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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.29 n.4 Brasília dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Psicologia e modos de trabalho no contexto da reforma psiquiátrica

 

Psychology and work forms in the context of the psychiatric reform

 

Psicología y modos de trabajo en el contexto de la reforma psiquiátrica

 

 

André Luis Leite de Figueiredo Sales*; Magda Dimenstein**

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho versa sobre os modos de trabalho de psicólogos no contexto dos CAPS. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo realizada a partir de entrevistas semi-estruturadas com 10 psicólogos da rede de saúde de Natal, RN. Os focos da investigação estiveram voltados para o conhecimento sobre reforma psiquiátrica e o modo como os profissionais se percebem enquanto trabalhadores do campo. Especificamente, buscou-se conhecer como os psicólogos têm se inserido nesse campo de luta e como têm desenvolvido seu trabalho cotidiano. Discutem-se as relações entre esses aspectos e a construção dos atos de cuidados desenvolvidos cotidianamente nos serviços bem como as possibilidades de mobilizá-los para efetivação da reforma psiquiátrica na perspectiva de desinstitucionalização da loucura.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, Saúde mental, Psicologia, Modos de trabalho.


ABSTRACT

This study considers the work forms of psychologists in the context of the Centres for Psychosocial Care – CAPS. The investigation focused the knowledge about the psychiatric reform and the way that professionals perceive themselves as workers in this area. Specifically, the objective was to know how psychologists have conducted their daily work and how the deinstitutionalized care proposal has affected them. The paper discusses the relationship between these aspects, the care provided and the possibilities to mobilize them in favor of the psychiatric reform for the deinstitutionalization of madness.

Keywords: Psychiatric reform, Mental health, Psychology, Work forms.


RESUMEN

Este trabajo trata sobre los modos de trabajo de psicólogos en el contexto de los CAPS.Se trata de una pesquisa de caracter cualitativo realizada desde entrevistas semi-estructuradas con 10 psicólogos de la red de salud de Natal, RN. Los enfoques de la averiguación estuvieron dirigidos al conocimiento sobre reforma psiquiátrica y el modo como los profesionales se perciben como trabajadores del campo. Específicamente, se intentó conocer como los psicólogos se han inserido en ese campo de lucha y como han desarrollado su trabajo cotidiano. Se discuten las relaciones entre esos aspectos y la construcción de los actos de atenciones desarrolladas cotidianamente en los servicios así como las posibilidades de movilizarlos para efectuación de la reforma psiquiátrica en la perspectiva de desinstitucionalización de la locura.

Palabras clave: Reforma psiquiátrica, Salud mental, Psicología, Modos de trabajo.


 

 

No Brasil, na década de 1980, teve início uma série de discussões que têm levado a uma gradativa transformação no modelo de assistência empregada no tratamento de pacientes com transtornos psiquiátricos. A reforma psiquiátrica visa, com o envolvimento de diversos atores sociais, a substituir o modelo hospitalar, segregador, excludente e tutelar que, por muito tempo, teve, e ainda tem, a primazia nos cuidados no campo dos transtornos mentais (Amarante, 1995).

Os avanços dessas discussões culminaram com a criação de uma série de políticas públicas que têm como objetivo a redução progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos, pari passu à construção de uma rede de serviços substitutivos capaz de prestar assistência mais qualificada à população que outrora dependia exclusivamente do hospital. Os principais recursos que hoje são implementados como alternativas terapêuticas aos manicômios são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços de Residência Terapêutica (SRTs) e os leitos psiquiátricos em hospitais gerais, o programa De Volta para Casa e os atendimentos prestados pelas equipes de saúde da atenção básica (Brasil, 2004).

Atualmente, estão em funcionamento, nos cinco distritos sanitários do Município de Natal/ RN, campo específico onde foi realizado nosso trabalho, dois CAPS II, dois CAPS Ad, um CAPSi, um ambulatório, uma residência terapêutica e um APTAD – Ambulatório de Prevenção e Tratamento do Tabagismo, Alcoolismo e outras Drogadições, implementado para realizar prevenção e tratamento de dependência química para usuários a partir de 14 anos bem como a orientação para seus familiares (Natal, 2007, p. 54).

Esses dispositivos visam a estabelecer cuidados em saúde mental na perspectiva de atendimento integral e territorial que preza pela permanência dos indivíduos na sua comunidade, favorecendo a formação de vínculos estáveis e a garantia dos direitos de cidadania. Uma mudança dessa ordem implica muitos desafios e ações intersetoriais. Em função disso, interessa-nos abordar um dos aspectos mais importantes dessa nova configuração do campo da saúde mental na contemporaneidade: os modos de trabalho com a loucura. Os psicólogos compõem uma categoria profissional historicamente vinculada ao campo da reforma psiquiátrica. Eles têm sido convocados a atuar nesse processo de luta antimanicomial como atores sociais importante, daí o nosso interesse em investigar o modo como essa categoria profissional tem se posicionado no complexo jogo de forças peculiar a esse campo. Especificamente, queremos saber o que os psicólogos pensam da proposta de desinstitucionalização preconizada pela reforma psiquiátrica em curso, conhecer a forma como têm se inserido nesse campo de luta e como têm desenvolvido seu trabalho cotidiano no contexto dos CAPS.

Entretanto, esse interesse está focado em uma perspectiva muito particular: a de considerar os aspectos “imateriais”, afetivos, de tudo o que se move não só em direção à criação, à invenção no cotidiano mas também aos processos de captura, cansaço e saturação que sufocam o trabalhador. Queremos detectar algumas pistas que possam interferir nas práticas desses profissionais nesse campo problemático que é a saúde mental, na descrença ou até quiçá, na “mortificação que produz subjetividades em fadiga ou subjetivações fatigadas” (Machado, 2004, p. 169).

