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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.30 no.1 Brasília Mar. 2010

 

ARTIGOS

 

Sublimação e clínica psicanalítica

 

Psychoanalytical clinic and sublimation

 

Sublimación y clínica psicanalítica

 

 

Sissi Vigil Castiel*

Sigmund Freud Associação Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A participação da sublimação na clínica analítica foi vista de diferentes formas por Freud. A técnica analítica tem sido, desde seus primórdios, a possibilidade da emergência da palavra e do simbólico. No entanto, esse processo passa por muitas rupturas, nas quais as estratégias da clínica vão se remodelando. Pretendo indicar essas transformações e os impasses pelos quais passa a técnica analítica em Freud até sua forma final. Dentro desse contexto, pretendo destacar o papel da sublimação na técnica analítica e a sua relação com a direção da cura, no sentido de que as criações de um sujeito são parte importante da dimensão terapêutica da análise.

Palavras-chave: Técnica analítica, Sublimação, Transferência, Cura.


ABSTRACT

Since its primeval times, the analytical technique has been the possibility for both, the word and the symbolic, to emerge. However, this process goes through many disruptions, as the strategies of the clinic are remodeled. I intend to outpoint these transformations as well as the impasses which Freud’s analytical technique goes under, until its final form. In this context I intend to highlight the role of sublimation in the clinic and its relation with the direction of the cure, in the sense that the creations of a subject are important part of the analytical process therapeutic dimension.

Keywords: Analytical technique, Sublimation, Transference, Cure.


RESUMEN

La participación de la sublimación en la clínica analítica fue vista de diferentes formas por Freud. La técnica analítica ha sido, desde sus primordios, la posibilidad de la emergencia de la palabra y del simbólico. Sin embargo, ese proceso pasa por muchas rupturas, en las cuales las estrategias de la clínica se van remodelando. Pretendo indicar esas transformaciones y los obstáculos por los cuales pasa la técnica analítica en Freud hasta su forma final. Dentro de ese contexto, pretendo destacar el papel de la sublimación en la técnica analítica y su relación con la dirección de la cura, en el sentido de que las creaciones de un sujeto son parte importante de la dimensión terapéutica del análisis.

Palavras clave: Técnica analítica, Sublimación, Transferencia, Cura.


 

 

A prática clínica impõe, sempre, muitos questionamentos. Um deles se relaciona com a questão da dimensão terapêutica da análise. Ainda que a cura esteja entre parênteses – na medida em que a psicanálise não objetiva o alívio de sintomas, por exemplo – isso não quer dizer que a dimensão terapêutica não faça parte da experiência analítica e não diga respeito ao analista. É necessário que a prática clínica se volte também para a questão terapêutica, do contrário, a análise se reduz a questões puramente filosofantes.

O objetivo da análise se relaciona a uma transformação pulsional, no sentido de um funcionamento psíquico heterogêneo. Essa transformação pulsional tem a ver com a modificação dos destinos pulsionais, no sentido da criação de alternativas e de novas formas de obter satisfação de acordo com a castração; portanto, não só o passado tem uma dimensão importante na clínica mas também o presente e o futuro. Pensar nisso é também repensar quais são os dispositivos de que dispõe a clínica psicanalítica para enfrentar a direção da cura. Nesse sentido, a sublimação constitui um conceito que tangencia a questão da cura, mas que nem sempre foi utilizado da mesma forma e em toda a sua potencialidade no discurso freudiano.

Freud (1940/1994) indicou, em um momento mais tardio de suas formulações teóricas e técnicas, que a direção do trabalho analítico estava relacionada à castração e, de alguma forma, à sublimação. com efeito, se se considera a sublimação como um destino pulsional que se relaciona às criações do sujeito na cultura, percebe-se, nesse processo psíquico, uma utilidade clínica, pois não haveria uma vinculação da cura analítica com o destino pulsional que se relaciona às criações do sujeito sem renunciar a seu desejo e, por outro lado, que esteja de acordo com a castração? Aí estaria toda a positividade do conceito de sublimação e sua vinculação com a direção da cura.

