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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.28 no.1 Brasília Mar. 2008

 

ARTIGOS

 

O lado de dentro da experiência: atenção a si mesmo e produção de subjetividade numa oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida

 

The inner side of experience: attention to oneself and the production of subjectivity in a pottery workshop for acquired sight deficiency people

 

 

Virgínia Kastrup*

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pessoas acometidas pela perda da visão são confrontadas com a necessidade de reorganização de seu sistema cognitivo e de reinvenção de suas vidas. O objetivo deste texto é discutir os efeitos da experiência de trabalhar com cerâmica, analisando os dois lados do funcionamento da atenção de pessoas com deficiência visual adquirida: a atenção à argila e a atenção a si mesmo durante o processo de criação. Toma como referências principais os trabalhos de J. Dewey sobre experiência estética, de G. Simondon sobre o processo de individuação e de F. Varela e S. Weil sobre a atenção. O texto resulta de uma pesquisa realizada numa oficina de cerâmica do Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. A cerâmica é analisada em suas características de maleabilidade, temporalidade lenta e imprevisibilidade. A partir do conceito de cognição inventiva, são analisados os efeitos da expressão artística na produção da subjetividade e na reinvenção do território existencial dos deficientes visuais.

Palavras-chave: Deficiência visual, Experiência, Produção de subjetividade, Cerâmica.


ABSTRACT

People who suffer from the lack of sight are confronted with their cognitive system reorganization need and the reorganization of their lives. This text aims at discussing the effects of working with clay, analyzing both sides of people who suffer from acquired sight deficiency in relation to attentional functioning: the attention to clay and the attention to oneself during the creating process. The main references are the work of J. Dewey about the aesthetic experience, the work of G. Simondon about the individuation process and the work of F. Varela and S. Weil about attention. The text results from a research that took place in the Benjamin Constant Institute, in Rio de Janeiro. Clay is analyzed according to its characteristics of malleability, temporality and unpredictability. The artistic expression effects in the subjectivity production and in the reinvention of the sight deficient people existential territory are analyzed having in mind the concept of inventive cognition.

Keywords: Sight deficiency, Experience, Subjectivity production, Pottery.


 

 

Pessoas acometidas pela perda total ou parcial da visão de forma súbita ou insidiosa são confrontadas com a necessidade de reorganização de seu sistema cognitivo. A perda do sentido da visão convoca e potencializa o tato, a audição e o olfato, já que, através da intensificação do uso de tais sentidos, serão construídos novos domínios cognitivos para a realização de atividades de vida diária, deslocamento no espaço da cidade e relações sociais, o que possibilitará a vida autônoma dessas pessoas. Segundo Ivette Hatwell (Hatwell, 2003; Hatwell, Streri, & Gentaz, 2000), não se trata de um fenômeno de diminuição de limiares sensoriais, mas de um problema de redirecionamento da atenção. O tato vai ser investido pela atenção e ganhar destaque no processo de reinvenção da vida dos deficientes visuais. O objetivo deste texto é investigar a experiência de trabalhar com a cerâmica em pessoas com deficiência visual adquirida, examinando dois lados do funcionamento da atenção: a atenção à argila e a atenção a si mesmo durante o processo de criação.

A atenção é um processo que contribui para regular e modular o funcionamento de outros processos cognitivos como a percepção, o pensamento e a memória (Camus, 1996, p. 8). Investindo tais processos e respondendo por sua modulação, a atenção constitui o fundo de flutuação da cognição (Vermersch, 2002a, 2002b). Trata-se de um processo complexo, que não se esgota no funcionamento binário 0-1, atenção-desatenção, e possui variedades como o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento (Kastrup, 2004, 2007a). Grande parte dos estudos sobre atenção se limita a destacar sua função de seleção de informações e seu papel na realização de tarefas, mas a atenção tem também participação efetiva nas atividades criadoras e, de modo geral, na cognição inventiva (Kastrup, 2007b).

O presente texto é baseado numa pesquisa realizada na oficina de cerâmica do Instituto Benjamin Constant - IBC1 , no Rio de Janeiro. O grupo era constituído por cerca de 18 participantes, sendo 14 cegos e 4 com baixa visão, todos acometidos de cegueira adquirida. Era um grupo heterogêneo, composto de homens e mulheres, entre 30 e 70 anos, de classe social média e baixa, e que exerciam profissões como cozinheiro, professora de música, motorista de táxi, artista plástica, piloto de provas, designer de jóias, mecânico de caminhão, dona de casa, etc. A maioria havia cursado o ensino fundamental e alguns tinham chegado ao segundo grau. Todos tinham perda total ou parcial da visão, por acontecimento súbito ou processo insidioso. A deficiência visual tinha sido causada por doenças orgânicas (diabetes, retinose pigmentar) ou por acontecimentos traumáticos (acidente de automóvel, tiro). Foram constatadas diferenças bastante significativas entre os participantes quanto ao modo de viver e lidar com a deficiência visual, que podem ser explicadas pelo tipo e gravidade do problema, história de vida, situação atual com relação à família e amigos, além de já terem ou não passado pelos chamados processos de reabilitação. Tais diferenças se refletiam em diversas esferas, como organização postural, movimentos do tronco, dos braços e das mãos, facilidade de locomoção, autonomia na vida e no próprio trabalho na oficina. Apesar de sua heterogeneidade, tratava-se de um grupo de pessoas que enfrentava o desafio de lidar com sua condição de pessoas cegas ou com baixa visão, o que requeria um laborioso processo de aprendizagem. A proposta da oficina era acionar um processo de aprendizagem que visasse não só à adaptação a essa nova realidade, mas também à oferta de condições para uma aprendizagem inventiva, que mobilizasse processos criadores, tanto do ponto de vista da produção de objetos artísticos e utilitários quanto do ponto de vista da produção da subjetividade.

