepção deve ser trabalhada nos sistemas de saúde mediante a educação permanente. Dessa forma, o controle não é exercido pela grande autoridade estatal, mas devem ser criados localmente núcleos de controle, como grupos ou comitês. As formas de controle não são verticalizadas, mas transversalizadas, no que tange às micropolíticas da rede de saúde, e estendidas pelo tecido social, que é organizado em grupos, em comunidades, ou seja, em protagonistas dos processos de produção de saúde. Entretanto, por tratar-se de uma diretriz do SUS, as formas de implantação da política são verticalizadas; são determinações que, apesar de serem construções locais, seguem uma imposição nacional, fabricam-se como um dever da rede de saúde: os sujeitos da saúde devem humanizar-se, pois é uma política em saúde.

 

Tecnologias epistemológicas

De acordo com Foucault (1998), não é necessário saber exatamente quem se é, mas o modo como a vida e o trabalho permitem que o sujeito se torne diferente do que é. Dessa maneira, tornar-se diferente do que se é não implica apenas uma ação despótica, de controle sobre si mesmo, mas também uma transformação na forma de conhecer-se. A necessidade de conhecer a si mesmo não é um atributo inato do humano, mas uma fabricação de formas de se relacionar consigo mesmo por meio da objetivação do conhecimento e do pensamento como estratégias de governo dos indivíduos. A política de Humanização também agencia relações epistemológicas do sujeito consigo mesmo. O conhecer a si mesmo torna-se necessário, pois as categorias de "profissionais da saúde, usuários e cidadãos" (BRASIL, 2003, p.11) são constituídas pela "mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho" (idem, p.10), o que envolve trabalhos e diálogos em equipes multiprofissionais, fundamentados em necessidades, desejos e interesses dos "diferentes atores do campo da saúde" (idem). A Humanização, ao considerar as necessidades, os desejos, os interesses, bem como as histórias de vida ou histórias de muitas vidas, cria tecnologias de transformação das "mentalidades" ou, como nomeia Rose (2001), "técnicas intelectuais", por meio de "debates orgânicos, salas de conversas, ouvidorias e educação permanente". Essas práticas de domínio do conhecimento da relação que o sujeito estabelece consigo mesmo a partir de questões epistemológicas também constituem o protagonista, ator das ações em saúde. Para ser um ator-protagonista, deve-se conhecer o perfil do personagem: seus gostos, seus desejos, suas necessidades, suas histórias de vida. Os debates, as conversas e a educação permanente criam a possibilidade de esse "eu" protagonista surgir, um "eu" participativo, encorajado a falar de si, a descobrir e revelar necessidades, desejos e histórias de vida.

Essa tecnologia de poder reforça a noção de um "eu", de uma autoria nos processos de saúde. As questões epistemológicas operam e produzem uma forma de o indivíduo experimentar-se como sujeito "cognoscente", como sujeito psicológico capaz de narrar a si mesmo. Essa narração de si é importante no que tange à modificação das posições do conhecimento: não é o outro que tem a verdade sobre o sujeito, como na relação verticalizada entre Medicina e clientela, mas é o próprio sujeito que faz uma inflexão sobre si mesmo para desvelar suas necessidades, desejos e histórias de vida. A contrapartida desse processo de constituição de um sujeito-protagonista na saúde é operar com uma racionalidade que é herdeira da modernidade: o indivíduo, como uma identidade psíquica, que, por meio dos atributos do pensamento e dos afetos, é capaz de modificar a si mesmo.

 

Tecnologias de si

As formas de cuidados de si forjadas pela Humanização estabelecem um sujeito vivo, ativo e produtivo, que deve cuidar e ser cuidado pela política. A Humanização cola a saúde às noções de participação, responsabilidade, processos de gestão e produção de vida. Os cuidados com a vida referem-se aos indicadores de saúde: doenças, epidemias, mas também habitação, natalidade, saneamento e emprego. Todas essas categorias formam a estrutura de um modo de vida saudável. A política de Humanização, ao tornar o sujeito vivo, ativo e produtivo, transforma-o também em responsável pelo cuidado de si mesmo. É um dever do Estado, mas, como condição de direito, de cidadania, o sujeito deve participar da gestão em saúde, deve cuidar de si mesmo. Cuidar de si mesmo é um compromisso com "a defesa da vida" (BRASIL, 2003, p.11) voltado para "prevenir, cuidar, proteger, tratar, recuperar, promover, enfim, produzir saúde" (idem, p.5). O ator-protagonista, cidadão que deve cuidar de si mesmo, é uma necessidade para o desenvolvimento e "contágio" da política de Humanização. A transformação no modelo de gestão em saúde implica o envolvimento de todas as instâncias estabelecidas como participantes da produção de vida: gestores, trabalhadores e usuários.