Nesse panorama, Merhy (2002) traz um aporte fundamental para nosso estudo. Ele utiliza a noção de trabalho vivo e trabalho morto para considerar os atos produtivos humanos tanto em sua dimensão de produção de materiais e artefatos – como um sapato ou uma bicicleta – quanto para problematizar a dimensão das relações interpessoais. O trabalho morto, segundo o autor, seria aquele no qual está excluído qualquer ato criativo ou inovador. Ele é oriundo de ações anteriores nas quais foi produzido o conhecimento que o embasa, configurando um saber, ou uma tecnologia estruturada. Trata-se de um ato da ordem da reprodução, da repetição, algo semelhante a uma técnica bem fundamentada que pode ser aplicada em diversos contextos.

Já o trabalho vivo seria aquele no qual o trabalhador, fazendo uso dos saberes, dos conhecimentos pré-existentes, das técnicas e equipamentos disponíveis, executaria um ato intencional e criador a partir das diversas combinações possíveis que lhe são permitidas pelo acúmulo dos saberes a que nos referíamos anteriormente. Seria o momento no qual, tendo consigo uma intenção implícita ou explícita, os indivíduos têm diante de si a oportunidade de, em ato, agenciar algo que não estava posto, ou, mesmo que já o estivesse, agora poderá ser feito de modo particular, singular e próprio daquele que realiza a ação. O trabalho vivo é da ordem da criação, inovação, reinvenção.

Considerar a reforma psiquiátrica em sua perspectiva de desinstitucionalização requer, justamente, que se preserve ao máximo o potencial de trabalho vivo dentro dos serviços substitutivos. Desinstitucionalizar, no sentido mais radical do termo, é tentar desmontar a estrutura institucional para que se possa focar não a perspectiva de cura da doença na readaptação dos indivíduos, na normalização dos sujeitos, mas na existência de sofrimento humano como objeto real de uma intervenção (Rotelli, Leonardis, & Mauri, 2001). Essa perspectiva traz uma nova forma de entender o que seria o cuidado. Para os autores acima, cuidar significa tratar de atentar para o “aqui e agora, de fazer com que se transformem os modos de viver e de sentir o sofrimento do “paciente” e que, ao mesmo tempo, se transforme a sua vida concreta e cotidiana, que alimenta esse sofrimento” (Rotelli et al., p. 31). Um trabalho mais rigoroso com o conceito de deisinstitucionalização se faz necessário na medida em que este pode ser muito facilmente confundido com o de desospitalização.

É na articulação entre esses conceitos – desinstitucionalização e trabalho vivo – que pretendemos problematizar o trabalho dos psicólogos nos CAPS, a partir de uma pequena cartografia que versa sobre os conhecimentos que essa categoria profissional tem sobre a reforma psiquiátrica, bem como a forma como o trabalho cotidiano nessas instituições vem sendo desenvolvido. Essa perspectiva em nada exclui as questões relacionadas às políticas de gestão, à desarticulação da rede assistencial do SUS e mesmo à discrepância gritante entre o trabalho tal como preconizado pelas diretrizes da política nacional de saúde mental e aquele realizado no dia a dia dos serviços. Ao contrário, entendemos que as relações cotidianas dentro dos serviços, as tentativas diárias de inovar e os impasses enfrentados para tal são indissociáveis dos arranjos institucionais, do modo de organização dos processos de trabalho em saúde, enfim, da relação atenção/gestão (Santos-Filho, 2008). É essa a rota que queremos traçar de forma que seja possível encontrar indicativos, pistas e sinais dos pontos de paralisia e de estrangulamento que podem estar contribuindo para a reprodução de práticas asilares no contexto dos serviços substitutivos. Os psicólogos, como sabemos, vêm sendo alvo de inúmeras críticas pelo seu modo de atuação na saúde coletiva (Benevides, 2005; Dimenstein, 1998, 2000, 2001, 2004; Lima, 2005; Lima & Nunes, 2006). Pretendemos, além de identificar dificuldades, dar visibilidade às estratégias e às discussões que esses profissionais estão produzindo no sentido de fazer avançar tal processo.

 

Procedimentos metodológicos

O trabalho de pesquisa foi realizado em 2007 como parte das atividades desenvolvidas na disciplina Pesquisa em Psicologia, nos dois CAPS II e nos dois CAPS Ad localizados na cidade de Natal. Esses serviços foram selecionados por constituírem dispositivos fundamentais da política nacional de saúde mental. Foi um trabalho de cunho empírico, que utilizou como ferramenta metodológica um roteiro de entrevista semi-estruturado que versou sobre quatro eixos temáticos, a saber: 1. a formação acadêmica recebida nos cursos de graduação e as demandas de trabalho encontradas nos serviços; 2. mapeamento das atividades desenvolvidas na instituição; 3. conhecimento dos princípios ordenadores da reforma psiquiátrica e 4. autopercepção enquanto trabalhadores do campo da saúde mental. As entrevistas foram realizadas durante os meses de junho e julho de 2007, e os encontros com os profissionais aconteceram nos CAPS, sendo essa uma oportunidade para conhecermos a rotina de trabalho dos profissionais. Nossos participantes foram 10 psicólogos que compõem o quadro de técnicos desses serviços. Essa investigação contou com a aprovação da Secretaria Municipal de Saúde de Natal e com o consentimento dos profissionais indicados.

 

Quem são e o que fazem os psicólogos dos CAPS

Esse coletivo de trabalho apresenta o seguinte perfil: oito se formaram pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, um pela Universidade Federal da Paraíba e um pela Universidade Potiguar, instituição privada da capital. O estágio e o direcionamento do currículo durante a graduação estão marcadamente voltados para o trabalho clínico, e o enfoque teórico que direciona tais práticas clínicas são aqueles oriundos da psicanálise. O tempo de formação é superior a dez anos. Apenas uma das entrevistadas concluiu a formação no ano 2002 e ingressou na rede há pouco tempo via concurso público.