Ocorre que o conceito de sublimação nem sempre foi utilizado segundo essa perspectiva. Um dos prejuízos do entendimento do processo sublimatório como a passagem dos objetivos sexuais para não sexuais implicou, muitas vezes, na literatura pós-freudiana, o fato de a sublimação ser pensada a partir de uma visão idealizada, sendo considerada como assunção de valores mais elevados. Por esse motivo, a sublimação foi sendo deixada de lado como conceito metapsicológico e como procedimento técnico.

Na verdade, a técnica analítica tem sido, desde seus primórdios, a possibilidade da emergência da palavra e do simbólico. No entanto, esse processo passa por muitas rupturas, nas quais as estratégias da clínica vão se remodelando. Pretendo indicar essas transformações e os impasses pelos quais passa a técnica analítica em Freud até sua forma final, destacando nesse percurso o papel da sublimação como emergência do simbólico. Afinal, se a criação faz parte da análise, nada mais justo do que pensar de que forma participa a sublimação na técnica analítica.

 

A técnica analítica

No início de seu trabalho, Breuer e Freud (1893/1994), na “comunicação Preliminar”, partiam da seguinte hipótese: na histeria, diante de um acontecimento real traumático, o paciente, por suas condições internas, não conseguia metabolizar a experiência traumática. Esta constituía um elemento isolado fora da consciência, tornando-se patogênica. A partir disso, o método de tratamento elaborado por ambos consistia em utilizar a hipnose para fazer o paciente voltar à cena do acontecimento que se tornou patogênico, de forma que se pudesse unir a lembrança do acontecimento à emoção que lhe estava associada. Assim, a emoção se sujeitaria à correção associativa, introduzindo-se na consciência normal. A ideia em que baseava esse processo de tratamento era transformar a representação do acontecimento traumático esquecido em palavra; portanto, já desde o início, a linguagem teve um papel fundamental no método de tratamento.

Na “Psicoterapia da Histeria”, Freud (1893- 1895/1994) incluiu novos pontos de vista, o que o levou a abandonar a hipnose como método terapêutico. O fato de que a representação psíquica do acontecimento traumático pressupunha tanto uma defesa como uma força em sentido contrário implicou a revisão dos resultados da hipnose por Freud. A defesa se manifestava sob a forma de resistência. A hipnose não se defrontava diretamente com a resistência, apenas a contornava. como conseqüência disso, esse método não podia afetar as causas subjacentes da histeria; assim, não podia evitar que novos sintomas tomassem o lugar daqueles que eram eliminados através da hipnose.

A defesa impelia a ideia para fora da associação e se opunha ao seu retorno à memória. Em consequência, não lembrar estava relacionado a uma defesa que consistia em uma força de repulsão com a finalidade de se defender da ideia incompatível, que se tornara patogênica como resultado de sua expulsão e recalcamento. Freud afirmou: “O não saber do paciente histérico era de fato um não querer saber” (Freud, 1895/1994, p. 236). A partir dessa constatação, Freud substituiu a hipnose pela sugestão, uma vez que, se o paciente sabia, era puramente uma questão de poder triunfar sobre a defesa do ego contra a ideia patogênica para que o paciente pudesse recordar o acontecimento traumático esquecido. A resistência era o obstáculo a ser vencido. A maneira inicial de vencer a resistência era através da sugestão como uma tentativa de se opor a ela.

Na “Psicoterapia da Histeria”, Freud referese, além disso, à transferência como uma falsa ligação que seria, na verdade, uma forma de resistência. Tendo em vista que a recordação da representação ausente traria sofrimento, o paciente passava a revivê-la em relação ao médico. Seria preciso então vencer esse obstáculo de forma a poder chegar à representação recalcada.