A pesquisa utilizou o método da cartografia (Deleuze & Guattari, 1995; Kastrup, 2007a; Rolnik, 2006). para a observação das aulas de cerâmica e na elaboração dos relatos. Foram também realizadas entrevistas com nove participantes e com duas professoras, sendo utilizada a técnica da entrevista de explicitação (Vermersch, 2000). Através do método da cartografia, buscou-se detectar o funcionamento da atenção durante o trabalho com a cerâmica, examinando-se o fenômeno da concentração, que revela a dimensão de duração temporal da atenção. Ao se cartografar o trabalho concentrado, procurou-se investigar a possível reverberação entre a atenção à argila e a atenção a si mesmo durante o processo de criação. A situação de trabalho em grupo exigiu também a análise dos fenômenos de distribuição da atenção, em seus possíveis efeitos de manutenção e/ou de dispersão.

Como aconteciam muitas coisas ao mesmo tempo no espaço da oficina - diversas pessoas trabalhando, algumas agrupadas em mesas, outras trabalhando sozinhas, além da circulação de professoras, falas em voz alta, bate-papo e cantoria - colocou-se o curioso problema de onde pousar a atenção durante a prática da observação cartográfica. Em vez de constituir um obstáculo, o entrelaçamento entre o problema da atenção dos participantes da oficina de cerâmica e aquela do cartógrafo acabou produzindo um solo fértil, onde a investigação de ambas acabou por prestar colaboração recíproca. As entrevistas de explicitação, cujo objetivo era trazer ao plano consciente experiências cognitivas e gestos atencionais realizados num nível pré-reflexivo, acabaram por produzir falas que ultrapassavam em muito a investigação do funcionamento cognitivo stritu-sensu. A insistência e a força de tais relatos não puderam ser atribuídas a um problema meramente técnico, relativo ao manejo da técnica da entrevista de explicitação. Ao contrário, tais relatos ampliaram o escopo da investigação e revelaram o entrelaçamento do problema do funcionamento da atenção na oficina de cerâmica com aqueles da experiência com a cegueira e dos processos de produção de subjetividade na oficina. Nesse sentido, a pesquisa teve dois desdobramentos. O primeiro foi o desenvolvimento de uma discussão sobre o funcionamento da atenção na pesquisa com o método cartográfico (Kastrup, 2007a), e o segundo foi a análise da atenção, levando em conta um escopo de dados mais amplo que aqueles relativos ao funcionamento cognitivo stritu-sensu. Nessa orientação, o exame do funcionamento da atenção incluiu a atenção voltada para o domínio tátil na lida com o barro, a atenção às pessoas que freqüentavam o espaço da oficina e, enfim, a atenção a si mesmo durante o processo de criação. Nesse sentido, ocorreu a modulação do problema, que impôs a investigação não apenas do funcionamento da atenção durante o processo de criação na oficina de cerâmica mas também da forma como a atividade de criação aciona processos de produção de subjetividade através da mobilização de uma certa atenção a si mesmo, como será analisado no presente texto.

 

Modulações da subjetividade no trabalho com a cerâmica

A oficina de cerâmica do IBC é conduzida por um grupo de professoras, que são ceramistas e videntes2. Clara Fonseca, que coordena o trabalho, explica a proposta: “Eu sempre me interessei pelo que chamo de efeitos colaterais da argila. (...) Sempre notei que as características da argila moldam a pessoa também, ao mesmo tempo. A argila dá flexibilidade, pois é um material plástico. Você vai trabalhar perda, porque o processo termina com a mão, mas continua no forno (...) Trabalha também expectativa. Você tem que moldar, mas não vai sair exatamente do jeito que você queria. Se você adota uma atitude rígida, buscando o controle do material, se você briga com o material, o sentimento é de frustração. ‘Não era isto! Não era isto!’. Na oficina, ao contrário, o que se cultiva é ‘a leveza, o que a gente tem de melhor’: a capacidade de criação. O trabalho é pautado numa orientação técnica e estética. A cerâmica exige o conhecimento de algumas regras básicas e, sobretudo, uma compreensão do material. Busca-se também o desenvolvimento de linhas de trabalho, de acordo com o interesse demonstrado pelo participante. Ninguém chegava aqui como vítima. Queriam aprender.”

O trabalho na oficina de cerâmica consistia em oferecer um território, propor atividades e acompanhar processos. Algumas vezes, as professoras apresentavam uma proposta única para todo o grupo – fazer uma máscara, um busto; outras vezes, a atividade era livre. De todo modo, as professoras acompanhavam com interesse o processo de cada um, ajudando aqui e ali, sem apresentar, contudo, uma postura visuocêntrica, ou seja, normalizadora. Sempre conversavam sobre o que estavam fazendo e onde queriam chegar. Um dos aspectos mais interessantes da cerâmica é que quem trabalha com ela enfrenta, cotidianamente, pequenos problemas, obstáculos e incidentes, e precisa aprender a lidar com eles. A cerâmica é, nessa medida, como afirma a professora, “um grande caminho para a busca de soluções. ‘Como tento resolver? Funciona assim? Funciona assado?’ Então, você vai buscando soluções o tempo todo (...) ‘Como é que se pode fazer? Por onde vai?’”

