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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.27 no.3 Brasília Sept. 2007

 

ARTIGOS

 

Juventude e sistema de direitos no Brasil

 

Youth and rights system in Brazil

 

Hebe Signorini Gonçalves*, Joana Garcia**

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo analisa as condições de atendimento aos direitos de crianças e jovens, na forma assegurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Com base em dados divulgados pelas principais estatísticas nacionais, em estudos que tomam por base essas mesmas estatísticas e em relatórios oficiais, discute o alcance das políticas de atenção à infância e à adolescência, em particular aquelas voltadas para o adolescente em conflito com a lei. O artigo aponta os traços de mudança e continuidade nas intervenções junto a esse segmento e na cultura política que assegura direitos ao mesmo tempo em que convive com a permanência de valores culturais anteriores ao moderno Estado de Direito.

Palavras-chave: Direitos sociais e subjetivos, Crianças e adolescentes, Agentes sociais.


ABSTRACT

This paper describes the state of children's rights as presented in the "Estatuto da Criança e do Adolescente". Based on the main set of national statistics, in studies based on these figures as well as in other official data, it analyses the social policies focused on children and adolescents, particularly adolescents in conflict with the law. The paper describes what has changed - and what has not changed - in respect to actions towards these groups as well as in the political culture: this culture establishes rights but allows the continuation of pre-modern values.

Keywords: Social and subjective rights, Children and adolescents, Social agents.


 

 

Em se tratando de políticas de atenção a crianças e jovens, a história brasileira tem sido freqüentemente dividida em dois tempos: antes e depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não que antes do Estatuto essa história fosse linear e indistinta, ao contrário: muito ocorreu para que sua promulgação, em 1990, representasse, de fato, o marco de uma nova abordagem dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil, nem tanto para as crianças, mas sobretudo para os denominados "menores", expressão de origem jurídica cujo uso corrente prestou-se a distinguir, entre crianças e jovens, aquelas consideradas incômodas ou ameaçadoras.

Com o Estatuto, os menores passaram a ser legalmente reconhecidos como crianças (até 12 anos de idade) e adolescentes (entre 12 e 18 anos), e considerados "em condição peculiar de desenvolvimento". O sentido político da mudança terminológica, cuja origem se deu no plano jurídico-normativo, foi reduzir a diferença entre segmentos sociais e atenuar as discriminações que recaíam sobre crianças e jovens de origem popular, de cor negra ou de famílias consideradas desestruturadas, entre outros atributos desabonadores. O propósito da mudança legal foi promover uma alteração no paradigma conceitual e nas práticas dele derivadas: abandonar a concepção de menor carente ou delinqüente, associada à pobreza e à cor, abandonar a doutrina da situação irregular, através da qual os órgãos públicos tinham como função básica corrigir desvios de conduta, e adotar a concepção de cidadania ampliada, mais condizente com a ordem internacional proposta pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU, em 1989.

Assim como o período anterior ao ECA não foi uniforme, o que o sucede também não se traduz em uma página virada na História. A despeito do grande avanço político que essa lei representou, certos jovens continuam sendo menores para efeito do seu reconhecimento social. Na prática, não alcançaram a cidadania em seus aspectos mais elementares (por exemplo, se circulam nos espaços públicos, não é porque têm trânsito livre ou direito de mobilidade, mas porque desafiam as interdições e são forçados a estar ali em razão de não haverem logrado outros direitos).

Neste artigo, discutimos avanços e impasses decorrentes da promulgação do Estatuto e nos dedicamos mais particularmente aos impactos sobre os jovens em conflito com a lei que, no conjunto dos denominados menores, ou em situação de risco, representam o segmento mais estereotipado e, por isso, mais desprotegido.

 

Uma breve revisão dos dados

Com base no Censo de 2000, a população infanto-juvenil, faixa etária que compreende de 0-17 anos, totalizava 57.624.291 de habitantes do total populacional de 169.799.170, o que representa 35,8% da população brasileira. Os dados oficiais mostram que, acompanhando as tendências mundiais, a situação das crianças e mulheres no Brasil melhorou de forma significativa nos últimos 15 anos. Os principais indicadores desse avanço foram a redução das taxas de mortalidade infantil, a redução da prevalência de baixo peso ao nascer e o aumento dos índices de imunização e acesso à escola.

Uma tendência importante das últimas décadas, no Brasil inclusive, é a diminuição do contingente de crianças e adolescentes em função da queda da taxa de fecundidade e do aumento da longevidade. Acompanhando as tendências em relação à população adulta, o conjunto formado pela população residente nas áreas urbanas e rurais do País apresenta características bem distintas. Se, nos domicílios urbanos, as pessoas que se declararam brancas superam a metade da população, na área rural, essa proporção corresponde às pessoas de cor preta e parda. A distribuição etária relativa aos grandes grupos populacionais de pretos e pardos caracteriza-se pela mais alta proporção de crianças e adolescentes e pela baixa proporção de idades mais avançadas. Esses dados indicam claramente uma associação entre idade, cor, renda e situação de risco.

As taxas de escolarização que expressam a freqüência escolar revelam que, na última década, houve avanços em todos os grupos etários. No ano 2000, 94,9% da população brasileira entre 7 e 14 anos de idade já freqüentava a escola, e assim o País se aproximava da cobertura universal. Apesar disso, persistiram algumas variações entre sexo, cor e regiões urbana e rural, indicando que a cobertura não se deu de modo uniforme, se observadas as variáveis citadas. Em 2000, a rede pública de ensino cobria cerca de 79% dos estudantes residentes no Brasil.