A ideia que perpassava essa utilização da transferência é que, através dela, se podia chegar ao passado esquecido. Freud procurava uma representação que, se fosse transformada em palavra, restituiria a continuidade da memória. A partir do fracasso parcial da análise de Dora, no entanto, Freud colocou a transferência como primordial na análise, a ponto de apontá-la como o motivo principal da interrupção do tratamento da paciente.

Nesse período inicial, que se estendeu desde “A psicoterapia da Histeria” até a análise de Dora (Freud, 1994/1905b), a técnica analítica objetivava tornar consciente o inconsciente para que, através da tomada de consciência do desprazer que a satisfação do pulsional acarretaria para o ego, o paciente pudesse substituir o recalcamento pelo juízo de condenação, tal como Freud (1909/1994) descreveu ao final do trabalho sobre o pequeno Hans, dizendo que ele substituiu o processo de recalcamento – que é automático e excessivo – por um domínio moderado e intencional realizado pelas instâncias psíquicas superiores.

Essa visão da técnica se baseou, do ponto de vista da metapsicologia, no quadro da primeira teoria das pulsões, em que as pulsões sexuais reguladas pelo princípio do prazer se contrapunham às pulsões autoconservativas reguladas pelo princípio da realidade. No campo da experiência clínica, essa formulação seria transformar o processo primário em processo secundário, de forma que o ego passasse a ficar resguardado da sexualidade. Isso constitui uma questão ética diante do conhecimento das representações inconscientes, na medida em que nela está contida a ideia de que a técnica teria como objetivo a desistência, por parte do sujeito, da satisfação das pulsões sexuais a partir do juízo de condenação.

Dentro desse contexto, a interpretação tinha um modelo tópico no sentido de se chegar às representações recalcadas. A transferência seria, na verdade, uma forma de resistência para se chegar à representação recalcada.

Quando Freud reconheceu a amplitude da transferência no epílogo de Dora, estava dizendo, em outras palavras, que não se trata de colocar a sexualidade sob o domínio do ego, através da transformação do consciente em inconsciente, já que a sexualidade também está presente no próprio tratamento pela transferência. Isso significa que não adiantaria centrar o trabalho analítico na busca das representações recalcadas, porque o paciente, em vez de lembrar o passado esquecido, encenava na transferência essas ideias, repetindo-as em função do cenário possibilitado pelo espaço analítico. Este passa a ser o cenário onde a palavra pode ser encenada. Dessa forma, Freud (1905a/1994) passa a se ocupar não só do que é dito pelo paciente mas também do que não é dito. A ampliação feita nos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” a respeito da ligação particular das pulsões sexuais com a fantasia é o que possibilita essa mudança na conceituação da transferência

Ao mesmo tempo, o quadro da primeira teoria das pulsões indicava que o objetivo do tratamento era chegar às representações recalcadas. Esses dois caminhos – um que prioriza a interpretação da transferência como resistência e outro que põe em destaque a questão da repetição transferencial – coexistem em Freud a partir dessa época.

Um exame dos escritos técnicos de Freud permite observar que, a não ser por duas descrições bem pequenas de 1904 e 1905, ele não publicou nenhuma descrição ampla de sua técnica por mais de quinze anos. Nesse meio tempo, em 1910, em “As Perspectivas Futuras da Psicanálise”, afirma que, no campo da técnica, se defrontava com quebra-cabeças difíceis de resolver, já que quase tudo aguardava determinação definitiva e muita coisa estava apenas começando a ficar clara. A relativa escassez de trabalhos de Freud sobre a técnica nesse período, bem como a demora em produzilos, sugere uma hesitação em publicá-los.

O que parece que estava obscuro nesse momento da teoria da técnica psicanalítica era: quais seriam as consequências técnicas de dizer que a sexualidade está presente no próprio tratamento através da transferência, em contraposição à ideia de que a resistência é o foco do interesse para se chegar à representação recalcada?