A certa altura, um dos participantes resolveu fazer uma colher. Ora, a colher tem o problema do cabo, que é uma haste fina. A professora explica: “De acordo com as leis da Física, não é, exatamente, uma coisa muito simples, porque o cabo sustenta a colher. Mas ele foi lá e desenvolveu uma colher achatada, assim, na madeira, e ele trabalhava naquela colher, e ficavam umas peças interessantíssimas. (...) Então, ele resolveu o problema da colher. Ele lixava, ele trouxe lixa, trouxe ferramentas, foi resolvendo as coisas, trazendo de fora. Ele trouxe pedaço de madeira para apoiar a colher, trouxe umas lixas grossas para dar o polimento final. Em vez de ficar trabalhando na colher, raspando, ele ia tirando camadas mais fininhas com a lixa. Tentou resolver todos os problemas da construção da colher. As colheres que ele perdeu, não estava nem aí. Ele virou uma máquina de fazer colher. E, quando perguntei: ‘Posso fazer uma penca de colheres para mandar para a exposição de Brasília?’, ele deu a maior força, ficava orgulhosíssimo daquilo. Sempre quis presentear as pessoas. Então, eu realmente acredito no trabalho dele. Ele sabe que produz. (...) Dentro dessa consciência do fazer, que é muito forte, da coisa pública, ele é bem desapegado do produto final.” A aposta é que, aos poucos, o processo que se vive na oficina vá se expandindo para a vida, através de um lento e laborioso processo, que vá ganhando, aos poucos, consistência. De todo modo, a oficina oferece um território propício à criação de peças e à criação de si mesmo. Para Clara Fonseca, “essa é a reinvenção, sempre através do trabalho paralelo, dentro e fora.”

Ao cartografar o trabalho regular da oficina, foi possível notar que a cerâmica, e não a cegueira, constituía o principal fluxo circulante naquele território e permeava a maior parte das falas, ações e relações. A professora nota que “a cerâmica vai passando por esse coletivo, por essa conversa que rola entre eles, porque não é só uma conversa de botequim. É uma conversa que está ocorrendo no espaço da cerâmica, e os problemas que estão ocorrendo ali estão ocorrendo também no espaço da vida, é tudo paralelo. Então, vai se resolvendo aqui, vai se escutando uma opinião ali, vai se aplicando o que viu funcionar, também, às vezes.”. Nesse sentido, o próprio trabalho em grupo funciona como apoio e sustentação do trabalho de cada um.

O trabalho na oficina possibilita aos participantes um aprendizado e uma certa compreensão do processo de criação a partir das características da própria cerâmica. A primeira é o contato com uma matéria fluida e maleável. O trabalho da argila foi abordado por Simondon (1989) em sua discussão sobre o processo de individuação física, biológica, psíquica e social. Simondon recusa o chamado modelo hilemórfico, estabelecido por Aristóteles, que considera que a gênese dos seres individuados resulta da relação entre uma matéria e uma forma. Segundo esse modelo, a matéria informe se submeteria a uma forma pré-existente e assumiria seus contornos. Tomando o tijolo como caso paradigmático, Simondon argumenta que o processo de individuação é uma operação dinâmica. Por certo, a argila é uma matéria plástica, que não tem uma forma definida, que contém em si, portanto, todas as formas, de maneira dinâmica e potencial. Mas, para Simondon, exatamente nessa medida, é portadora de forças, não se submetendo completamente ao molde. Fazer um tijolo é lidar com uma matéria em movimento, que tem uma natureza energética e guarda uma tensão interna.

Mesmo que existam o molde e a massa, eles próprios resultam de operações prévias. É preciso bater e compactar a argila para poder trabalhar com ela; por sua vez, o molde também deve ser fabricado. Há então processos de mediação que devem ser considerados. Segundo Simondon, a matéria primeira (a argila) é matéria em devir, e o molde contém os gestos de sua fabricação. Os gestos contidos no molde encontram o devir da matéria e o modulam. Simondon enfatiza que a argila não possui uma plasticidade indefinida, no sentido em que ela não é uma matéria abstrata. Portanto, a noção de moldagem não é adequada para nomear a operação técnica em questão, pois esta é preparada e condicionada por duas outras cadeias de operações prévias, que vêm convergir numa operação comum. A energia da argila diz respeito à tendência de seus movimentos, que são limitados pelas paredes do molde. O molde impõe limites ao movimento e à expansão da argila, sem, entretanto, lhe impor uma forma.

Em lugar da noção de modelação, Simondon propõe a de modulação. Afirma que modular é modelar de forma contínua e perpetuamente variável, enquanto moldar é modular de maneira definitiva, constante e finita. Nesse sentido, a modelagem pressupõe a modulação, não sendo dela senão um caso particular. Em resumo, o esquema hilemórfico não dá conta do trabalho com a argila. Este não consiste num sujeito que impõe uma forma a uma matéria qualquer, dócil e amorfa. Ao contrário de uma relação entre um sujeito ativo e uma matéria passiva, nós nos deparamos com um terreno mais complexo, onde os lugares e os papéis se confundem. Não há como distinguir, em cada momento, o que funciona como molde e o que funciona como matéria movente.

Na fala de um dos participantes: “Não posso dizer que a argila não chame para nós dominá-la. Mas tem horas que ela quer dominar nós. (...) Tem horas que você quer fazer as coisas de um jeito e... não consegue. Consegue de outra maneira. (...) Você quer fazer bem redondinho, mas não fica... Fica um redondo quadrado. Ou... fica triangular. (...) Exige que seja uma luta, quer dizer, você... e a argila. (...) A argila, ela tem um poder, sim. (...) Não é uma coisa que você domine ela, ela tenta dominar você de uma maneira. E isso, qualquer pessoa que esteja fazendo um trabalho, se prestar atenção, pode prestar atenção que a argila, ela tem uma ligação com você, ela querendo dominar você por um lado. (...) Quase toda hora. Se estiver prestando atenção, claro, ligado. Claro, fazendo por fazer ou fazendo por... pra brincar, é uma coisa. Mas se se ligar direitinho... Se medir o espaço que você tem, e o espaço que a argila tem, parece que ela tem vida. É como eu esteja... pegando, assim... na sua mão, e você pegando na minha, e você apertando a minha mão e eu apertando a sua, pra ver quem tem mais força. A argila tem isso, você tá apertando a massa de um lado, mas ela quer espichar pela outra. É a coisa, como que acontece... (...) Tem que ter muito carinho pra fazer aquela peça direitinho, como você quer. (...) Tem que se entender com ela. Porque se você não se entender, não faz, não” (P7).