As principais atividades cotidianas indicadas pelos psicólogos foram: acolhimento dos usuários, triagens e retriagens, coordenação de oficinas diversas, participação em oficinas coordenadas por outros técnicos, grupos operativos, grupos terapêuticos e atendimentos individuais. Dois dos nossos entrevistados atuam como coordenadores dos serviços, sendo sua atribuição lidar com questões burocráticas e de logística do funcionamento do CAPS. A princípio, essas atividades estão de acordo com a proposta que norteia a criação dos serviços, pois essas unidades de saúde devem prestar

um atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de suas famílias. (Brasil, 2004, p. 12)

 

Psicólogos e a reforma psiquiátrica

Era nosso interesse problematizar o conhecimento dos psicólogos inseridos nos CAPS sobre o andamento da reforma psiquiátrica. Como esses profissionais avaliam o andamento do movimento? Qual seria, na visão deles, o papel do CAPS enquanto instrumento potencializador das mudanças em curso? Estaria esse dispositivo atendendo à sua proposta?

O contato desses profissionais com o movimento da reforma se deu durante os diversos fóruns de discussão e demais eventos promovidos principalmente pela Secretaria Municipal de Saúde/SMS, ocasiões em que foram avaliadas estratégias de implementação desses avanços em nível nacional e na realidade natalense. Convidados a falar sobre o assunto, a maior parte dos entrevistados aponta a mudança no modelo de assistência como o ponto mais visível e louvável. Eles enumeram, como principais avanços da reforma, a diminuição progressiva do número de leitos psiquiátricos, a introdução de outros dispositivos de cuidado, como o CAPS, a assistência prestada aos usuários na atenção básica, o reconhecimento de outras demandas – as problemáticas relacionadas ao consumo de álcool e de outras drogas, por exemplo – como da área de atuação da saúde mental, a criação e a manutenção, embora ainda incipiente, dos leitos psiquiátricos em hospitais gerais e a noção de trabalho a ser desenvolvido em uma rede de assistência.

Dentre os pontos elencados como avanços, a busca pela produção de uma terapêutica em que seja mantida a liberdade dos indivíduos mereceu destaque. Alguns profissionais descreveram com horror suas impressões em relação ao hospital psiquiátrico para contrapor a atividade que é desenvolvida nos CAPS, demarcando claramente as diferenças e os efeitos de uma perspectiva de cuidado que não está ancorada na lógica da segregação e do isolamento. Vejamos a opinião de um técnico:

Eu acho que o lugar diz muito do tratamento. Em uma das aulas de psicopatologia geral, eu fui ao hospital e fiquei horrorizada. Eu saí de lá com um nível de angústia muito grande ao ver as condições em que estavam aquelas pessoas; o sofrimento delas mexeu comigo. Inclusive, vi lá um rapaz que era conhecido da minha família, e ele estava enjaulado. A questão da liberdade é uma coisa que me mobiliza muito, então eu acho que, nesse sentido, o CAPS consegue, ele oferece tratamento mantendo a liberdade, ele é um lugar de acolhimento, um lugar que é bom de estar, eu penso que isso já é um avanço fundamental. (E5)

Dentro da perspectiva da mudança no modelo de assistência, quando se discute o lugar do hospital psiquiátrico na nova proposta de cuidado, foi ressaltada a idéia de que é preciso construir uma gama de serviços de acolhimento para os usuários a fim de o hospital ir perdendo gradativamente sua função. O movimento deveria acontecer em razão inversamente proporcional: à medida que crescem os serviços extra-hospitalares, vão diminuindo as internações e a necessidade de manicômios. Os profissionais, entretanto, estão cientes das outras questões de cunho político e econômico que estão em jogo no fechamento dos hospitais. Um deles se pergunta, inclusive, se isso é algo que poderia vir mesmo a acontecer:

Em 2001, eu participei da Conferência Nacional de Saúde Mental; lá houve um julgamento onde o réu era o hospital psiquiátrico. O veredicto declarou a extinção dos hospitais. Ele foi condenado à morte, que se daria de forma lenta: em dez anos ele deveria acabar. Acontece que ele está aí, mesmo mais arrumadinho, com alguma roupa diferente, um pouco mais aberto, com as internações menos demoradas; eles ainda estão aí. E a gente sabe que nessa questão tem interesses econômicos e políticos diversos. ... .Pois é, estamos em 2007, prazo de dez anos quase se esgotando, e nada do hospital morrer. Eu “tô” achando que ele não vai morrer, não. (E5)

Ao se interrogar sobre isso, o profissional atualiza o debate sobre os entraves ao fechamento do hospital psiquiátrico. São inúmeras as forças que atravessam essa questão, desde os interesses econômicos daqueles para quem essas instituições funcionam como grandes fontes geradoras de renda até aqueles da ordem da normatização e do controle social. É fato que existe hoje uma reorientação dos gastos com o setor hospitalar, pois, em 1997, 93,14% dos recursos destinados ao Programa de Saúde Mental eram empregados no hospital, restando apenas 6,86% para todos os demais serviços. Ao longo dos três últimos anos, esses recursos foram sendo progressivamente deslocados, tendo os gastos com os recursos extra-hospitalares atingido 51,33% do total investido em 2006 (Brasil, 2007). Embora seja preciso reconhecer esses avanços, não é possível desconsiderar que muitas forças atuam em um sentido contrário ao da mudança do modelo hospitalocêntrico, ou seja, existem interesses que atuam a favor da manutenção da lógica hospitalar. A inexistência de uma rede efetiva de serviços capazes de atender a demanda que hoje está concentrada no hospital é um deles.

