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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.28 no.1 Brasília Mar. 2008

 

ARTIGOS

 

Vorstellung: a questão da representabilidade

 

Vorstellung: representability issues

 

 

Mônica Medeiros Kother Macedo*; Blanca Susana Guevara Werlang**; Carolina Neumann de Barros Falcão Dockhorn***

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A clínica psicanalítica atual exige que sejam levadas em consideração as patologias que denunciam o predomínio de conteúdos psíquicos que escapam ao universo representacional do sujeito. Por meio de uma reflexão teórica a respeito do conceito Freudiano de Vorstellung e de suas implicações na técnica psicanalítica, este artigo aborda a temática da representabilidade e irrepresentabilidade dos conteúdos psíquicos. O analista necessita ir além de seus recursos de interpretação, pois, frente a determinados pacientes com os quais se depara, deve repensar e ampliar os recursos técnicos. Aborda-se o tema da Vorstellung em relação à clínica com pacientes que padecem da capacidade de atribuição de sentido ao que os atordoa.

Palavras-chave: Técnica psicanalítica, Representabilidade, Irrepresentabilidade.


ABSTRACT

The current psychoanalytic clinic requires that one takes into account the pathologies that show the prevalence of psychic contents, which do not belong to the representational universe of the subject. Through a theoretical reflection upon the Freudian Vorstellung concept and its implications on the psychoanalytic technique, this article aims to approach the theme of the representability and the unrepresentability of psychic contents. Thus, it is necessary for the analyst to go beyond his interpretation resources, rethinking and broadening the technical resources. The Vorstellung theme is approached in relation to the treatment of patients who suffer from the lack of skills to attribute meaning to what hurts them emotionally.

Keywords: Psychoanalytic technique, Representability, Unrepresentability.


 

 

“Repetição de si, o Um não pode senão repetir e recordar essa violência institutriz. Não pode se afirmar e se comprometer senão através dessa repetição” (Derrida, 2001, p. 101).

Sigmund Freud encontra, em seu desejo de desvendar o enigma do funcionamento psíquico, um estímulo que o leva a trilhar um longo caminho de investigação e desafios. Em seu percurso de mais de trinta anos de estudos, apresenta descobertas, recuos, questionamentos, esperança e pessimismo frente a seu objeto de estudo, o Inconsciente.

A ruptura epistemológica provocada por Freud descentra o sujeito de seu lugar de domínio, sendo que a proposição do Inconsciente surpreende e encanta os interlocutores. Esse conceito abre brechas na certeza humana do domínio de suas motivações e comportamentos. A psicanálise faz com que o homem se depare com seu íntimo incontrolável, e, ao por em evidência a etiologia desconhecida de forças propulsoras de muitas escolhas vitais, vai tecendo uma trama indissociável entre conflito e sexualidade.

O processo de cura proposto pela psicanálise implica desvendar enigmas, tomar o manifesto apenas como ponto de partida, visando a possibilitar o acesso do sujeito a uma condição de liberdade e de conhecimento do si mesmo. Conhecer o Inconsciente é desvendar os intrincados mistérios de suas escolhas, sofrimentos e motivações. Conhecer-se significa, assim, ter mais autonomia. Em Análise Terminável e Interminável, Freud (1937/1987) define os objetivos da análise, ao afirmar que esta termina quando o paciente já não mais padeça de seus sintomas e tenha superado suas angústias e inibições e, ao mesmo tempo, quando o analista julga que foi tornado consciente tanto material recalcado, “que foi explicada tanta coisa inteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico” (p. 251). Como ressalta Marucco (1999), a cura analítica transita, necessariamente, pelo eixo da transferência, isto é, não há análise que não seja em transferência e da transferência.

Inicialmente, a técnica psicanalítica é uma espécie de trabalho de “escavação” do que está sepultado nos recônditos da mente, e, pouco a pouco, vai se tornando mais complexo. Não basta buscar descobrir a cena que originou o sintoma; a escuta e a sensibilidade de Freud descortinam outros cenários. A sexualidade (importante pilar teórico) é retirada de sua condição marginal e de depravação. As observações clínicas implicaram novos aportes metapsicológicos que, por sua vez, se desdobraram em novas perspectivas para a terapia analítica.

Os fenômenos da transferência, da compulsão à repetição, bem como a proposição do segundo dualismo pulsional, põem em cena o ser humano num embate consigo mesmo na busca por atribuição de sentido a esse estrangeiro que o habita. A técnica psicanalítica, por meio da escuta das associações livres dos pacientes, vai, então, configurando uma clínica de atribuição de sentido, uma clínica da prática da interpretação. É, porém, importante destacar que a ferramenta técnica da interpretação não constitui uma mera tradução do que está representado, mas sim, a construção de um meio de expressão daquilo que ainda não foi palavra para o sujeito. Para Uchitel (1997), “a interpretação reinterpreta, não só tece sentidos, mas, fundamentalmente, ‘destece’” (p. 88). A análise será o campo de desconstruções e desligamentos para que, assim, o sujeito possa ter acesso a outras condições psíquicas, não mais no encerramento de dogmas que rigidamente o conduzem em sua história. Segundo Knobloch (1998), “a psicanálise se consolidou exatamente no momento em que conseguiu se estabelecer no campo da representação” (p. 79).

A clínica tem nomeado de diversas maneiras as patologias que cada vez mais se fazem presentes no território analítico/terapêutico. Fala-se sobre as patologias do vazio, os pacientes borderline, os estados-limite, os pacientes-limite, entre outras denominações. Figueiredo (2003) destaca que, originalmente, a problemática do limite se relacionava à falta de um lugar próprio para esses pacientes, que não pertenciam nem à neurose, nem à psicose ou à perversão. O limite dizia respeito, então, à região fronteiriça ocupada por tais pacientes, tendo traços das três clássicas estruturas propostas em psicanálise. Há, todavia, apesar das várias nomenclaturas, um ponto comum: a importante carência na capacidade representacional.