Devido às muitas campanhas que se sucederam à proibição do uso de mão de obra até os 14 anos, o trabalho infantil apresenta tendência fortemente decrescente, fato que representa uma condição de risco menos incidente se comparada aos últimos 10 anos. Ainda assim, dadas as condições precárias de vida, observa-se nas grandes cidades um contingente expressivo de crianças e jovens que passam os dias nas ruas, desempenhando atividades - como engraxates, vendedores ambulantes ou outras ocupações no mercado informal - para suprirem a renda familiar. Ignorando a necessidade de o jovem contribuir para a renda familiar, programas de transferência de renda voltados para adolescentes e jovens associam a exigência da escolarização à prestação de serviço voluntário na comunidade (Sposito e Corrochano, 2005), o que reduz a possibilidade de investimento no mercado de trabalho formal, o acúmulo de experiência requisitado para galgar posições num mercado restrito e altamente competitivo, assim como os lucros familiares auferidos pelo trabalho de adolescentes e jovens, sem que isso traga compensações para o jovem - dada a estrutura escolar defasada - nem para a família que o ampara.

A saúde registra a diminuição das taxas de mortalidade infantil e desnutrição, em decorrência da ampliação dos programas preventivos, do aumento da vacinação e do acompanhamento pré-natal em regiões do interior e do Nordeste. No entanto, em relação à saúde do adolescente, além do problema das drogas e da dependência química, discutidos adiante, duas situações que afetam diferentemente os dois sexos são particularmente relevantes como objeto de atuação do poder público: o fenômeno da gravidez precoce, que incide mais perversamente sobre as mulheres de baixa renda, e as taxas de homicídio entre jovens do sexo masculino, moradores de periferia e favelas.

A queda dos índices de fecundidade verificada nos últimos 40 anos tem sido acompanhada pelo aumento significativo da gravidez precoce em anos mais recentes. Alarmante em si mesmo, o fenômeno da gravidez precoce mostra-se ainda mais grave quando analisado a partir do recorte de renda. Estudos que tomam por base os Censos de 1980 e 2000 mostram que "a fecundidade de mulheres nas favelas cariocas é duas vezes maior do que nos bairros de renda mais alta, mas, no caso de adolescentes, a taxa é cinco vezes maior" (Néri, 2005, p.10). Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2003, o número de nascidos vivos de mães entre 10 e 19 anos cresceu cerca de 32% em relação a 1994. O gráfico a seguir apresenta os dados absolutos de maneira mais detalhada:

 

 

Assim como o problema das drogas, a gravidez precoce tem sido freqüentemente debatida a partir de um viés moralizante, o que parece pouco eficiente em termos de sua prevenção. O enfoque moralizante termina por sustentar uma leitura que, acentuando a culpa, encobre a discussão em torno das responsabilidades públicas no que diz respeito à proteção das jovens grávidas. O viés moralizante esconde motivações que tendem a engrossar as fileiras de adolescentes grávidas, sobretudo entre os segmentos mais pobres, já que, sobretudo nas famílias de baixa renda, os jovens são chamados a se tornar autônomos mais cedo, dadas as necessidades de subsistência (Augusto, 2005). Nesse contexto, a autonomia do jovem é valorizada e ativamente buscada, inclusive através da gravidez - "que pode ser uma decisão dos jovens pela maternidade e pela paternidade" (Castro e col., 2004,p. 146). Assim, não se trata de falta de informação nem de falta de diálogo, mas de uma escolha por sair da postura infantil, do lugar de filho(a), em busca da posição adulta e de um lugar mais autônomo dentro da família.

Se a situação da gravidez precoce entre as jovens de baixa renda é alarmante, a que afeta os jovens do sexo masculino desse segmento social é ainda mais delicada. Segundo Phebo (2005), desde 1982, registra-se um aumento expressivo de mortes violentas por arma de fogo. Enquanto naquele ano a taxa de mortalidade por arma de fogo foi de 7,2, em 2002, passou a ser de 21,8 mortes por 100.000 habitantes. Quanto aos jovens entre 15 e 19 anos que morreram em 2002, cerca de 39% foram vítimas de projétil por arma de fogo (PAF). Segundo a autora,

"Em nove capitais brasileiras, essa proporção chega a ultrapassar a metade dos óbitos. Nessas cidades, o adolescente homem morreu mais devido a lesões de arma de fogo do que por qualquer outra causa associada, seja ela doença, acidentes ou outras formas de violência." (Phebo, 2005, p.28).

A vitimização de jovens pela violência contraria as expectativas de vida e tem sido apontada como um dos fatores responsáveis pelo déficit de jovens do sexo masculino no perfil demográfico nacional, hoje similar a "sociedades que estão em guerra" (Soares, 2004, p.130). Em pesquisa sobre o uso de armas, conduzida por Rivera (2005), a questão da violência cometida contra jovens pobres é explorada sob outra perspectiva, que acentua a fragilidade desse segmento diante do poder legítimo da força policial:

Reafirmando os dados estatísticos, as armas de preferência dos policiais para uso nas favelas são aquelas de maior poder de fogo (maior número de tiros por segundo, carregadores com mais munição), aquelas que servem para atirar à distância, as que são mais resistentes, as que atravessam paredes e corpos. (Rivera, 2005, p. 240).

Os estudos acima foram amplamente divulgados na campanha pelo desarmamento que antecedeu o plebiscito de 2005. Uma das razões que orientou o voto vencedor (negando o desarmamento) foi a alegação de que pivetes e bandidos tinham armas e a sociedade precisava se defender deles com seus próprios meios. Mais uma vez, a antiga oposição entre sociedade e social discutida por Ribeiro (2000) se apresenta. Indício forte de uma cultura onde a desigualdade social se expressa através e para além da questão de renda, envolve um senso de pertencimento inteiramente discricionário.