Em Natal, não existem CAPS tipo III (serviços habilitados a realizar acolhimento 24 horas e mesmo internação em momentos de crise), os ambulatórios estão lotados, e as experiências de inserção de cuidados em saúde mental na atenção básica ainda são incipientes. Um problema que se coloca em todo o País diz respeito à existência de pacientes que, por terem perdido, ou por jamais terem tido vínculos familiares ou outro tipo de suporte social, residem no hospital. A retirada desses indivíduos dos manicômios tem sido um processo lento, e as principais estratégias adotadas até então são a criação de residências terapêuticas e o pagamento de uma bolsa com a qual se supõe que esses indivíduos possam vir a se sustentar (Brasil, 2004a). Natal conta com apenas uma residência terapêutica, onde estão alocados 07 residentes, sendo que só o Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado – principal instituição pública do Estado, conta atualmente com 20 moradores residentes.

Por fim, não é possível falar dos aspectos que entravam esse fechamento sem mencionar a função social cumprida por esses lugares na medida em que são instituições totais (Goffman, 1961), onde a vida é gerida até em seus aspectos mais simples e cotidianos – horários regrados, vigilância constante, possibilidades restritas, necessidades negligenciadas – que se destinam a “dar conta” daqueles que desafiam a ordem social com suas condutas enigmáticas e que não cabem dentro das normas e padrões (Amarante, 2003). Estamos ressaltando o manicômio enquanto estratégia privilegiada de controle a partir do qual a psiquiatria, tomando a loucura enquanto objeto, transformou a experiência da desrazão em doença – fato que implicou uma exclusão desses indivíduos das relações sociais. Desde então, foi-lhes negado o acesso aos direitos dos cidadãos comuns, à liberdade de circulação dentro da cidade, a entrada em determinados espaços e mesmo o direito de gerir sua própria vida ou de enunciar sua própria dor (Foucault, 2005). Também é fruto desse mesmo movimento a formação, no imaginário social, da loucura associada à vadiagem, à periculosidade, à agressividade, à irresponsabilidade, à violência e à indecência.

A existência de tais questões envolvidas não só nos fatores que dificultam o fechamento do hospital psiquiátrico como também na construção do modo como os profissionais entendem os processos de mudança pelos quais luta a reforma psiquiátrica levou-nos a problematizar a forma como essas questões se colocam para os psicólogos. Para tanto, buscamos saber o que eles entendiam por desinstitucionalização (Rotelli et al., 2001).

 

Psicólogos frente à desinstitucionalização

As falas a esse respeito mostraram um campo de dispersão, muito maior do que de consenso. Alguns profissionais remetem automaticamente à idéia de diminuição das internações, mostrando a confusão, bastante comum, entre desospitalização – redução de leitos psiquiátricos, saída do hospital psiquiátrico – e a desinstitucionalização.

É obvio que o trabalho de desinstitucionalização abrange também ações de desospitalização, entretanto, não se reduz a estas. Trata-se, além da saída do manicômio, de colocar como real objeto das intervenções o sofrimento dos indivíduos bem como de buscar com eles outras possibilidades de existência que dêem outros sentidos a suas vidas. Para além de diagnósticos que acabam funcionando como marcas que selam e limitam aquilo de que o indivíduo é capaz, busca-se intervir para gerar o novo, o inusitado, o mais potente, resgatando aspectos da vida que a instituição psiquiátrica – com todo o seu peso – acaba mortificando. Supomos que uma das noções mantenedoras do equívoco entre desinstitucionalização/desospitalização é a de que o paciente só está institucionalizado quando se encontra dentro dos muros de um hospital. Ela, entretanto, ignora a dimensão da institucionalização que se faz presente não só intra-muros mas também a céu aberto na vida diária das pessoas, estando até mesmo inscrita em seus corpos.

Alguns profissionais entendem que trabalhar a partir de outra perspectiva de cuidado em que se busca promover a cidadania, a autonomia e a criação de vínculos dos usuários com outras instituições já seria uma forma de desenvolver um trabalho na via da desinstitucionalização. “Veja, isso está aqui desde sempre. É essa a perspectiva maior quando atuamos para diminuir internações, de favorecer a autonomia, de buscar ajudar os usuários a andar com as próprias pernas, de acompanhá-los na busca de cidadania” (E5).

Segundo esses entrevistados, houve um incremento nas articulações e parcerias nos últimos anos no sentido de alcançar resultados mais promissores, mas reconhecem que esse avanço ainda é bem incipiente. Outro posicionamento encontrado foi aquele no qual se afirma explicitamente a necessidade de um trabalho que vise a uma mudança radical no lugar social dado à loucura.

Sem dúvida são avanços a redução de leitos, a desospitalização, esses são processos que têm contribuído para mudar a realidade. Agora é preciso trabalhar a cultura, a gente vem de uma cultura manicomial. O trabalho voltado para fora, para a rua, isso é que vai produzir esse tipo de mudança. A vida está lá fora. É preciso mostrar lá fora que é possível conviver com as diferenças. (E7)

Esse ponto de vista foi mencionado por profissionais que fazem uma leitura da realidade no qual reconhecem que muito do que acontece na vida cotidiana dos usuários – fora do serviço – está diretamente ligado aos estigmas que marcam o lugar da loucura em nossa cultura.

Quando um paciente psiquiátrico chega a uma unidade de saúde e o médico descobre que ele é portador de transtorno mental, manda ele logo para o CAPS, como se essa pessoa não tivesse outras doenças clínicas... Quando se faz isso, o resto do corpo, onde é que está? E a vida, onde é que está? Eu vejo isso como fruto da cultura manicomial, e, para trabalhar isso, só estando mais na rua, ganhando mais visibilidade, se fazendo mais presente. Circular, trocar informação, provocar debates, isso é que vai levar a outras mudanças. (E7)

Dar visibilidade à loucura, ganhar espaços, levar os usuários para a rua, para as escolas, enfim, ampliar o debate na sociedade, essa foi uma idéia recorrente entre esses profissionais.

