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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.29 n.1 Brasília mar. 2009

 

EXPERIÊNCIAS

 

A assembléia de usuários e o CAPSI

 

The patients’ assembly and the CAPSI

 

La asamblea de usuarios y el CAPSI

 

 

Valéria Lima Bontempo*

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo mostra a concepção e o funcionamento da assembléia de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi) - em Betim, no Estado de Minas Gerais. O Capsi atende crianças e adolescentes psicóticos, autistas e neuróticos graves, e a assembléia de usuários é um dos seus dispositivos de tratamento. A assembléia é um espaço no qual os participantes utilizam a palavra como instrumento de expressão, introduzindo no Capsi mais uma forma de lidar com os pacientes graves (em crise ou não) bem como contribuindo com as discussões da clínica. Enfim, a proposta desse lugar de conversação chamado assembléia é possibilitar, pela via da palavra, a expressão do que o sujeito manifestaria em atos.

Palavras-chave: Assembléia, Criança e adolescente, Centro de Atenção Psicossocial Infantil, Palavra.


ABSTRACT

This artiche shows the conception and operation of the assembly of patients from the Center of Psychosocial Attention for the Child and Adolescent (Capsi) - in Betim in the State of Minas Gerais. The Capsi attends children and adolescents with psychosis, autism and serious neurosis and the assembly is one of the forms of treatment. The assembly is a space where the participants use the word as a way of expression, introducing in the Capsi other ways to treat serious patients (in crisis or out of crisis). The assembly also helps with reflexions about the clinic. Lastly, the proposition of this space of conversation called assembly is to enable through words what the person would manifest in acts.

Keywords: Assembly, Child and adolescent, Center of Psychosocial Attention for the Child and Adolescent, Word.


RESUMEN

Este artículo muestra la concepción y el funcionamiento de la asamblea de usuarios de un Centro de Atención Psicosocial Infantil (Capsi) - en Betim, en el Estado de Minas Gerais. El Capsi atiende niños y adolescentes psicóticos, autistas y neuróticos graves, y la asamblea de usuarios es uno de sus dispositivos de tratamiento. La asamblea es un espacio en el cual los participantes utilizan la palabra como instrumento de expresión, introduciendo en el Capsi una forma más de manejar los pacientes graves (en crisis o no) así como aportando con las discusiones de la clínica. En fin, la propuesta de ese lugar de conversación llamado asamblea es posibilitar, por la vía de la palabra, la expresión de lo que el sujeto manifestaría en actos.

Palabras clave: Asamblea, Niño y adolescente, Centro de Atención Psicosocial Infantil, Palabra.


 

 

A palavra assembléia vem do grego ekklésia, que tem, entre seus significados, chamar, convocar, reunir para determinada finalidade. Na Grécia antiga, ekklésia designava a reunião dos cidadãos, que eram chamados “para fora” de suas casas com o objetivo de participar do espaço público, ou seja, da ágora. Esse era o local onde se discutia e se deliberava sobre assuntos públicos relativos à pólis (cidade). Assim, a assembléia remete a um espaço democrático onde todos os participantes tinham o direito de fazer o uso da palavra.

Se, na Grécia, o termo ekklésia foi usado em um ambiente profano, em outros períodos de nossa História, ela obteve um sentido religioso. No Antigo Testamento, a palavra hebraica correspondente a ekklésia era quahal, que tinha, entre seus significados, “o povo de Deus”, referindo-se à congregação de Israel no deserto. Nessa perspectiva, fala-se em assembléia litúrgica, isto é, em “uma comunidade de fiéis hierarquicamente constituída, legitimamente reunida em determinado lugar, altamente qualificada por uma especial presença salvífica de Cristo”.

Na atualidade, alguns dos usos rotineiros da palavra assembléia são: assembléia de Deus, assembléia legislativa, assembléia de trabalhadores e assembléia de condomínio, dentre outros. Se o primeiro exemplo revela um sentido religioso do termo, os demais expressam idéias de organização e deliberação. Sendo assim, na contemporaneidade, há uma ressonância dos significados que o termo assembléia obteve ao longo da História.

No Centro de Referência em Saúde Mental Infanto-Juvenil (Cersami)1, o termo assembléia é usado para denominar o espaço onde os pacientes inseridos na permanência-dia (pd) utilizam a palavra como instrumento de expressão. A proposta desse lugar de fala chamado assembléia é possibilitar, pela via da palavra, a expressão do que o sujeito manifestaria em atuações ou em atos violentos.

Freud (1895/1995), em seu “Estudos sobre a Histeria”, discute as possibilidades da fala. De um lado, a fala exerce a função de contar, de lembrar, e, de outro lado, de enunciar, produzindo efeitos de sentido. Nesse contexto, Freud afirma que aquele que escuta poderia provocar no sujeito um saber não-sabido. E é nesse sentido que a fala deve ser entendida como “...um ato e também uma produção de desejo, pois ela articula assim o sujeito à sua estrutura, que se sustenta ao mesmo tempo pelas leis da linguagem e pelo saber da língua do inconsciente”.