Observa-se que os pacientes com essa carência muitas vezes têm no ato sua forma de descarga das excitações que os invadem, ou seja, são pacientes que não vêm com uma queixa de sintoma, mas sim, com uma história de experiências traumáticas, como, por exemplo, tentativas de suicídio e importantes adições. Segundo destaca Maia (2003), o evento traumático, em seu aspecto negativo, provoca “um efeito paralisante dos processos de simbolização” (p. 23). Figueiredo (2003) descreve o trauma como um “momento privilegiado de inversão de papéis; o sujeito é repentinamente apassivado pelo impacto de um objeto cujo dinamismo excede em muito sua capacidade de enfrentamento e domínio (prático ou simbólico)” (p. 14). Trata-se de compreender o que se passa com pacientes que possuem uma defasagem no que diz respeito à metabolização psíquica de suas vivências, pacientes que estão à mercê do irrepresentável que os habita e que os deixa sem palavras. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo abrir um espaço de estudo e questionamento a respeito da Vorstellung e da questão da representabilidade.

Em Análise Terminável e Interminável, Freud (1937/1987) compartilha seus constantes questionamentos sobre os obstáculos em um processo de análise. Considerando e acreditando, tal como Freud, na necessidade de questionar esses impasses da clínica, pontua-se, neste artigo, a relevância de refletir sobre a clínica em relação àqueles pacientes que apresentam uma pobreza simbólica importante e que parecem habitar um vazio em relação a seu mundo representacional. Presos em teias invisíveis, chegam contando de repetições e de uma espécie de “buraco” em relação a si mesmos. São pacientes que na transferência encontram o recurso de ação em detrimento da palavra. Portanto, destacando a capacidade de interrogar como o mais legítimo ponto de identificação com o legado freudiano, este artigo propõe “fazer trabalhar”, de forma teórica, suas proposições a respeito da Vorstellung, assim como considerar as interfaces desta com a clínica atual.

 

Representação ou Vorstellung

Vorstellung é um termo que provém da Filosofia e da Psicologia, ciências vigentes em tempos anteriores ao nascimento da psicanálise.

Mesmo tendo sido utilizada em outros contextos, Freud atribui à representação uma significação original e própria. Como bem destaca Hanns (1996), ao analisar os termos do alemão (o verbo vorstellen e o substantivo Vorstellung), há muitas dificuldades na escolha de uma tradução de Vorstellung para o português, não apenas pelas formas como foi empregado por Freud em seus escritos, mas também por ser um termo filosófico de inserção secular e de conceituação não uniforme ou consensual. Todavia, o autor ressalta que, de maneira geral,

o texto freudiano indica que Vorstellung é o suporte que representa (repräsentiert) a pulsão (Trieb) na esfera consciente. As Vorstellungen estão associadas entre si numa extensa malha de idéias e imagens inter-relacionadas. Embora se trate de uma malha, não se deve imaginar um conjunto de relações estáticas. (p. 399)

São as Vorstellungen que representam as pulsões na complexa rede intrapsíquica, colocando- se em uma pos ição de representantes (Repräsentanten), isso porque, como explica Freud, em 1915, “uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência; isso só é possível para a idéia (Vorstellung) que representa essa pulsão na psique. Mas, em rigor, também no inconsciente essa pulsão só pode ser representada por uma idéia” (p.28).

Hanns (1996) avalia que nem sempre Freud faz as diferenciações entre Trieb, Vorstellung e Repräsentanz, o que dificulta o entendimento do tema. Contudo, de forma geral, o autor considera que Freud emprega esses termos de forma diferenciada. Nesse sentido, a Trieb se manifesta na esfera consciente como uma Vorstellung, que é uma Repräsentanz da Trieb nessa esfera psíquica. Assim, segundo Hanns (1996), “a Vorstellung cumpre a função de ser a ‘representante’ (Repräsentant) da pulsão no consciente” (p. 399).

Vorstellung é, então, um conceito fundamental no corpo da metapsicologia, que adentra os trabalhos teóricos de Freud desde os seus primórdios. De fato, Freud elabora uma Teoria da Representação, que já começa a se delinear em 1891, com o seu trabalho sobre as afasias, no qual descreve um aparelho de linguagem. No Projeto para uma Psicologia Científica, é apresentado um aparelho neurônico, e, mais tarde, na famosa Carta 52– escrita a Fliess em 6 de dezembro de 1896 – um aparelho de memória. Porém, é apenas em 1900, com a Interpretação dos Sonhos, que Freud dá o status de psíquico a esse aparelho, tornando a Vorstellung sua noção central. Segundo Garcia-Roza (1999),

entre esse esboço de uma teoria da representação e a que vai ser apresentada nos artigos de 1915, há um longo percurso teórico, que inclui uma teoria do inconsciente e uma teoria das pulsões. É somente ao final desse percurso que o conceito de Vorstellungsrepräsentanz pode ser elaborado. (p. 245)

O percurso se inicia em 1891, com o estudo crítico sobre as afasias. O aparelho de linguagem descrito nesse trabalho, conforme destaca Freud (1891/1987), não está pronto no ato do nascimento do indivíduo, mas é construído na relação com um outro aparelho de linguagem. Assim, Freud (1891/1987) postula não apenas que a linguagem é adquirida pelo sujeito como também que o aparelho de linguagem é resultado de um processo de construção. Garcia-Roza (1998) ressalta a tese freudiana de que a linguagem e, portanto, a construção do aparelho de linguagem, se dá através de uma aprendizagem que integra o motor e o sensorial em uma unidade indivisível. Nessa concepção, estão presentes dois tipos de representação: representação-de-palavra (Wortvorstellung) e representação-de-objeto (Objektvorstellung).

A representação-de-palavra (Wortvorstellung) inclui elementos visuais, acústicos e cinestésicos, sendo dessa maneira considerada por Freud (1891/1987) uma representação complexa. Nesse sentido, qualquer operação da linguagem implica, necessariamente, uma intervenção simultânea de funções relativas a mais de um ponto do território da linguagem. Assim, o processo que ocorre no aparelho é um processo de associação (ou de vias de associação). Para Garcia-Roza (1998), “é em termos de vias de associação que Freud vai pensar os modos pelos quais as representações vão se constituir como conteúdos do aparelho de linguagem” (p. 42). Representação e associação não podem, então, ser isoladas uma da outra.