A temporalidade lenta é uma outra característica da cerâmica, e acaba por introduzir elementos de acaso no processo em curso. Há uma seqüência de ações e etapas a serem realizadas: bater a massa, colocar para secar, levar ao forno para queimar, engobar e esmaltar a peça. De acordo com a professora: “Você depende do clima, se está frio, se está calor, se as peças vão demorar a secar. É um processo que você não pode apressar, acelerar. A partir do momento em que você está acelerando o processo da cerâmica, você tem uma perda maior. A cerâmica tem uma memória, que você não pode forçar (...) Se você fica com raiva da cerâmica, dá tudo errado. Ela racha, cai e quebra. Até derruba você, é uma coisa incrível”. A cerâmica não combina com a urgência de resultados e é refratária a atitudes drásticas. Segundo os ceramistas, ela requer calma, paciência e comunhão com a matéria.

Observamos que os cegos geralmente apresentavam um ritmo de trabalho sem pressa nem apego exagerado ao produto final. Se esbarram na peça e ela se quebra, reclamam, mas logo começam uma outra. O maior interesse é no fazer, ou seja, a ênfase recai sobre o processo. Abertos e disponíveis, o que chega é, em geral, bem recebido. Demonstram uma ativa receptividade, que caracteriza uma atitude de atencão, como se estivessem à espreita (Deleuze, 2006). A atenção à espreita é receptiva, sem ser passiva. Falamos, então, de um tônus de atenção esvaziado de tensão. No mais, é possível notar uma atmosfera de leveza e de alegria suave, que contrasta com a frustração na conquista de certos resultados, experimentada por muitos videntes no trabalho com a argila.

O tempo de trabalho para a elaboração das peças é bastante variado. Algumas duram um semestre inteiro para serem concluídas, outras, um mês, e outras começam e terminam em uma ou duas aulas. A lentidão não impede processos de criação bastante intensos, nos quais, por vezes, se experimenta um sentimento de urgência de realização. A experiência do tempo é descrita por uma das participantes: “Eu não percebo o tempo passar. Não tem tempo pra mim. Não tenho a mínima noção do tempo. Eu posso estar há quatro horas com uma peça e achar que estou há dez minutos. Quando eu estou construindo alguma peça, trabalhando com a argila, o tempo pra mim não existe. Então, eu não tenho absolutamente a noção do tempo. Se eu dissesse que tenho, é mentira. Trabalhando ali, absorvida, entendeu? Eu posso ficar duas, três, quatro, cinco horas e achar que eu estou há meia hora, uma hora. Às vezes, quando eu estou há muitas horas trabalhando, sinto dores nas costas, mas é pela posição de estar curvada. Se eu estou sentada, eu me curvo e me aproximo. Às vezes, a menos de um palmo da peça, meu rosto fica em cima da peça, e eu tô ali trabalhando e eu tô assim, como se tivesse vendo. E, às vezes, quem tá vendo é só a minha mão.” (P4).

O trabalho com a argila tem um notável contingente de imprevisibilidade. Talvez por isso os ceramistas digam que ela tenha vida própria. Por mais que se tenha dela conhecimento técnico, não se presta a um domínio completo. Ela pende, racha, encolhe, cresce, quebra, de modo mais ou menos imprevisível. O desafio é aprender a lidar com tal imprevisibilidade, não apenas no sentido de tolerá-la, mas também de conseguir tirar partido dela, incluindo-a no processo de invenção. Descrevendo a criação de uma peça – um casal dançando entrelaçado – uma participante relatou que, num momento, parte da argila caiu, fazendo com que a mulher se sentasse no colo do homem. “Eu achei muito interessante. Foi aí que eu aprendi a deixar a argila agir sozinha. Porque, na verdade, eles iam estar em pé. O pé dela ligeiramente entre os pés dele, por causa do movimento da dança. Mas não ia haver essa cruzada de coxa, você entendeu? (...) Aí, o quê que aconteceu? A argila arriou, e ela sentou aqui, na coxa dele. Você pode olhar. (...) Quando eu percebi isso, eu ri. Eu ri e gostei. Foi uma sensação boa descobrir que ela não era uma coisa assim tão estática. Que a argila, ela, ela meio que... É, não é que ela chegue a dominar, entendeu? Mas ela dá uma resposta, sabe como é que é? Aí eu deixei, de lá pra cá, eu só trabalho assim. Se eu faço uma escultura de cabeça baixa e a cabeça pende um pouco para um lado e para o outro, eu deixo. Quer dizer, eu quero ela de cabeça baixa, mas, se ela pende para o lado, não tem problema. Se eu faço uma escultura olhando, cabeça reta, e a cabeça dá uma inclinação, eu deixo. Assim o braço, assim a, é, tudo que eu faço” (P4). Aprender a lidar com essa propriedade da argila é certamente importante na vida de pessoas acometidas de modo inesperado pela perda de visão e que precisam incluir esse dado na reinvenção de suas vidas. Outro elemento desse aprendizado inventivo, que comporta boa dose de acolhimento do inesperado, é aceitar o resultado, que pode ser interessante, apesar de não ser exatamente aquele pretendido.

 

A atenção na experiência estética

Para entender como se dá o processo de modulação da subjetividade através do trabalho com a argila, tomamos a prática da cerâmica como uma experiência estética, no sentido que confere John Dewey. Para Dewey (1934/2005), a experiência estética não se restringe ao campo da arte, mas caracteriza-se pelo fato de ser “uma experiência” no sentido de que possui contornos que lhe conferem uma qualidade única. Tal unidade não é intelectual, nem emocional, nem prática, pois tais termos designam distinções que podem ser introduzidas a posteriori, mas, a rigor, não pertencem a ela. James (1890/1945) já havia apontado a complexidade das experiências concretas, sempre compostas de sensações, lembranças, pensamentos, sentimentos, orientações da vontade, “tudo em extrema variedade de combinações e perturbações.”