O cuidado de si transforma cada um desses personagens em cidadãos, em sujeitos de direito que têm, como dever, produzir saúde e defender a vida. Assim, a saúde torna-se um dever. Nesse caso, reforça, no discurso da saúde, a busca perene pela saúde da vida. A saúde torna-se uma forma de inclusão social. Buscar saúde, ter saúde, ser usuário, trabalhador, gestor do sistema de saúde produz e determina as formas de viver, os modos de acesso e trabalho na saúde. A inclusão segue um conjunto de regras que devem conformar comunidades, marcar os corpos, tornando a política de Humanização um agenciador de saúde e, ao mesmo tempo, de controle. É uma forma de estabelecer como atender, como acolher, como relacionar-se, ou seja, torna-se um princípio normatizador nos sistemas de saúde.

 

Ética e norma na Humanização

Operar com um princípio ético significa fazer um exercício de reflexão a partir de regras facultativas, de produção e apropriação da vida. É uma forma de interrogação sobre aquilo que se encontra como norma; norma como um conjunto de regras que determinam os modos de viver, as formas de o sujeito se relacionar consigo e com o outro, um princípio regulador que se estende pelo tecido social e, ao institucionalizar-se, torna-se natural. Usar a ética como uma forma de problematização é considerar a necessidade perene de colocar em análise as práticas sociais a partir daquilo que elas produzem em termos de formas de subjetivação e tecnologias de poder.

A ética deve tornar-se um analisador da Política Nacional de Humanização na medida em que problematiza a política no que tange aos procedimentos coercitivos. Não se trata de um pensamento que objetiva a desconstrução da Política Nacional de Humanização, e sim, de uma reflexão sobre aquilo que ela produz no momento em que se torna uma norma, uma biopolítica de controle das formas de viver e trabalhar na saúde.

 

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Gestão Municipal de Saúde: Textos Básicos. Rio de Janeiro: Brasil. Ministério da Saúde, 2001.        [ Links ]

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde, 2003.        [ Links ]

CANGUILHEM, George. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.        [ Links ]

DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.        [ Links ]

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Lisboa: Portugalia, 1970.        [ Links ]

______. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.        [ Links ]

______. Psicologia e Doença Mental. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.        [ Links ]

______. Tecnologias del Yo. In: ______. Tecnologías del Yo y otros Textos Afines. Barcelona: Paidós, 1990, pp. 45-94.        [ Links ]

______. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.        [ Links ]

______. História da Sexualidade II: o Uso dos Prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998.         [ Links ]

______. História da Sexualidade I: a Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999.        [ Links ]

______. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.        [ Links ]

_______. Estratégia Poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.        [ Links ]

______. Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.        [ Links ]

MENDES, Cláudio. Controla-me que te governo: os jogos para computador como formas de subjetivação e administração do "eu". Tese de Doutorado em Educação. Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.        [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma Polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.        [ Links ]

ROSE, Nicolas. Como se deve fazer a história do Eu? Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 26, nº 1, pp. 33-57, jan/jun. 2001.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Neuza Guareschi
PUCRS - Faculdade de Psicologia
Av. Ipiranga, 6681, Prédio 11, 9º andar
E-mail:nmguares@pucrs.br

Recebido 09/01/05
Reformulado 07/12/06
Aprovado 26/01/07

 

 

* Psicóloga, doutora em Psicologia pela PUCRS e docente da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões.
** Professora/pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUCRS.
1 Quando o conceito Humanização aparecer com letra maiúscula, diz respeito à Política Nacional; quando aparecer com letra minúscula, refere-se às estratégias cotidianas criadas pela Política.
2A expressão "forma-Homem" é utilizada por Deleuze (1988) quando este faz uma diferenciação entre a relação da sociedade com a Igreja, conformada na figura da "forma-Deus", e a relação da sociedade com a ciência, na qual emerge a figura da forma-Homem. Ambas são conformações de campos de saber que relacionam a vida com a infinitude, que se desdobra na figura de Deus, ou com a finitude, que se desdobra na figura do Homem, objetivado na modernidade.
3 Alma-Ata é a titulação da Conferência Mundial de Saúde, realizada no ano de 1978, na qual fica acordada a priorização da atenção e dos cuidados primários de saúde em âmbito internacional.