A representação-de-objeto (Objektvorstellung) é também uma representação complexa, formada a partir de associações de objeto, ou seja, o que é representado nesse tipo de representação não é um objeto, mas sim, séries diferentes de associações. Essas associações de objeto, por si mesmas, não formam uma unidade, não formam um objeto. A Objektvorstellung é, então, também um complexo associativo, mas tal complexo não é constituído apenas por representações acústicas, visuais e cinestésicas, como a Wortvorstellung, mas também por outros tipos de imagens (tácteis, olfativas, etc.) que poderiam vir a integrá-lo (Caropreso, 2003). Assim, a palavra corresponde, nesse modelo freudiano, a uma associação entre representações, sendo que sua significação se dá pela articulação entre a representação-depalavra e a representação-de-objeto, através da imagem acústica da palavra e da imagem visual do objeto. Portanto, segundo Garcia- Roza (1998), “a relação de significação não se faz com a coisa, mas com o objeto, e este recebe sua identidade através da relação com a representação da palavra. Tudo se passa, portanto, no registro da representação e da associação entre representações” (p. 49), articulação essa que tem efeito de sentido. Dessa forma, Freud (1891/1987) afirma que é a palavra que constitui o objeto como objeto, e é o objeto que fornece à palavra o seu significado.

É fundamental destacar que o aparelho de linguagem construído por Freud em 1891 é capaz de dar significado, produzir o novo e, sobretudo, é capaz de produzir um efeito de sujeito. Por isso, o trabalho sobre as afasias, ainda que seja um estudo de neurologia, pode ser considerado a exposição de uma primeira concepção freudiana do psiquismo. De fato, Freud segue munido do arsenal neurológico, quando escreve, em 1895, o Projeto para uma Psicologia científica. Todavia, apesar da linguagem, uma espécie de “dialeto neurológico”, o Projeto retrata Freud ocupado em trabalhar problemas e soluções psicológicas (Valls, 2004).

No que concerne ao funcionamento psíquico, Freud (1895/1977) propõe no Projeto que, frente a um incremento da tensão, há uma exigência de descarga. A urgência em livrar-se da tensão ocasionada pelo excesso de excitação coloca o sujeito em uma condição de desamparo. O ser humano é, no início da vida, incapaz de, por si mesmo, dar fim a essa situação de exigência de descarga, ou melhor, não pode executar uma ação específica que dê fim à tensão provocada por estímulos endógenos. Torna-se necessário que a ação específica seja executada por outro humano. A ação desse objeto real leva ao registro da satisfação, isto é, “a ajuda externa não se reduz à satisfação da necessidade, ela introduz o sujeito na ordem simbólica” (Garcia- Roza, 1998, p. 133).

Freud (1895/1977) destaca que a experiência de satisfação traz conseqüências decisivas para o desenvolvimento das funções individuais, produzindo no sistema Ψ uma descarga, uma catexização de um ou vários neurônios do pallium correspondentes à percepção do objeto que produziu a satisfação e uma aquisição de informações acerca da descarga que se segue à ação específica. Salienta Garcia-Roza (1998) que a satisfação está, a partir de então, tanto ligada à imagem do objeto quanto à imagem do movimento de descarga. Quando reaparece o estado de necessidade (estímulos endógenos), a ativação do desejo produz “algo idêntico a uma percepção – ou seja, uma alucinação. Se esta leva à realização do ato reflexo, a conseqüência inevitável será a decepção” (Freud, 1895/1977, p. 424). É diante da necessidade de evitar o desprazer causado pela decepção que se torna fundamental ao aparelho psíquico a capacidade de distinção entre a percepção e a lembrança (representação). Laplanche e Pontalis (1994) demarcam a representação como aquilo que do objeto se inscreve nos sistemas mnêmicos. Podese conceber, dessa forma, que a representação tenha uma origem direta com a percepção e com a marca perceptiva que essa deixa no aparelho psíquico (Valls, 1995).

Desenvolve-se, então, o Princípio de Realidade, através da indicação de realidade fornecida pelo sistema Ψ, a qual, aliada à capacidade de inibição do Ego, permite essa diferenciação. A ação do Ego como facilitador de um movimento energético, ou seja, de um processo de ligação, impede a descarga massiva e imediata das excitações desencontradas da capacidade lógica ou de temporalidade (regido pelo processo primário), e vai permitindo ao aparelho psíquico dispor de uma função secundária. No processo secundário, com a capacidade de retardar e modificar a descarga, encontramse formas de investimento e circulação de energia mais estáveis, as quais possibilitam, via existência e eficácia das barreiras de contato, experiências mentais distintas da descarga imediata.

O pensamento (Gedanke), processo secundário em Ψ, tem seu ponto de partida justamente na tarefa de discernir percepção e lembrança. Para Garcia-Roza (1998), “tratase de, a partir da situação perceptiva dada, atingir a situação perceptiva desejada; ‘a meta e o fim de todos os processos de pensamento é produzir um estado de identidade’” (p. 165). Assim, Freud (1895/1977) argumenta que, sempre que não houver a semelhança entre as catexias, entra em atividade o pensamento, buscando a coincidência, ou seja, é a dessemelhança que provoca a inibição à descarga por parte do Ego, dando lugar ao trabalho de pensar.

