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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.30 n.1 Brasília mar. 2010

 

ARTIGOS

 

O momento de brincar no ato de contar histórias: uma modalidade diagnóstica

 

The moment of playing in the narration of stories: a diagnosis modality

 

El momento de bromear en el acto de contar historias: una modalidad diagnóstica

 

 

Fábio Donini Conti*; Audrey Setton Lopes de Souza**

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente artigo consistiu em conceber o brincar – entendido ao longo do texto como o modo de se relacionar com a atmosfera da fantasia – enquanto recurso diagnóstico quando se utilizam instrumentos projetivos que propiciem contar histórias. Além disso, o brincar supera a esfera do infantil e atinge o âmbito do adulto, sendo encarado como fenômeno psíquico inerente à condição humana. Partindo desse pressuposto e tentando mostrar como o brincar pode ser revelador do funcionamento intrapsíquico, foram apresentados, ao longo do estudo, alguns recortes de histórias relatadas em técnicas projetivas, como, por exemplo, o TAT, o procedimento de desenhos-histórias e o Teste das Fábulas. Dessa maneira, os discursos que indicam a presença do simbólico e os discursos que indicam a ausência da representaçãopalavra (concretude) constituem os dois eixos passíveis de se compreender a relação da díade ego/fantasia e de se escutar o inconsciente quando este se põe a “falar” por meio dessa brincadeira.

Palavras-chave: Brincar, contar histórias, Desejo, Diagnóstico psicológico.


ABSTRACT

The objective of this article consisted in conceiving playing – here understood as the way to relate with fantasy’s atmosphere – as a diagnostic resourse when projective instruments are used to narrate histories. Moreover, playing goes beyond the sphere of childhood and reaches the sphere of adulthood, regarded as a mental phenomenon inherent to human beings. Taking into account this assumption and trying to show how playing may be indicative of the intrapsychic functioning, throughout the study some clippings of stories reported in projective techniques were presented, such as the TAT, the drawing-stories procedure and the Test of the Fables. This way, the discourses that indicate the presence of the symbolic and the absence of the work-representation (concretism) compose the two axis that make possible to understand the relation between self and fantasy and to listen to the unconscious when it reveals itself through playing.

Keywords: Playing, To narrate histories, Desire, Psychology diagnosis.


RESUMEN

El objetivo del presente artículo consistió en concebir el bromear – entendido a lo largo del texto como el modo de relacionarse con la atmósfera de la fantasía – mientras recurso diagnóstico cuando se utilizan instrumentos proyectivos que propicien contar historias. Además de eso, el bromear supera la esfera de lo infantil y alcanza el ámbito del adulto, siendo encarado como fenómeno psíquico inherente a la condición humana. Partiendo de ese presupuesto e intentando mostrar como bromear puede ser revelador del funcionamiento intrapsíquico, fueron presentados, a lo largo del estudio, algunos recortes de historias relatadas en técnicas proyectivas, como, por ejemplo, el TAT, el procedimiento de dibujoshistorias y la Prueba de las Fábulas. De esa manera, los discursos que indican la presencia del simbólico y los discursos que indican la ausencia de la representación-palabra (concreto) constituyen los dos ejes pasibles de comprenderse la relación de la díada ego/fantasía y de escucharse el inconsciente cuando éste se pone a “hablar” por medio de esa broma.

Palavras clave: Bromear, contar historias, Deseo, Diagnóstico psicológico.


 

 

“Não há nenhuma atividade significativa no desempenho da simbolização da criança que não passe vertebralmente por aquele (o brincar)” Ricardo Rodulfo (1990, p. 91).

Partindo da concepção de que o brincar perpassa os limites da esfera infantil e que, portanto, não é somente um indicativo dos modos primitivos de funcionamento das etapas de desenvolvimento da criança mas também base para a criatividade e para a liberdade em relação ao acesso a si mesmo durante a vida adulta (ação característica do mundo adulto), o artigo em questão buscou tratar de um fenômeno importantíssimo no contexto clínico: o brincar enquanto equivalente à capacidade de adentrar no âmbito da fantasia, com a consequente ampliação da relação entre ego e elementos do mundo interno e a possibilidade de considerar essa atividade como mais uma modalidade diagnóstica. Ademais, a perspectiva na qual se insere o brincar é a de considerar o ato de contar histórias na situação de exame como uma forma de se observar tanto a resolução de problemas quanto os meios de se estruturar o discurso do examinando, e, pelo lado de quem deve executar a tarefa, a própria situação se apresenta como distinta da realidade concreta, e, portanto, potencialmente, um espaço para o lúdico.