Também Lacan (1998), ao analisar a função da fala e da linguagem em seus Escritos, explicita: “as palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito”. Elas podem, portanto, engravidar uma histérica ou mesmo representar qualquer outra coisa que tenha um significado para o paciente. Segundo ele: “Mais ainda, as próprias palavras podem sofrer lesões simbólicas, realizar atos imaginários dos quais o paciente é o sujeito”.

A implantação desse dispositivo no Cersami ocorreu em meados de 1997. Naquele momento, a equipe técnica sentiu a necessidade de criar uma estratégia que possibilitasse a participação dos pacientes na construção de seu projeto terapêutico bem como de um espaço em que as atividades e dificuldades relacionadas com o dia a dia do serviço pudessem ser discutidas. Desde sua criação, a assembléia é constituída pelos pacientes da pd, que aceitam o convite para participar desse lugar da palavra. Ela ocorre semanalmente, e seus participantes têm idades que variam (geralmente) de 10 a 18 anos.

Seguindo a lógica de criação desse dispositivo, o Cersami tem ainda, na atualidade, incorporado o entendimento de que esse dispositivo não constitui um grupo no qual os integrantes apresentam uma problemática comum. A assembléia é um espaço de encontro que pressupõe diferenças e até mesmo interesses divergentes, ou seja, é um espaço que se orienta pela “experiência particular de cada um e as estratégias pessoais construídas segundo tais experiências.” Assim, a assembléia tem o propósito de estabelecer um lugar onde a palavra de cada um é escutada e considerada, ainda que ela não tenha convergência com o dizer da maioria dos participantes.

Nossa idéia não é estabelecer um grupo com o objetivo de informar, orientar, ensinar ou mesmo realizar uma psicoterapia. Sobre esse ponto, Lacan (1998) afirma: “...A função da linguagem não é aí de informar, mas de evocar. O que procuro na fala é a resposta do outro.” Assim, em nossas assembléias, pelo menos em princípio, não buscamos levar um assunto ou um conteúdo pré-fixado, orientar ou mesmo falar sobre os garotos ou garotas participantes. Nossa intenção é a de que eles falem sobre si próprios e façam da expressão do sintoma (daquilo que a crise manifesta) possibilidade de circulação da palavra.

Todas as reuniões da assembléia são registradas em atas, e nossa proposta é que, na medida do possível, os próprios pacientes a elaborem, como já aconteceu algumas vezes. Outro procedimento que tentamos adotar é ler essas atas no início de cada reunião. Nesse momento, buscamos trabalhar os seus efeitos em cada um ao ouvir o relato de sua fala.

Quanto aos profissionais que operam essa experiência, pensamos que “qualquer um que sustenta esse espaço deve mover-se pelo desejo de transmitir aos outros que, nesse lugar onde algo não pode ser totalmente dito, nem sabido de antemão, o sujeito tem a oportunidade de construir, de inventar uma resposta e que é preciso haver um lugar para isso”. Isso significa que o operador deve mediar a conversa de tal modo que um certo nível de enigma seja mantido, e, no caso de uma assembléia composta apenas por neuróticos graves, perguntas como: – “O que você quis dizer com isso?” são sempre bem-vindas para que cada um possa fazer as suas invenções. Contudo, no caso dos encontros que incluem pacientes psicóticos, entendemos que se deve manter um certo cuidado com o reconhecimento de um enigma, e restringimo-nos a colocar uma pergunta ou uma questão.

 

Algumas reflexões decorrentes da condução das assembléias de usuários

A partir de uma análise dos dizeres dos participantes das assembléias registradas em atas, pode-se verificar que esse espaço de fala realmente coloca os indivíduos em ação, ou seja, seus participantes são estimulados a produzir um sentido para as suas questões, suas dificuldades, suas alegrias, suas tristezas, enfim, para a sua vida. Para ilustrar essa situação, citamos as seguintes falas dos pacientes: “A assembléia é uma paradinha onde as pessoas conversam... falam para onde vão durante o mês...” (W. S., 17 anos); “Assembléia é um lugar onde discutimos os problemas da vida...” (C. S., 15 anos).

Sobre a doença, algumas frases extraídas também das atas das assembléias indicam como esse dispositivo pode contribuir para a construção de um sentido para as questões dos pacientes: “Estou sem vontade de fazer as coisas, muitos pensamentos negativos, fico preocupado sobre o que vou falar com minha médica, se continuo ou não tomando remédio; tudo ficou escuro, é um inferno, queria melhorar e não melhoro” (C. A. S., 16 anos); “Eu já não acho a minha doença um inferno, eu sonho com o céu, com anjos” ( S. A. B., 17 anos); “Você tem que acordar e eu também. Ele nasceu assim, falta algo na cabeça dele. Ele é autista” ( G. S. , 13 anos); “Se ele é autista, você também é” (C. S., 17 anos); “Um menino perto da minha casa falou que minha doença é porque eu tinha mania de inventar palavras estranhas. Eu acho que não é isso, isso era só brincadeira. Eu acho que minha doença é espiritual. São pensamentos malignos, negativos que ficam na minha cabeça. Eu já tentei ficar só pensando coisas positivas, mas não funcionou”; “Fico falando na cabeça da minha mãe, mas preciso parar com isso. Sou muito agarrado com ela. Acho que eu preciso distrair minha cabeça, fazer esportes, rezar” (B. A. S., 16 anos); “Fiquei doente quando a parede começou a mexer, eu falava, é só ilusão, mas não parava de mexer, vozes no meu ouvido, as vozes ficavam gritando” (D. P., 15 anos); “O problema da G. é que ela não lembra das coisas, ela fica parada olhando para as coisas, fica perdida” (E. P. S., 17 anos).