"Isso porque o social e a sociedade não se referem aos mesmos meios sociais, às mesmas pessoas, à mesma integração que tenham no processo produtivo, no acesso aos bens, ao mercado, ao mundo dos direitos. O social diz respeito ao carente, à sociedade, ao eficiente." Por isso a distância entre os dois se mostra quase intransponível. Não se trata apenas de passar do adjetivo ao substantivo, ou do passivo ao ativo. Simplesmente, não é possível quem é objeto da ação social tornar-se membro integrante e eficaz da sociedade. A razão disso é que a diferença entre o social e a sociedade não é somente de perspectiva ou atitude: o social é aquilo que não pode tornar-se sociedade. (Ribeiro, 2000, p. 21-22).

Como se vê, há aspectos positivos relacionados à expansão de programas e serviços de proteção à infância e juventude, mas, em certas áreas do direito subjetivo de crianças e adolescentes, perdura um forte descompasso entre a lei e a sua implementação.

 

ECA: desafios para consolidação

O Estatuto representou uma síntese da discussão nacional em torno das políticas públicas para a infância, discussão que ganhou relevo na década de 1980. Resultado de um intenso esforço de mobilização política e discussão substantiva em torno do Estado de Direito, o ECA agregou propostas oriundas de diversas iniciativas, a maioria de origem não governamental, entre elas (Junior e col., 1992), o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, em 1985, a Emenda Popular Criança - prioridade nacional, apresentada em junho de 1987, com mais de 250 mil assinaturas, o Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum DCA -, constituído em março de 88, assim como a Frente Parlamentar de Infância.

Tais movimentos sociais e iniciativas institucionais ecoavam os preceitos da Declaração da ONU de 1989, e tinham como objetivo instaurar as bases de um novo contrato social a partir do qual a criança e o jovem fossem elevados à condição de sujeitos de direitos, sem restrição de cor, classe, sexo, raça ou qualquer outro atributo. Com esse contrato, formalizado no Estatuto, buscava-se o equilíbrio entre os direitos que passariam a ser atendidos pela família, pela sociedade e pelo Estado e os deveres que deveriam ser respeitados pelas crianças e jovens.

Assim como o Estatuto, a legislação internacional que o influenciou tem sua própria história. Os países signatários da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, deram prosseguimento, nas décadas seguintes e em legislações próprias, aos dez princípios de proteção ali firmados. Em 1989, novo documento produzido na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança teve impacto internacional ao reafirmar e ampliar, em cinqüenta e quatro artigos, noções de direito e de proteção, firmando responsabilidades compartilhadas do Estado, da família e da comunidade em relação a crianças e jovens. De acordo com o art. 3° da Convenção de 1989,

"Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o maior interesse da criança."

Portanto, a legislação internacional moveu-se do plano do anúncio pontual do direito às regulações coletivas e partilhadas. A Convenção de 1989 respondeu a conjunturas específicas que, nas diferentes nações, colocavam em risco crianças e jovens. A regulação do comportamento passa a visar não o sujeito individual - ou seja, o jovem que transgride códigos de conduta - mas o corpo social, e a propor princípios que o conjunto da sociedade, da família ao Estado, devem assegurar como forma de elevar crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos. Sob essa influência, o Estatuto incorporou-se à modernidade no que diz respeito às políticas para a infância, e rendeu-se, além disso, aos anseios de reconstrução democrática no Brasil. Ao se pautar em referências modernas do Direito internacional em termos de proteção à infância e juventude, o ECA distanciou-se dos modelos regressivos e criminalizantes que caracterizavam os Códigos que o antecederam. Desse modo, combinou a formalidade jurídica com preceitos normativos sólidos e ao mesmo tempo inteligíveis aos cidadãos de um modo geral. Em síntese, propõe uma mudança significativa do paradigma da necessidade para o do direito. Tal mudança é a pedra angular da garantia de cidadania plena. A partir do momento em que a lei passa a considerar crianças e jovens sujeitos de direitos, a provisão de serviços baseada no favor, na pena e no medo deixa de prevalecer.

Para Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou a substituição da necessidade pelo direito é matriz e pilar da cidadania. Celso Lafer incorpora essa concepção e afirma que a cidadania é

"concebida com o `direito a ter direitos', pois sem ela não se trabalha a igualdade que requer o acesso ao espaço público, pois os direitos - todos os direitos - não são dados (physei), mas construídos (nomoi) no âmbito de uma comunidade política." (Lafer, 1997, p. 64-5).

Pode-se afirmar a presença dessa concepção no art. 4° da Convenção das Nações Unidas, que recomenda a implementação de medidas administrativas, legislativas e de outra natureza, com vistas à implantação dos direitos. Aqui se reconhece a necessidade do esforço social e político em prol da implementação de políticas sociais sem as quais não haverá usufruto do direito. Os mesmos princípios - e a mesma concepção arendtiana - podem ser encontrados no Estatuto (art. 4°, 7°), que prevê a implementação de políticas sociais básicas, programas supletivos de assistência social, serviços de prevenção e atendimento médico e psicossocial a crianças e jovens cujos direitos não tenham sido assegurados ou tenham sido violados.

A efetivação das políticas sociais é um processo em andamento, com avanços significativos em diferentes dimensões que afetam a vida de crianças e jovens no Brasil. A ênfase na educação fundamental, o trabalho com atenção primária às gestantes e aos recém-nascidos, programas de suplementação da renda familiar associados à freqüência à escola e ao combate ao trabalho infantil são exemplos de iniciativas em curso que, embora requeiram ampliação e aperfeiçoamento, provocam um impacto positivo nos dados sobre a situação da infância no Brasil, se analisados diacronicamente. No entanto, as barreiras para a efetivação da noção ampliada de cidadania ainda são grandes.