Quando o paciente repete na transferência, não está empenhado em recordar, já que o que dá a satisfação é a própria repetição, porque o ego é investido de sexualidade. Essa constatação de Freud parece que o leva a questionar qual é o papel desempenhado pelo ego no processo analítico. Em outras palavras, seria possível o analista contar com o ego na tentativa de recuperar a representação recalcada, já que este é parte interessada na repetição? Assim fica questionado o ego como lugar de retificação das fantasias sexuais. Dizer que o ego se satisfaz através da repetição é, em outras palavras, dizer que o ego é narcisista. O conceito de narcisismo, que é definitivamente postulado em 1914, já está no pensamento de Freud desde a análise de Schreber (Freud, 1911/1994), e, provavelmente por isso, Freud afirma que a teoria da técnica, nesse período, enfrentava quebra-cabeças difíceis de resolver. Parece que Freud passa a desconfiar da aliança que o analista pode fazer com o ego do paciente.

Os artigos sobre a técnica escritos entre 1911 e 1914 revelam em maior ou menor grau a presença do narcisismo e uma progressiva modificação no entendimento da teoria das pulsões, sobretudo nos dois últimos, que datam de julho de 1914, alguns meses após Freud ter escrito a “Introdução ao Narcisismo” (Freud, 1914b/1994). Pode-se dizer que, nesses textos, Freud se rende ao poder da transferência, que passa de obstáculo à rememoração e ao centro que deve guiar a escuta do analista.

Em “A Dinâmica da Transferência”, Freud (1912a/1994) inicia dizendo que cada um estabeleceu para si um método específico através do qual se satisfaz e se enamora. Esse método é repetido. Somente uma parte dos impulsos passou por todo o desenvolvimento, está dirigida para a realidade e se acha à disposição da personalidade consciente. Outra parte foi retida, manteve-se afastada da personalidade consciente e da realidade e foi impedida de expansão ulterior. Se a necessidade de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade, o sujeito está fadado a aproximar-se de cada nova pessoa com ideias libidinais antecipadas. A porção de libido que não está dirigida para a realidade sofreu o processo de introversão.

Essas afirmações põem em destaque o fato de que existe uma dimensão do ego não afetada pela realidade. Isso teria relação com o fato de que o ego também está marcado pelo princípio do prazer. Desse modo, não somente os objetos não-ego são objetos sexuais como também o ego é um objeto sexual, portanto, a dimensão da realidade é parcial no ego.

Além disso, aqui está antecipado um tema: a quem está dirigida a libido, ao ego ou ao objeto? Se o sujeito se aproxima com ideias libidinais antecipadas, isso quer dizer que o narcisismo está presente no ego, já que o objeto não está presente como alteridade. Do ponto de vista terapêutico, não adiantaria o conhecimento do ego da representação sexual recalcada, uma vez que o ego está envolvido nesse processo.

Freud (1912/1994) afirma:

O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo do tratamento e da história de sua vida, a submetê-los à consideração intelectual e a compreendê-los à luz de seu valor psíquico. Essa luta entre o médico e o paciente, entre o intelecto e a vida pulsional, entre a compreensão e a procura da ação é travada quase que exclusivamente nos fenômenos da transferência. (p. 143)

Assim, percebe-se, através dessa afirmação, que a consideração intelectual por parte do ego do paciente a respeito de seus impulsos assume um lugar secundário em relação à manifestação dos impulsos através da transferência, já que não se pode desistir de algo que não está presente. Freud (1912/1994) afirma: “Pois, quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie” (p. 143).

Cabe salientar que a repetição feita pelo paciente determina que, quanto mais o processo analítico se aprofunda, mais a resistência, através da regressão, busca a satisfação das pulsões no campo da transferência. Assim, a verdade se revela por entre a repetição, demonstrando a realidade psíquica desse sujeito. Por outro lado, a neurose que era procurada em um passado distante se torna também atual.