O pensamento, assim, pode ser considerado o paradigma do funcionamento dessa energia ligada, abrindo-se novas e mais complexas vias de deslocamento das cargas de energia. Essa proposição de Freud é retomada por Fischbein (1999), quando menciona a função de contenção da representação, ou seja, cabe a ela reter as cargas de investimentos para que não sejam descarregadas em atos. De fato, anos mais tarde, Freud (1911/2004), em Formulações sobre os Dois Princípios do Acontecer Psíquico, segue discutindo o fundamental papel do processo de pensar, ao afirmar que o processo de alucinação inevitavelmente fracassa, na medida em que não promove a satisfação. Enquanto nesse primeiro tempo – processo de alucinação – o pensar está equiparado ao desejar (wünschen), no segundo, que entra posteriormente em ação, o processo de pensar viabiliza o desejar, considerando o princípio da realidade. Assim, afirma Freud (1911/2004):

tornou-se necessário poder postergar a remoção motora desses estímulos (o agir), o que foi viabilizado pelo processo do pensar. Esse pensar formou-se a partir do próprio ato de conceber mentalmente (vorstellen) e foi dotado de características que possibilitaram ao aparelho psíquico suportar o aumento da tensão decorrente do acúmulo de estímulos durante esse postergamento. (p. 67)

Posteriormente à escrita do Projeto, Freud escreve a Carta 52. Esta pode ser considerada a ponte entre o primeiro e a Interpretação dos Sonhos, de 1900, fundamentalmente porque representa a passagem de um modelo isomórfico para um modelo abstrato do psiquismo humano. A importância dessa carta reside na exposição da tese freudiana de que o mecanismo psíquico se forma por sucessivas retranscrições, isto é, os traços de memória seriam submetidos de tempos em tempos a rearranjos, cada qual correspondendo a diferentes modos de ordenamento das representações. Nesse sentido, a memória se desdobra em vários tempos, e está sujeita a reordenamentos segundo novas articulações.

Também na Carta 52, Freud (1896/1977) descreve os diferentes níveis da estratificação que irão criar o mecanismo psíquico. Explicita as variáveis com as quais trabalha: percepção, representações e memória, e introduz, ainda, a noção de inscrição (Niederschrift). De fato, Garcia-Roza (1998) ressalta que a noção de Niederschrift redimensiona a concepção freudiana da memória e também do aparelho psíquico. Para Freud, a condição de formação do psiquismo é exatamente a capacidade de memória, ou seja, ela não é uma propriedade do aparelho, mas sua própria essência.

A memória será constituída por um conjunto de impressões que são inscritas como traços de memória. Esse conjunto de traços formará um signo e será patrimônio da memória. No Projeto, Freud (1895/1977) havia postulado: “a memória está representada pelas diferenças de facilitação (Bahnung) entre os neurônios Ψ” (p. 401). Tais traços perduram sob a forma de inscrição e representação. Os traços mnêmicos serão capazes de ingressar no registro psíquico, e estarão sempre inscritos em sistemas e manterão relação com outros traços. Através dos traços mnêmicos, os acontecimentos psíquicos ficam gravados de forma permanente na memória, sendo reativados por efeito do investimento. Nesse sentido, “o traço mnêmico não constitui, portanto, um elemento simples que poderia ser reproduzido sem se levar em conta as Bahnungen, mas sim, uma diferença entre as Bahnungen, diferença essa que expressa a preferência por um caminho em detrimento de outro” (Garcia-Roza, 1998, p. 201).

Seguindo o esquema proposto por Freud na Carta 52, há, pelo menos, três transcrições que determinam os rearranjos pelos quais a memória se reordena. A percepção (Wahrnehmung) corresponde à impressão do mundo exterior. Nesse primeiro nível, os neurônios não conservam nenhum traço do acontecimento; consciência e memória se excluem, ou seja, nesse nível, ocorrem as percepções, que não correspondem a nenhuma experiência, “são o dado bruto desprovido de qualidade” (Garcia- Roza, 1998, p. 203). As Wahrnehmungen dão, então, espaço a uma primeira inscrição (Niederschrift), correspondente aos signos de percepção (Wahrnehmungszeichen). São totalmente inconscientes e se dispõem em associações por simultaneidade. Assim, o conteúdo do aparelho psíquico para Freud, em 1896, são signos (Zeichen), sujeitos a inscrições e transcrições.

O terceiro momento envolve a inconsciência (Unbewusstsein), sendo que esse segundo registro se dá de acordo com novas relações (Freud indica que, provavelmente, são associações causais) e seus traços referemse, possivelmente, a lembranças conceituais. A seguir, processa-se o terceiro registro do material psíquico, relativo à pré-consciência (Vorbewusstsein) e ligado a Wortvorstellung, isto é, os investimentos poderão tornar-se conscientes.

Freud (1896/1977), então, pontua que os sucessivos registros representam a realização psíquica de sucessivas épocas da vida de um indivíduo, sendo que cada transcrição inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação. Portanto, os reordenamentos de traços mnêmicos respondem pela própria formação do aparelho psíquico. Nesse momento, é aberto espaço para se trabalhar a noção de Recalcamento (Verdrängung) como a recusa de uma tradução que geraria desprazer. Para Freud (1896/1977), “a recusa (Versagung) da tradução é aquilo que clinicamente se chama recalcamento” (p. 276). Ao trabalhar essa afirmativa de Freud no Projeto, Garcia-Roza (1998) comenta que “o início da geração de desprazer provocado por uma tradução do material psíquico provocaria uma perturbação no pensamento, e o trabalho de tradução não seria completado. Não se trata, portanto, de uma falha mecânica, mas de uma defesa” (Garcia-Roza, 1998, p. 205).

Freud chega ao ano 1900 com importantes avanços teóricos, tanto no que concerne especificamente à temática da Vorstellung como, de modo mais amplo, à temática da compreensão do psiquismo. Ao avaliar essa parte do percurso freudiano, Garcia- Roza (2000) argumenta que os três modelos apresentados por Freud até 1900 são modelos de aparelho psíquico, os quais diferem entre si em função das ênfases dadas pelo autor. E, fundamentalmente, segundo o autor, destacase todo o tempo, nesse caminho, o processo de construção desse aparelho, através do contato com o outro (outro como aparelho de linguagem, outro como agente da ação específica).

Com a atenção voltada para o fenômeno dos sonhos, Freud (1900/1977) reorganiza seus preceitos teóricos em uma quarta concepção de aparelho psíquico, formulando a primeira tópica freudiana, ou teoria topográfica. O entendimento do trabalho do sonho constitui ponto fundamental dessa construção, isto é, o ponto central desse movimento envolveu a tese de que o sonho “é uma escritura psíquica, cujas imagens não devem ser consideradas em seu valor de imagem, mas em seu valor significante” (Garcia-Roza, 2000, p. 96). Assim, a concepção de um aparelho simbólico ganha destaque, e Freud demarca que a Vorstellung é uma entidade simbólica.