Mesmo que os efeitos do que é feito aqui cheguem lá fora, ainda assim é pouco. ...Esse tipo de ação acaba funcionando como uma onda, vai se multiplicando, daí, pessoas que nunca tinham ouvido falar, que pensam que o lugar do louco deveria ser lá dentro do hospital, acabam tendo notícia de que hoje já existem outras possibilidades. Eu acho que o trabalho nesse sentido poderia ser mais ágil se nós conseguíssemos trabalhar intersetorialmente, em parceria com outras instituições, se pudéssemos fazer discussões na praça, na rua, fazer movimento. ...E a idéia era passar pela rua, levar a rua, dar visibilidade mesmo e levar as pessoas a se questionarem. Talvez no começo eles achassem estranho, depois poderia vir uma curiosidade e, em um dado momento, as pessoas iam se questionar. (E6)

Tomando esses três posicionamentos e as observações das rotinas dos serviços para avaliar de modo mais específico a atuação dos profissionais, foi possível constatar que aqueles que tinham uma posição mais clara sobre a proposta de desinstitucionalização, suas apostas e desafios, eram aqueles que desenvolviam um trabalho mais congruente com o preconizado pela reforma, logo, mais distante do modelo tradicional liberal privatista que ancora uma perspectiva de clínica eminentemente individual e a-histórica. Não estamos de modo algum estabelecendo uma relação linear entre ter uma compreensão mais clara do que implica uma desinstitucionalização e ter uma atuação diferenciada. Entretanto, os profissionais que pareciam conhecer a complexidade dessa discussão também empreendiam esforços no sentido de produzir práticas voltadas para a efetivação de uma atenção psicossocial, territorializada, atuação oposta aos modos tradicionais que se estabelecem pela via da repetição, da massificação e da reprodução serializada.

Resgatando as noções de trabalho vivo e morto apresentadas anteriormente (Merhy, 2002), temos um ponto interessante para seguirmos problematizando o cotidiano desses profissionais. O que eles apontam como importante para efetivar as mudanças na forma de cuidado – “circular, trocar informação, provocar debates, isso é que vai levar a outras mudanças” (E7); e a idéia era passar pela rua, levar para a rua, dar visibilidade, mesmo, e levar as pessoas a se questionarem, é justamente algo da ordem do trabalho vivo, ou seja, criar, a partir das diversas tecnologias que estão postas, artefatos novos que possam enriquecer as redes de conexões sociais dos usuários. Quando uma das profissionais falou sobre a idéia de montar um bazar permanente fora do serviço onde fossem vendidos os produtos das oficinas de artesanato, nos perguntamos: o que faz com que essas idéias não se concretizem, que seja tão difícil sustentar estados de ânimo para vivificar o sentido da vida no outro? (Merhy, 2007).

Os profissionais entrevistados não conseguem explicitar o porquê de essas ações não estarem acontecendo. Acreditamos que as dificuldades sejam de diversas ordens: falta de apoio das gestões, sobrecarga de trabalho – pois quase todos eles mantêm outras atividades além do CAPS –, dificuldade de conceber ações – que não aquelas de ordem eminentemente técnica – como um ato de cuidado em saúde, bem como a falta de engajamento e de reconhecimento dos aspectos políticos envolvidos na luta pela reinserção social. Em outras palavras, o trabalho com a loucura, nos serviços substitutivos, exige uma mudança nos modos de agir, de cuidar, de acolher, tarefa extremamente desafiante e produtora de sofrimento e exaustão nos profissionais. Se se busca a reinserção dos usuários no jogo das relações sociais, para isso, os profissionais sabem que os serviços precisam funcionar voltados para fora, buscando parcerias com as mais diversas instâncias – sociedade civil organizada, entidades religiosas, grupos comunitários diversos, etc. Caso funcionem somente como unidades de saúde que se prestam a oferecer uma assistência ambulatorial tradicional, pautada em velhos hábitos de trabalho e de trato com a loucura, o risco de se produzir novas cronicidades é grande. Esse tema já tem sido problematizado por alguns autores (Barros, 2003; Dimenstein, 2007).

Mesmo tendo idéias interessantes como a que acabamos de descrever, esses profissionais acabam executando trabalhos repetitivos, sem inovação, pautados em saberes antigos e bem estruturados, indicando que muitas iniciativas de mudança acabam sendo tomadas pela paralisia e acabam contribuindo para a repetição e a geração de cronicidade. Em nosso levantamento sobre as atividades desses profissionais, aquilo que eles reconhecem como sua especificidade de trabalho no serviço, aquilo que lhes diz respeito enquanto trabalhadores dos CAPS seriam os atendimentos individuais tradicionais. Assim, o risco de um lugar como o CAPS ser tomado pela lógica do trabalho morto, da paralisação, da cronificação, não está descartado. Segundo Dimenstein,

Observamos no funcionamento de alguns CAPS um modus operandi ambulatorial, centrado no trabalho individualizado de diferentes técnicos, com pouca inserção no território, o que dificulta a produção de trocas entre os diferentes atores sociais. Dificulta da mesma forma a concretização de sua meta, que é “a articulação em rede de diversos equipamentos da cidade, e não apenas de equipamentos de saúde, que pode garantir resolutividade, promoção de autonomia e da cidadania das pessoas com transtornos mentais. (p. 27)

Essas questões resultam em pontos de estrangulamento importantes que precisam ser mais abertamente discutidos entre as equipes, evitando, como diz Barros (2003), a parada do movimento, pois “sabemos que algo se cronifica quando paramos seus fluxos, quando naturalizamos nossas explicações, quando encontramos sempre as mesmas saídas ou quando não conseguimos mais inventar novas perguntas” (p. 203). Diversos trabalhos têm alertado para o problema, existente em todo o território nacional, de institucionalização dos CAPS, que se expressa na retenção de usuários, em modos de gestão resistentes em operar para fora do serviço e em produzir portas de saída e de circulação na rede, aspectos que podem estar transformando os CAPS em manicômios disfarçados. No cenário local, há certa impotência instaurada. Poucas intervenções são produzidas, poucas idéias se concretizam. Entretanto, elas já servem como alerta, como anúncio para a busca de saídas provisórias, mas transformadoras dessa subjetividade fatigada pelas rotinas, burocracias e preconceitos.