Segundo Dewey, a palavra “artístico” se refere primordialmente ao ato de produção, e a palavra “estético”, ao ato de percepção e apreciação. Embora o vocabulário separe a dimensão ativa e a receptiva, a experiência com a arte revela a profunda conexão entre elas. O fazer não se separa do sofrer e do gosto. Eles não apenas se alternam, mas existem efetivamente em mútua relação. O artista, enquanto trabalha, incorpora a atitude de quem percebe, como o pintor que precisa padecer conscientemente o efeito de cada toque do pincel ou não será capaz de discernir aquilo que está fazendo e para onde encaminha seu trabalho (Dewey, 1934/2005). Por outro lado, a experiência perceptiva é, ela própria, uma experiência criadora, e completa o trabalho de criação. Nesse sentido, as práticas artísticas, como as experiências estéticas, acionam processos de cognição inventiva e de produção de subjetividades, engendrando domínios cognitivos e novos territórios existenciais.

Há uma dimensão receptiva da prática artística, através da qual o agir retroage sobre o agente, transformando-o. A experiência com a argila corresponde não apenas a um movimento cognitivo voltado para o exterior, para o trato com a massa, mas também a um movimento voltado para o interior. É pelo seu lado de dentro que a experiência vai cavando e modulando a subjetividade. Na experiência estética que tem lugar na oficina de cerâmica, a produção dos objetos é indissociável da produção da subjetividade de seus participantes.

No domínio dos estudos da cognição, a idéia de uma prática que co-engendra o sujeito e o objeto tem sido ressaltada por diversos autores que trabalham com uma perspectiva construtivista, cujas raízes se encontram em Piaget (1978). No contexto mais contemporâneo, Francisco Varela desenvolveu a noção de co-engendramento na abordagem da enação. Segundo Varela (1995), entender a cognição como enação significa a interligação estrita entre dois pontos: 1) a percepção é formada por ações perceptivamente guiadas e 2) o próprio sistema cognitivo emerge de esquemas sensório-motores, que capacitam a ação para que ela seja perceptivamente guiada. Para Varela, o domínio sensorial e o domínio motor se produzem e se calibram mutuamente.

No que concerne à atenção e sob o ponto de vista da pragmática fenomenológica, Depraz, Varela, & Vermersch (2002, 2003, 2006) destacam que, quando há suspensão da atitude natural, que, em geral, perpassa nossa cognição cotidiana, a atenção, habitualmente voltada para o mundo exterior, se redireciona para o interior. Além de apontar a mudança de direção, os autores sublinham que há uma mudança na qualidade da atenção, que abandona uma atitude de busca em prol de uma atitude de abertura ao encontro de algo que não se pode antecipar. Do lado de dentro dessa experiência, dita de epoché numa linguagem fenomenológica, a atenção entra em contato com a dimensão de virtualidade do si cognitivo (Varela, Thompson, & Rosch, 2003). O si mesmo é um efeito emergente de uma rede de processos, mas parece que possui uma identidade e uma base substancial. Esse sentimento de que possuímos um si substancial, no entanto, resulta de uma crença, muitas vezes bastante arraigada. Por outro lado, assim como emerge desse fundo processual, o si mesmo mantém-se ligado a ele, o que assegura a continuidade de seus processos de transformação. A crença na identidade do si obtura sua natureza última, mas esta pode ser reativada e a dimensão de virtualidade acessada através de certas práticas, como é caso das práticas artísticas.

No caso da oficina de cerâmica, os participantes, que têm a atenção concentrada no trabalho com o barro, percebem também, numa relação de atenção a si mesmos, sua própria virtualidade, ou seja, sua capacidade de criação e de constituição de novos objetos para o mundo. A experiência de aprendizagem inventiva de peças de cerâmica, no sentido em que essa é, em última instância, uma experiência de criação de mundo, transcende uma aprendizagem de adaptação a um mundo pré-existente. A aprendizagem inventiva é, ao mesmo tempo, a aprendizagem da cerâmica e a experiência da criação continuada, tanto do mundo quanto de si mesmo, com todos os elementos de surpresa e imprevisibilidade que ela envolve.

A idéia de que é preciso estabelecer com a argila uma relação de comunhão aproxima, curiosamente, a prática da cerâmica da prática religiosa, e, por fim, indica um peculiar funcionamento da atenção. Weil (1979) a denomina de atenção intuitiva, e considera que ela seria a atenção em seu grau mais alto. Trata-se de uma atenção extrema, absoluta e sem mistura, e “que constitui no homem a faculdade criadora” (Weil, 1979, p. 386). Ela funciona tanto na cerâmica como na reza, pois a diferença mais importante não é então entre trabalho manual e trabalho intelectual, mas sim, entre trabalho com atenção e trabalho sem atenção. A atenção intuitiva não procura algo definido, não busca estímulos ou informação, mas caracteriza-se pelo consentimento pleno. Com ela, tudo que chamamos de “eu” desaparece. Segundo Weil, ela constitui ainda uma espécie de ação não agente, própria da alma. Num dos fatos observados na oficina, podemos identificar esse tipo de atenção. Uma mulher pediu que pegassem os óculos escuros na sua bolsa. Quando lhe perguntaram por que queria os óculos, afirmou que, embora totalmente cega, gostava de trabalhar de olhos fechados, e, com os óculos, ficava melhor. E continuou: “É engraçado, quando eu fecho os olhos, eu me concentro melhor” (P4). Outro participante, que estava na mesma mesa e ouvia a conversa, acrescentou: “Fechar o olho é importante para concentrar a atenção em algumas atividades, por exemplo, fazer argila, por exemplo, rezar, por exemplo, beijar” (P8). Outra mulher confirmou: “É assim mesmo, não sei por quê” (P5). Todos três eram 100% cegos. A comunhão com a argila significa o “desmanchamento” da relação sujeito-objeto, que caracteriza a atenção seletiva.