Para expressar a ideia que confere ao brincar uma forma de se compreender o ser desejante por meio da relação ego/fantasia na situação de exame, partimos da hipótese de que fantasiar é necessário para se ampliar o espaço psíquico e os acessos aos cômodos da mente daquele que se apresenta como sujeito, incluindo o adulto – já que, para Parsons (2001), se o adulto se permite fantasiar durante a vida de vigília, então ele se permite brincar com os elementos do seu mundo interno. A partir dessa hipótese, pretendemos chegar à concepção de que o lúdico se torna necessário para compreender a realidade psíquica daquele que se submete ao processo de exame diagnóstico.

Entretanto, o lúdico aqui não é visto somente como expressão simbólica das ansiedades e angústias iniciais vividas pelo bebê no processo de desenvolvimento. Klein (1965/1991) já se ocupou desse fenômeno e descreveu-o profundamente. Aliás, esse fenômeno foi um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da teoria e técnica da psicanálise kleiniana (Petot, 1979). O lúdico, na forma em que será apresentado aqui, refere-se ao brincar como uma forma de relação entre sujeito e inconsciente enquanto atividade específica do mesmo durante a tarefa de exame. Assim, nossa proposta é a de conceber esse fenômeno ajustando-se as lentes do olhar diagnóstico para o tipo de relação que se estabelece entre sujeito e fantasia no ato de contar histórias, tomando-o como indicativo do grau de liberdade do sujeito com sua realidade interna, partindo do pressuposto que, quanto maior a liberdade, menor a necessidade de controle. Já para Freud (1908/1974), o brincar é movido por um desejo da criança de se tornar adulta, e é, pelo adulto, substituído pela atividade imaginativa (ou fantasia) em função das exigências conspícuas à sua idade, o que, em outras palavras, significa trocar o prazer do brincar pela satisfação que proporciona fantasiar. Seria por meio do processo de inibição dessa sub-rogação que a capacidade criativa poderia tornar-se prejudicada e, por sua vez, tornar empobrecido o contar histórias. Assim, a distinção entre as polaridades fantasia/realidade dar-se-ia pela própria natureza da tarefa de contar histórias: a presença ou a ausência de elementos dramáticos e lúdicos no enredo do discurso.

Ao explicar o sentido que adquire o fantasiar decorrente da substituição do brincar no mundo adulto, Freud articulou-o à existência do desejo. como nos sonhos, que seriam formas distorcidas de realização de desejos, os devaneios da vida de vigília significariam a realização (ou o acontecimento) do desejo por meio de uma forma de fantasia que é, mais além, uma forma positiva de fantasiar, pois, se é necessária a presença do devaneio para o desenvolvimento de processos criativos, como no caso dos escritos e contos literários, a fonte dessa capacidade seria o próprio recalcado e as vias de acesso a ele permitidas (Freud, 1908/1974).

Até mesmo no processo analítico o brincar está sempre presente na relação entre paciente e analista, e a fantasia, por sua vez, está sempre presente nas relações interpessoais, podendo ser expressa como forma de acesso aos conflitos. No sentido aqui atribuído, é condição para o brincar, e é útil como meio diagnóstico no ato de contar histórias. Nessa linha de raciocínio, a possibilidade de brincar no espaço terapêutico por meio do jogo entre paciente e analista, via tragicidade no discurso de um e ironia (não na acepção pejorativa do termo) nas interpretações do outro, respectivamente, fundamentam o brincar como inerente à condição analítica e, indiretamente, à condição humana. É de acordo com as inter-relações e as formas como lidam ambas as partes no desencadear do processo analítico que se torna possível conceber a natureza das fantasias e a condição de expressá-las, por meio desse brincar, na relação interpessoal. Nas palavras de Winnicott (1971), a “psicoterapia diz respeito a duas pessoas brincando juntas. Seu corolário é quando o brincar não é possível, e a principal tarefa do terapeuta será levar o paciente do estado de não conseguir brincar para o estado de poder brincar” (p. 38).

O lúdico e o brincar não são considerados aqui simples atividades desprovidas de importância. Assim, o brincar perde o caráter de superficialidade e de condição infantil, e adquire o significado de função e condição universal. Além do mais, o brincar é gerador de prazer, e o prazer é, segundo Freud (1912/1974), o princípio fundamental do funcionamento mental. Sob essa ótica, o fantasiar, presente no brincar, seria uma forma de buscar o prazer renunciando à ação quando a realidade assim o exige; portanto, o ganho que se obtém brincando, seja na psicoterapia, na psicanálise ou no exame diagnóstico, indica, possivelmente, uma condição movida pelo princípio do prazer e a capacidade do ego em sustentar a relação entre o desejo e a sua forma de expressão pré-consciente. Exemplo disso são os jogos e as brincadeiras esportivas como o futebol, que, além de proporcionar satisfação para o sujeito, possibilitam o investimento de catexias para que, simbolicamente, o ego expresse sua hostilidade aos rivais (seja por meio de brigas, choros e lágrimas frente a vitórias e derrotas do time estimado, seja por meio do total desprezo pelo rival). Então, é a relação entre ego e fantasia e seu consequente resultado que indica a maneira pela qual o sujeito se apropria (ou não) de uma situação. Assim como o sonhar é um guardião da vida psíquica, a possibilidade de se brincar com a fantasia e explorar com mais liberdade o mundo interno, sem ter tanto medo de enlouquecer, é uma forma de se preservar a saúde mental.

