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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.28 n.4 Brasília dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Espiritualidade e religião no trabalho: possíveis implicações para o contexto organizacional

 

Spirituality and religion at work: Possible implications to the organizational context

 

Espiritualidad y religión en el trabajo: Posibles implicaciones para el contexto organizacional

 

 

Rogério Rodrigues da Silva*

Universidade de Lisboa

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo discutir a vivência da religião e da espiritualidade no contexto organizacional. O texto apresenta uma diferenciação conceitual entre religião e espiritualidade, a partir da qual será discutida a aplicação desses conceitos em organizações religiosas e não religiosas. Além disso, serão evidenciados os principais ganhos dos trabalhadores e das organizações com a vivência desses conceitos no trabalho. De maneira geral, os exemplos discutidos revelam que tanto a religião quanto a espiritualidade, no contexto do trabalho, remetem a uma perspectiva mais humanizada das organizações e à promoção de um ambiente de trabalho baseado em relacionamentos mais próximos, no aprofundamento do significado do trabalho, no sentimento de participação na organização e, principalmente, na liberdade de se vivenciar, na organização, os valores individuais.

Palavras-chave: Trabalho, Espiritualidade, Religião, Organizações.


ABSTRACT

This article intends to discuss religious and spiritual experiences in the organizational context. The text presents a conceptual differentiation between religion and spirituality and discusses the application of these concepts to religious and non religious organizations. Moreover, the text also points out the main gains to workers and organizations with the experience of these concepts at work. Generally speaking, the argued examples point out that religion as well as spirituality refers to a more human perspective of the organizations and to the promotion of a work atmosphere based on closer relationships, deeper work signification, participation in the organization sense and, mainly, liberty to experience individual values in the organization.

Keywords: Work, Spirituality, Religion, Organizations.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo discutir la vivencia de la religión y de la espiritualidad en el contexto organizacional. El texto presenta una diferenciación de concepto entre religión y espiritualidad, desde la cual será discutida la aplicación de estos conceptos en organizaciones religiosas y no religiosas. Además, serán evidenciadas las principales ganancias de los trabajadores y de las organizaciones con la vivencia de esos conceptos en el trabajo. De manera general, los ejemplos discutidos revelan que tanto la religión como la espiritualidad, en el contexto del trabajo, remiten a una perspectiva más humanizada de las organizaciones y a la promoción de un ambiente de trabajo basado en relaciones más próximas, en el ahondamiento del significado del trabajo, en el sentimiento de participación en la organización y, principalmente, en la libertad de vivenciarse, en la organización, los valores individuales.

Palavras clave: Trabajo, Espiritualidad, Religión, Organizaciones.


 

 

A busca por unidade, por integração, pelo transcendental, pelo sagrado, é uma das principais marcas da história da cultura humana. As explicações sociológicas no Ocidente para tal fenômeno têm convergido, nos últimos séculos, para a atribuição de sentido do mundo que rodeia o indivíduo (Durkheim, 1996). Vida, morte, trabalho e relações sociais são algumas das questões para as quais se buscam respostas. Para Berger (1985), esse processo de nominação atua em sentido compensatório para processos sociais anômicos, que são centrais na sociologia durkheimiana.

Durante um longo período, no Ocidente, Igreja e Estado se confundiram. No entanto, nos últimos séculos, essas sociedades vêm sendo marcadas pelo movimento de desencantamento do mundo (eliminação da magia) e de secularização (Weber, 1999). Isso envolve quatro questões fundamentais: o declínio da religião como potência, a subtração do status religioso, a tendência à privatização da religião e a substituição crescente das explicações religiosas pela racionalidade científica (Berger, 1985).

Diante do processo de secularização, a religião independe cada vez mais da regulação das instituições que antes eram detentoras do poder de dar sentido à vida da sociedade e do indivíduo. A religião passa a ser, dessa forma, operacionalizada por indivíduos e por várias tradições disseminadas de forma subjetiva, fragmentada e fluida (Portella, 2006). Portanto, não se pode dizer que haja menos religião, mas sim, que há uma realocação do religioso na sociedade atual, pois, mesmo diante da perda da institucionalização religiosa, houve uma revitalização fragmentada, individualizada, instável e particular da religião.