De fato, a partir da Interpretação dos Sonhos, Freud passa a se referir a representação-decoisa (Sachvorstellung) e representação-depalavra (Wortvorstellung). É somente em 1915, no texto O Inconsciente, que Freud retoma a distinção entre Objektvorstellung e Wortvorstellung e sua relação com os sistemas Inconsciente e Pré-Consciente/Consciente. Assim, o que até aquele momento era designado pelo termo Objektvorstellung consciente é decomposto por Freud em Wortvorstellung e em Sachvorstellung. Explicita Freud (1915/2006) que

aquilo que antes chamávamos de representação mental do objeto ou idéia consciente do objeto, ou seja, representação-de-objeto, agora se subdivide em representação-de-palavra (Wortvorstellung) e representação-de-coisa (Sachvorstellung). Esta última consiste no investimento de cargas – se não nas imagens diretas da lembrança-da-coisa (Sacherinnerungsbilder) –, nos traços de lembrança que estão mais distantes e que derivam dessas lembranças. (p. 49)

Dessa forma, considera Freud (1915/ 2006) que “uma representação (Vorstellung) consciente abrange a representação-de-coisa (Sachvorstellung) acrescida da representaçãode- palavra (Wortvorstellung) correspondente, ao passo que a representação (Vorstellung) inconsciente é somente a representação-decoisa” (p. 49).

Os textos sobre metapsicologia fornecem as articulações necessárias para que Freud possa ampliar a temática da Vorstellung. Não apenas era necessário trabalhar mais profundamente a questão da pulsão, como no artigo escrito por ele em 1914, Pulsões e Destinos das Pulsões, como também debruçar-se sobre as temáticas do Inconsciente e do Recalcamento. Portanto, justamente quando todos esses conceitos fundamentais estão sendo articulados por Freud, é apresentado na obra o conceito de representante-representação da pulsão (Vorstellungsrepräsentanz des Triebes).

A noção de representação está intimamente ligada ao conceito de pulsão e de trabalho psíquico. Pulsão e representação constituem, de fato, a relação de uma com a outra, de forma simultânea, sendo impossível isolá-las, mesmo que se contraponham como duas exterioridades (Garcia-Roza, 1999). Por outro lado, Laplanche e Pontalis (1994) sublinham que, ao ser entendida como um conceito limite entre o psíquico e o somático, a pulsão está ligada à noção de “representante”, isto é, a pulsão é representada psiquicamente por seus representantes. No texto metapsicológico acerca do inconsciente, Freud (1915/2006) afirma que uma pulsão não pode ser objeto nem do consciente, nem do inconsciente: “Se a pulsão não aderisse a uma idéia ou não se manifestasse como um estado afetivo, dela nada saberíamos” (p. 28).

O representante - representação (Vorstellungsrepräsentanz), então, é uma representação ou um conjunto de representações investido pulsionalmente, e, por isso, são as representantes das pulsões no psiquismo. As representações pulsionais são, assim, a possibilidade que o aparelho psíquico tem, de alguma forma, de lidar com as pulsões e suas intensidades. E é justamente a diferença entre a pulsão e a sua representação que abre espaço para que o desejo possa se constituir.

Ao trabalhar a representação, Freud abre espaço, no outro oposto, para analisar o que escapa à cadeia simbólica. Ainda no final do século XIX, tempo em que entendia o psiquismo como um aparelho de memória, Freud já voltava a atenção para a existência de impressões (Eindrucken) que não deixam traços (Spuren), isto é, não constituem em si mesmas uma lembrança e, assim, não pressupõem uma inscrição. Sua forma de persistir está relacionada ao seu caráter repetitivo, isto é, quando se refere a uma impressão, não necessariamente faz-se alusão a algo que poderá ser simbolizado. As impressões podem sobreviver de forma isolada em relação às cadeias associativas.

Knobloch (1998) assinala que a inscrição não seria o único destino da impressão, já que esta pode persistir no aparelho psíquico mesmo não inscrita no sistema representacional. A impressão é algo da ordem psíquica, mas que escapou ao sistema de inscrições. Segundo Garcia-Roza (2000), a impressão é definida por Freud como a situação primária da elaboração mnêmica, distinguindo-se não apenas do estímulo e da sensação como também da representação. O autor destaca que a impressão é anterior à inscrição e posterior à sensação. Knobloch (1998) afirma que a inscrição deve ser pensada como fator energético da memória, sendo que, quando a impressão não está inscrita, “não se trata, portanto, de representação, mas da expressão de pura intensidade” (p. 89).

É indispensável, portanto, pensar sobre qual o efeito que esse montante de intensidade não representada terá no campo da clínica. O que escapa ao processo simbólico não deixa de ter um caráter ativo na vida psíquica do sujeito. Mais do que nunca, é possível definir os efeitos do caráter demoníaco da pulsão de morte. Alonso (2003), fundamentada no texto freudiano de 1920, considera que, no interior da segunda teoria das pulsões, Freud aproxima o excesso da pulsão à pulsão de morte. Assim, o que é da ordem do excesso necessita poder ser processado, de tal forma que o aparelho psíquico seja capaz de criar margens, limites, arranjos que o protejam de ser inundado por aquele. A partir da estruturação narcísica e do complexo de Édipo, devem ser criadas condições para que o Eu seja capaz de encaminhar as forças pulsionais na direção de construções no campo simbólico – brincadeiras, fantasias, etc. – de tal forma que as pulsões, como solicitações de trabalho psíquico, se mantenham a serviço da vida. Segundo a autora, “quando isso não é mais possível, as pulsões, no seu excesso, no que têm de mais indizível, viram verdadeiras ameaças para o eu, e é nesses casos que a violência da pulsão se faz notória” (p. 228).