Assim, acreditamos que, por meio do ato de contar histórias, seja possível observar de que maneira a tarefa é apropriada e catexizada pelo sujeito, sendo ele adulto ou criança; em outras palavras, de que maneira, ao executar a tarefa, é possível vivenciar a dimensão lúdica do ato de contar histórias: se demasiado intensa, inibida e recalcada ou se suportada pelo ego a ponto de tolerar os rumos da brincadeira. É de acordo com a observação da maneira pela qual o examinando toma a atividade de contar histórias como uma forma lúdica e vivencia suas fantasias que o brincar se insere como mais uma modalidade auxiliar de diagnóstico.

Entretanto, é importante frisar o sentido atribuído aos termos mundo interno e mundo da realidade observado ao longo deste estudo; no que tange ao mundo interno, o significado é o mesmo dado por Segal (1975) quando caracteriza os elementos que constituem o psiquismo na obra kleiniana, tais como objeto de amor, objeto perseguidor, objeto destruído e fantasias inconscientes, dentre outros. O mundo da realidade refere-se às situações da vida humana que existem de fato, tais como o trabalho, as atividades responsáveis e as experiências vividas pelo sujeito, dentre inúmeras outras, e que permitem evidenciar o teste da realidade descrito pela psicanálise. Outro elemento a ser destacado é a importância que adquire o ato de brincar desde o início da vida por permitir ao bebê, gradualmente, desenvolver a percepção de um outro significativo, cuja função – desse outro significativo – será tanto a de acolher as manifestações afetivas quanto ajudar na discriminação entre fantasia e realidade. No presente estudo, a tentativa é a de mostrar que o brincar – no sentido antes exposto –permite reconhecer a mobilidade intrapsíquica do humano, já que é concebendo tal funcionalidade que a tarefa diagnóstica se viabiliza.

 

O brincar como condição para o desenvolvimento psíquico

Uma das características que diferencia o homem de outras espécies é a sua função desejante, isto é, a função que perpassa os limites da necessidade para além do que é instintivo e essencial à manutenção da vida. A busca de satisfação no e pelo meio ambiente social é movida não só pelas necessidades de preservação mas também pelo desejo derivado do prazer que se obtém em tal satisfação. Para o animal, é em virtude da saciação de suas necessidades de sobrevivência que ele se movimenta no ambiente, o que o configura como ser instintivo. Para o homem, é em virtude da tentativa de realizar seus desejos, mais além do que a satisfação de suas necessidades básicas, que a relação com o ambiente social se opera, o que o circunscreve como ser pulsional (Freud, 1900/1974).

Pensando nesse caráter desejante e pulsional inerente à condição humana, tem-se que as relações sociais estabelecidas entre o homem e o mundo ultrapassam sua natureza biológica de sobrevivência. Nesse sentido, é o psíquico que mobiliza o sujeito a se relacionar com o ambiente e é o psíquico que exige do sujeito a obtenção de satisfações para além da condição fisiológica. Nesse interjogo entre o desejo e a sua possibilidade de realização, a estrutura egóica vai se constituindo, favorecendo a formação de processos simbólicos que, por sua vez, pressupõem a existência de um determinado sentido para aquilo a que se atribui o significado (Freud, 1900/1974). Sendo assim, o próprio símbolo encerra um sentido e permite a configuração de formas substitutivas de satisfação dos desejos. O brincar, nessa linha de raciocínio, transcende os limites da natureza fisiológica e configura o simbólico.

No campo da Filosofia, Huizinga (n.d.) destacou a universalidade da atividade lúdica, mostrando como esta se encontra presente em todas as formas de organização social, das mais primitivas às mais sofisticadas. Isso se dá pelo fato de que, por mais que se estipulem regras para as brincadeiras, isso não as torna uma atividade obrigatória. Na verdade, uma de suas características é a liberdade que proporciona; também, o jogo ou as brincadeiras não são nem a personificação do mundo da realidade, daquilo que existe de fato, nem a personificação da vida de mentira; são, para Huizinga, evasões temporárias (mas não defensivas) do mundo da realidade.