Em “Recordar, Repetir e Elaborar”, Freud (1914b/1994) se defronta com o problema das repetições que não trazem nenhum prazer. Assim a experiência analítica passa a se dar cada vez mais a partir do automatismo da repetição, o que consistiria na neurose de transferência. O seu propósito passa a ser colocar a compulsão, a repetição, no eixo da transferência, buscando, dessa forma, a sua simbolização.

Vemos que o campo da análise fica em uma dialética entre a força pulsional e a simbolização, sendo que a condição de possibilidade da segunda é dada pela transferência. A contrapartida disso é que a experiência analítica passa a ser cada vez mais uma experiência intersubjetiva. Assim, o papel do outro toma seu lugar não só na constituição do psíquico, mas também o outro analista que possibilitará a simbolização do repetido.

Diante da compulsão a repetição, Freud indica, em “Recordar, Repetir e Elaborar”, que a maneira como ela vai sendo colocada no registro da simbolização é através da perlaboração. Esta última tem estreita vinculação com a fixação da libido, no sentido de que a fixação se caracterizaria por uma inércia psíquica. Diante desse fenômeno, não adiantaria somente a superação da resistência do ego e sim, a perlaboração. Nesse sentido, em “Inibição, Sintoma e Angústia”, Freud (1926/1994) atribui a necessidade de perlaboração à resistência do inconsciente.

A perlaboração permite passar de uma aceitação puramente intelectual do conteúdo inconsciente para uma convicção fundamentada na vivência do pulsional. Através da perlaboração, é possível cessar a insistência da repetição própria das formações do inconsciente.

Na mesma época, Freud (1915c/1994) fala sobre a oposição representação-coisa/ representação-palavra, sendo que a primeira definiria as representações inconscientes, enquanto a segunda, as representações préconscientes. Articulando-se os conceitos de perlaboração com o de representação-coisa/ representação-palavra, poder-se-ia pensar que a perlaboração seria o processo através do qual a representação-coisa se torna representação-palavra, possibilitando assim sua simbolização.

A questão do excesso, da força pulsional e da repetição prenunciam o novo dualismo pulsional, entre pulsões de vida e pulsões de morte. Dentro desse contexto, o processo analítico se estabeleceria a partir da luta entre essas forças.

Em um primeiro momento da técnica analítica, a preocupação era justamente com as representações que haviam sido recalcadas e que, por isso, estavam dissociadas do afeto que lhes correspondia; as representações, portanto, pertenciam a uma cadeia simbólica e assim podiam se transformar em palavra. Na verdade, a transformação da representação em palavra era o que visava o tratamento analítico. Isso colocava o entendimento do processo analítico em um registro predominantemente tópico e dinâmico.

A constatação feita por Freud (1915d/1994) em “Pulsões e seus Destinos” de que a pulsão tem uma quarta característica que é a força pulsional, bem como a questão do excesso e a compulsão à repetição recolocam a questão da inscrição e da representação em outro âmbito, à medida que se referem a experiências que não foram inscritas e que, portanto, não podem se transformar em palavra, porque não pertencem a uma cadeia simbólica. A postulação da pulsão de morte em “Além do Princípio do Prazer” (Freud, 1919/1994) coloca o processo analítico em uma vertente predominante econômica, em que os seus fundamentos são reordenados.

Dessa forma, a análise passa a se referir ao conteúdo representado e, por isso, pode se tornar palavra e, ao mesmo tempo, também a uma outra dimensão de acontecimentos psíquicos que ainda não estão inscritos e que só poderão ser articulados como palavra pertencente a uma cadeia simbólica pelo viés da transferência.

 

Sublimação e Clínica

Em “Recomendações aos Médicos que Exercem Psicanálise”, Freud (1912b/1994) fala sobre a participação da sublimação na clínica analítica, dizendo que não era indicado potencializar a sublimação do impulso como meta do tratamento analítico, uma vez que essa motivaria uma limitação da satisfação pulsional. Se o sujeito tivesse capacidade para suportar essa restrição, a sublimação da pulsão já teria ocorrido de forma espontânea. Em “Esboço de Psicanálise” (Freud, 1940/1994), falando sobre o propósito da técnica analítica, Freud afirma que a capacidade do paciente de sublimar suas pulsões desempenha um grande papel no tratamento analítico.

Existe uma diferença nas posições freudianas a respeito da utilidade clínica da sublimação. O primeiro entendimento freudiano a respeito da participação da sublimação na clínica, que se encontra nos textos técnicos iniciais de Freud, baseia-se em uma visão idealizada da sublimação como um processo que visa à assunção de valores mais elevados porque iguala a sublimação com as atividades artísticas. Dentro dessa visão do ato sublimatório, ela não pode ser indicada como um dos objetivos da análise, à medida que isso levaria a uma visão normativa da técnica analítica.

Entendo que os efeitos da postulação da pulsão de morte e, com isso, a consideração dos fenômenos da repetição possibilitam reordenar o papel da sublimação na clínica. Freud se dedica a falar sobre os efeitos da pulsão de morte, colocando-a como o fator mais poderoso com relação ao sucesso da análise. Em “Análise Terminável e Interminável”, Freud (1937/1994) analisa a descarga – característica do processo primário – como a tendência da pulsão de morte, o que é diferente do prazer e constitui um impasse para o fim da análise. Assim fica evidenciada a preocupação de Freud de que o sucesso da análise depende da possibilidade de transformação da pulsão de morte em Eros. Nesse contexto, a análise implica a possibilidade da constituição de destinos para as forças pulsionais e a para inscrição destas no universo da simbolização tanto pelo analista como pelo analisando.

A transformação da pulsão de morte em Eros se relaciona à transformação do desligado, mortífero, em uma simbolização, uma criação. Esse entendimento é o que parece estar presente nas “Novas conferências Introdutórias sobre Psicanálise”, em que Freud fala sobre o propósito terapêutico da psicanálise, afirmando: “...onde estava o id, o ego deve advir. É um trabalho de cultura não diferente da drenagem do Zuider Zee” (Freud, 1933/1994, p. 102).

A secagem do Zuider Zee, na Holanda, constituiu uma conquista da humanidade, nesse sentido cultural, já que uma parte do mar foi separada do resto, drenada, e, dessa forma, pôde ser utilizada como terra aproveitável para a agricultura, processo muito elaborado e de duração muito longa.

O que se pode tomar desse processo é a questão da transformação presente. O que era uma força passou a ser uma criação. Nesse sentido, pode-se falar de uma sublimação. A metáfora de Freud sobre o Zuider Zee fala de uma conquista cultural que indica uma ampliação dos limites e a criação de algo novo. De acordo com esse entendimento do texto, o propósito da análise seria justamente a criação desses novos destinos ao pulsional que possibilitam transformar o irrefreável das pulsões em criações, o que sem dúvida nos remete à sublimação.

Assim, a problemática que se estabelece para a experiência analítica é como construir caminhos alternativos para que as forças pulsionais possam ter satisfação no universo psíquico e no campo da alteridade. Dentro desse contexto, a sublimação pode ser entendida como um destino pulsional capaz da realização da pulsão a partir de outros objetos possíveis, contrariando a pulsão de morte e a inércia psíquica. Birman (1997) entende que a participação da sublimação na clínica é fundamental, não porque levaria à cura. Partindo-se da ideia de que não há a cura do desamparo, a aplicabilidade clínica da sublimação estaria relacionada com um destino possível para as forças pulsionais.

No que se relaciona ao desvendamento do recalcado, Freud dizia, no início de seu trabalho, que, após conhecer suas representações recalcadas, o sujeito desistiria delas através do juízo de condenação. Tratava-se de uma questão ética do sujeito frente aos impulsos sexuais. Entendo que, do ponto de vista da teoria da cura, a perspectiva final da técnica analítica freudiana possibilita ir além do desvendamento do recalcado e de uma desistência ética frente ao próprio desejo, pois de que adiantaria a análise se, ao seu final, o sujeito, de posse de sua verdade, simplesmente desistisse de desejar? É evidente que também não se trata de uma apologia ao desejo. conhecer o próprio desejo não significa realizá-lo sempre.

Castiel (2007) afirma que, além da perspectiva ética frente à realização de um desejo, faz parte do trabalho analítico uma perspectiva estética, no sentido de que, diante do conhecimento do desejo que não pode ser realizado, a direção da cura estaria relacionada a uma transformação desse desejo a partir de uma perspectiva estética. A estética é tomada no sentido colocado por Freud (1919/1994) em “O Sinistro”: “... entendo como estética a capacidade de dar forma a algo”. A direção da cura se relaciona com a ideia de que o sujeito possa criar a partir do pulsional, constituir objetos para as pulsões que lhe proporcionem prazer segundo um outro contexto, levando em conta a castração.

Pommier (1990) traça um paralelo entre ética e estética, dizendo que ambas pressupõem uma renúncia. A diferença entre elas é que a ética considera a falta, e não guarda esperança. Já a estética ratifica a perda, no entanto, possibilita recuperar, através da criação, algo que não pode aparecer diretamente; a estética, portanto, ocasiona o prazer. A perspectiva da estética, presente em Freud e em Pommier, em minha opinião, se aproxima da sublimação, vista como a possibilidade de dar forma ao pulsional, segundo criações do sujeito na cultura que lhe proporcionem prazer, e por isso a perspectiva estética estaria presente na questão da direção da cura, na medida em que, juntamente à desistência de impulsos recalcados (o que representaria a ética), faria parte do processo analítico a criação de novas formas de satisfação no campo da cultura e da alteridade.

Entendo que o conhecimento do desejo não é o objetivo final do processo analítico. Ainda que a análise não vise diretamente à cura, uma das preocupações do psicanalista é a dimensão terapêutica. O conhecimento do desejo inconsciente e a simbolização da pulsão que ainda não estava simbolizada são uma parte da análise. No entanto, a dimensão terapêutica e o pedido de transformação presente em qualquer demanda de análise relacionam-se com a criação posterior ao conhecimento do desejo, no sentido de criações.

A desistência ética frente ao conhecimento do desejo através do juízo de condenação implica um questionamento a respeito da desistência da posição desejante. com efeito, uma das críticas à psicanálise tem sido a respeito da posição conformista, sem entusiasmo, de alguns sujeitos analisados. Marucco (1998) chama atenção para o fato de que, no que se relaciona à teoria da cura, muitas vezes, diante da castração, a pulsão sexual não sobrevive – o que levaria a uma posição conformista diante da vida.

Dentro desse contexto, a presença da sexualidade a partir da análise é uma das facetas importantes do que se denomina teoria da cura. Nesse sentido, a capacidade de criar (a partir do desejo que não pode ser satisfeito diretamente) novas formas de satisfação fala da sobrevivência do pulsional, da sublimação e de sua relação com a direção da cura.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Sissi Vigil Castiel
Rua Frei Henrique Trindade, 430, Bairro Boa Vista
90480-140 – Porto Alegre, RS - Brasil
E-mail: scastiel@terra.com.br

Rebido 6/6/2008
1ª Reformolaçãoo 16/6/2009
Aprovado 30/6/2009

 

 

* Psicanalista, Doutora em psicanálise pela Universidade Autônoma de Madri, Madri – Espanha. Membro pleno da Sigmund Freud – associação psicanalítica; coordenadora do comitê de Psicanálise da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS - Brasil.