Os desenvolvimentos de Freud a respeito da técnica e da escuta sem dúvida são recursos essenciais para que se possa tentar acessar o inconsciente. Reconhecer o valor de Freud não impede de reconhecer também aportes de outros estudiosos, a fim de compreender o tema da ausência de Vorstellung e a questão da representabilidade na clínica do traumático.

Sándor Férenczi, psicanalista contemporâneo de Freud, é um nome a ser lembrado e destacado frente a temáticas como o processo de representabilidade. Em seu texto As Patoneuroses, Férenczi (1917/1992) aborda o tema de patologias resultantes de importantes doenças orgânicas ou ferimentos. O autor, por meio de exemplos clínicos, apresenta sua tese de que, nas patoneuroses, ou neuroses de doença, primeiro ocorre um distúrbio funcional orgânico, e, posteriormente, “a perturbação da libido” (p. 295). É nesse contexto de importantes contribuições teórico-clínicas que, segundo Knobloch (1998), Férenczi fornece subsídios teóricos para a proposição da diferença entre “falar em palavras e falar em atos” (p. 67). Ao dedicar-se a trabalhar com a psicanálise e com “casos difíceis”, Férenczi vai explorando a possibilidade de trabalho com o que está além dos limites da representação. Para ele, pensar sobre o que é da ordem da nãorepresentação é pensar sobre o traumático e, assim, também pensar sobre a clínica psicanalítica como um lugar, no qual o traumático pode ser trabalhado (Knobloch, 1998, p. 84). Em Férenczi, encontram-se subsídios para pensar no trabalho psíquico necessário para que a inscrição de impressões possa inserir-se no campo representacional. Como bem assinala Uchitel (2001), “a nãorepresentação do acontecimento, o excesso de excitação, o fator surpresa, as lembranças no corpo, a compulsão repetitiva, são todas idéias presentes em Freud que Férenczi potencializa nas suas teorizações” (p. 76).

A noção de compulsão à repetição, conceito apresentado e desenvolvido por Freud (1920/1987), fornece o eixo essencial para a compreensão de Férenczi acerca da manifestação de intensidades psíquicas ainda não contidas pelas representações. A repetição que aprisiona o sujeito deixa-o fora do alcance de uma lembrança propriamente dita e expressa essa intensidade do que invade o psiquismo, inserindo-o em um circuito repetitivo e imutável. Em Férenczi, o caráter de irrepresentável dá um limite ao que se impõe ao psiquismo. Interrogando-se sobre o que acontece quando o sofrimento aumenta e passa da possibilidade de compreensão do sujeito, Férenczi (1932/1992) introduziu a noção de temporalidade referente à sua concepção de trauma. Para ele, no trauma, não existia tempo, e, por isso, ao não existir passado, presente e futuro, esses se fazem todos presentes ao mesmo tempo. Frente a essa situação, os que estão “loucos de dor” entram em contato com a realidade imaterial. Knobloch (1998) assinala que, para Férenczi, a dor presente “causa, exatamente por ser presente, uma dor maior do que a suscitada pela lembrança da dor” (p. 111).

A referência à impossibilidade de atribuir representação psíquica a uma impressão impõe a entrada em cena do conceito de trauma. Trauma pode ser definido como aquela situação de excesso, na qual o aparelho psíquico falha e se mostra incapaz de dominar o que o invade. A capacidade de metabolizar do sujeito fica impedida de processar esse montante, e daí resulta seu caráter traumático. Conforme assinala Uchitel (1997), o caráter traumático advém de várias fontes. Entre elas, estão a desproporção entre o excesso pulsional e os recursos com os quais o sujeito conta para representar, além da existência de uma falta de “objetos pulsionais” que dão conta do desamparo infantil.

Resgatando a metáfora do modelo da vesícula viva como um modelo do dispositivo protetor das excitações, apresentada por Freud (1920/1987) em Além do Princípio do Prazer, encontra-se o argumento para pensar no aparelho psíquico como um sistema aberto, abertura que implica a recepção e a necessária metabolização do que nele ingressa. Descrevendo as excitações traumáticas como aquelas suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor, Freud (1920/1987) articula a idéia de ruptura de barreiras e de distúrbios no funcionamento psíquico, alertando que “outro problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulo que irromperam e de vinculá-las, no sentido psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar” (p. 45). Evidenciase a importância do trabalho de “vinculação” das excitações para que se encontre um meio de tramitá-las psiquicamente.

Ao buscar uma compreensão para dinâmicas psíquicas que fogem ao conhecido “domínio” do princípio do prazer, Freud (1920/1987) postula uma nova definição de trauma: “Descreveremos como traumáticas quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor” (p. 45). Assim, a teoria do trauma dos anos anteriores, no que diz respeito ao excesso de uma cena, pode ser abandonada; segue, todavia, vigente na concepção de trauma apresentada em 1920 a vertente do excesso e os efeitos frente à fragilidade psíquica para processá-lo. Freud não se refere mais a uma cena real; nomeia agora a “perfuração” de barreiras. O que irrompe provoca dor devido à insuficiência de contenção em administrar o excesso e neutralizar os efeitos. Dessa forma, o que se inscreve na carne do humano denuncia sua condição de desamparo. Volta-se, assim, às proposições de Berlinck (1999) sobre a dor: “Há, na depressão, na dor e na angústia sensações que incidem espetacularmente no corpo, mas que são sempre psíquicas e que são inscrições do tempo na carne do humano, frágil e desamparada, que solicita constantes cuidados que atestam a insuficiência diante de ameaças que colocam a existência em permanente perigo” (p. 11).

O excesso presente na situação traumática deixa o sujeito sob o efeito desse montante de energia que não consegue ser simbolizada. Trata-se de uma situação de dor na qual o ego fica totalmente tomado pelo que o ataca de dentro.