Segundo essa concepção, o brincar permite ao homem abandonar temporariamente suas tarefas diárias de responsabilidade, como, por exemplo, o trabalho, os conflitos sociais e os problemas existenciais por proporcionar prazer e divertimento (Huizinga, n.d.).

Por outro lado, a possibilidade de se diferenciar o dado de realidade da brincadeira não anula da última seu caráter de seriedade. O brincar, por mais lúdico que possa ser, é tido como sério para quem o executa. Na medida em que brinca, o sujeito se apropria da situação. Os contos de fada, para a criança, despertam nela fascínio e interesse, a ponto de ela se indignar com as atitudes de uma bruxa ou de um vilão malvado. No adulto, ganhar ou perder um campeonato de xadrez adquire o sentido de compromisso e dedicação à tarefa realizada. Entretanto, é o saber retirar-se da situação de jogo ou brincadeira que torna possível diferenciar o dado da realidade da esfera lúdica (Huizinga, n.d.). As contribuições desse autor podem ser articuladas com as contribuições que a psicanálise oferece para compreender o jogo.

Esse movimento de alternar entre o mundo da realidade e entre o brincar é possível em função da existência de uma área da psique humana já descrita por Winnicott (1971), denominada terceira área da experiência. Nela, a possibilidade de a criança pequena adentrar um mundo que não seja nem o interno e nem o externo caracteriza-se pelo desenvolvimento de uma zona ou modalidade de existência psíquica possível de constituirse na relação com uma mãe suficientemente boa, que permite a criação desse espaço psíquico. É nessa terceira área da experiência que se situa o espaço transicional. A criação desse espaço transicional passa inicialmente por um momento em que a mãe atua de forma a criar a ilusão de uma onipotência primária, oferecendo ao seu bebê aquilo que ele precisa e na hora em que ele precisa.

Posteriormente a esse processo, o bebê começa a perceber gradativamente que nem sempre sua necessidade é satisfeita na hora em que ele precisa. Na medida em que as experiências dessa natureza se tornam mais claras e mais perceptíveis pelo bebê, este começa a se desiludir dessa onipotência primária. contudo, desiludir-se causa angústia, e, para lidar com essa angústia, ele se apega a um dado objeto que possibilita vivenciar a frustração e o sentimento de destruição dessa perda narcísica de modo mais tolerável (Goldstein, 1994).

Esse objeto, descrito por Winnicott como transicional, insere-se na vida do bebê no momento em que este se sente vazio por perceber tanto sua dependência em relação à mãe que satisfaz suas necessidades quanto o não imediatismo de tal satisfação. Sua finalidade é a de tornar possível para o bebê lidar com as contingências de seu mundo perceptual e de fantasia quando no contraste com o dado da realidade.

É nessa fase intermediária do desenvolvimento do eu (ainda nem mundo interno, nem mundo externo) que o mundo simbólico (representações) começa a se desenvolver. A atividade simbólica surge por meio das transições da percepção do eu, que variam de um objeto subjetivamente percebido até um objeto objetivamente percebido, tornando possível à criança distinguir entre o interno e o externo. Nessa passagem de uma percepção à outra, a criança nota que existe algo que não é ela e que independe de sua existência (Winnicott, 1971).

Nesse processo, o brincar – além de sua função simbólica – possibilita ao bebê desenvolver tanto a capacidade de utilizar seus recursos criativos quanto o seu verdadeiro eu, propiciando a expressão dos verdadeiros sentimentos de amor e ódio sentidos como seus (Goldstein, 1994).

Mas não é só a relação com um objeto transicional que proporcionará ao bebê ter, futuramente, uma vida mental sadia. cabe à mãe perceber e conter a angústia de seu filho de forma a fazer com que o bebê compreenda e sustente as situações de angústia. Assim, as fantasias se amenizam e a realidade pode ser tolerada mais facilmente. Quando isso não é possível, em alguns casos, a modalidade relacional com os objetos transicionais fracassa, prejudicando a formação de mecanismos simbólicos (Goldstein, 1994).

Quando isso acontece, o brincar e os elementos referentes aos tipos de brincadeiras se mostram empobrecidos. Se, para Winnicott, os jogos e as brincadeiras estão a favor do escoamento do ódio e da agressão, do domínio das relações sociais, da integração da personalidade, do prazer e do controle das angústias, o lúdico, em tais decursos do desenvolvimento, inviabilizaria a existência da atmosfera simbólica; portanto, experienciar uma brincadeira geradora de ansiedade, como são as de lobo mau, bruxas e afins, possivelmente eliciaria no ego da criança sentimentos de aniquilamento e destruição.