Na lida com o barro, o movimento das mãos e dos dedos aparece como um movimento exploratório, que envolve a ação e a percepção. A mão que se move é também a mão sensível, investida de atenção. Perceber com as mãos a textura, a dureza, a temperatura, o peso, o volume e a definição da forma nem sempre é uma tarefa realizada com facilidade por alguém que enxerga. Os cegos recentes também precisam aprender a utilizar as mãos como um órgão sensorial, que pode trazer dados sutis e delicados. O tato, enquanto sentido proximal, de contato, evidencia de modo especial a conexão sensório-motora que caracteriza também os demais sentidos. Através do tato, a indissociabilidade entre as faces ativa e receptiva da experiência estética, conforme apontado por Dewey (1934/2005), adquire especial evidência. Por outro lado, o tato é uma percepção em pedaços, por fragmentos, e exige um investimento bastante alto da atenção. Ele sobrecarrega a atenção bem como a memória de trabalho (Hatwell, 2003; Revesz, 1950).

A oficina é considerada um espaço propício ao trabalho tranqüilo e concentrado. Afirma um participante: “Você se concentra na mente e no tocar. Por exemplo, eu estou fazendo essa peça aqui. Então eu tenho que lembrar, a todo instante, que ela está na minha frente, em tal direção, porque, se eu esquecer, eu vou bater com a mão, vai cair, vai quebrar. A memória é fundamental, porque em nós, que não enxergamos, a nossa atenção é dobrada. Eu calculo. Eu faço a seguinte ilustração: é como uma máquina de escrever, porque, na máquina de escrever, você não vê as letras. Você tem que pensar ou lembrar onde é que estão as letras e tocar o dedo. (...) Na cerâmica, se você não tiver atenção, o que é que vai acontecer? Você vai derrubar aquela peça, vai quebrar, vai fazer uma argola mais grossa que a outra, vai fazer menor ou maior. Então você tem que estar com as duas coisas ligadas: o teu pensamento não pode se distrair com outra coisa e teus dedos. É a palavra tato que é essencial para a gente” (P8).

No espaço compartilhado com o grupo, a atenção se concentra, ao mesmo tempo em que se distribui. A atenção às pessoas parece funcionar como uma atenção de segundo plano. A canção entoada por um participante, as conversas paralelas ou os barulhos ocasionais não chegam a dispersar a atenção e a atrapalhar o trabalho. “Quando eu estou ali concentrado na minha peça, aí podem conversar o que quiser do meu lado. Eu não consigo me desconcentrar do que eu estou fazendo. É importante, sim, você estar ouvindo tudo, não importa. Mas você não se desliga. (...) Naquele momento ali, naquele barulho, digamos assim, se você está sem fazer nada, você está até ouvindo todo mundo, você até se liga na conversa das pessoas. Mas se você está concentrado fazendo um trabalho, eu não consigo me desligar para escutar conversa de Joaquim, de Pedro, Maria e João. Deixa conversar! Eu estou fazendo meu barro aqui, vou me concentrar no barro”(P8). Outra participante confirma: “Eu tenho uma facilidade muito grande de me isolar. Se eu tiver fazendo um trabalho aqui e eu realmente estiver interessada, pode acontecer o que for à minha volta que não me perturba. (...) Eu comecei a trabalhar, fui fazendo o pássaro, eu fiquei caladinha. Peguei o barro e fui fazendo. Aí depois eu falo, e tal, a gente começa a brincar, mas eu, na hora que eu estou fazendo, eu me isolo mesmo. Agora, isso não quer dizer que eu não escute o meu exterior (...) Eu estou aqui, eu estou fazendo uma coisa, concentrada, mas, se tiver alguém conversando, alguma coisa a gente escuta. Não só conversa, mas alguma coisa que está em volta, a gente percebe” (P5).

A presença do grupo não constitui um fator de dispersão. Há dispersão quando ocorrem repetidas mudanças de foco de atenção. No caso em questão, a atenção às pessoas não parece ganhar foco, é uma atenção de fundo, que participa do cenário sem, contudo, exigir o ato de prestar atenção. O que caracteriza a focalização é a seleção do estímulo e a intenção de chegar ao reconhecimento. No caso da cerâmica, o foco se encontra na manipulação da massa, nas formas emergentes e na idéia que se encontra na cabeça. Mas, mesmo aí, o gesto de focalização não esgota o funcionamento da atenção. Esta flutua na massa, acompanhando seu movimento, rastreando e seguindo as sensações e as formas que ela oferece. Uma pessoa alisa o barro, apalpa um pedaço, aperta aqui, constrói algo, experimenta de novo, confere o resultado, compara com o que pretende fazer. No vaivém entre a percepção e a ação, a atenção vagueia, e grande parte do processo de criação parece ocorrer fora de foco. A massa é um campo movente, habitado por forças, sem uma forma definida e reconhecível. As forças são alvo de atenção concentrada, mas sem focalização. O trabalho na oficina parece muitas vezes suave e sem esforço, realizado distraidamente. A atenção vagueia, mas eis que algo ocorre no manuseio do barro – e as operações de focalização e reconhecimento atento se fazem presentes novamente.

Um participante comenta: “A cerâmica faz a gente esquecer os problemas, deixa a gente mais calmo, mais tranqüilo. Isso é verdade. Eu não sei porque, mas é assim. A gente, quando começa a trabalhar com a argila, com a massa, a gente se esquece de tudo, e só fica ligado no trabalho que a gente tá fazendo, mesmo. Só na massa, mesmo. (...) A atenção fica voltada pra isso, totalmente voltada pra isso. Eu esqueço de tudo, de casa, se tem conta pra pagar, a gente não lembra de nada disso, não. Esquece mesmo, desliga total. É engraçado!” (P6) . Na medida em que provoca um certo esvaziamento de si, esse tipo de trabalho pode levar para um terreno de virtualidades, além da história e do si mesmo constituído.