Como citado em outro trabalho (Dimenstein, 2006), essas dificuldades estão relacionadas a uma série de problemas em termos da qualificação da atenção e da gestão em saúde no SUS como um todo, que repercutem no âmbito específico da saúde mental, a saber: fragmentação do processo de trabalho e das relações entre os diferentes profissionais bem como da rede assistencial; baixo investimento na qualificação dos trabalhadores, especialmente no que se refere à gestão participativa e ao trabalho em equipe, e poucos dispositivos de fomento à co-gestão, à valorização e à inclusão dos gestores, trabalhadores e usuários no processo de produção de saúde, dentre outros. Além disso, o trabalho na perspectiva da atenção psicossocial implica acionar mecanismos que têm a potencialidade de romper e de gerar forças sociais capazes de produzir mudanças na ordem estabelecida, nos modelos de atenção e nas práticas profissionais cronificadas. Materializar tal política e reconfigurar o campo assistencial não é simples, pois requer um novo tipo de competência profissional, mudanças no processo de financiamento e gestão, no ensino e nos modos como produzimos os técnicos que aí operam. O psicólogo é um deles.

 

Psicólogos enquanto trabalhadores de saúde mental

Conhecer como os profissionais se percebiam/ sentiam enquanto trabalhadores do campo da saúde mental também foi um dos nossos objetivos. Referindo-se a isso, oito dos dez entrevistados apontam o binômio desafiosatisfação como aquilo que melhor definiria a sua vivência nos serviços.

O fator desafio é descrito como decorrente das dificuldades que enfrentam diariamente nas instituições. São elas, principalmente: falta de material para o desenvolvimento das oficinas; carência de recursos humanos qualificados as múltiplas problemáticas que assolam os usuários e que estão além do alcance da equipe – pobreza, desemprego, precárias condições de vida, violência doméstica e familiar; os progressos e as recaídas dos usuários – especialmente no caso dos CAPS Ad; a insegurança frente às crises dos pacientes – no caso dos CAPS tipo II; a necessidade de desenvolver ações sempre em uma perspectiva multidisciplinar; a remuneração insuficiente, que os obriga a manter várias atividades em paralelo, e, por fim, o fato de estarem em um campo no qual as demandas emocionais são intensas e no qual precisam estar sempre dispostos a acolher e a ajudar aqueles que chegam.

Já a polaridade da satisfação é alicerçada na percepção de que o trabalho está surtindo efeitos na vida dos usuários. Os profissionais aludem o tempo inteiro ao quanto é gratificante quando conseguem perceber os efeitos da freqüência ao CAPS na vida dos usuários, tal como a redução das internações ou mesmo a abolição da mesma. No caso dos CAPS Ad, os relatos dos usuários sobre sobriedade, melhoria na qualidade das relações familiares e mesmo de abstinência total do consumo de drogas surgem nos discursos dos profissionais como fontes de satisfação e contentamento.

Os desafios, principalmente no que diz respeito aos aspectos relacionados ao modo como os técnicos são afetados por seu campo de trabalho, serão nossos focos de atenção. Faremos isso por acreditar que os CAPS foram criados com o intuito de realizar uma crítica ao modelo manicomial e de construir práticas alternativas de cuidado. Atuar nesses serviços traz muita inquietação e incômodo para os profissionais. Merhy destaca que, durante processos de acompanhamento realizado junto a profissionais dos CAPS, tem encontrado sentimentos de pavor diante das crises dos usuários e relatos de muita dificuldade em prestar o acolhimento, em uma perspectiva de cuidado cujo propósito é ser gerador de melhoria das condições de vida do paciente. Diante disso, ressalta a necessidade de que se criem, além das estratégias de supervisão clínico-institucional já praticada em muitos serviços, espaços onde a equipe possa compartilhar suas angústias, receios, medos, dúvidas e inseguranças. Ele afirma que “há de se instituir como parte do cotidiano... arranjos auto-geridos pelos trabalhadores que lhes permitam reordenar suas tristezas e sofrimentos, realizando, inclusive, autocuidado como cuidadores” (Merhy, 2007, p. 62). Esses espaços privilegiariam a revisão e a construção das práticas, na medida em que os trabalhadores,

que procuram caminhar por aí, interrogam de modo bem produtivo o seu próprio fazer manicomial, interrogam o que lhes entristece e o que os exaure, e com essas interrogações abrem oportunidades de se re-situarem em relação às novas possibilidades antimanicomiais. (Merhy, 2007, p. 62)

Em outras palavras, não é possível organizar um serviço que produza cuidado e alívio para os usuários sem construir mecanismos de cuidado para os cuidadores, “mecanismos descapturantes do trabalho vivo em ato” (p. 64), sem gerar alívios produtivos e estados de alegria nos trabalhadores, sem qualificar vidas. Dessa forma, o autor defende a possibilidade de usarmos a alegria/tristeza enquanto dispositivo analisador da prática dos técnicos. A alegria aqui é focalizada a partir da leitura que Deleuze faz de Espinosa, que diz respeito à efetivação das potências de vida pelas quais o homem estaria apto a recuperar seu papel ativo e criador na própria existência (Noronha, 2003). Nessa concepção, os indivíduos são dotados de maior ou menor poder de serem afetados pelas forças que se colocam em um dado contexto, pois “cada indivíduo é um arranjo singular de relações (corporais, afetivas, sensoriais, ideativas)... A todo momento, essas relações se modificam, se recompõem ou se decompõem em decorrência dos encontros casuais do indivíduo com os outros corpos no mundo” (Noronha, 2003, p. 132).