Um dos desafios na condução desse dispositivo foi a própria diversidade dos pacientes: retardo mental acentuado, psicose, autismo e neuroses graves. O manejo dos técnicos nas conversas é algo muito delicado e exige uma avaliação permanente de cada assembléia realizada. Não podemos perder de vista o fato de que nosso objetivo é resguardar as diferenças e identificar os benefícios da assembléia em cada um desses pacientes, ou seja, analisar os efeitos da assembléia caso a caso.

Outro ponto sobre o qual refletimos durante a operacionalização desse dispositivo foi que a assembléia não é um grupo terapêutico, entendendo grupo terapêutico como um espaço no qual os pacientes trazem suas questões e é feita uma elaboração sobre delas. Tampouco nosso objetivo é trabalhar a partir das semelhanças e identificações entre os participantes das assembléias. Acreditamos, porém, que a assembléia tenha uma função terapêutica, justamente porque é um espaço de expressão, de fala dos pacientes e que pode provocar mudanças.

Também é uma questão permanente para nós, na condução das assembléias, considerar o lugar dos operadores desse dispositivo diante do delírio de um paciente. Acolher? Ter uma posição mais normativa? Remeter para o técnico de referência do caso? Ter um papel de mediação junto aos demais participantes do grupo? A partir das discussões dessas questões com a equipe do Cersami, chegamos à conclusão que, a priori, não devemos adotar nenhuma diretriz pré-fixada. Diante de um paciente que está delirando e que aceitou o convite para participar da assembléia, nossa intervenção deve estar condicionada à singularidade de cada sujeito, portanto, nossas intervenções podem variar conforme o caso.

Por fim, avaliamos que, nas assembléias cujos usuários possuem um nível de “desorganização” muito grande, o uso da mesa e/ou de um espaço fechado para a realização da assembléia é organizador. Esse aspecto foi muito curioso, pois, inicialmente, nossa proposta era fazer a assembléia em círculo, sem qualquer objeto se interpondo entre os seus participantes. Contudo, percebemos que o uso ou não de recursos materiais como mesas, cadeiras, folhas de papel, lápis de colorir e o próprio espaço da assembléia também não devem ser definidos a priori. Esses aspectos só devem ser estabelecidos a partir da avaliação dos pacientes que vão compor a assembléia.

Observamos ainda que a assembléia tem maior adesão dos pacientes quando permitimos que, durante a sua realização, atividades tais como brincar, colorir, desenhar ou cantar sejam executadas pelos pacientes que não estão conseguindo falar e acompanhar os assuntos abordados. Começamos a agir dessa maneira porque, muitas vezes, a dificuldade do paciente em permanecer na assembléia todo o tempo era tamanha que ele saía da roda e não retornava.

Foi então que constatamos que esse espaço de fala apresenta melhores condições para garantir a participação dos usuários quando permitimos que alguns pacientes realizem atividades paralelas durante a mesma. Consideramos que essas atividades funcionam como uma mediação para que o paciente permaneça na assembléia de um modo diferente. Enfim, nossa conclusão é que essa estratégia tem criado uma situação favorável para que o paciente com dificuldades em participar de todo o percurso de uma assembléia permaneça na roda e faça uso da fala no momento que lhe seja possível.

 

Referências

Centro de Referência em Saúde Mental Infanto-Juvenil de Betim. (2006-2007). Livro de atas. Betim, MG.        [ Links ]

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Houaiss, A., Villar, M. de S., & Franco, F. M. de M. (2001). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.        [ Links ]

Kaufmann, P. (1996). Dicionário de psicanálise (p. 190). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

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Projeto de Saúde Mental Infanto-Juvenil de Betim. (1996). (Mimeografado)        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Valéria Lima Bontempo
Rua Viçosa, 727/301, bairro São Pedro
30330-160 - Belo Horizonte – MG - Brasil
E-mail: valerialimabontempo@hotmail.com

Recebido 07/11/2007
Reformulado 10/08/2008
Aprovado 18/08/2008

 

 

* Assistente social do Cersami – Centro de Referência em Saúde Mental Infantil de Betim/MG, Mestre em Filosofia pela UFMG e professora de Filosofia da PUC/MG
1 Cersami é o nome dado ao Caps infantil no Município de Betim, criado em 1994.