 

Perda, criação e reengajamento

O processo de criação artística não possui regras nem segue um modelo padrão, por isso, ele se revela um limite intransponível para as abordagens cognitivistas, pautadas na busca de leis e princípios invariantes da cognição (Kastrup, 2007b). Nas entrevistas realizadas, tomamos como experiência de referência a elaboração de uma determinada peça, e perguntamos se eles possuíam uma idéia prévia do que iam fazer. A grande maioria respondeu que não, ou “às vezes”. Foram diversos os relatos da idéia que surgia na ponta dos dedos, na manipulação mais ou menos aleatória do barro. “Trabalhando com a argila, a idéia surgiu de uma hora para a outra”, “a idéia veio da sobra da argila”, “não estava planejado”, “foi aparecendo aos poucos, quando fui mexendo”, “o barro formou uns pés”. Alguns sublinharam o sentimento de passividade ao ter uma idéia: “veio toda de uma vez”, “veio de madrugada”, “a idéia inundou o mundo todo”. Outros relatos destacaram que ela gerou insônia, ansiedade e um sentimento de urgência. “Não conseguia dormir, ficava pensando em como ia desenvolver”, “passei a noite toda sonhando com essa coisa”. Houve também descrições de mudanças na idéia, no curso do processo de criação. “Tomar outra direção, normalmente acontece isso. Aí você não pode, também... lutar contra, porque... Eu, pelo menos, entendi esse assunto. Se luta muito contra, ele (o barro) também, ele começa a ficar nervoso, começa a ficar não sei o quê. Eu estava fazendo um cinzeiro. Ah, mas não deu pra fazer um cinzeiro? Não. Então vamos fazer um... pratinho. Aí, desmancha tudo, né? E faz um pratinho. Porque... Não lute pra fazer aquele cinzeiro não, porque não vai sair cinzeiro e nem nada, não” (P7).

Os participantes deram reiterados indícios do quanto muitas peças que eles faziam estavam associadas a sua história de vida enquanto videntes. Os peixes do homem que gostava de pescar, os pássaros da mulher apaixonada por música, a casa de farinha do imigrante nordestino ou uma linha de peças utilitárias para pessoas de estilo mais pragmático. Ficou patente que a invenção não é jamais, como já foi sublinhado (Kastrup, 2007b), uma invenção ex-nihilo, a partir do nada. Para quem enfrenta um processo de perda de visão, a presença da história nas peças de cerâmica surge como um resgate de referências que, em alguns momentos, pareciam haver sido perdidas junto com a visão.

Ser acometido pela cegueira, de forma súbita ou insidiosa, é, na maioria das vezes, uma experiência radical que pode produzir, em certos casos, efeitos devastadores, que podem se prolongar por meses e até anos, como relata este participante: “Quando me aconteceu esse problema da visão, foi de uma hora pra outra. Não foi assim de ter um pouquinho e levar um susto, amanhã, não. Foi na hora. Aí eu fiquei mais traumatizado com isso. (...) Aí eu não vi mais. (...) Então eu fiquei muito tempo lá, fiquei uns quatro anos jogado no sofá. O sofá chegou a ficar com um buraco onde eu estava sentado” (P6). A experiência da perda da visão pode assumir a extensão de uma experiência de perda generalizada, ou seja, o sentimento de que tudo foi perdido: não só a alegria, o trabalho, mas também a dignidade e a autonomia, enfim, o lugar no mundo. Mais do que a perda da identidade, experimenta-se, muitas vezes, a perda do mundo a seu redor, pois a interrupção de rotinas leva consigo uma rede de relações e, enfim, grande parte das conexões com o mundo. As pessoas sentemse solitárias e atingem um grau de extrema vulnerabilidade. Com as referências anuladas, tudo parece liquidado. Em processo de perda progressiva da visão, um participante descreveu esta sensação: “Quando a gente perde a visão, a gente fica muito pra baixo, sabe? (...) É uma sensação que a gente não vai poder fazer mais nada (...) Que a gente não vai ser mais ninguém... Ainda mais eu, que era uma pessoa que ... gostava de viajar, adorava ver esse Rio de Janeiro, adorava ver o Corcovado, adorava ver...” (P2). Trata-se de uma condição de desengajamento, tal como Simone Weil (1979) definiu para falar, num outro contexto, dos operários sujeitos ao regime industrial. Para Weil, o risco do trabalho automático é o desengajamento, que consiste na perda de referências e de ancoragem no mundo, na infelicidade no trabalho, e, enfim, na de morte da alma. No caso de pessoas acometidas pela perda da visão, resgatar elementos de sua história e retrabalhá-los, moldando novos objetos, é ocasião para o restabelecimento do engajamento no território de vida. Como um novo território, a oficina assume, em certos casos, função de referência, através da qual a potência inventiva pode ser diretamente experimentada, o que modula a subjetividade.