Já Klein (1930/1991) considera que os estados depressivos e os decorrentes sentimentos de culpa da posição depressiva, se não elaborados durante as brincadeiras, resultam em uma fraca conexão com a realidade e em uma baixa tolerância à frustração. Em decorrência disso, a dificuldade em simbolizar as angústias e os desejos hostis surgiriam, e não permitiriam o uso de mecanismos mais elaborados, como a repressão.

Para a escola inglesa, a integração dos objetos parciais na formação de um objeto total é um processo no qual a criança entra em contato com as angústias decorrentes dessa integração, percebendo que aquele objeto antes sentido como bom, que a alimentava e a nutria, e aquele objeto sentido como mau, que a perseguia e a ameaçava, era, na verdade, sua mãe, objeto total. E o amor por essa mãe e o desejo de preservá-la é que impulsionam a formação de símbolos.

Ao notar que a mãe reaparece mesmo ao fantasiar sua morte, a criança procura destinar sua hostilidade para outros fins que não o objeto de amor. O intuito é o de não mais atacar a mãe (interna e externa) por temor à perda. Isso gera conseqüências positivas para o desenvolvimento psíquico da criança, pois transforma o brincar em forma de expressão simbólica dos sentimentos e angústias e possibilita a utilização de mecanismos de defesa mais elaborados, como a repressão, que surge em decorrência desse processo (Segal, 1975).

Mesmo assim, a psicanálise postula que o suprimido tenta a qualquer preço se expressar e ganhar espaço novamente (Freud, 1900/1974). Mas a introjeção do superego e a mediação feita pelo ego exigem que os desejos socialmente inaceitáveis necessitem da via de manifestação simbólica como forma de expressão. É nesse sentido que o brincar, na teoria kleiniana, ganha respaldo: brincar significa tanto elaborar os conflitos e ansiedades, característicos das posições esquizo-paranóide e depressiva, quanto demonstrar o funcionamento inconsciente da criança, pela própria natureza da brincadeira tida como simbólica. É no brincar, portanto, que os desejos hostis se deslocam para outra modalidade objetal, preservando a integridade do objeto amado e sentido como bom (Segal, 1975).

Contudo, não só nos interessa a concepção teórica de Melanie Klein sobre a brincadeira simbólica e a área psíquica descrita por Winnicott mas também a noção de repressão na obra freudiana (Freud, 1900/1974), pois, se o brincar só é possível quando existe a permissão por parte do sujeito – adulto ou criança – para se relacionar com o seu mundo de fantasia, o não brincar ou o não conseguir brincar indicaria o não acesso do indivíduo ao seu mundo fantasmático, suspenso do cenário do consciente, por não ser permitido adentrar na esfera lúdica, isso devido aos motivos que provavelmente se relacionam ao próprio conteúdo da fantasia, exigindo do ego o uso excessivo do mecanismo repressivo. Tal conjectura se evidencia nas afirmações de Roudinesco e Plon (1998) quando procuraram explicar o conceito de recalque em Freud:

Para Sigmund Freud, o recalque designa o processo que visa a manter no inconsciente “todas as ideias e representações ligadas às pulsões e cuja realização – produtora de prazer – afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo, transformandose em fonte de desprazer”. (p. 647)

Nessa perspectiva, o mecanismo repressivo seria o equivalente à concepção do funcionamento do recalque descrito acima, pois representa um meio de coibir o proibido à expressão de sua realização; o uso do mecanismo repressivo, portanto, aconteceria quando o conteúdo sexual fosse tido como intolerável à sua realização (Alonso & Fuks, 2004).

Para a psicanálise, de modo geral, o próprio conteúdo sexual é visto como estruturante quando se relaciona com o ego do sujeito. Partindo dessa concepção e considerando o humano um ser desejante, seria toda e qualquer expressão motora o meio de se obter satisfação calcada no próprio desejo sexual que, inicialmente, é manifesta na relação erógena existente entre o bebê e o seu corpo.

Embora a concepção de corpo erógeno anteceda a função do mecanismo repressivo, é somente ao longo do desenvolvimento que a criança passa a perceber o proibido. E são os meios de investigação das fontes de prazer que levam à descoberta desse corpo, que é manipulado pela atividade de fantasiar (Freud, 1905/1974). Explorar o corpo e brincar com suas partes, então, permitiriam a estruturação do ego desde as fases iniciais da vida; mais ainda, brincar com o corpo é, para o ser que ainda não desenvolveu meios de comunicação verbal, uma forma de linguagem entre ele e seu corpo, e, mais explicitamente, entre ele e seu mundo. Nessa brincadeira, o bebê percebe que algumas partes corpóreas proporcionam mais prazer do que outras.