Em junho de 2004 - cerca de 15 anos após o Brasil ter-se tornado signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança - foi entregue ao Comitê da ONU um relatório acerca das condições de vida e do tratamento dispensado à população infanto-juvenil no país. O Relatório é um dos itens a que se obriga cada país que se torna signatário da Convenção. Ele visa tornar públicos, para as instâncias reguladoras da ONU e para a opinião pública internacional, os esforços pela implementação dos direitos estabelecidos pela Convenção. Essa visibilidade das políticas internas, adotada pela ONU em várias de suas instâncias, atende a princípios da globalização no mundo contemporâneo, em que a autonomia das nações convive com a publicização de suas políticas internas. O atraso de mais de dez anos na sua entrega foi uma dentre a série de objeções apresentadas pelo Comitê ao Brasil.

O documento, elaborado pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente em parceria com o Fórum Nacional Permanente das Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, foi favorecido por uma análise mais distanciada, menos protocolar. A partir de um ponto de vista não governamental, o documento aponta problemas em relação às responsabilidades assumidas pelo Estado brasileiro e ao fosso entre o que a lei assegura e o que se implementa em termos de provisão e qualidade dos serviços. Invocando o art. 42 da Convenção, o documento enfatiza a importância do papel do Estado como disseminador dos princípios e disposições da Convenção e como provedor das condições adequadas para a implementação dos direitos sociais relativos a crianças e jovens. Acentua, no entanto, que as desigualdades sociais baseadas na cor, na classe social, no gênero e na localização geográfica ainda constituem impedimentos importantes para que as disposições da Convenção, incorporadas pelo Estatuto, sejam plenamente cumpridas.

Antes que sejamos tomados por uma espécie de "complexo de vira-latas", há que se considerar que o descompasso entre a lei e seu cumprimento não é um problema brasileiro. Em 2005, a Unicef apresentou seu relatório anual com o balanço da situação da criança e do jovem no mundo, e um dos aspectos apresentados, já na introdução do documento, foi a distância entre as Metas do Milênio e a vida de milhões de crianças excluídas e invisíveis, "para as quais essas promessas de um mundo melhor ainda não foram cumpridas" (UNICEF, 2005, p.3).

A falta de acesso aos direitos por parte dos segmentos mais empobrecidos marca mais diretamente a questão social no Brasil e nos demais países em desenvolvimento. O acesso à água potável e ao saneamento básico, por exemplo, não se estende aos brasileiros como um todo: segundo dados da PNAD 2002, cerca de 35% da população mais pauperizada não têm acesso à água potável, e, entre a população de menos de um ano de estudo, a estimativa é de cerca de 23%. Como a imagem do cachorro que persegue a própria cauda, as áreas mais vulneráveis às diversas dimensões da pobreza são, também por isso, as mais precárias em termos de provisão de recursos. Como se não bastasse, nem só de recursos materiais e serviços sociais os pobres são desprovidos. Há outras dimensões menos tangíveis sobre as quais o ECA ainda não logrou produzir os efeitos buscados, sobretudo nas relações sociais com os chamados "menores". Para estes, o problema não se restringe à provisão de serviços, mas estende-se às práticas criminalizantes, amparadas por uma cultura política que estigmatiza o adolescente autor de infração penal e exige para ele o tratamento da exclusão pura e simples. O banimento do convívio social ainda é visto como a melhor alternativa, como se o isolamento desses adolescentes em territórios de exclusão, onde nada lhes é assegurado nem permitido, fosse a solução para uma sociedade que se quer higienizada, ainda que ao preço de apartar-se de si mesma.

"A única coisa que aprendi aqui (...) foi a não sonhar". O depoimento do adolescente interno, registrado por Oliveira (2003), é a expressão cabal da negação daquilo a que Heller e Fehér (1998) se referem como a busca pela autodeterminação, que tem como premissa necessária a capacidade de cada sujeito identificar sua própria demanda para então organizar sua inserção social de modo a provê-la e a configurar-se, efetivamente, como cidadão.

A Convenção da ONU e o Estatuto inscrevem-se nesse modelo. Ambas prevêem a aplicação de medidas socioeducativas quando os códigos penais são infringidos, mas asseguram, ao mesmo tempo, que essa medida, aplicada judicialmente, será a única punição que incidirá sobre o adolescente. Prevêem, além disso, a possibilidade de aplicação concomitante de medidas protetoras, na intenção de restabelecer direitos violados, supondo, portanto, que a prática do ato infracional pode estar correlacionada, em algum nível, com a violação do direito. Trata-se, em suma, de recriar formas de convívio social capazes de restabelecer no adolescente autor de infração penal a capacidade de sonhar com um futuro melhor que seu presente. Essa, a tese.

Na prática, o modelo tutelar-repressivo interage com a nova lei desde sua promulgação, concorrendo inclusive para justificar movimentos regressivos em relação ao que a lei já garante. Se, até 1990, o modelo legal era discricionário no tratamento do adolescente em conflito com a lei e ignorava direitos reconhecidos para os adultos, nos dias correntes, a violência contra esses segmentos sociais se multiplica e ganha novos contornos. Com o endosso silencioso da opinião pública, premida pelos altos índices de criminalidade, as práticas violentas ainda estão em uso no interior das instituições de internação (Gonçalves, 2005), com a soma da punição corporal à medida judicial e a configuração de formas de negação da cidadania nos invisíveis territórios de exclusão. Ali a violência institucional motiva rebeliões, e o exílio das referências familiares e comunitárias é alternativa para lidar com os vínculos com o tráfico. Medidas como essas terminam constituindo-se em exemplos de como a desconfiança, o medo e a ausência de pertencimento afetam os jovens em conflito com a lei. Ao mesmo tempo, inúmeros projetos legislativos que propugnam a diminuição da idade penal - discutidos às claras - são exemplos de um anseio vigoroso de que o banimento cada vez mais precoce seja capaz de erradicar em definitivo a capacidade de sonhar. Em suma, ainda há muito que se fazer a respeito do chamado menor.