O trabalho na oficina dava a experiência concreta de que a perda de visão não significava necessariamente perder a alegria, a dignidade e o lugar no mundo. A prática com a cerâmica, nova para todos os participantes, possibilitava o encontro com um mundo constituído de matéria maleável, capaz de dar nascimento a objetos e subjetividades através de uma relação de comunhão. Ela propiciava também o encontro com pessoas que se encontram em diferentes momentos e condições em sua convivência com a cegueira, que configurava, com as professoras, um território acolhedor e amoroso de aprendizagem inventiva e de criação coletiva, onde ocorre um cuidado com o acompanhamento do processo de cada um. Por último, e isso se revelava o mais importante, propiciava o encontro com a virtualidade de si, produzindo a experiência concreta de invenção de si mesmo e do mundo. Criavam-se condições para momentos de consciência do processo que constitui e habita em cada subjetividade. Na atenção a si mesmo, numa espécie de autopercepção, o sujeito não se toma como objeto, não se duplica em observador e observado, mas experimenta uma atenção direta, que o conceito de awareness serve para nomear. Depraz et al. (2003) falam em awareness e utilizam a expressão becoming aware para nomear essa experiência de encontro com a dimensão da virtualidade de si mesmo. A expressão não possui uma tradução exata para o português, e aproximase de “dar-se conta” ou de um ato de ciência, tal como ocorre na expressão “tomar ciência” de alguma coisa. O termo awareness guarda um sentido dinâmico, referindo-se a algo que atinge a atenção de modo direto e súbito, e possui, além do sentido de registro, o de sua manutenção (Kastrup, 2006). Através do trabalho com a cerâmica, pessoas que vivem a experiência da perda da visão podem encontrar, em si mesmas, ou melhor, na virtualidade de si mesmas, recursos para a reinvenção de sua história.

São diversos os efeitos do trabalho na cerâmica relatados pelos participantes da oficina. Alguns participantes se referem à possibilidade de vender as peças produzidas; outros mencionam o desenvolvimento do tato, tão necessário para a leitura em Braille feita pelos que ficaram cegos recentemente, e outros ressaltam os efeitos psicológicos e mesmo terapêuticos: “tem me deixado mais tranqüilo”, “deixa espaço pra nós”, “estou muito mais calma”, “me ensinou a ser mais paciente”. Os efeitos são descritos como terapêuticos: “Eu entrei na cerâmica este ano. Pra mim, foi uma terapia. Eu venho às vezes meio cabisbaixo, porque a gente deficiente, a gente cobra os outros, por causa da nossa deficiência, e as pessoas cobram a gente pra gente ser igual a eles. Então cobra um de lá, o outro de cá. Então, ficam batendo dois pólos negativos. Não pode dar certo. Aí a gente chega lá, começa a amassar o barro, daqui a pouco começa a surgir um amassado de barro aí, daqui a pouco tem uma peça surgindo. A tensão acabou. O aborrecimento já foi passado” (P3).

participante afirma que “eleva um pouco a nossa auto-estima”. O que parece importante ressaltar é que nossa observação na oficina de cerâmica tornou clara a importância de um processo de autocriação para a constituição da mudança da relação consigo mesmo, que, por certo, tem ocorrido com os participantes da oficina de cerâmica. Os trabalhos sobre auto-estima, tão em voga nos dias atuais, destacam a importância do outro, ou seja, das outras pessoas e daquilo que elas expressam e verbalizam, na constituição da chamada dimensão avaliativa do autoconceito. Nas explicações correntes, é a relação com os outros que molda a relação consigo mesmo. Numa outra direção, argumentamos que a oficina de cerâmica não reforça a camada externa do self e suas marcas de identificação, mas potencializa o si mesmo virtual e concorre, então, para o desprendimento da crosta de identificação que muitas vezes recobre a subjetividade de deficientes visuais (Kastrup, 2006).

Os efeitos se fazem sentir também sobre as professoras: “Aprendo sempre que estou com eles. Desenvolvo a atenção, a forma de falar sem o gesto, o amor à vida, apesar das dificuldades, o humor, e encontro sempre a paz” (Fonseca, 2005, p.25). Além das peças de cerâmica, a produção mais notável é a dos próprios participantes. A oficina de cerâmica desempenha um importante papel na renovação do território existencial dessas pessoas. A aprendizagem inventiva, num de seus sentidos mais importantes, é invenção de mundo, através da ampliação de redes e de conexões. Nesse processo, salvo em casos excepcionais, as pessoas não deixarão de ser cegas nem voltarão a ser videntes como eram antes. O desafio é reativar os links de pertencimento. Nessa direção, a oficina revelou-se um dispositivo potente. Acessar e ter ciência da virtualidade, além da identidade de cego ou deficiente visual é produzir o que, paradoxalmente, já estava lá. Acometidos de forma inesperada pela cegueira, é importante que elas experimentem tais sensações e acionem outras forças. Na cerâmica, elas encontram, na ponta dos dedos, os recursos para sua própria reinvenção. Como afirma uma professora: “A cerâmica mexe muito com as pessoas”. E continua: “Hoje em dia, acho que deveria haver nas cidades oficina de cerâmica como tem igreja, como tem ambulatório, como tem tudo isso. Juro que é uma coisa que eu não tinha noção. Mas eu estou vendo, a cada dia, o quão longe isso vai”.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua General Cristóvão Barcelos 280, ap. 603 – Laranjeiras
Cep: 22245-110, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail: vkastrup@terra.com.br

Recebido 9/04/07
Reformulado 07/09/07
Aprovado 20/09/07

 

 

* Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
1 O Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para as questões da deficiência visual, e acha-se ligado ao Ministério da Educação. Possui uma escola, capacita profissionais da área, assessora escolas e instituições, oferece consultas gratuitas à população, possui oficinas de reabilitação e produz material especializado, impressos em braille e publicações científicas. A oficina de cerâmica, onde foi realizada a pesquisa, é ligada à Divisão de Reabilitação, e é coordenada pela ceramista Clara Fonseca.

Agradeço ao Instituto Benjamin Constant e, sobretudo, aos participantes da oficina e às ceramistas Clara Fonseca e Dóris Kelson, que acolheram gentilmente a equipe da pesquisa. Agradeço também aos bolsistas de iniciação científica Paula Rego Monteiro Marques Vieira, Luciana Manhães, Filipe H. Carijó e Maria Clara de Almeida, que participaram de todas as etapas da pesquisa que deu origem a este texto. Agradeço também ao CNPq pelo apoio.