Diversas razões poderiam ser atribuídas para a secularização e a fragmentação religiosa, nas quais se observa a busca por novas concepções e experiências religiosas/espirituais: o fim da Guerra Fria, a instabilidade internacional, o terrorismo, novas doenças e até mesmo o declínio da importância de alguns valores – tradição, conformidade, benevolência e segurança (Ashar & Lane-Mahar, 2004; Pauchant, 2002).

O fato é que, em termos cotidianos, para sobreviver, as pessoas têm abandonado ou secularizado muitos de seus valores, de suas aspirações e de suas motivações, além de individualizar as experiências que tinham um caráter social inicialmente. Esse ambiente crescentemente anômico, com perdas importantes de sentido e de significado, tem acarretado, segundo Pauchant (2002), sérios problemas para as pessoas, como, por exemplo, depressão, aumento da dependência química, workaholism.

De certa forma, o ambiente organizacional vem estabelecer-se como mais uma instituição provedora de sentido, de ordem e de benefícios ao sujeito e ao grupo, característica que era própria dos sistemas religiosos, segundo Portella (2006). Assim sendo, buscar sentido de vida, identidades individual e social por meio do trabalho – como é apontado por Dejours, Abdouchelli e Jayet (1994) – insere-se em um novo paradigma de individualização e de autonomia da experiência religiosa (Portella, 2006).

Nesse cenário, a busca é por um ambiente que não está mais centrado no controle, na hierarquia, na obediência, mas sim, no desenvolvimento pessoal, no autoconhecimento, na utilização da intuição e na valorização da criatividade. Essas práticas organizacionais têm por objetivo principal trazer para gerentes e colaboradores melhor ambiente de trabalho, centrado na busca de melhor qualidade de vida, a qual pode ser definida como um estado de saúde física, cultural, profissional e também espiritual, segundo Limongi-França (2003).

Dessa forma, constitui-se como objetivo geral do artigo discutir a contribuição que a religião e a espiritualidade podem ter para a continuidade da busca constante de identidade e de satisfação do trabalhador no ambiente privilegiado das organizações. Assim, algumas perguntas norteiam o presente artigo: a) É possível alguma aplicação de religião e de espiritualidade no contexto organizacional?; b) Há contribuições mensuráveis da religião e da espiritualidade para os trabalhadores e para as organizações?

Para otimizar a reflexão de tais questões, o artigo foi dividido em quatro partes, nas quais se pretende: 1) esclarecer os conceitos de religião e de espiritualidade; 2) discutir como esses conceitos têm sido concebidos para o contexto organizacional; 3) refletir sobre o impacto da religião no ambiente das organizações a partir de dados primários de um estudo sobre sofrimento e prazer no trabalho de líderes religiosos; 4) fazer uma revisão sobre a aplicação do conceito de espiritualidade, ressaltando-se o exemplo de uma empresa americana de aviação que utiliza tal concepção.

 

Religião e espiritualidade: algumas diferenças conceituais

A diversidade conceitual e multidisciplinar dos termos religião e espiritualidade impede a existência de uma definição que atenda a todos os anseios científicos. As diversas considerações teológicas, sociológicas, filosóficas e até mesmo psicológicas (Freud, por exemplo, também tratou sobre religião em alguns de seus textos) desses termos muitas vezes se confundem. Para King e Crowther (2004), advogam que a definição desses constructos carece de refinamento, e, por isso, são usados muitas vezes como sinônimos. Assim, as definições apresentadas aqui valem apenas para demonstrar a influência da religião e da espiritualidade nas atitudes e nos comportamentos dos indivíduos, o que pode ser de grande valia para os estudos ligados ao ambiente organizacional.

A partir do étimo latino, a palavra religião procede de religio, formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e pelo verbo ligare (ligar, unir, vincular). Segundo Chauí (2001), a religião é um vínculo entre o profano e o sagrado, isto é, entre a Natureza (água, fogo, ar, animais, etc) e as divindades que nela habitam. Para Dürkheim (1996), a religião pode ser definida como um sistema solidário de crenças e práticas relativo a entidades sacras e que une, em uma mesma comunidade moral, todos os que a ela aderem. Segundo Wildes (1995), religião é um conjunto de crenças, leis e ritos que visam a um poder que o homem considera supremo, do qual é dependente e com o qual tem um relacionamento e obtém favores. Trata-se, portanto, de questões sagradas, exercidas no seio de uma instituição, ligadas às estruturas formais, rígidas, dogmáticas e, principalmente, relacionadas às questões do além-morte (religiões de salvação).