 

Os "menores" olhados de perto

O Brasil tem cerca de 24 milhões de adolescentes. Proporcionalmente, eles se concentram na Região Sudeste, a mais marcada pelos parâmetros que denominamos "sociedade de consumo" e também pelos mais altos índices de desigualdade e exclusão social. Os dados do Relatório da Juventude mostram que mais de 40% das jovens entre 21 e 24 anos, e cerca de 17% dos jovens da mesma faixa etária, não trabalham nem estudam (Sposito, 2005). A exclusão do mercado de trabalho (e por extensão, do mercado de consumo) tem início na adolescência, e é ponto culminante de processos nem sempre definidos pela mera vontade pessoal. Uma pesquisa com jovens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense, realizada pelo NIPIAC, mostrou que grande parte deles almeja avançar nos estudos para assegurar algum posto no mercado de trabalho, mas a renda familiar escassa obriga o jovem desde cedo a prover o próprio sustento ou a colaborar em casa. Estudar e trabalhar e conciliar os apelos do consumo com as renúncias do presente são escolhas feitas e exercidas a cada dia, exigem firmeza de caráter, impõem renúncias diante das quais alguns sucumbem, como mostrou o relato de alguns dos entrevistados:

"Os jovens têm falta de oportunidade na vida. Falta curso, falta trabalho, porque ficando com a cabeça livre, acabam se ocupando com o que não devem." (Castro e col., 2005, p. 84).

"Muitos, quando não conseguem um emprego, acham que é melhor seguir por um caminho torto, envolvendo-se com as drogas, entrando para o mundo do crime, achando que lá vão conseguir as coisas mais facilmente." (Castro e col., 2005, p. 101).

Em pesquisa realizada pelo UNICEF, em 2002, com cerca de 5.200 jovens no Brasil, um dos blocos de perguntas tratava do respeito aos direitos. Quando perguntados se se sentiam respeitados pelos professores nas escolas, as respostas negativas de jovens negros superaram substantivamente as dos brancos, confirmando a sobreposição de processos estigmatizantes que afetam, em diferentes espaços da vida, crianças e jovens, quando pobres, quando não brancos, quando não escolarizados, quando moradores de periferia ou favelas, entre outros. Para usar as palavras dos próprios jovens, um dos problemas enfrentados por eles é

"O preconceito social, pois muitos pensam que todo mundo que mora em favela é desqualificado para viver na sociedade `fora.'" (Castro e col., 2005, p. 89).

É a fala eloqüente de quem se reconhece confinado aos espaços de exclusão. Tratados ainda como menores, os moradores das favelas têm de lutar contra a ausência de bens sociais e, além disso, têm que enfrentar uma cobrança social perversa para poder "fazer parte", para "estar dentro". Para figurarem no perfil de pobres merecedores, devem ingressar nas escolas e nos postos de trabalho, não importando a qualidade nem as circunstâncias inerentes a esse processo. Só passando por essa prova de combate à ociosidade e ao vício, podem se livrar de um dos estigmas relacionados à sua condição: o de criminosos. Ainda assim, não perdem inteiramente a condição de menores, já que a origem social os marca, durante grande parte da vida, como "perigosos".

As políticas criminais, voltadas tanto para o criminoso adulto como para o adolescente em conflito com a lei, foram pródigas em produzir substrato que referenda a percepção do pobre como perigoso. Como as ações criminosas parecem ser reconhecidas como o indicador do estado moral de uma sociedade, seus executores acabam por serem culpabilizados pelo mal-estar social. Ao criminalizar preferencialmente os delitos cometidos pelos economicamente carentes, produzem estatísticas que permitem demonstrar que são os pobres que terminam compondo a maioria da população penal, assim como grande parte dos jovens pobres compõem a população jovem que lota as unidades de internação. Trata-se aqui da profecia que se auto-realiza. É significativo observar que dados referentes aos jovens em cumprimento de medida de privação de liberdade indicam que cerca de 45% praticaram delitos relacionados a roubo, furto e latrocínio (BRASIL, 2002). Longe de justificar a associação entre pobreza e delinqüência, essa incidência tem sido interpretada como um recurso estratégico por meio do qual o controle social incide com vigor cada vez maior sobre os excluídos (Wacquant, 2001), justamente os mais premidos pela sobrevivência e pelos apelos de consumo.

Nos últimos anos, o consumo e a comercialização de drogas ilícitas têm sido responsáveis por grande número de apreensões em comunidades de baixa renda, firmando-se como elemento desencadeador do chamado "exílio forçado" nas unidades de internação e/ou nos programas de aplicação de medidas socioeducativas. Em 2002, cerca de 85% dos adolescentes privados de liberdade no Brasil eram usuários de drogas antes da internação; a mesma pesquisa mostra que 81% desses adolescentes viviam com a família na época em que praticaram o delito, o que contribui para derrubar o mito de que adolescentes infratores são "meninos de rua". Segundo A Voz dos Adolescentes (UNICEF, 2002), a família foi indicada como a principal responsável pela garantia de direitos e do bem-estar de adolescentes (85%), acima da escola (40%), da igreja (24%), da comunidade (23%), do governo (20%), da polícia (16%) e dos partidos políticos (5%).

A relevância da família na vida de crianças, adolescentes e jovens parece decorrer da ausência quase cabal de outras instâncias que a lei anuncia como responsáveis pelo bem-estar dessas parcelas da população. Sociedade e Estado, que deveriam oferecer recursos e meios para que crianças e jovens se constituam como sujeitos de direitos, estão cada vez mais ausentes da vida coletiva. É fato que esse é um fenômeno característico das sociedades pós-modernas, mas é fato também que, como já foi indicado, no Brasil, os serviços sociais são escassos exatamente nas comunidades que mais dependem deles. Cardia (2003) já mostrou o círculo perverso que faz com que as regiões urbanas mais violentas de São Paulo sejam as mais carentes de recursos públicos, o que termina por gerar mais violência. Não surpreende, assim, que uma jovem moradora de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, anuncie: "não faço a mínima idéia de com quem os jovens pode contar hoje além da família". (Castro e col., 2005, p. 95).