Esse complexo jogo de forças de afetar e ser afetado fará com que os sujeitos estejam construindo e desconstruindo a realidade que se apresenta o tempo inteiro. O universo, tanto interior quanto exterior, é sempre modificado pela forma como se dão tais encontros, sendo os sujeitos sempre “um efeito estável e provisório, pois a sua subjetividade é a efetuação do movimento infinito de composição de forças corporais, sensoriais, ideativas, perceptivas, de onde emergem modos singulares de existir” (Noronha, 2005, s.n.).

Os encontros ao acaso dos indivíduos no mundo podem provocar tanto o aumento dessa potência de vida quanto sua diminuição, que acontece quando o encontro produz um efeito destrutivo e desorganizador da dinâmica das forças presentes nos corpos. Sendo assim, a alegria, em Espinosa, seria um momento no qual “há um aumento da potência de pensar e agir... (sendo que) o excedente de potência a nosso dispor imprimirá ao pensamento um movimento de investigação e conhecimento do que passou” (Noronha, 2003, p. 133).

Já a tristeza ocorreria quando nossos pensamentos e ações assumissem uma posição “em que ficamos sem autonomia de ação e pensamento, reféns do que Espinosa denomina “mau encontro”, imersos em uma dinâmica de medo, ódio e até mesmo da alegria compensatória da vingança” (Noronha, 2003, p. 132). Ao sabor dos encontros, somos levados a experimentar tanto paixões tristes quanto paixões alegres, sendo que cada uma delas implica a adoção de um modo diferente de nos posicionarmos frente à vida.

Perante as primeiras, tendemos a buscar formas de afastar o objeto que está a nos entristecer, perdemos a autonomia, passando a funcionar de forma reativa. Já quando tomados pelas segundas, a sensação de aumento de potência, de incremento energético favorece a autonomia, a criatividade, a inventividade, a busca de inovações. Por isso, da alegria, derivam “formas vigorosas de pensamento e de ação que nos levam tanto a combater modos de existência empobrecidos e tristes quanto a lutar pela constituição de modos de existência subjetiva e social que favoreçam o movimento de expansão próprio à vida” (Noronha, 2003, p. 133).

Outro efeito do contágio por essas paixões seria o aumento da capacidade de agenciar encontros capazes de aumentar cada vez mais essa potência, estando então o indivíduo mais pronto para potencializar as condições de vida tanto da sua existência quanto da existência daqueles que o rodeiam. É justamente essa capacidade de aumentar a potência de vida na busca por formas outras de existência que deveria orientar o trabalho dos profissionais nesses serviços. O CAPS, quando considerado à luz das idéias da desinstitucionalização, deveria trabalhar para amenizar o sofrimento dos seus usuários a partir da construção de estratégias geradoras de novidades, de cuidados novos, de novos modos de vida para os sujeitos, sem que estes precisem estar adaptados aos padrões de normalidade que regem o funcionamento da nossa sociedade. É preciso que os técnicos favoreçam encontros criadores e geradores de alegria para que cada um possa construir, a partir das potências que lhes são próprias, formas de existir que impliquem a diminuição do sofrimento.

É por isso que retomamos a idéia de que se sejam desenvolvidos dispositivos de cuidado para esse cuidadores, a fim de que não passem a desenvolver seus trabalhos diários de forma repetitiva, mortificadora e estanque, vindo a desperdiçar o imenso potencial que está presente no seu cotidiano. Esses espaços de autocuidado podem constituir grupos autogeridos, nos quais possa haver a circulação livre de falas e dos afetos, em um modelo que lembra aqueles empregados nas rodas de conversas presentes nas oficinas dos CAPS. Seriam encontros nos quais a equipe estaria reunida com o intuito de compartilhar angústias, medos, inseguranças e incertezas bem como alegrias, conquistas, vitórias e os tantos outros afetos que experimentam no dia a dia dos serviços. Tal dispositivo auxiliaria esses trabalhadores a não se sentirem esgotados, paralisados e sem forças diante de um contexto de trabalho em que a inovação é a palavra de ordem.

Sendo assim, o que estamos aqui defendendo como um ato de cuidado voltado para o cuidador seria o reconhecimento da importância de instrumentos dessa ordem que ajudem a promover dentro do campo da saúde – onde predominam práticas cristalizadas, dotadas de um automatismo quase maquinal – rupturas nessa lógica de funcionamento que não tem dado conta satisfatoriamente das necessidades levantadas no cotidiano.

A aposta que fazemos é em algo simples, sem custos adicionais para os serviços e sem necessidade de imposição da gestão, na medida em que lhes competiria apenas promover a criação desses espaços de conversa da forma mais adequada à rotina de cada serviço – por acreditarmos que não se pode padronizar e institucionalizar esse espaço – e incentivar a sua operacionalização como um lugar efetivo de trocas de experiências e afetos, a fim de que os trabalhadores possam se sentir capazes de facilitar o processo de reconstrução das vidas de usuários e familiares. Concordamos com Machado (2004) quando afirma que

Quando se está em fadiga, procurase sustentar a ilusão de estabilidade, promovendo-se apenas rearranjos nas possibilidades... Uma “sobrevida” que se restringe ao visível, às percepções, aos sentimentos, à razão, à inteligência. A multiplicidade da vida não encontra passagem para ressoar em uma “sobrevida”. A turbulência e suas vibrações são amortecidas e cessadas pela anestesia que impermeabiliza a pele. As forças intensivas são capturadas ou circunscritas pelos modelos, em lugar de os estremecerem. (p. 170)

É na tentativa de minimizar os efeitos geradores e mantenedores dessa sobrevida que defendemos a operacionalização desses espaços e sua inclusão na rotina de funcionamento do CAPS.