Embora esteja ligado a um sistema de dogmas, de crenças, de rituais e de ações, o movimento acelerado de secularização (separação da Igreja e do Estado das distintas esferas sociais) apontado por Berger (1985) trouxe a possibilidade de transformação dos sistemas religiosos, o que torna a religião cada vez mais presente na vida privada dos indivíduos.

Já a espiritualidade se refere a uma questão de natureza pessoal para a compreensão de respostas a questões fundamentais da vida, sobre significado, o qual pode (ou não) levar ou resultar do desenvolvimento de rituais religiosos (Moreira-Almeida, Lotufo Neto, & Koenig, 2006). Para Hill e Pargament (2003), a espiritualidade está ligada a aspectos subjetivos da experiência de busca pelo sagrado, processo através do qual as pessoas procuram descobrir e, em alguns casos, transformar aquilo que há de sagrado em suas vidas. Segundo Unruh, Versnel e Kerr (2002), duas noções importantes merecem ser destacadas na definição de espiritualidade: 1) transcendência: ligada a uma experiência fora do campo existencial do dia a dia; 2) conexidade: ligação com as pessoas, com a natureza e com o cosmos, seja ela de caráter intrapessoal, interpessoal ou transpessoal.

Diante do apresentado, parece haver uma complementaridade e não uma polarização conceitual, já que religião está ligada ao sistema institucionalizado, e a espiritualidade, à experiência de caráter mais individualizado. King e Crowther (2004) seguem nessa mesma direção, afirmando que não poderia ocorrer uma diferenciação entre religião e espiritualidade, já que todas as formas de expressão espiritual em um contexto social e todas as tradições de fé organizadas são interessantes no ordenamento de questões pessoais.

Diante disso, haveria alguma possibilidade de integração entre os conceitos religião e espiritualidade ao mundo organizacional? Quais as especificidades desses conceitos que possibilitam uma intersecção profícua com o meio empresarial (devido ao fato de sua aplicação favorecer a melhoria da atividade e do ambiente de trabalho) e que, concomitantemente, os diferencia de outros conceitos? É isso que será abordado a seguir.

 

Religião e espiritualidade no contexto organizacional

As mudanças constantes do modelo de gestão organizacional, influenciadas pelas transformações dos moldes econômicos e sociais, impõem uma sociedade mais livre e democrática, que impossibilita um controle explícito do trabalhador. Os modelos administrativos têm evoluído para posturas mais participativas, o que abre espaço para um investimento afetivo, emocional e até mesmo espiritual no trabalho. Esse investimento perpassa pela consideração de tratar as pessoas de um modo completo, o que significa entendê-las e responder às suas necessidades materiais e não materiais.

De acordo com Ashforth e Pratt (2003), a prática da espiritualidade no trabalho já é bastante comum em várias empresas. No Banco Mundial, por exemplo, os empregados sentam-se num semicírculo durante uma hora, semanalmente, para discutirem assuntos de caráter espiritual/religioso. Já nas empresas Taco Bell e Pizza Hut, capelães foram contratados para “administrar” as necessidades espirituais dos colaboradores. Na Monsanto, especialistas ensinam técnicas budistas de meditação para empregados e gerentes (Ashar & Lane-Maher, 2004).

Do ponto de vista da organização, a expansão desse movimento de espiritualidade no trabalho insere-se em uma perspectiva organizacional vinculada a uma postura mais humanista diante do mundo. Para Cavanagh (1999), as empresas têm adotado uma axiologia mais transcendental, ligada a valores como paz interior, verdade, respeito e honestidade, que se relaciona a uma busca por significado, por equilíbrio e por humanização e por maior integração da empresa com a sociedade.

Uma outra razão que ampara a ênfase da espiritualidade no trabalho, segundo Berthouzoz (2002), refere-se à crença na reciprocidade de práticas de negócios mais éticas e humanas como uma pré-condição para o estabelecimento de economias de mercado mais efetivas. Para esse autor, a falta de confiabilidade e de confiança entre os parceiros aumenta, em muito, custos e juros pagos por novos contratos. Assim, a valorização da ética e da humanização nos negócios implica maior vantagem em termos de qualidade (possibilidade de melhores parceiros), de adaptabilidade e de baixos custos (inspeções e outras políticas contratuais tornam-se desnecessárias) para a realização de novos negócios.