A "opção" pelo ato infracional surge como script de um drama atravessado por conflitos pessoais, "como uma identidade `dura' a ser assumida":

Entre os aspectos que aparecem configurando o quadro conflitual instituído antes da consolidação do roteiro "delinqüencial", encontra-se também a busca da inserção no mercado de trabalho, uma busca de inclusão, que é frustrada pela ausência de empregos e de educação e profissionalização dos jovens para entrar em um mercado de trabalho exigente e competitivo que aproveitará apenas os mais qualificados. (...) Vários adolescentes associam a passagem ao ato infracional com a reação a algum tipo de agressão ou sentimento de abandono, a revolta. (Castro, 2005, p. 135-6).

A ausência dos núcleos de socialização na primeira infância (entre os quais a família é fundamental) contribui grandemente para a gravidade das condições de risco. Crianças que abandonam o convívio familiar são mais vulneráveis do que as que convivem com o núcleo familiar; sua permanência na família e na comunidade de origem mantém um capital social importante para seu desenvolvimento pessoal e interação social, sobretudo em contingências de exclusão social associadas à ausência ou à escassez de recursos institucionais. Nesses contextos, a sociedade termina por atribuir à família tanto as funções que lhe são próprias - os cuidados básicos e a garantia de direitos no espaço privado (cumpre ressaltar, não necessariamente atendidas a contento) - quanto as que a excedem - a inserção nos espaços sociais adultos, a disciplina do social, vale dizer, direitos de cidadania que deveriam interpelar o Estado e as instituições sociais.

A família tem sido apresentada pelo poder público como unidade estruturadora das políticas de assistência, e esse enfoque é freqüentemente enfatizado como uma novidade. Na verdade, não há nada de novo em tomar a família como o centro das ações da assistência pública. A família continuamente figura como um dos focos das ações de enfrentamento à pobreza. Essas ações, quase sempre pautadas pela visão do pobre como ameaça ou incômodo, buscam na família a consolidação de valores favoráveis à manutenção da disciplina e da ordem. A vida na rua, a que muitas crianças e jovens foram submetidos por razões diferenciadas, porém freqüentemente associadas à condição de pobreza, é vista como nociva e usualmente contrastada com a proteção proporcionada pelo ambiente familiar. A lógica higienista, que veiculou essas representações, esquivou-se de discutir o papel do Estado e sua função de proteção do espaço público, limitando-se a atribuir à família, sobretudo às famílias pobres, a função de recolher seus filhos ao espaço privado; assim é que a rua constituiu-se em oposição à casa menos por representar desproteção aos que nela viviam e mais por representar perigo para os indivíduos considerados "integrados". A família, nesses casos, deveria agir como um escudo de proteção da sociedade. Várias ações de reinserção familiar foram movidas por essa lógica higienista, que consistiu em limpar as ruas dos elementos indesejáveis. Pelo mesmo viés, disseminava-se a dimensão acusatória e privatista que devolvia à família a responsabilidade pela produção de indivíduos adequados ao convívio social.

O Estatuto da Criança e do Adolescente representou um corte nesse modelo quando reintroduziu a problemática da família como co-partícipe do processo de socialização da criança. Com base nesse ordenamento jurídico, a família voltou a ser foco das políticas públicas sob novos parâmetros, com o favorecimento de um olhar mais complexo tanto sobre a importância das trocas sociais em seu interior quanto dos laços entre família, comunidade e sociedade. A família pobre, antes culpabilizada e tomada como desestruturada, passou a ser valorizada como um direito da criança. A ausência de condições materiais não é mais entendida como um impedimento para a permanência da criança na família (ECA, art. 23), assim como a existência desses recursos não deve, necessariamente, indicar maior qualidade na relação afetiva entre os membros.

Em lugar da visão da família como uma instituição sagrada, é necessário considerá-la uma instituição social, permeada pelos valores socialmente produzidos, que podem - ou não - indicar proteção, fomentar auto-estima e fortalecer as conexões dos indivíduos com a sociedade. Todas essas considerações são necessárias para que se supere a concepção de que as famílias em condição de pobreza são responsáveis pela degradação moral de seus membros e pelas conseqüências supostamente relacionadas a essa degradação, entre elas a situação de rua, a drogadição e a criminalidade.

O fenômeno da violência doméstica no Brasil é tema recente de pesquisas, e ainda não há um mapeamento exaustivo dos casos, nem tampouco das causas que os originam. No Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Saúde tornou obrigatória a notificação de episódios de violência contra a criança, iniciativa que tem servido para documentar os casos atendidos no sistema de saúde e também para entender a magnitude e a dinâmica da violência. Os dados disponíveis mostram que, num período de três anos (entre julho de 1999 e julho de 2002), foram notificados mais de 3.600 casos, com predomínio de crianças do sexo masculino entre 1 e 9 anos de idade (RIO DE JANEIRO/SES/APAV, 2006). Apesar de altos, esses números estão aquém do real, conforme é reconhecido pelos profissionais da área; aí se incluem, além disso, apenas os captados pelo sistema de saúde, e deixam de lado todas as notificações encaminhadas pelo sistema escolar. Valem, entretanto, como retrato pálido dessa modalidade de violação do direito.

Cabe registrar que não existe, no Brasil, um sistema de registro consistente que permita desenhar um panorama da violência contra a criança que ocorre no interior da família. Trata-se de uma lacuna vinculada a questões específicas, entre as quais vale a pena citar: a dificuldade em discriminar entre acidentes e violências e a insuficiência dos sistemas de compilação de dados, o que dificulta a constituição de uma estatística consistente e confiável. Além disso, há que se considerar as dificuldades dos profissionais para proceder à notificação (Gonçalves e Ferreira, 2002), vinculadas inclusive à ausência de programas e instituições que recebem e atendem os casos, mesmo quando a violência é diagnosticada e comprovada.