A fórmula freudiana então seria a seguinte: investigar as fontes de prazer no corpo permite o desenvolvimento de um ego simbólico, e os desejos derivados dessa erotização entre o eu e o corpo tornam-se proibidos no tocante à sua expressão. Ademais, a manipulação corpórea resulta na existência de um mundo de fantasia sexual que, pelo fato de ser uma linguagem erógena (a manipulação corpórea) e pelo fato de ter de ser substituída por outras vias de comunicação, ameaçaria o ego caso fosse diretamente expressa. Mas, linearmente, uma fantasia é substituída por outra. Se as fantasias sexuais derivadas da relação ego/corpo passam a ameaçar a existência do próprio eu por ser proibida, é o próprio proibido a nova forma de se fantasiar, pois manter o mundo de fantasias sexuais na mente da criança é manter a forma de expressar os desejos intoleráveis que ameaçam a própria existência (seria, então, pensar sobre as conseqüências da realização do desejo proibido a nova forma de se fantasiar). Portanto, para proteger o ego das fantasias de proibição, a repressão se impõe como um modo de tornar esquecidos os desejos sexuais e preservar o sujeito do seu turbulento mundo de fantasia (Alonso & Fuks, 2004).

Se, por meio do brincar com o corpo, o sujeito desenvolve uma forma de linguagem e um mundo de fantasia, será via essa linguagem a forma pela qual a fantasia se expressará (Rosenberg, 1980). De acordo com a repressão, a linguagem do brincar (inicialmente com o corpo erógeno), entendida aqui primeiramente como estruturante e, posteriormente, como sinônimo da relação com o mundo de fantasia, poderá tornar-se comprometida pelo fato de o ego não sustentar a relação entre fantasia e fantasiar, visto, de algum modo, sentir que é possível reviver suas turbulentas fantasias de proibição. Assim, no caso da criança, a possibilidade de elaborar as angústias e os desejos hostis simbolicamente descritas por Klein (Segal, 1975), sem entrar em contato com a atmosfera da fantasia, tornaria o próprio brincar excessivamente empobrecido ou inibido. No caso do adulto, os processos criativos durante os devaneios (brincadeiras) descritos por Freud (1908/1974) no estado de vigília tornar-se-iam constringidos demais. Também o prazer derivado da vivência na terceira área da experiência descrita por Winnicott (1971) não geraria muitos frutos para o sujeito, já que, nesses casos, pelo fato de o mundo da razão se sobrepor ao mundo da fantasia, a originalidade e a criatividade seriam substituídos por uma forma mecânica de se relacionar consigo e com o mundo.

 

Para além da tarefa diagnóstica: o contar histórias como equivalente do brincar

Como ficaria, então, o ser desejante se aquilo que ele deseja se origina do mundo de fantasia e a fantasia, por sua vez, pode ser uma modalidade proibida do brincar? Ainda, se determinadas fantasias são proibidas por serem de natureza libidinal, o brincar, nesse sentido, seria uma atividade inaceitável?

Considerando então toda a exposição teórica antes apontada, a capacidade de adentrar no mundo da fantasia dependeria do rumo que toma a relação entre o desejo e as suas formas de expressão. Brincar (ou fantasiar), portanto, seria considerado algo que antecede o racional e que vai além da realidade. Brincar seria necessário para o desenvolvimento psíquico e para o das capacidades criativas, seria estruturante e ampliaria as zonas de relação entre o sujeito e o seu mundo. Brincar, então, seria fundamental.

Mas como ver esse brincar (ou esse fantasiar) na clínica? como perceber se o brincar se articula com o proibido e se torna inaceitável?

Se a tarefa diagnóstica tem a função de escutar o que o sujeito tem a (e consegue) dizer, mais profundamente, escutar o discurso tem a finalidade de permitir o acesso ao inconsciente do sujeito (Rosenberg, 1980). Assim, contar histórias na situação de exame diagnóstico seria uma forma de se estruturar o discurso amalgamado (ou não) na fantasia, por parte de quem relata, e de se levantar hipóteses sobre a presença (ou não) da possibilidade de brincar, por parte de quem ouve. Já que a tarefa de contar histórias é lúdica, e o lúdico se relaciona à brincadeira (que, por sua vez, se relaciona à fantasia), é tarefa do profissional compreender se o sujeito possui recursos criativos para montar uma trama e se a situação tem, para o sujeito, um caráter proibitivo. Em outras palavras, deve-se investigar qual a relação do sujeito com o mundo de fantasia e concluir se o mesmo consegue ou não brincar com os elementos de seu mundo interno de maneira saudável e satisfatória; portanto, comprometer-se com a tarefa de compreender a realidade psíquica por meio da brincadeira.

Para isso, o profissional tem em mãos várias técnicas que possibilitam o contar histórias. Dentre elas o TAT, o CAT, o Teste das Relações Objetais, as fábulas de Düss e o procedimento de desenho-histórias. Esses instrumentos, todos de fundamentação psicanalítica, exigem do sujeito a construção de um discurso que possibilite tanto a expressão dos processos inconscientes quanto a capacidade criativa do mesmo. Além disso, são de natureza projetiva, e visam a proporcionar a expressão do mundo de fantasia daqueles que se submetem a elas.

Nessas técnicas, o papel que ocupam ambas as partes, paciente e profissional, no processo de diagnóstico clínico, é fundamental. Por um lado, há aquele a quem se solicita estruturar um discurso, e, por outro, há quem deve orientar a tarefa sem incitar respostas da outra parte. como diz Anzieu (1976/1981), as técnicas projetivas são técnicas estruturadas de forma ambígua, dando a liberdade de o sujeito se expressar. Dessa maneira, o profissional deverá não padronizar a tarefa e deixá-la livre de forma que o paciente resolva o problema de sistematizar, de maneira coerente, um discurso derivado de um estímulo ambíguo.

Para Sigal (2000),

Num diagnóstico, tal como o entendemos aqui, o objeto de conhecimento referese ao aparato psíquico na sua totalidade, ao sujeito incluído no mundo com suas produções sociais e culturais, indo além da pesquisa acerca das produções do inconsciente. Desejamos, no entanto, reafirmar a necessidade de provocar o inconsciente, de fazê-lo “falar”, fazendo “falar” o texto. Provocar e convocar, no lugar de atribuir sentido ou outorgar interpretações fechadas que padronizem as respostas... Convocamos a construção de sentidos novos que nos facilitarão a compreensão das possibilidades criativas e reorganizativas do sujeito. (p. 37)

Isso significa que, na tarefa de exame, é a subjetividade como um todo que é provocada por meio da fala do sujeito; assim, o inconsciente é cutucado com uma vara curta e convidado a se manifestar por meio do discurso. Então, o ato de contar histórias não se relacionaria diretamente às recordações carregadas de afeto, mas serviria como isca para fisgar o material inconsciente e tirá-lo de suas profundezas.

No entanto, é de acordo com o quanto esse material inconsciente se debateria depois de sair de suas profundidades, como faz o peixe fora d’água, que revelaria muito da maleabilidade e do equilíbrio do próprio sujeito ao lidar com a tarefa.

Nessa linha de raciocínio, as técnicas projetivas configuram uma tarefa que proporciona formas aparentemente insignificantes de expressão, mas que, por essência, permitem burlar a censura e expressar os desejos proibidos de maneira simbólica (Sigal, 2000). Então, considerar o contar histórias como atividade lúdica é considerar a situação de exame como aparentemente insignificante. E é com essa aparente significância que se torna possível observar o mais importante da tarefa: o inconsciente e a sua relação com o sujeito.

Portanto, a tarefa de exame não só exigiria do sujeito a capacidade de estruturar um estímulo pouco estruturado por meio do ato de contar histórias, mas também, além das demarcações entre papel do paciente e postura do profissional, convidar o mesmo a brincar, a adentrar seu mundo de fantasia e a suspender-se temporariamente, no sentido apontado por Huizinga (n.d.), do seu mundo existencial e concreto.

 

O simbolismo e a concretude como modalidades diagnósticas no momento de brincar (de contar histórias)

O ato de contar histórias seria, então, o modo pelo qual o sujeito, via discurso, indica a relação que mantém com seu mundo de fantasia. Tal relação, possível por meio do brincar com os elementos de sua constelação mental, exige uma disponibilidade interna para a simbolização de suas ansiedades e angústias, que se reativam frente aos estímulos projetivos da situação de exame. Essa linha de raciocínio se apoia nas ideias desenvolvidas por Freud (1908/1974), quando destaca que a capacidade criativa e os devaneios dependeriam da mediação feita pelo ego entre os elementos do mundo interno e a sua consequente vinculação com a atmosfera do verbal, ou seja, com a instância do préconsciente. Nesse texto, Freud vai chamar a atenção para a capacidade que os escritores criativos possuem para veicularem em seus textos essas fantasias comuns a todos nós e para o fato de que, de alguma forma, esse caminho de expressão das fantasias via devaneio ou brincar se torna uma importante via de contato com o mundo interno.