De acordo com Pauchant (2002), a espiritualidade no contexto do trabalho não está ligada a um sistema religioso, a uma tipologia específica, nem mesmo a uma ritualística organizada ou a um proselitismo dentro das organizações. Ela não envolve rituais, doutrinas ou crenças religiosas institucionalizadas, ainda que carregue valores comuns à maioria das religiões. Esse autor considera a espiritualidade no contexto organizacional uma forma de humanização e uma nova perspectiva de auto-realização no trabalho.

Já para Giacalone e Jurkiewicz (2003), a espiritualidade no trabalho é um conjunto de valores organizacionais que se evidencia na cultura da organização e que promove uma experiência de transcendência do empregado (por meio do progresso do trabalho) e ainda sentimentos de completude e alegria por meio de sua conexão com outros.

A espiritualidade no trabalho refere-se, segundo King (1997), à valorização de um axioma (sentimentos de totalidade, de alegria, de significado e de sentido) que impulsiona a experiência de transcendência do trabalho e, como resultado, faz o trabalhador sentir-se conectado com os colegas, com a empresa, com a sociedade e até mesmo com o transcendente. Trata-se de ter um sentido identificado na atividade laboral e de legitimá-lo por meio do suporte social e do compartilhamento de valores com o coletivo de trabalho, possibilitando, assim, a construção de uma comunidade em que se supera o senso individual e em que se permite um significado e uma satisfação maiores (Ashar & Lane-Maher, 2004; Cavanagh, 1999; Fox, 1994). Por isso, para King e Crowther (2004), os constructos espiritualidade e religião podem ser valiosos para os estudos organizacionais, principalmente no que se refere à busca por satisfação, ao combate ao estresse e ao absenteísmo no trabalho.

Para Mitroff e Denton (1999), a religião mostrar-se-ia inadaptável ao contexto organizacional devido à sua falta de congruência, ao uso de dogmas e, sobretudo, pela falta de relação com os problemas complexos e concretos do mundo atual. Contrário a isso, Berthouzoz (2002) destaca que os sistemas religiosos podem proporcionar uma compreensão mais concreta da existência humana, dos direitos e obrigações, dos conteúdos da vida pessoal e das relações sociais, ou seja, de fatores fundamentais para o significado do próprio trabalho na sociedade atual.

De acordo com Hill e Pargament (2003), a rejeição dos aspectos da religião no mundo organizacional baseia-se em dois fatores: 1) religião parece aos gestores e administradores um constructo menos central e importante; e 2) religião e espiritualidade são conceitos que estão fora do escopo do estudo científico e remontam a uma época anterior ao desenvolvimento científico racional.

A rejeição dos aspectos religiosos e espirituais em algumas organizações mostra-se paradoxal, visto que o próprio mercado adota uma ideologia igualmente dogmática e normativa. Esse paradoxo ocorre à medida que o mercado econômico, por exemplo, tende a se tornar uma religião que liga várias pessoas e organizações, ações e comportamentos. Segundo Cox (1999), essa nova religião do mercado tem se tornado a mais significativa opção para muitos empresários, quando comparada às religiões tradicionais ocidentais.

Em estudo com 36 grandes empresas multinacionais, Collins e Porras (1995) apontam similaridades entre a cultura organizacional dessas empresas e a cultura dos sistemas religiosos tradicionalmente conhecidos. Para tanto, os autores avaliaram seis aspectos que aproximam a cultura dessas empresas à de algumas igrejas, quais sejam: lealdade, dedicação, ideologia fervorosamente seguida, doutrinação, influência no comportamento dos funcionários para que seja condizente com a ideologia da empresa e elitismo, que se traduz em fazer parte de algo especial ou superior. Para esses autores, o ambiente de trabalho imposto por essas empresas não se diferencia do vivenciado em muitas organizações religiosas tradicionais.