Esse quadro ilustra as mazelas do sistema de proteção dos direitos: superada a dificuldade em reconhecer a violação, por si só um movimento que requer alteração substantiva nos modelos de pensamento que orientam a ação dos profissionais, é mister trabalhar pela provisão de recursos, humanos e financeiros, que permitam redirecionar a rede de atenção, formular novos programas de atendimento e investir em frentes diversificadas na política social da infância. Parece tratar-se de um empreendimento não para uma, mas para várias gerações.

Quando analisou as representações sociais acerca dos direitos humanos, Cardia (2001) constatou que são reconhecidos como detentores desses direitos apenas os cidadãos quites com suas responsabilidades sociais. De modo similar, crianças e adolescentes são ainda representados como merecedores da fé pública, ou da caridade filantrópica, se e quando provam resistência aos apelos do consumo, e empreendem a luta pela sobrevivência no interior de regras rígidas, ainda que não expressamente anunciadas. Ao cruzar a linha que separa a carência da marginalidade, vêem negado seu direito a sonhar.

 

Indicações para ampliação e aperfeiçoamento das conquistas

O que nos revelam as políticas de tratamento do adolescente em conflito com a lei? A análise acurada de Agamben (2004) ensina que é nos territórios da exclusão que o poder soberano se desvenda; é ali, onde a suspensão da norma é possível, que o poder soberano se mostra sem máscaras e desvela - por isso mesmo - o que permanece obscuro nas zonas em que a norma e a lei vigoram. O direito do adolescente deixa de viger a partir de sua "opção" pela marginalidade, sinal da fragilidade desse direito; a própria possibilidade de sua suspensão, quando não de sua efetiva negação, mostra o quão distante essas parcelas da população se encontram do reconhecimento de que são "sujeitos de direitos".

A formulação teórica de Agamben (2004) ecoa nas falas dos jovens pobres cariocas, residentes nas favelas e na periferia urbana, que apontam o preconceito social, a desconfiança que identificam nos moradores das zonas nobres da cidade. Eles se percebem sob permanente e ameaçadora vigilância; sabem que, ao menor deslize, verão esfumaçados seus anseios de estudar, trabalhar e de se tornarem, enfim, cidadãos. Não seria essa uma atualização dos padrões filantrópicos em que a concessão do benefício abria as portas para a vigilância e o controle? Não seria essa a forma pela qual se destitui o caráter político da concepção de sujeito de direitos?

A cidadania, já dissemos com Hannah Arendt, repousa na detenção sine qua non do direito. A partir da Convenção da ONU de 1989, e com o Estatuto, a criança cidadã não tem necessidade de assistência à saúde: ela tem direito à assistência médica adequada; o adolescente não tem necessidade de assistência escolar: ele tem direito a freqüentar a escola; o autor de ato infracional não tem necessidade de um advogado que o defenda no processo: ele tem direito à assistência jurídica e a garantias processuais.

Essa mudança de paradigma - das necessidades aos direitos - é pedra angular do Estatuto e das políticas sociais nele ancoradas. Crianças e jovens, que a lei passa a considerar sujeitos de direitos, podem exigir seus direitos com base na lei, e a garantia do direito deve constituir-se no núcleo da tarefa de todos aqueles que se proponham a trabalhar junto a essa parcela da população.

Não é demais lembrar que a questão, individual em sua essência, ancora o coletivo. Como dizem Heller e Fehér (1998), demandas subjetivas são legítimas e necessárias ao projeto político da sociedade contemporânea, já que este se sustenta numa concepção de bem-estar na qual a aceitação da multiplicidade e da diversidade é fator de coesão do tecido social. As demandas subjetivas equacionam possibilidades de auto-determinação que fazem do sujeito um cidadão político no mais amplo sentido do termo, mas elas só detêm essa possibilidade quando são reconhecidas pelo próprio sujeito. No que se refere às políticas voltadas para a infância e a adolescência, será preciso trabalhar com a escuta efetiva dos anseios da criança e do jovem, com anseios contextualizados e múltiplos, diversos e determinados por prioridades que cabe aos sujeitos anunciar. As falas dos jovens, transcritas aqui e em tantos outros estudos, oferecem elementos mais que suficientes para que suas demandas sejam decodificadas, entendidas, e atendidas.

Finalmente, como forma de contribuição com um processo que reconhecemos em curso e com abertura para aperfeiçoamentos, enfatizamos alguns preceitos e medidas contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente que, de uma forma ou outra, não estão sendo conduzidos de modo satisfatório. A reafirmação de tais preceitos tem o objetivo não somente de fortalecer o binômio teoria-prática e tornar o Estatuto mais próximo da vida como ela é, mas de, principalmente, sedimentar a cidadania infanto-juvenil no que ela ainda tem de mais frágil: a proteção dos denominados "menores".

De acordo com o art. 87, as linhas de ação da política de atendimento estão compreendidas em pelo menos três grupos: ações que se desenvolvem de modo preventivo a qualquer dano ou risco (I - políticas sociais básicas), ações emergenciais que se concentram nas situações de risco em curso (II - políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que deles necessitem (III - serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão) e ações reparadoras, que se seguem aos processos existentes (IV - serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos) e V - proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente). O fluxo da política de atendimento deve, portanto, ser constituído de modo piramidal, no qual a base representa a atenção universal e o topo, as ações focalizadas e residuais.