De fato, a temática da dor se fez presente nos textos freudianos desde os primórdios da psicanálise. Num olhar retrospectivo, encontra-se a abordagem de Freud à temática da dor em 1895. Assim, ao escrever o Projeto, Freud (1895/1977) atenta para o que chama de Experiência da Dor, afirmando que esta ocorre quando excessivas quantidades de Q rompem os dispositivos de tela em Ψ, ocasionando irrupção de grandes quantidades de Q em Ψ. A dor, então, produz em Ψ um grande aumento do que é sentido como desprazer em Ψ, uma tendência à descarga, uma facilitação entre a propensão à descarga e a imagem mnêmica do objeto que acentua a dor.

Além de uma quantidade, a dor possui também uma qualidade, dada pelo sentimento de desprazer em Ψ. Na experiência de dor, da mesma forma na experiência de satisfação, quando a imagem do objeto hostil é reinvestida, surge um estado de desprazer acompanhado de uma tendência à descarga. Assim, o efeito do novo investimento sobre a imagem do objeto hostil não é dor, mas sim, afeto acompanhado de desprazer (Garcia- Roza, 1998). Torna-se claro, então, que dor e desprazer não estão no mesmo registro. A dor, conforme salienta Garcia-Roza (1998), não se situa no pólo oposto do prazer. Freud, no entanto, não elimina a possibilidade de a dor vir a constituir um ingrediente importante na economia do prazer-desprazer e poder, inclusive, constituir parte de uma vivência prazerosa, como é o caso do masoquismo. É fundamental situar que a dor não deve ser vista como um princípio estruturador do psiquismo, a menos que a intensidade de Q em questão seja passível de um contrainvestimento. A dor, quando intensa e duradoura, tem como efeito uma extrema desorganização da economia psíquica. Nesse sentido, Garcia-Roza (1998) destaca a diferença entre a vivência de satisfação, que é diferenciadora, e a vivência da dor, que é “desdiferenciadora”. Para o autor, quando quantidades grandes rompem a proteção dos órgãos dos sentidos e superam a resistência oferecida pelas barreiras de contato, os neurônios se tornam inteiramente permeáveis à condução de excitação. Dessa maneira, “deixa de haver caminhos diferenciados e estabelece-se como que um só caminho que é um não-caminho, já que qualquer percurso é possível” (pp. 141-142).

O conceito de compulsão à repetição abre, também, espaço ao efeito da intensidade da dor, que constitui por si o motor do movimento de repetição de dor. Trata-se agora não mais de uma repetição no registro do prazer, mas sim, de uma força que impulsiona e atualiza uma dor originária. A compulsão à repetição reproduz uma cena que pode ser posta em paralelo com o que Freud cita no Projeto, a ruptura da capacidade de reter da memória. O que se reproduz na repetição não é patrimônio da memória, ao contrário, reproduz-se via dor uma memória incapacitada. Essa dor, sem trégua, encontrará no ato um caminho de “representação”; essa negociação psíquica cobra um preço alto: atordoado pelo excesso, o sujeito se vê, inexoravelmente, prisioneiro de seu fazer.

A dor, segundo Nasio (1996), não apresenta em si mesma nem valor, nem significado, sendo que a única forma de acalmá-la é destacá-la do real e transformá-la em símbolo. Uchitel (1997) afirma que o universo do representado é afetado pela interpretação, mas o do não-representado – inatingível por ela – exige que o analista se apresente como suporte para que essa força tenha acesso à inscrição. Será a transferência o lugar privilegiado para tal processo, na medida em que se “trata de ‘destraumatizar’ a pulsão, nomeando sua força, favorecendo sua passagem, dando mobilidade para o que na repetição aparece ‘soldado’, abrindo novos circuitos e promovendo novos investimentos” (Uchitel, 1997, p. 131). Nesse sentido, a análise implica a possibilidade da inauguração de destinos para as forças pulsionais e a sua inscrição no universo da simbolização pelo analista e pelo analisando, juntos.

Assim, à medida que existem experiências que não estão representadas, a intervenção do analista não pode se restringir somente à interpretação. Diante dessa constatação, Freud, em 1937, dedica um artigo exclusivamente ao conceito de construção, referindo-se à elaboração que o analista deve realizar “essencialmente destinada a reconstituir, nos seus aspectos reais e fantasísticos, uma parte da história infantil do sujeito” (Laplanche & Pontalis, 1994, p. 97).

Chega-se, então, à necessidade dessa escuta diferenciada frente aos pacientes presos na repetição do que não conseguem nomear. Diferente da ação do recalcamento, o que está em jogo nessas patologias não está relacionado a uma formação de compromisso ou ao retorno do recalcado. Mais do que de fantasias, esses pacientes “falam” da ausência de palavras. Muitas vezes resta ao ato a forma precária e perigosa de descarga do excesso. A repetição tem ligação com o não metabolizado pelo psiquismo, com a pulsão de morte. Nesses casos, o analista deve executar intervenções que não são interpretações, mas sim, recursos de ligação do excesso desligado, buscando extrair simbolizações. As intensidades precisam ser nomeadas para que possam, posteriormente, ser enlaçadas e capturadas pelo universo da palavra. O campo transferencial pode e deve ser esse espaço de metabolização do excesso, o caminho que abre espaço a Vorstellung.

Segundo Fischbein (1999), o processo de análise desses pacientes não envolve o trabalho de levantamento do recalcamento. Não se trata, segundo o autor,

do desvelamento de uma história recalcada, senão da inscrição e armado do texto do que não foi representado. É nesse sentido que apelaríamos mais à construção do que à interpretação, aportando vitalidade a um campo diminuído na livre associação por meio de maior atividade do analista. (p. 280)

Pontalis (1997) também afirma que, nesses casos, “repete-se o fora-do-texto, do incrustado, não do impresso – o que é completamente diferente das notas de rodapé ou das palavras esparsas e dos garranchos escritos pelas margens, que são eles mesmos um tipo de sinal benigno do recalcado” (p. 28).