Diante do exposto, podemos afirmar que a religião e a espiritualidade estão presentes de uma forma ou de outra no contexto organizacional. Além disso, elas continuam a exercer uma função importante na sociedade contemporânea, embora em novas bases, ligadas ao processo de secularização, de hegemonia explicativa da ciência e de sua racionalidade. De qualquer forma, as relações entre religião e espiritualidade no contexto do trabalho ainda são uma temática que demanda outras investigações e reflexões.

A partir dessa conclusão, questiona-se: que tipos de benefícios podem ser observados com a promoção da religião ou da espiritualidade nas empresas? Para tentar responder a essa pergunta, são demonstrados, a seguir, dois exemplos de aplicação desses conceitos: o primeiro ressalta a utilização da religião como uma ferramenta de busca de prazer no trabalho em uma organização religiosa; o segundo evidencia algumas vantagens da utilização do conceito de espiritualidade em uma empresa de aviação.

 

Religião e prazer-sofrimento no trabalho

Embora tradicionalmente sejam reconhecidos por seus aspectos sagrados, em contraste com os valores secularizados das empresas que visam ao lucro financeiro, os sistemas religiosos tradicionais vêm transformando-se a fim de competir com outros sistemas de significação existencial (Berger, 1985), o que os torna menos “sacralizados”. A adaptação desses sistemas a um novo cenário crescentemente globalizado e competitivo traz uma convergência para uma visão mercantilizada de gerenciamento organizacional (Moore, 2004).

O fato é que, crescentemente, as organizações religiosas contemporâneas se aproximam de organizações não-religiosas, seja por seus modelos de gerenciamento, seja pela incorporação de outros sistemas axiológicos. Para Silva (2007), o ambiente das organizações religiosas acabou integrando características próprias das mudanças sociais e laborais, sobretudo as ligadas à liderança de instituições não religiosas, quais sejam: maior flexibilidade na produção, variabilidade de competências, carga maior de trabalho, decisões cada vez mais rápidas e, principalmente, uma produtividade cada vez maior, seja ela simbólica ou real.

Essa aproximação das organizações religiosas aos modelos seculares é evidenciada também pela análise do nível de concorrência entre as organizações religiosas (Berger, 1985). Para Guerra (2003), esse novo ethos do consumo entre as organizações religiosas faz com que o cenário religioso esteja atento também para as características da demanda de seus consumidores, assim como na lógica de mercado hegemônica na sociedade. Isso pode ser observado quando igrejas e denominações moldam suas mensagens, suas atividades e seus estilos de celebração direcionadas a maior consonância com a demanda de seus fiéis (Silva, 2007).

Em estudo realizado com 200 líderes de duas denominações protestantes brasileiras, uma de caráter tradicional e outra neopentecostal, Silva (2007) observou uma forte percepção de prazer e uma percepção mais moderada de sofrimento no trabalho daqueles líderes. Para o autor, esse prazer não está ligado apenas à vivência transcendental da religião em si, mas sim, e principalmente, a aspectos da relação indivíduo/organização, resumidos em três aspectos: a) a estrutura gerencial da igreja permite uma relativa liberdade de ação, fundamentalmente no que se refere à incorporação de valores pessoais à atividade laboral, o que contribui para o desenvolvimento da criatividade, da intuição e da autonomia; b) a questão vocacional desses líderes proporciona um sentido maior ao trabalho realizado; c) a possibilidade de ser útil e de sentir-se parte da organização por meio do serviço à comunidade. Esses resultados, apesar da especificidade do trabalho (organizações religiosas) no que diz respeito, sobretudo, ao aspecto vocacional desses líderes, em seu conjunto, coadunam-se com outros estudos que apontam uma alta satisfação e criatividade em trabalhadores que também vivenciam essa religiosidade no ambiente de trabalho (Ashmos & Duchon, 2000; Mitroff & Denton, 1999; Pauchant, 2002).

A diversidade de atividades, a exigência moral, a lida constante com problemas pessoais (do outro), a falta de metas claras e a falta de objetividade, tal qual em outras atividades profissionais, foram apontadas por Silva (2007) como as principais razões do sofrimento dos líderes religiosos pesquisados. Nesse sentido, o autor afirma que a religião, com suas práticas de leitura da Bíblia, de meditação e de oração serviam como via privilegiada de defesa daqueles líderes religiosos contra o sofrimento no trabalho.

Para Silva (2007), a religião mostrou-se eficiente para aqueles líderes religiosos à medida que também é uma possibilidade de dar significado à vida. Nesse sentido, Dalgalarrondo (2008) advoga que a religião propicia uma perspectiva de vida na qual o sofrimento, as doenças e a morte passam a ser algo dotado de sentido, o que leva a uma vida mais tolerável e saudável psiquicamente.

Cada conjunto profissional encontra sua forma de lidar com o sofrimento (Dejours, Abdouchelli, & Jayet, 1994). Para os trabalhadores da pesquisa de Silva (2007), no entanto, a busca religiosa se descortina não como uma forma auxiliar na vida não-laboral, mas como uma saída presente na própria atividade laboral. Esse tipo de enfrentamento no trabalho, por meio da religião, pode gerar um repertório de novas atitudes também no campo das relações pessoais e dos comportamentos individual e social (Moore, 2004).

Pode-se falar na possibilidade de o trabalhador ter uma ferramenta a mais para enfrentar o sofrimento, seja de forma individual, seja coletiva, por meio da religião e/ou da espiritualidade. Tal perspectiva apresenta possibilidades potenciais de ser adotada nas organizações, já que não se prende apenas à satisfação dos aspectos físicos, emocionais ou mentais, como o conceito de motivação, por exemplo (Barret, 1998), mas, antes, pode proporcionar sentido à vida organizacional, individual e também social.

 

Espiritualidade no trabalho e ganhos organizacionais

Inseridas em um contexto social marcado por incertezas e instabilidades, as organizações tendem a assumir um papel cada vez maior enquanto fornecedoras de identidade social e individual, o que transpõe o espaço do privado e estabelece com o indivíduo uma relação de referência total (Freitas, 2000). Não são raros os casos de pessoas nas empresas que têm nos colegas de trabalho seu único ou principal círculo social, ou seja, a empresa se torna também a extensão do próprio lar dessas pessoas, implicando a criação de espaço de vivências sociais (não apenas aquelas ligadas às atividades laborais).

Para Ashar e Lane-Maher (2004), a utilização cada vez maior da espiritualidade no trabalho ancora-se, fundamentalmente, na constatação de que ela melhora o clima organizacional e a satisfação no trabalho. Além disso, alguns autores, como Kouzes e Posner (2003) e Barret (1998), apontam outras mudanças ligadas à maior lucratividade das empresas, como, por exemplo, uma supervalorização das ações (12 vezes) e uma taxa de retorno sobre o investimento de 418%, resultante, principalmente, de melhor qualidade do trabalho e de melhores relacionamentos entre companheiros de atividades.

Alguns exemplos da aplicação da espiritualidade no trabalho vêm de empresas multinacionais como Xerox, Mary Kay Cosmetics, Exxon, Harley Davidson, Boeing, Sun Microsystems, Timberland, Wal-Mart (Bell & Taylor, 2004; Kinjerski, 2004; Pauchant, 2002). Entre tantas, vale a pena destacar a Southwest Airlines (SWA), cujas características de gestão são identificadas como parte desse outro paradigma: a promoção da autenticidade, da participação dos empregados nas principais decisões da empresa e do respeito pela diversidade (Cunha, Rego, & D´Oliveira, 2006; Milliman, Czaplewiski, & Ferguson, 2003). Ademais, a promoção de valores como compaixão e flexibilidade e o compartilhamento de idéias e de emoções entre os colaboradores têm proporcionado um forte sentimento de pertencimento e de comprometimento com a organização, o que tem feito da SWA uma referência na utilização do conceito em tela (Kinjerski, 2004; Korac-Kakabadse, Kouzmin, & Kakabadse, 2002; Milliman, Czaplewiski, & Ferguson, 2003).

Os principais ganhos da SWA com esse modelo podem ser constatados pelo fato de a empresa: a) estar entre as 100 melhores empresas dos EUA para se trabalhar e entre as mais admiradas pelos clientes; b) ter as menores taxas de turnover entre as companhias aéreas (6.0%); c) ter gerado lucros desde sua fundação, em 1971; d) ter uma forte visão de responsabilidade social (Milliman, Ferguson, Trickett, & Condemi, 1999).

Sob um novo paradigma organizacional observado atualmente, não basta envolver mentalmente o empregado, é preciso também envolvê-lo emocionalmente com o seu trabalho (Cunha, Rego, & D´Oliveira, 2006; Freitas, 2000). Os exemplos mencionados da pesquisa com líderes religiosos e da Southwest Airlines (SWA) buscam mostrar como a espiritualidade e a religião podem ser constructos importantes no contexto das organizações.

Proporcionar relacionamentos mais próximos, ter claro o sentimento de pertencimento à organização e à comunidade bem como o significado do trabalho podem representar grandes contribuições para a melhoria não só da qualidade de vida do trabalhador mas também para a organização e para a sociedade, isso porque a ênfase não seria dada apenas à satisfação pessoal, à satisfação física, emocional e mental, mas sim, à consciência de fazer diferença, de ligar-se com o outro, de realizar uma atividade significativa para si e para o outro, seja ele organização ou sociedade envolvente.

 

Considerações finais

A discussão apresentada sobre religiosidade e espiritualidade no contexto de trabalho buscou mostrar que sua valorização e aplicação podem trazer benefícios para empresas e, principalmente, para trabalhadores. Tal consideração baseia-se no fato de que tanto a religião como a espiritualidade podem ser importantes para a satisfação e o bem-estar psicológico. Além disso, tal como explicitados por Dalgalarrondo (2008), esses constructos são fundamentais para a obtenção de sentido e objetivos na vida, incluindo aí dimensões como ter esperança e ser otimista em relação ao futuro. Trata-se, portanto, de uma abertura para a inclusão desses conceitos na agenda das organizações, tanto no que se refere à relação com o trabalhador como na sua relação com outros stakeholders.

Sobretudo por conta do estabelecimento de ligação e até de formação de redes sociais entre os trabalhadores, a espiritualidade no ambiente de trabalho pode ser uma ferramenta a mais na construção de uma dinâmica organizacional eficiente. Já a religião, com a promoção de valores como solidariedade, compaixão, caridade e perdão, pode contribuir para trazer maior significado, maior coesão social e apoio mútuo para a atividade do trabalhador, o que pode melhorar, por exemplo, a comunicação, o comprometimento, o trabalho em equipe e a motivação entre os trabalhadores, entre outras possibilidades.

Há de se considerar, contudo, que a ratificação desse paradigma se torna um desafio diante do cenário paradoxal organizacional, o que sugere outros estudos nessa temática, principalmente no que tange à verificação da aplicabilidade dos constructos discutidos em outras empresas e em outros grupos religiosos. Outra questão importante a se desenvolver em estudos posteriores refere-se aos aspectos éticos e morais da utilização da religião e da espiritualidade, a fim de não servirem de instrumentos de manipulação da gestão das empresas ou de disfarce para encobrir a precariedade do mercado de trabalho (instabilidade, desregulamentação, desemprego, terceirização, rebaixamento salarial, entre outros). O que se pretende é, na verdade, uma melhoria das condições, do conteúdo, do sentido do trabalho e um incentivo ao desenvolvimento pessoal, pelo gerenciamento baseado em uma atitude de maior discernimento, aceitação, escuta, flexibilidade e reflexão, e não em uma anestesia diante da precariedade do mundo do trabalho.

Outro ponto importante a ser mais bem estudado refere-se à influência da espiritualidade e da religião na consideração de outros tipos de benefícios para as empresas, sobretudo no papel dessas variáveis nas mediações entre a esfera individual e as esferas coletivas e sociais.

Enfim, não se trata aqui de uma panacéia para os problemas das corporações, mas sim, de conceitos que podem contribuir 2008para a vida organizacional e também para a do trabalhador, já que religião e espiritualidade não são conceitos estanques das transformações por que passam a sociedade e as organizações hodiernas. Religião e espiritualidade parecem, assim, longe de estarem mortas e distantes da vida, como consideraram alguns.

 

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Endereço para correspondência
Rogério Rodrigues da Silva
Avenida Central, Bloco 885, n. 2, Núcleo Bandeirante
71710-013, DF, Brasil
Telefone: 61 - 9284 5836 / 61 - 3356 0160

Recebido 03/10/2007
Reformulado 13/08/2008
Aprovado 30/08/2008

 

 

* Professor e consultor, psicólogo, Mestre em Psicologia social e do trabalho pela Universidade de Brasília e doutorando em Sociologia das Organizações pela Universidade Técnica de Lisboa, Portugal.