As medidas preventivas, que conceitualmente melhor atendem os preceitos da proteção social a que as crianças e os jovens têm direito, são sabidamente mais eficientes e menos custosas - não somente do ponto de vista material - do que as estratégias de intervenção a posteriori. Por essa razão, o investimento em serviços sociais de qualidade é sempre a melhor estratégia preventiva. Saúde e educação, como os principais serviços de cunho universal, são freqüentemente demandadas, seja pela necessidade de ampliação da cobertura, seja pela melhoria da qualidade dos serviços já oferecidos. Além disso, é fundamental que sejam voltados para as demandas que as crianças e jovens apresentam.

Em relação às estratégias de campanhas preventivas, dois exemplos são ilustrativos da dissonância entre proteção e prevenção. No caso da saúde, as políticas preventivas são freqüentemente orientadas por campanhas sanitárias cuja finalidade nem sempre é reconhecida pelo jovem como algo que lhe diz respeito. Em muitos casos, o jovem se confunde com o problema que se busca combater, por exemplo: drogas e gravidez precoce. Em vez de usuário do serviço, ele é apresentado como a origem do problema, por isso, tais mensagens devem evitar o uso de argumentos de autoridade de cunho científico ou moralista e serem veiculadas através de uma linguagem jovem, para que a identificação seja maior e, em conseqüência, a adesão. Mais um exemplo: em 2002, um veículo de comunicação, em escala nacional, elegeu o jovem negro como símbolo de uma estratégia de marketing social. O objetivo da campanha era divulgar o trabalho de prevenção realizado pela empresa, evitando que aquele jovem (supostamente mais vulnerável ao crime) fosse privado do acesso à educação. A princípio, a campanha pode ser interpretada como louvável, todavia, olhada de perto, a mensagem veiculada não foi a de proteção do jovem, mas da sociedade, contra os possíveis males decorrentes da ação daquele indivíduo. O que se espera em termos de identificação dos jovens com esse tipo de mensagem? Além de produzir discriminação de classe e de cor, gera indignação, revolta e um senso desigual de pertencimento.

Outro âmbito da política de atendimento refere-se às situações de risco. Nesses casos, uma grande contribuição do Estatuto foi a instituição dos Conselhos Tutelares. A finalidade dos Conselhos é assegurar a aplicação da Lei (art. 131) e providenciar medidas de proteção sempre que os direitos reconhecidos na Lei forem ameaçados ou violados (art. 98). No entanto, o que se observa na prática não faz jus ao que a Lei estabelece. Subaproveitados, inclusive em razão dos parcos recursos humanos e materiais de que dispõem, os Conselhos Tutelares, de um modo geral, restringiram seu funcionamento às situações emergenciais, nem sempre evitando o estigma de "brigada policial" e nem sempre libertos do jugo do Poder Judiciário, numa cultura em que a menoridade tende ainda hoje a ser tratada como uma questão de polícia. É absolutamente necessário recuperar as premissas que fundam os Conselhos e orientam as ações de proteção às crianças e aos jovens. Assim como qualquer espaço de referência para crianças e jovens, os Conselhos Tutelares merecem instalações e suporte de modo a que os usuários desse serviço reconheçam ali um lugar de proteção e de busca de ações positivas.

As aqui denominadas "ações reparadoras" abrangem um conjunto diversificado de situações que demandam reconstrução de laços de sociabilidade rompidos ou esgarçados, seja com a família, seja com a comunidade ou com as referências significativas para a criança e o jovem. Entre tais situações, encontram-se os jovens em conflito com a lei. Particularmente em relação a estes, observamos maior dificuldade para que a Lei se cumpra, já que um dos principais obstáculos é de ordem cultural. O jovem, ao ser identificado como infrator, enfrenta sucessivos processos de retratação que não se esgotam na aplicação das denominadas medidas socioeducativas. O rótulo de "criminoso" não se extingue com as ações punitivas vividas nas instituições de acolhimento e internação, mas permanece aderido à imagem construída sobre o jovem, bem como à sua auto-imagem. Como mudar valores é um expediente que demanda tempo e capacidade de equacionar conflitos e interesses, nosso olhar se volta para medidas mais exeqüíveis nos ambientes institucionais. Mesmo considerando as conquistas obtidas pelo movimento de desinstitucionalizacão ocorrido a partir da década de 1990, um trabalho permanente de abertura e humanização dos espaços institucionais voltados para a correção deve ser buscado. Seleção de educadores, renovação do quadro técnico e capacitação constante são medidas que, associadas à reforma das instalações, podem ajudar a modificar o caráter prisional dessas instituições.

Há que se pensar ainda em estratégias de incorporação dos jovens egressos desse sistema corretivo em escolas e espaços de profissionalização. A prática, nem sempre explícita, de separar pobres-merecedores de pobres-não-merecedores torna-se nítida ao se rejeitar ex-internos das escolas públicas, alegando que não são bons exemplos, assim como ao se restringir seu acesso ao trabalho pela quebra da confiança. Trata-se, em suma, de ciclos depreciativos que se renovam e sobrepõem estigmas. É necessário rever a controversa estratégia de separar o joio do trigo, permitindo apenas ao "trigo" o trânsito livre ao funk, ao hip-hop e à cultura produzida em um ambiente estigmatizado. Essas medidas devem ser tomadas não com o objetivo de tornar os menores úteis e adaptados, mas como forma de reconhecer "todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e de dignidade". Do papel à prática.

 

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Endereço para correspondência
Hebe Signorini Gonçalves
Rua Ribeiro de Almeida, 46, ap. 201 - Laranjeiras
22.240-060 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
E-mail:hebe@globo.com

Recebido 21/06/06
Reformulado 12/02/06
Aprovado 20/03/07

 

 

* Doutora em Psicologia pela PUC-RJ. Psicóloga e membro do NIPIAC - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para Infância e Adolescência Contemporâneas, do Instituto de Psicologia da UFRJ.
** Doutora em Serviço Social. Professora adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ.