SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número1Avaliação do autoconceito no contexto escolar: análise das publicações em periódicos brasileiros índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.29 n.1 Brasília mar. 2009

 

ARTIGOS

 

Significados e sentidos das casas estudantis e a dialética inclusão-exclusão

 

The meaning and the sense of the student’s dwellings by young college students and the inclusion-exclusion dialetic

 

Significados y sentidos de las casas estudiantiles y la dialéctica inclusión-exclusión

 

 

Lívia Mesquita de Sousa*, I; Sônia Margarida Gomes Sousa**, II

I Universidade Federal de Goiás
II Universidade Católica de Goiás

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir a relação entre os significados e os sentidos (Vigotski, 2001) das casas estudantis para seus moradores, jovens universitários, apontando os processos de inclusão e exclusão vividos por esses sujeitos. Foi realizada uma pesquisa com os moradores de casas estudantis, em Goiânia, utilizando os seguintes procedimentos: aplicação de questionário, consulta a documentos, realização de grupos focais com estudantes selecionados, além de observação não sistemática durante as visitas feitas às casas. As informações colhidas demonstram que os significados tendem a enaltecer as casas estudantis, e os sentidos, expressões mais singulares, indicam que a experiência de ser morador é vivida como sofrimento e sacrifício. À luz da dialética exclusão-inclusão (Sawaia, 2001), são analisadas as contradições entre os significados e os sentidos.

Palavras-chave: Significados e sentidos, Casas estudantis, Jovens universitários, Dialética exclusão-inclusão.


ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss the relationship between the meanings and the senses (Vigotski, 2001) of the student dwellers, young college students, from their point of view, as well as to investigate the processes of inclusion and exclusion they experienced. The research was accomplished with dwellers of the student dwelling of Goiânia-GO, making use of the following procedures: questions applied to the dwellers, reading of papers related to the student dwelling, focal groups and direct observation in the student dwelling during the visits to the dwellers. The results show that the meanings given by the student dweller tend to give value to and to elevate the experience of being a dweller, and that meanings that come from singular expressions indicate that the student dwelling is experienced as a sacrifice and suffering by the students. By means of the exclusion-inclusion dialectic (Sawaia, 2001), such contradiction was analyzed.

Keywords: Meaning and sense, Student’s dwelling, Young university students, Dialectic inclusion-exclusion.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es discutir la relación entre los significados y los sentidos (Vigotski, 2001) de las casas estudiantiles para sus habitantes, jóvenes universitarios, señalando los procesos de inclusión y exclusión vividos por esos sujetos. Fue realizada una pesquisa con los habitantes de casas estudiantiles, en Goiânia, utilizando los siguientes procedimientos: aplicación de cuestionario, consulta a documentos, realización de grupos focales con estudiantes seleccionados, además de observación no sistemática durante las visitas hechas a las casas. Las informaciones recogidas demuestran que los significados tienden a enaltecer las casas estudiantiles, y los sentidos, expresiones más singulares, indican que la experiencia de ser habitante es vivida como sufrimiento y sacrificio. A la luz de la dialéctica exclusión-inclusión (Sawaia, 2001), son analizadas las contradicciones entre los significados y los sentidos.

Palabras clave: Significados y sentidos, Casas estudiantiles, Jóvenes universitarios, Dialéctica exclusióninclusión.


 

 

As casas estudantis, de modo geral, são moradias que abrigam estudantes universitários oriundos de classes sociais de baixa renda. elas reúnem pessoas que investem na escolarização como uma forma de encaminhar suas vidas, em busca de uma carreira, tendo, para isso, de deixar seu lugar de origem, afastar-se de suas famílias, para morar com outras pessoas em condições semelhantes, ou seja, outros jovens vindos de suas cidades, onde deixaram suas famílias. No contexto do ensino superior brasileiro, foi, a partir de 1964, com o golpe militar, que as universidades passaram a incorporar as casas estudantis. Uma pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de casas de estudantes (SENCE), em março de 1993, mostra que as moradias estudantis, com exceção das repúblicas, são, em regra, mantidas por alguma instituição externa. Na maioria dos casos, são as próprias universidades, predominantemente as federais, que as mantêm.

A casa estudantil faz parte da assistência universitária, definida como “um dos instrumentos facilitadores da política educacional, além de ser uma ação de inclusão social e direito de cidadania” (Barreto, 2002, p. 1). essas casas inserem-se, portanto, no contexto das políticas públicas que buscam oferecer possibilidades para que jovens de classes sociais de baixa renda possam se manter em seus cursos. dados do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos comunitários e estudantis (FONAPRACE, 2004) informam que há, somente nas instituições federais de ensino superior, 12.755 estudantes morando em casas estudantis. em Goiânia, existem quatro casas para estudantes universitários. São chamadas de casa do estudante Universitário (CEU), e abrigam ao todo aproximadamente 220 moradores.

Buscando conhecer e compreender os significados e os sentidos das casas estudantis para seus moradores, foi realizada, no ano 2004, uma pesquisa com 114 moradores, que representam 53% do total de moradores de todas as casas estudantis de Goiânia. As categorias de significados e sentidos foram trabalhadas para a compreensão do objeto a partir da obra de Vigotski. Tanto o significado quanto o sentido são categorias em construção, que mantêm entre si uma relação dialética e revelam processos carregados de afetividade, interesses, aspirações e necessidades, dimensões constituintes da subjetividade humana. embora haja distinção entre essas categorias, elas se constituem social e historicamente.

A realidade, compreendida como um complexo de objetos, relações e símbolos que se apresenta desde muito cedo na vida do homem, é mediada por signos que modificam a experiência direta e dão a ela matizes diversos. Esses signos são construídos pelo homem em sua relação com seus semelhantes a partir de suas emoções e ações, dentro do contexto de sua cultura. Há um longo processo de formação do psiquismo humano, estudado por Vigotski, que se traduz numa crescente capacidade do homem de não apenas sofrer o impacto da realidade mas também de dar a ela um significado e um sentido. Como afirma Namura (2003, p. 181), “as significações é que permitem ao homem distanciar-se das imagens fornecidas pela percepção e pelas sensações imediatas”.

Vigotski (2001, p. 465) chama o significado de “potência que se realiza no discurso vivo”, apontando sua vinculação com as emoções, com as experiências e com o contexto em que se desenvolve, e postulando, como “lei fundamental da dinâmica dos significados”, o seu enriquecimento pelo sentido a partir do contexto. Nas experiências humanas, os significados vão-se formando, e ocorre um entrelaçamento constante entre idéias e conceitos já amplamente popularizados e as formas particulares pelas quais essas idéias e esses conceitos vão sendo construídos e modificados.

O homem e sua cultura são o resultado do desenvolvimento da capacidade de significar. A realidade passa a ser conceituada e reconhecida a partir de significados. Estes têm dimensões universais, compartilhadas em diversas formas, como representações, crenças e ideologias, e têm também dimensões particulares, vivenciadas como sentidos singulares. Segundo Vigotski, tanto os significados quanto os sentidos são dinâmicos, pois ambos se modificam e se enriquecem a partir dos contextos em que se constituem. De acordo com sua concepção, os significados são as zonas de maior estabilidade dos sentidos. Para ele, o significado é também sentido, só que, enquanto o sentido é “uma formação dinâmica, fluida..., o significado, ao contrário, é um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos” (Vigotski, 2001, p. 465), ou seja, os significados diferenciam-se dos sentidos por serem coletivizados. Mesmo que no texto de Vigotski não sejam fornecidos exemplos das diversas formas que os significados podem ter na subjetividade e nas relações sociais, pode-se dizer que representações e ideologias compartilhadas por um grupo ou uma comunidade são exemplos dessa maior estabilidade atribuída ao significado.

É na dinâmica da relação dialética entre os significados mais gerais e os sentidos mais particulares que o homem se humaniza, pois, para ele, é possível transformar, planejar, abstrair, e não apenas reproduzir a realidade vivida. Da dialética existente entre os significados universais e a produção de sentidos particulares, cria-se, em meio às fortes imposições ideológicas da sociedade, que são mediações da forma de agir e de perceber o mundo, a possibilidade de construção de novas formas de significação potencialmente capazes de romper o imposto pela sociedade vigente.

Se o significado, embora carregado de conteúdos ideológicos e padronizados, guarda ainda como característica a dinamicidade, muito mais dinâmicos são os sentidos. O sentido, muitas vezes, “pode ser separado da palavra que o expressa, assim como pode ser facilmente fixado em outra palavra” (Vigotski, 2001, p. 467). Isso ocorre porque a produção de sentidos é um processo complexo, vivido nas experiências, envolvido pelas emoções presentes e toda a carga de representações e ideologias que permeiam essas experiências. Dessa forma, muitas vezes, a apreensão de um sentido não se dá pela via do pensamento expresso, mas pelo que está por trás da enunciação, ou seja, pelos pensamentos e desejos. Isso é o que Vigotski (2001) chama de subtexto. “A compreensão efetiva e plena do pensamento alheio só se torna possível quando descobrimos a sua eficaz causa afetivo-volitiva” (pp. 479-480). Da mesma forma, “na análise psicológica de qualquer enunciação, só chegamos ao fim quando descobrimos esse plano interior último e mais encoberto do pensamento verbal: a sua motivação” (p. 481).

Os significados são bem mais facilmente verbalizados do que os sentidos. Estes podem estar apenas nos gestos e não nos pensamentos, portanto nem sempre são expressos em palavras. Muitas vezes, os sentidos são produzidos sem que possam ser formulados ou mesmo compreendidos imediatamente pelas pessoas em suas diversas experiências. Essa diferença entre os significados e os sentidos apresentou-se na pesquisa realizada nas casas estudantis, em manifestações com diferentes níveis de elaboração. Como foram utilizados procedimentos diversos, o material empírico também resultou diversificado, com registros escritos, como nos questionários, e registros orais. Considerou-se, então, já que há especificidades da fala e da escrita, que as manifestações escritas eram mais elaboradas e as manifestações orais, menos elaboradas. Dito de outra forma, considerou-se que a escrita sofreu a mediação da reflexão e do planejamento, e a fala foi expressa de modo imediato, influenciada pelo clima das discussões realizadas nos grupos focais. Para fazer a distinção entre manifestações mais ou menos elaboradas, utilizou-se a discussão de Vigotski (2001) acerca das especificidades das linguagens falada e escrita. Enquanto na linguagem escrita “o pensamento se expressa nos significados formais das palavras” (p. 452), na linguagem falada, estão presentes a mímica, os gestos e a entonação, que podem transmitir “o contexto psicológico interior do falante” (p. 455), em que há um predomínio de sentidos. Dessa forma, pode-se dizer que a fala é uma manifestação menos elaborada que a escrita, pois “o diálogo quase sempre conclui em si a possibilidade da não-conclusão do enunciado, da enunciação incompleta” (p.456).

Na pesquisa, a contradição entre significados e sentidos emergiu da seguinte forma: as manifestações mais elaboradas dos moradores, a exemplo das frases escritas nos questionários ou nos relatórios, indicam como significado um enaltecimento das casas e da experiência de ser morador; as manifestações menos elaboradas, especialmente expressas nos grupos focais, indicam que as casas têm o sentido de uma experiência muito difícil, por vezes extremamente dolorosa. Mais uma vez, é importante lembrar que a relação entre significados e sentidos é dialética, e que não se trata de categorias inteiramente separáveis ou estanques. Se há significado, há sentido, e vice-versa, sendo possível apenas apreender o que Vigotski chama de “zonas” de maior ou menor estabilidade.

 

Método

O primeiro procedimento utilizado na pesquisa empírica foi a aplicação de um questionário que continha perguntas sobre idade, gênero, cor/raça, dados de escolaridade, perfil familiar, condições de trabalho e avaliações sobre a moradia estudantil. O número de vagas ocupadas nas casas, foi obtido das informações dos próprios moradores, que também informaram o número de mulheres e o número de homens residentes em cada casa no momento da pesquisa. Chegou-se, assim, a um número de 216 moradores, dos quais 115, escolhidos aleatoriamente, responderam ao questionário. Como um dos questionários foi preenchido de forma muito incompleta, foi invalidado, restando, ao final, 114 questionários válidos, o que corresponde a 53% da população total.

O processamento das respostas às perguntas fechadas dos questionários foi feito pelo programa computacional EPIINFO, e as perguntas abertas foram analisadas, na busca de significados que pudessem direcionar a formação dos grupos focais. Essa análise possibilitou a formulação de um significado muito geral para a experiência de viver em casa estudantil, que pode ser resumido na frase: “Aprender com a adversidade/ diversidade”. A partir desse significado geral, os sujeitos foram distribuídos em dois grandes grupos: os que vêem a aprendizagem como a conseqüência mais imediata e importante de sua experiência de morador e os que vêem a aprendizagem como resultante do sofrimento e dos sacrifícios vividos.

Foram convidados 12 moradores para cada um dos grupos. Para o primeiro grupo, foram confirmadas nove pessoas, mas compareceram sete, quatro homens e três mulheres, com idades que variavam entre 18 e 28 anos. A reunião com esse primeiro grupo foi realizada no dia três de junho de 2004, com moradores de quase todas as casas, exceto uma. Para o segundo grupo, também foram confirmadas nove pessoas, mas só compareceram quatro, todas mulheres, uma de cada casa, com idades que variavam de 20 a 31 anos. O encontro com esse grupo foi realizado no dia 22 de junho de 2004.

A técnica do grupo focal foi escolhida por seu potencial facilitador de discussão sobre determinado tópico de pesquisa. É uma técnica que se traduz, no caso específico dos estudantes moradores de casa estudantil, em um meio de conhecê-los de uma maneira próxima da vivida cotidianamente por eles, ou seja, em reunião, como indivíduos e como membros de uma experiência comum. O que define um grupo focal, em comparação com outras formas de entrevista grupal, é a ênfase na interação do grupo e a focalização em um tópico escolhido pelo pesquisador (Morgan, 1997). O teste mais simples para saber se o grupo focal é apropriado para o projeto da pesquisa é perguntar quão ativa e facilmente os participantes poderão discutir o tópico da pesquisa (Morgan, 1997). Esse teste pareceu de fácil resolução no caso dos estudantes pesquisados, pois qualquer tipo de discussão lhes é familiar, e isso foi confirmado nos grupos realizados. Segundo Minayo et al. (1999), o grupo focal é indicado nos casos em que os participantes têm características comuns, podendo fazer parte de um grupo de discussão sobre algum tema que lhes interessa. Gaskell (2002) e Minayo et al. (1999) indicam que essa técnica é também recomendável na investigação de significados e sentidos atribuídos por sujeitos a diversos fenômenos psicossociais.

Os moradores selecionados a partir desses critérios para a participação nos grupos focais foram abordados pessoalmente pela pesquisadora e convidados a participar. As reuniões foram agendadas, previamente, em local e data negociados com os participantes. As reuniões foram gravadas e acompanhadas pelas anotações de um observador, tendo sido utilizado também um roteiro como guia para as discussões. A sistematização dos dados dos grupos focais obedeceu à ordem das seguintes etapas: transcrição das gravações, leitura e releituras das transcrições com o apoio das anotações e da distribuição das falas em unidades de sentido, utilizandose o critério de buscar identificar cada palavra, gesto ou entonação que indicasse que ali estava contida uma significação. As unidades de sentido eram buscadas nas falas transcritas com a ajuda das anotações, nas quais foram registradas algumas informações sobre o contexto emocional do falante por meio da observação da mímica, dos gestos e da entonação.

É importante enfatizar que a dinâmica dos grupos focais foi muito parecida com o que é próprio das características dos grupos focais, pois não houve resistências por parte dos participantes, que demonstraram grande interesse no tema e sentiram que estavam vivendo uma oportunidade de discutir problemas do seu cotidiano. Era feita uma pergunta inicial, sem quase nenhuma outra intervenção por parte da pesquisadora; a discussão seguia os rumos tomados pelos próprios participantes.

O terceiro procedimento de pesquisa foi a leitura de documentos referentes a casas estudantis em Goiânia e no Brasil. Além dessas leituras, teve grande importância a observação direta realizada nas casas em diversas visitas (aproximadamente 20) feitas aos moradores, em duas situações: solicitação de preenchimento do questionário e convite para participação nos grupos focais.

Os nomes dos participantes da pesquisa foram substituídos, neste artigo, por nomes fictícios, a fim de preservar sua identidade.

 

Resultados e discussão

Sinteticamente, a pesquisa demonstrou que os sujeitos são, em sua maioria, jovens, considerando a delimitação utilizada pelo IBGE, que categoriza como jovens pessoas entre 15 e 24 anos, e pela OIT, que delimita essa mesma faixa etária e divide-a em dois períodos: dos 15 aos 19 anos, a adolescência, e dos 19 aos 24 anos, a juventude propriamente dita (canesin et al., 2002): 58,8% estão na faixa de 18 a 24 anos, 28,9% estão na faixa de 25 a 29 anos e apenas 10,5% têm 30 anos ou mais. Há um ligeiro predomínio de pessoas do sexo masculino (58,8%), e consideram-se, na maioria, não-brancos (59,8%). Verificou-se entre as famílias dos moradores a seguinte distribuição de renda: 37,7% com renda inferior a 1 salário mínimo per capita; 36,7% com renda entre 1 e 1,5 salário mínimo per capita; 7,8% com renda superior a 2 salários mínimos per capita; 16,7% não informaram. isso os caracteriza como estudantes de classe social de baixa renda, e dá-lhes o direito à vaga nas casas. Quanto à origem, exatamente a metade dos respondentes é de áreas urbanas do interior do estado de Goiás, 28,1% vêm de área urbana do interior de outro estado brasileiro e os demais vêm de capitais de outros estados (11,4%), área rural (7,9%) ou outro país (0,9%).

Em relação à condição de moradia, é interessante informar que, em todas as casas, os moradores devem dividir o seu quarto com mais dois ou três moradores. Essa é uma condição que favorece o surgimento de conflitos no interior das casas. Quanto à privacidade, 48,2% consideram que a casa em que moram não permite muita privacidade, 36,8% consideram que a casa não permite nenhuma privacidade e apenas 14% consideram que há privacidade suficiente.

Além dos resultados numéricos, foi possível apreender aspectos muito importantes para melhor compreensão da experiência dos moradores pesquisados, que exigiram uma análise das contradições encontradas entre os significados e os sentidos das casas estudantis e apontaram a dimensão das experiências de inclusão e exclusão vividas pelos moradores.

 

Contradições entre os significados e os sentidos das casas estudantis

Um dos objetivos do presente estudo foi conhecer que significados atribuídos às casas estudantis são, de alguma forma, compartilhados por grande parte dos moradores, ao longo de determinado tempo histórico, e a partir de que contextos esses significados foram construídos. Estes foram procurados nas manifestações em que são constituídos e apropriados por grande parte dos moradores, ou seja, nas manifestações que indicam maior estabilidade.

Na presente pesquisa, buscou-se conhecer que significados são difundidos nas casas e nos diversos encontros realizados pelos moradores, como congressos e seminários, e compartilhados pelos moradores de modo geral, mas que entram em conflito com sentidos particulares. Os significados das casas do estudante universitário, as chamadas CEUs, de Goiânia, são oriundos basicamente de três fontes principais: o movimento estudantil, ao qual são, de alguma forma, vinculadas, sua história particular e sua vinculação às universidades Federal de Goiás (UFG) e Católica de Goiás (UCG). Esses significados, construídos historicamente, tendem a considerar as casas entidades de grande valor, em que se aprendem e se apreendem, mais do que conteúdos, qualidades humanas. Na página das casas estudantis na internet, lê-se que casa do estudante é “uma microcomunidade, um jeitinho diferente de aprender... um lugar pra se aprender a ser mais humano, mais amigo... mais irmão... aqui se aprende o conceito de COLETIVIDADE!!!”

O significado expresso na página das casas tem suas origens nas idéias de luta coletiva, fraternidade e solidariedade presentes em alguns relatórios elaborados por profissionais que trabalham com os moradores. Em um relatório da Pró-Reitoria de Assuntos da Comunidade Universitária (PRCOM) da Universidade Federal de Goiás (UFG), por exemplo, pode-se ler que as casas devem ser um “espaço de relações democráticas e solidárias, de participação coletiva e organização” (UFG, 1995, p.107). Porém, o desenvolvimento e a propagação desses significados dentro das casas não garantem que os sentidos estejam de acordo com eles, pois, muitas vezes, os moradores expressamse de modo contrário, como afirmou uma participante de um dos grupos focais: “Não é bem coletividade, sabe? É empurrar o espaço do outro, mesmo, e adentrar, e achar que pode” (Ana, 18a).

Há, portanto, uma contradição entre significados e sentidos que pode ser verificada acompanhando-se as diversas manifestações dos moradores durante a pesquisa. Nas frases escritas nos questionários, é predominante a presença do significado da casa estudantil como um espaço e uma oportunidade para aprendizagem: (Maria, 24a) – “Há uma pluralidade de cultura, valores, ideais. Com isso aprendemos muito, e o espaço é bom para exercitar politicamente”; (João, 27a) – “Sou de opinião que só a educação pode melhorar a sociedade. Isso acontece aqui. Com o tempo, a gente vê o quanto chegamos aqui preconceituosos e ignorantes”; (Pedro,22a) – “A casa de estudante é uma segunda universidade, que ensina para a vida”; (Célia, 18a) – “Podemos considerar a casa como um ‘minimundo’, onde tudo pode acontecer, tudo se pode aprender e tudo se pode ensinar”.

Esse significado geral enfatiza o “aprender” como uma grande vantagem para quem é morador, ou seja, os moradores acreditam que sua experiência nas casas os leve a ser pessoas que adquirem qualidades que superam as de quem não viveu essa experiência. Alguns participantes dos grupos focais lembraram isso: Roberto (20a) – “O que você aprende na faculdade, muitas vezes, é se preparar para a profissão, sua carreira, e o que você aprende na casa do estudante você leva para a sua vida inteira e leva como ser humano, porque é uma mini-sociedade”; Chico (23a) – “Em casa do estudante, começa-se a adquirir algumas coisas que poucos lugares podem oferecer, ou seja, que é a formação mesmo política”; Maria Clara (28a) – “Eu acredito muito que quem mora em casa de estudante faz diferença no profissional, pelo que eu tenho visto... com certeza, faz diferença”; José (24a) – “Os ‘número um’ que eu conheço hoje, a maioria saiu da casa de estudante”.

Alguns moradores enfatizam que a aprendizagem é a conseqüência imediata de morar em casa do estudante, e outros enfatizam que acabam aprendendo, sim, mas com muito sofrimento. Nas discussões realizadas, observa-se que há, por trás do significado de grande aprendizagem, um embate cotidiano entre os moradores, que os faz sentir a experiência de ser morador como um grande sacrifício, que é tolerado devido à esperança de inclusão no mercado de trabalho. A partir das discussões ocorridas nos grupos focais, vê-se que a aprendizagem como um significado geral das casas é uma forma de enaltecer uma experiência que é, no dia-a-dia, muito difícil. Algumas expressões que denotam o duro combate do cotidiano são: Roberto (20a) – “Quem sobreviver a essa experiência vai ganhar uma riqueza imensa”; Ana (18a) – “Você acordar todo dia e ver aquela pessoa... você aprende a suportar”; Maria Clara (28a) – “Às vezes insuportável”; Chico (23a) – “Talvez, na minha opinião, o verbo seria tolerar”; Ana (18a) – “Suportai-vos uns aos outros”; Estrela (23a) – “É horrível ficar com uma pessoa assim, e a gente convive ali diariamente, suporta, né?”

Verbos como sobreviver, suportar e tolerar, presentes sem muita ênfase, uma vez que se enfatiza a valorização da experiência, não aparecem formulados num significado verbalizado, como, por exemplo, “viver em casa estudantil é treinar a tolerância”, mas expressam um sentido importante que está vinculado às ações cotidianas e aos enfrentamentos diários. Esses enfrentamentos não se vinculam diretamente à grandiosidade da aprendizagem, embora sejam constituintes dela, mas relacionam-se com questões muito básicas, como alimentação, espaço, posses. As falas que se seguem, de dois sujeitos participantes dos grupos, demonstram como os moradores enfrentam tensões advindas da disputa por objetos pessoais ou espaço: Roberto (20a) – “Por exemplo, alguém pode ter um kit de panelas, aí, outra pessoa lá quer cozinhar e não tem nada, o cara é tão individualista que não empresta, não faz nada”; Estrela (23a) – “Tinha um portaretrato meu e arrumaram o quarto, tiraram o porta-retrato “...‘você sempre coloca seu porta-retrato, agora eu quero colocar os meus objetos’... ia dar briga”.

A condição socioeconômica é um fator determinante para que a convivência diária seja enredada por esses problemas que podem ser chamados de básicos, como higiene, alimentação, espaço. Os próprios moradores precisam realizar tarefas de limpeza, pelo menos dos quartos, de preparo dos alimentos e de organização dos seus bens privados. É a articulação dessas tarefas que se faz presente de forma mais contundente nos conflitos trazidos pelos dois grupos focais.

Nara (31a) – “A pessoa está achando que você está dormindo, e por isso fica com o namorado, transando na sua frente, eu acho isso uma falta de respeito”; Anabis (25a) – “Eu já discuti algumas vezes, discussões fortes, porque tinham tirado os pregadores da minha roupa no varal. Eu achei aquilo uma falta de respeito, como é que a pessoa tem a capacidade de achar que as roupas dele são mais importantes do que as minhas?”; Bia (20a) – “Eu tive problema com um morador e, assim mesmo, eu não sei se eu estava realmente com a razão, mas eu me vi na razão, pelo fato de ele estar usando o banheiro feminino”; Nara (31a) – “No meu quarto mesmo, teve uma briga de faca. Por quê? Porque as meninas deixavam a roupa suja delas, punham numa lavadeira e deixavam debaixo da mesa, aí gastava duas semanas para lavar a roupa, aí o quarto ficava fedendo”.

Mesmo que seja com raiva, você tem que limpar, você lava o banheiro com raiva, mas tem que lavar ...não tem como você pegar a calcinha da fulana e jogar no lixo, dá a maior confusão, tem calcinha que fica lá no banheiro, tem cueca que fica jogada lá no banheiro um tempão. (Nina, 24a)

Essas situações constroem um sentido que está apenas na experiência, próximo mesmo das sensações, das emoções fortes, como raiva, indignação e nojo. Essas emoções e sensações são formuladas no discurso verbal como sacrifício, um sacrifício redentor, que trará uma recompensa futura. A experiência que às vezes choca, perturba e assusta é vista como uma grande aprendizagem. Mas o significado geral de “aprender com a diversidade/adversidade” aglutina sentidos diversos. A adversidade é, muitas vezes, sofrimento, exclusão, humilhação, e a diversidade, é muitas vezes, enfrentar um outro tão diferente que assusta. É possível imaginar que os participantes da pesquisa, jovens como são, vivendo transformações, constituindo-se como sujeitos abertos para novos valores, ideais e interesses, tentem aderir aos significados, mas que, ao mesmo tempo, tenham de deparar com os próprios sentimentos.

Esses significados são compartilhados pelos moradores das casas, mas são também apropriados por eles, de modo muito singular nos diversos sentidos particulares que são produzidos. O significado da casa estudantil como uma grande aprendizagem é vivenciada como o meio de eles alcançarem uma condição de vida diferente da que tinham na origem, antes do ingresso no curso superior. José (24a) – “Porque, se eu não estivesse na casa do estudante, eu teria ido embora, teria fraquejado e voltado para trabalhar na zona rural, da forma como eu trabalhava antes”.

Eu estou aqui lutando para conseguir alguma coisa para melhorar minha vida e principalmente a vida da minha família, da minha mãe, dos meus sobrinhos, dos meus irmãos... se nós estamos aqui enfrentando eh... muitas adversidades, é porque nós queremos mudar a realidade de onde nós viemos, nós temos um incentivo maior. (Anabis, 25a)

A luta por uma mudança nas condições de vida desses estudantes pode ser compreendida a partir da categoria dialética exclusão-inclusão (Sawaia, 2001), pois, ao serem incluídos como universitários, voltam a ser excluídos, quando são designados estudantes de classe social de baixa renda, usuários da assistência universitária. A exclusão não aparece nos significados compartilhados, mas apenas como condição vivenciada (sentida) que deve ser superada pela busca de uma inclusão futura no mercado de trabalho. A dimensão subjetiva da exclusão (Sawaia, 2001) gera sofrimento (pouco verbalizado), cujo sentido é o sacrifício dos moradores, predominantemente jovens, por um futuro melhor para si e para seus familiares.

 

A relação entre inclusão e exclusão presente na construção dos significados e sentidos das casas estudantis

Algo importante perpassa a produção de significados e sentidos das casas estudantis. Trata-se da busca por inserção numa condição social melhor do que a de origem, como expressou um dos moradores, ao definir quem são “pessoas que estão em busca de algo melhor”. É por isso que alguns moradores fazem questão de dizer que não são pessoas inferiores: “Acho que somos capazes, e mesmo sendo ‘pobres’ ou ‘carentes’, como gostam de dizer que somos, podemos participar do mundo intelectual de forma igual” (Carlos, 23a) ou “A CEU não é só farra, estudamos também” (César, 24a), ou ainda, “Gostaria que as pessoas fizessem uma segunda leitura antes de julgar os moradores das casas, porque não precisamos só de doações, como alguns pensam, mas sim, de dignidade, oportunidade e lazer, como qualquer outro cidadão” (Luís, 19a).

A casa estudantil é cercada por uma aura construída no sentido de enaltecê-la de alguma forma. em uma das visitas para aplicação dos questionários, um morador perguntou:

Com que categoria você trabalha? Porque esse termo “casa do estudante” não é uma denominação internacional, a denominação internacional é alojamento. Na Europa, há alojamentos muito ricos, onde moram estudantes da classe alta. Aqui só se chama ‘casa do estudante’ por compensação, porque só tem estudantes pobres. (Marcos, 25a)

As considerações desse morador refletem, em parte, o processo de produção de significados e sentidos que ocorre nas casas, e isso está de acordo com o esforço realizado para não se sentirem inferiores, rotulados de bagunceiros, maconheiros e pobres. Os significados compartilhados e descritos nas frases já citadas procuram inverter essa situação, pois os moradores acabam se vendo como pessoas que aprendem mais do que os não-moradores. O principal subtexto que aparece nas falas é o seguinte: não somos o que dizem que somos, somos melhores. Esse subtexto reflete um importante sentido, que, de alguma forma, resume a experiência da moradia e a tensão entre significados e sentidos: o sentimento de serem vistos como inferiores e o desejo de serem melhores. O sentimento de serem vistos como inferiores vem do sentido exclusão, pois só se mantêm em seus cursos caso sejam incluídos na assistência universitária. Une-se a isso a idéia difundida de que são desordeiros. O desejo de serem melhores faz com que haja um enaltecimento das casas.

O processo de enaltecimento, compensatório de um sentimento de serem vistos como inferiores, é um recurso psíquico não exclusivo dos moradores de casas estudantis. Sousa (2002) observou o mesmo fenômeno em crianças que são forçadas a trabalhar precocemente:

As crianças entrevistadas... tecem uma teoria – francamente conformista – para explicar tal situação. Vejamos o que pensam das crianças que trabalham: são mais alegres e sentem-se mais independentes, têm ‘vantagens’, podem ajudar as mães, não teimam e não fazem o ‘mal-feito’, são mais capazes, mais inteligentes. (p. 221)

A sigla CEU, que designa as casas do estudante universitário, por vezes, ganha um sentido de paraíso, pois representa uma via de inclusão e de superação de outras experiências mais difíceis. em uma das visitas às casas, uma moradora interrompeu o preenchimento do formulário e chamou a pesquisadora: “Olha, eu queria te dizer que a CEU pra mim é um céu”. Esse sentido da casa estudantil para essa moradora está ligado às suas experiências anteriores de morar em Goiânia para estudar: chegou, por exemplo, a morar na casa de uma senhora que lhe dava abrigo em troca de serviços domésticos.

À luz da dialética exclusão-inclusão (Sawaia, 2001), pode-se compreender a tensão entre os significados e os sentidos como uma relação dialética entre o desejo de ser alguém melhor e o sofrimento de se sentir excluído. Isso está representado nas casas pela designação “estudante de baixa renda”. Uma participante de um dos grupos focais expressou-se do seguinte modo acerca do que ela julga que ocorra com alguns moradores:

[o que acontece com algumas pessoas] é a não aceitação da situação delas, não aceitar ser de baixa renda, não aceitar ser um estudante que não está num meio social que ele queria estar e... aí o que acontece?... Ele rejeita a casa em primeiro lugar, não aceita, às vezes esconde que mora em casa do estudante, que a gente tem casos, ele não aceita o colega do quarto, ele não aceita um almoço coletivo, porque acha aquilo porco, porque acha nojento, baguncento, ele não participa de festas, que é uma maneira de confraternizar. (Estrela, 23a)

Quanto ao projeto do jovem universitário, em especial, o jovem universitário oriundo de classes sociais de baixa renda, seu desejo de inclusão é atendido pela assistência universitária, e as casas estudantis, sem dúvida, representam uma via de acesso, podendo ser caracterizadas realmente como um privilégio, como apontaram alguns participantes dos grupos focais. Mas estar incluído ou estar se incluindo significa também estar ao mesmo tempo experienciando a exclusão (Sawaia, 2001), é descobrir-se fora de alguma coisa e por isso precisar solicitar a ajuda da assistência universitária.

Nina (24a), de um dos grupos focais, descobriu-se sem ter onde morar: “Aí, eu vim na PROCOM, chorei e deu a maior confusão, porque eu não tinha onde ficar”. Nara, também participante dos grupos focais, viveu com muito sofrimento a confirmação de que era uma pessoa que ainda precisava ser incluída: Nara (31a) – [Sobre a sua participação no processo seletivo para uma das casas, que é apelidado de “roda do choro”]:

E pior que pra mim foi a roda do choro, mesmo, que eu chorei tanto, que acabou no final com a votação, e eu fiquei em primeiro lugar. Aí, quando terminou a votação, teve gente que falou assim “é, eu acho que você está abaixo da linha da pobreza” ...eu fiquei triste da pessoa falar isso pra mim... eu estava precisando, mas abaixo da linha de pobreza eu acho que não estava, não.

Os estudantes que conseguem uma vaga em uma das casas estudantis vivem uma experiência de ambigüidade, não são nem tão pobres que não poderiam sequer pensar em estar na universidade, nem possuem uma renda que lhes possibilite arcar com suas despesas. Sawaia (2001) esclarece que essa ambigüidade é própria do conceito de exclusão. Estar incluído é nunca se incluir totalmente. Da mesma forma, estar excluído é nunca se excluir totalmente. Mesmo as pessoas que parecem absolutamente à margem de uma sociedade estão fazendo parte dela, ainda que como marginalizadas.

Segundo Sawaia (2001), “todos os estudos reforçam a tese de que o excluído não está à margem da sociedade, mas repõe e sustenta a ordem social” (p.12). Além disso, a exclusão não pode ser vista como um processo apenas objetivo, pois, além de ser um processo sociohistórico, tem também uma dimensão subjetiva, o que implica dizer que é vivida como “necessidade do eu”, como sentimentos, significações e ações.

A casa estudantil relaciona-se com aspectos fundamentais da vida de seus moradores, pois é com o apoio que ela representa que eles buscam ser pessoas melhores, ou seja, ela ganha o significado de um meio pelo qual as pessoas podem se diferenciar. Isso tem uma importância fundamental, pois passa pela própria constituição da subjetividade dessas pessoas. É nesse sentido que alguns dos sujeitos pesquisados se expressam quanto a sua experiência como moradores: (Lília, 21a) – “Quando sair, estarei totalmente diferente”; (Márcia, 24a) – “Aqui me tornei o que hoje sou”; (Júlia, 21a) – “Verdadeiramente não sei como seria sem a casa. Talvez não seria”.

O uso do verbo ser nessas frases denota o quão profundamente a casa, como um caminho, é importante para seus moradores. Eles buscam não ser mais trabalhador rural ou empregada doméstica, por exemplo, e, por isso, valorizam o sofrimento presente, na busca por um futuro melhor. É na relação de convivência cotidiana, menos perpassada pelos significados mais elaborados, pelo enaltecimento, que acontecem os conflitos mais duros, os embates mais dolorosos, embates esses que são “tolerados” ou “suportados” na esperança de uma compensação futura.

Anabis (25a) – “A gente está passando por isso com um objetivo, que é estudar. Ninguém eu acho que gosta de permanecer nesse estado que nós estamos... seu organismo tem um tempo pra agüentar morar em casa de estudante”; Bia (20a) – [o não morador, o rico] “Vai dar menos valor do que uma pessoa que mora na casa do estudante, que está ralando pra aquilo ali, que às vezes não tem tempo de estudar porque precisa trabalhar, porque realmente precisa”; Nina (24a) – “Então você passa a dar valor em certas coisas também, que às vezes pra mim não tinham valor”; Nara (31a) – “Eu acredito também que as dificuldades que a gente enfrenta na vida é que fazem a gente crescer”.

Duas outras frases, citadas a seguir, denotam que a experiência é, às vezes, realmente sentida como muito difícil, apenas tolerada pela esperança de melhora em um futuro próximo.

Anabis (25a) – “Eu não quero mais isso pra minha vida, passou a fase, eu quero um lugarzinho que eu possa chegar e ligar o som e desligar na hora que eu quiser”; Nara (31a)– “Quando eu deixar a casa, tem umas colegas que estão falando ‘vamos alugar uma casa e morar juntas’, eu falei ‘você está doida?’, eu quero morar sozinha, sozinha”.

A saída da casa é um objetivo vinculado ao sentido de futuro, um tempo em que se estará em condições melhores, superadas as dificuldades atuais, em que será possível escolher seu próprio “lugarzinho”. O futuro é o alcance da realização do projeto de mudar de vida. eis alguns exemplos que apareceram: a mudança de empregada doméstica para assistente social, ter condições de ajudar os familiares, a mudança do trabalho na roça para um curso superior de própria escolha, o sonho de uma pós-graduação. A mudança para uma vida melhor revelou-se um elemento fundamental que está contido nos diversos sentidos produzidos nas casas estudantis, desde aqueles mais edificantes e elaborados até aqueles mais dolorosos e pouco verbalizados.

 

Considerações finais

No momento atual da história do ensino superior brasileiro, há algumas tentativas de aumentar o acesso e a permanência de estudantes oriundos de classes sociais de baixa renda à universidade. Um exemplo é o Programa Universidade para Todos- PROUNI, do governo federal, que viabiliza o acesso de jovens a cursos em faculdades ou universidades particulares. Um outro exemplo é a proposta de reforma universitária, que inclui nas mudanças o estabelecimento de cotas para estudantes negros e/ou vindos da escola pública. As casas estudantis têm, há muitas décadas, servido como um meio para tornar viáveis políticas públicas voltadas para o acesso de pessoas das camadas populares ao ensino superior e à sua permanência na universidade.

Este artigo buscou trazer à luz uma questão pouco discutida, quando se trata das casas estudantis como uma ação de política pública ou de educação inclusiva. Por meio das categorias de significados e sentidos, foi possível compreender as casas estudantis de modo mais amplo, atentando para as vivências que elas podem propiciar aos seus moradores. Os resultados mostram que os jovens moradores enfrentam problemas de ordem material, razão por que estão nas casas, e de ordem psicológica, por viverem contradições em seu cotidiano. eles se esforçam para se sentirem pessoas de valor, capazes e à altura do lugar onde estão, o mundo da universidade, mas sentem-se muitas vezes pessoas que se submetem a um grande sacrifício em busca de algo melhor. Os resultados indicam ainda que esse é um sofrimento que se vincula à condição social desses moradores, por isso chamado de sofrimento ético-político, que possibilita uma leitura de uma determinada situação social a partir do que os sujeitos pensam e sentem.

Considerando a dialética existente no processo de inclusão e exclusão, que se caracteriza por ser ao mesmo tempo objetivo (desigualdade social) e subjetivo (a vivência própria que cada um tem desse processo), compreendese a casa estudantil como amplamente sujeita à produção de significados e sentidos diversos e contraditórios. As casas estudantis representam um recurso utilizado pelas universidades para viabilizar a inclusão; no entanto, no ato de inclusão dos estudantes provenientes das classes sociais de baixa renda na assistência universitária, são postas diante deles também dificuldades. Os enfrentamentos cotidianos, sentidos como um duro embate que trará um grande aprendizado, são compreendidos aqui como um processo que, embora contribua para a inclusão, ressalta o processo de exclusão, no sentido de que passam a ser tolerados porque receberão a recompensa futuramente, por meio da inclusão no mercado de trabalho.

É necessário que, na discussão sobre a assistência universitária, se possa considerar não apenas se as casas estudantis são um direito pelo qual se deve lutar mas também se elas são a melhor solução para o problema de estudantes que não têm como arcar com despesas de moradia na cidade em que estão estudando. A discussão deve pautar-se não só pelos direitos e pela perspectiva política mas também pela compreensão de que a vivência subjetiva não é acessível de imediato, ou seja, em um contato rápido e não aprofundado com os moradores, não é possível perceber que, no cenário das casas estudantis, existem, de modo implícito, dificuldades e sofrimentos não verbalizados, porém marcantes e de difícil superação.

 

Referências

Barreto, I. S. (2002).Relatório do Seminário de Assistência Universitária na UFG. Goiânia: PROCOM/UFG.        [ Links ]

Canesin, M. T. et al. (2002). Contribuições conceituais sobre juventude, família e escola. Revista Educativa, 5(1), 51-78.        [ Links ]

Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos comunitários e estudantis. (2004). Carta de Goiânia – documento do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis. Goiânia. (Mimeografado)        [ Links ]

Gaskell, G. (2002). Entrevistas individuais e grupais. In M. W. Bauer & G. Gaskell (Orgs.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis, RJ: Vozes.        [ Links ]

Minayo, M. C. S. et al. (1999). Fala, galera: juventude, violência e cidadania na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond.        [ Links ]

Morgan, D. L. (1997). Focus groups as qualitative research. London: Sage Publications.        [ Links ]

Namura, M. R. (2003). O sentido do sentido em Vigotski: uma aproximação com a estética e a ontologia do ser social de Lukács. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.        [ Links ]

Sawaia, B. (2001). O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In B. Sawaia (Org.), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis, RJ: Vozes.        [ Links ]

Secretaria Nacional de Casas de Estudantes. (1993). Moradia Estudantil Universitária – Realidade brasileira. Gestão na luta para mudar. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso. (Mimeografado)        [ Links ]

Sousa, S. M. G. (2002). O trabalho infantil e o sofrimento ético-político. In B. B. Sawaia & M. R. Namura. (Orgs.) Dialética exclusão/inclusão: reflexões metodológicas e relatos de pesquisas na perspectiva da Psicologia social crítica. São Paulo: Cabral.        [ Links ]

Universidade Federal de Goiás. Pró-Reitoria de Assuntos da Comunidade Universitária. (1995). Relatório 1993. Goiânia: UFG/MEC.        [ Links ]

Vigotski, L. S. (2001). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua J-10, Q. e, L. 6 a 9, casa 5, St. Jaó
74673-240 – Goiânia-GO - Brasil
E-mail: liviams@ddrh.ufg.br

Recebido 19/11/2007
Reformulado 18/09/2008
Aprovado 25/09/2008

 

 

* Mestra em Psicologia pela Universidade católica de Goiás. Psicóloga do departamento de desenvolvimento de Recursos Humanos e coordenadora do Programa Saudavelmente da Universidade Federal de Goiás.
** Doutora em Psicologia social pela Pontifícia Universidade católica de São Paulo. Professora do departamento de Psicologia (graduação e pós-graduação) e Pró-Reitora de extensão e Apoio estudantil da Universidade Católica de Goiás.