 

Considerações finais

Enquanto fenômeno social complexo, podese levar em conta o processo de reforma psiquiátrica em suas diversas dimensões, todas entrecruzadas e interdependentes. Há um plano teórico-conceitual, no qual está em debate a construção e a desconstrução do objeto da psiquiatria; um plano técnicoassistencial – que é o lócus privilegiado da busca de novas formas de atendimento e de acolhimento àqueles que estão em sofrimento, da problematização dos modos de interação entre usuário e profissionais e das respectivas implicações na implementação de práticas terapêuticas mais humanizadas; o jurídicopolítico, que trata dos direitos e do exercício da cidadania, e o plano sociocultural, no qual estão inseridas as noções de loucura presentes no imaginário popular (Amarante, 1999).

Queremos chamar a atenção para esse último ponto, pois é nele que estão alocados com maior vigor a questão da institucionalização da loucura e seu enraizamento no plano sociocultural. Há no nosso imaginário tantas cristalizações, modelos identitários, estigmas e concepções apriorísticas sobre o que é um louco, que tipo de tratamento é mais adequado, que se torna uma tarefa extremamente árdua para os profissionais de saúde mental não se deixarem capturar por essas lógicas “manicomializantes”. Esses aspectos, que, por estarem tão cristalizados e tomados como naturais dentro da nossa forma de pensar, sentir e agir, são justamente aqueles que dificultam as mudanças almejadas por aqueles que defendem a reforma.

Para que se possam viabilizar transformações na ordem da cultura, é preciso, pois, se engajar na mudança do lugar social dado à loucura, diminuir os estigmas colados aos loucos, trabalhando na diminuição do preconceito e na inserção desses indivíduos no jogo das relações sociais, para fugir das capturas dos “desejos de mânicomio”.

Para escapar da lógica de produção de atos de saúde como procedimentos e “realizarmos no agir diário, junto aos outros, dentro de nossos campos de responsabilidades e competências, processos relacionais comprometidos com a construção de sujeitos sociais protagonizadores de seus modos de caminhar na vida, individual e coletiva e sermos comprometidos com a permanente ótica de cuidar dos outros, das relações, de si e do mundo” (Merhy, 2001), é preciso enfrentar uma série de desafios que vão muito além dos aspectos burocráticos ou administrativos e da delimitação de espaços profissionais. (Dimenstein, 2006, p. 11)

Ao colocarmos alegria/tristeza enquanto analisadores dos modos de trabalho em saúde mental, partimos do pressuposto de que são uma espécie de termômetro dos afetos que circulam e das rotinas de cuidado. Acreditamos que, em uma equipe na qual predominem as paixões alegres, as chances de os atos de cuidado serem produzidos de forma inovadora, criativa, a partir da reinvenção dos procedimentos técnicos já delimitados e desvitalizados, é bem maior do que aquela na qual predominem as paixões tristes, o cansaço e o medo. Em outras palavras, praticar um trabalho clínico – principal atividade realizada pelos psicólogos dentro dos serviços – libertário, inovador e que ponha em curso a possibilidade de reinventar, recriar e reconstruir as formas de se estar no mundo se torna uma tarefa bem mais difícil quando esses profissionais estão dominados pelas paixões tristes, pelo cansaço e pela falta de vigor causados pelo dia a dia, fatigados e aprisionados pelo peso do saber técnico. Sob o efeito dessas forças, tomados por esse tipo de paixões, acreditamos que a clínica por eles empreendida tenda a ser aquela do enquadramento nosológico, das classificações nosográficas e das normatizações, em que se parte de concepções universalistas acerca da natureza humana, da subjetividade, bem como de uma crença na eficácia intrínseca das técnicas utilizadas1 (Dimenstein, 2000).

Sabemos que o simples fato de existir espaços de reflexões para equipe, ou mesmo de esta estar tomada por paixões alegres, não garante que as práticas estejam isentas de serem capturadas. Acreditamos, entretanto, que o caminho da reflexão seja indispensável para que se possa traçar uma resistência, assim como a força oriunda das paixões alegres pode ser de grande utilidade para pôr essa resistência em prática. Um agir mais implicado que possa utilizar-se dessas pistas e indicadores para orientar as práticas pode ser uma via de construção de algo novo, para além dos muros e das grades das casas onde funcionam os serviços, de forma que os indivíduos com transtornos mentais possam transitar com maior fluidez nos diversos espaços da cidade.

Em última instância, o trabalho na via da desinstitucionalização da loucura, no sentido posto pela psiquiatria democrática italiana, pretende modificar a forma como lidamos cotidianamente com a diferença, com aquilo que não cabe dentro da norma, do instituído. Esse seria o maior desafio a ser enfrentado por aqueles que têm tentado atuar no campo da reforma psiquiátrica. Há avanços e retrocessos nesse percurso, contudo, acreditamos que seja possível construir uma sociedade menos presa a manicômios – sejam eles físicos ou mentais.

 

Referências

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Endereço para correspondência
André Luis Leite de Figueiredo Sales
UFRN, CCHLA, Deptº de Psicologia, Campus Universitário
CEP: 59078-970, Lagoa Nova, Natal – RN - Brasil
E-mail: andreluislfs@gmail.com

Recebido 07/08/2008
Reformulado 27/04/2009
Aprovado 20/05/2009

 

 

* Psicólogo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, técnico da Coordenação Estadual de Saúde Mental, Natal, RN – Brasil. Bolsista de apoio técnico/CNPq.
** Psicóloga. Doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN – Brasil. E-mail: magda@ufrnet.br
1 Na perspectiva que adotamos as subjetividades são entendidas “como algo que se faz, se desfaz e se refaz a cada instante, atravessada por uma multiplicidade de forças que, também a cada momento, se compõem, decompõem e recompõem” (Coelho, 2005, s.n.). Para além de modelos estáticos, congelados e fixos, pensamos subjetividades dinâmicas, flexíveis, inventivas e diversas que vão se constituindo como um sistema complexo, heterogenético e distante do equilíbrio, sofrendo constantes bifurcações a partir dos diversos encontros com as várias forças que se apresentam na vida dos indivíduos (Rolnik, 1999).