Figueiredo (2003) sustenta que a clínica desses pacientes exige uma ética da escuta do “ainda-não-existente” e do “ainda-nãoconsciente”, isto é, uma escuta que ofereça condições do vir-a-ser dessas subjetividades. Segundo Maia (2003), o fazer analítico deve dar condições para fazer com que no setting surjam os afetos presentes no trauma, ou seja, a autora entende que “o sujeito que tem sua vida psíquica em parte devastada por aspectos traumáticos age a dor, sendo incapaz de dar-lhe significado” (p. 238). Férenczi (1932/1992), em seu artigo Reflexões sobre o Trauma, publicado postumamente, aborda a situação de comoção psíquica na qual a pessoa estaria frente ao aniquilamento do sentimento de si e da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do si mesmo. Para ele, a expressão comoção psíquica (Erschütterung), derivada de Schutt (restos, destroços), “engloba o desmoronamento, a perda de sua forma própria e a aceitação fácil e sem resistência de uma forma outorgada” (p.109). Na análise, o trabalho com o irrepresentável pode ser considerado um resgate da “forma” própria do paciente a fim de tirá-lo desse estado “destroçado”. Tirar o que está na clandestinidade é auxiliar o paciente a construir recursos para expressar sua dor. O trabalho de historicizar se faz necessário e vital, na tentativa de produzir sentidos naqueles vazios preenchidos pelo agir.

Para Uchitel (1997), historicizar é “montar um tecido de representações das imagens, marcas e emoções dispersas e recuperar o atípico e singular, o que ficou expulso, o que só tem vez no sintoma” (p. 86). Resgatar a capacidade de analisabilidade desses pacientes é, segundo Hornstein (2003), compreender o psiquismo como um sistema aberto, que tem uma organização determinada, mas que pode modificar-se e adquirir novas propriedades. Assim, para o autor, “pensar no sujeito como um sistema aberto à intersubjetividade, não somente no passado, senão na atualidade, exige refletir sobre as tramas relacionais e seus efeitos constitutivos da subjetividade” (p. 97).

Fazer trabalhar o conceito de Vorstellung implica estabelecer laços com a clínica, ou seja, pensar sobre as implicações de seu fracasso ou limitações no espaço de escuta. Para que se produza uma versão do excesso, daquilo que escapou ao sistema de representações psíquicas, o analista mais do que nunca precisará estar capacitado em seu mundo psíquico para se deparar com as formas de expressão de quantidades não qualificadas.

A paciente de Freud, Emmy Von N., a partir de sua exigência em ser escutada, possibilitou uma inestimável mudança de rumo na técnica psicanalítica. Conforme destacam Macedo e Falcão (2005), a cura passou a ser alcançada, então, pela palavra: “É por meio de narrativas ativas que um sujeito acordado, com seu discurso cheio de lacunas, da presença e ausência de palavras, que o paciente passa a ser escutado” (p. 67). Naquelas demandas de análise, porém, nas quais a ausência de sentido marca a presença do irrepresentável, reafirma-se a identificação com o legado freudiano de investigar, equiparando também a técnica a um sistema psíquico aberto e sujeito a transformações.

 

Considerações finais

A partir dessas questões a respeito de uma clínica psicanalítica que está além do recurso técnico da interpretação, pode-se afirmar a vitalidade de enfrentar impasses com os quais se depara a escuta nos dias atuais. A importância de considerar os efeitos da Vorstellung no funcionamento psíquico decorre da necessidade de fazer trabalhar a noção de alcances e limitações dos recursos da técnica psicanalítica em um processo de cura. Pensar sobre a Vorstellung na clínica com pacientes que convocam com suas dores aquilo que é da ordem do não-representado exige a reafirmação da importância da transferência. Como bem assinala Pontalis (1997), Freud criou um método que possibilita que “a palavra seja suscetível de escapar à vigilância tanto daquele que a emite como daquele que a escuta, endereçada a um destinatário não identificado, tão presente quanto ausente” (p. 31). Assim, o campo transferencial será o campo da metabolização, da possibilidade de acesso a Vorstellung.

Para Hornstein (1989), a cura na psicanálise difere da cura médica, pois esta visa a restabelecer um estado anterior, enquanto aquela visa, muitas vezes, à construção de algo que não existia. Com pacientes presos nas teias da repetição do irrepresentável, mais do que nunca será verdadeira a necessidade de construir o que não existia: a capacidade de atribuir representabilidade a conteúdos psíquicos que os atormentam nesse jogo de intensidades.

Na história da psicanálise, observa-se um momento importante nomeado como o correspondente aos anos “da virada”. Em 1920, a pulsão de morte levou Freud a se ocupar do que estava além do princípio do prazer, levando-o a produzir diferentes recursos para a escuta clínica. Da mesma forma, a clínica psicanalítica atual, na singularidade das demandas de nosso tempo, obriga-nos a ir, com nossa escuta, além de uma técnica interpretativa. Como ressalta Hornstein (1989), “uma teoria se constrói a partir dos fenômenos, tentando revelar o sistema que os produz” (p. 19). Na clínica psicanalítica atual, fazer trabalhar a teoria freudiana implica esse trabalho de mútua alimentação entre o corpo teórico e os recursos da técnica. Fazer trabalhar o conceito de Vorstellung amplia e transforma a capacidade de acesso aos enigmas humanos de repetição assim como exige um redimensionamento do papel do analista. Aquilo que escapa à possibilidade de representação persistirá não na modalidade de sintoma, mas sim, de ato, isto é, aquilo que o sintoma disfarça, condensa e desloca e que é da ordem do recalcado, o ato encobre e atordoa.

Pensar no conceito de Vorstellung é ampliar o espaço de escuta analítica a fim de alcançar o irrepresentável. Esse, enquanto derivado de uma vivência de excesso e na condição de não representado, persiste como uma alma penada, assombrando e incrementando com sua repetição as múltiplas formas que pode ter a dor psíquica.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Avenida Ipiranga, 6681 - Prédio 11 - 8o. andar
90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil

Recebido 19/12/06
Reformulado 23/04/07
Aprovado 26/05/07

 

 

* Psicóloga, Doutora em Psicologia/PUCRS, professora adjunta da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: monicakm@pucrs.br
** Psicóloga, Doutora em Ciências Médicas/UNICAMP, diretora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: bwerlang@pucrs.br
*** Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS, professora assistente da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: carolina.dockhorn@pucrs.br.