Assim, a pobreza ou a escassez de elementos verbais no discurso de quem intenta elaborar uma história poderia revelar a presença de excessivo mecanismo repressivo, no sentido de inibir a expressão da fantasia, talvez pelo fato de o investimento de energia na tarefa ser maior do que aquele que o ego consegue suportar. Então, a apropriação da situação examinadora sobrecarregaria o ego do sujeito e exigiria do mesmo a utilização de recursos defensivos frente a momentos geradores de tensão (chabert, 2004). Já que se pressupõe que brincar exija a catexia de energia para a realização da atividade, contar histórias também exigiria um investimento de energia, e a sobrecarga de tal investimento poderia ser a responsável por mobilizar o mecanismo defensivo antes apontado.

Quando é possível observar a presença do mundo de fantasia por meio do contar histórias, a natureza desse brincar deve ser levada em conta. Isso quer dizer que ter recursos verbais para se contar uma história e propiciar a expressão da fantasia não indica, necessariamente, que o relacionamento com o mundo interno seja saudável. O discernimento entre o que é normal ou o que é patológico dependerá muito da natureza dessas fantasias. Exemplo disso é apresentado no recorte de uma história contada por um sujeito de 19 anos quando na realização do procedimento de desenho-histórias. Sua história, por mais que possibilite a apreensão de elementos verbais e a presença de simbolismo, deixa dúbia a consideração de que se trata de um indivíduo capaz de brincar satisfatoriamente com o seu mundo de fantasia.

 

Título: os perigos da pesca

S: – É um pescador que está em alto mar. Ele está lá porque decidiu ganhar a vida de maneira diferente dos demais. cansou de morar na cidade e viver com pessoas maldosas, que só queriam seu mal. Foi para o mar pescar para ficar longe dos humanos malvados. Mas ele não tem sorte, além de não conseguir pescar os peixes, os tubarões ameaçam comê-lo, porque os peixes já acabaram e não tem mais nada para eles comerem. O pescador está atento e pronto para matar o primeiro tubarão que chegar perto dele. É um pescador forte e inteligente, e espera atentamente os tubarões irem pegá-lo e devorá-lo porque ele não se comportou bem este ano. Mas, no final, consegue escapar de todos os tubarões.

Mesmo que se observe a presença de elementos simbólicos no desencadear da trama, o caráter temático do discurso remete à existência de ansiedades do tipo esquizoparanóides que, para Klein (1946/1991), derivam das fantasias de destruição dos objetos parciais sentidos como maus pelo ego infantil, isto é, são fantasias de cunho persecutório que parecem habitar o mundo mental do sujeito.

Sem entrar no mérito de dissecar a história como um todo e tentar compreendê-la profundamente, é possível perceber que os tubarões assumem esse papel de entidade perseguidora que intenta destruir o ego. Além disso, o ambiente é sentido como vazio e hostil, devendo ser evitado. Entretanto, são as fantasias de destruição e a maldade do próprio sujeito os elementos projetados primeiramente nos humanos e posteriormente nos tubarões. Ademais, esses objetos perseguidores e malvados são partes divididas do ego que, via expressão simbólica, se apresentam como objetos retaliadores de um ego que não se comportou bem durante o ano.

A pergunta então se volta para a tarefa de brincar. contar histórias, nesse caso, foi convidativo em termos de apropriar-se da situação como uma possibilidade de expressar o mundo de fantasia e, portanto, de provocar o inconsciente e, de alguma forma, brincar na situação de exame com os elementos pertinentes da constelação mental? Segundo o sustentado até aqui, a resposta a tal questão seria positiva. como destacado por Parsons (2001), a criança sabe quando brinca, quando faz de conta e quando deve agir com seriedade, o que, para o adulto, não é diferente. É evidente que houve tanto o investimento de energia psíquica para montar um discurso quanto o uso de elementos simbólicos para articular os elementos da história. O mundo da realidade e o da fantasia puderam ser discernidos, e os conteúdos inconscientes puderam encontrar expressão sem maiores danos ao ego. Em outras palavras, a insignificante situação de exame mostrou-se tão insólita que a censura pôde ser mitigada pelo simbolismo e assim o mundo interno pôde ser expresso por meio do discurso. Mas é a qualidade da história que indica a natureza da fantasia e a inclinação à normalidade ou à patologia.

Outra história recortada, narrada por uma mulher de 34 anos durante a realização do procedimento de desenho-histórias, expressa bem a qualidade da articulação entre o ego e mundo de fantasia.

 

Título: a vontade do destino

S: – É um moço novo, acabou de se formar na faculdade. Ele está cheio de vontade, quer trabalhar, pôr em prática o que aprendeu. Seu medo é o de sair de casa e deixar sua família sozinha. Sabe que é responsável por si mesmo, só que tem medo de deixar sua família sem ele, pois acha que a família pode sentir muito sua falta. Mas ele recebeu um convite para ir atuar na sua área. Ele se formou em informática. À noite fica pensando o que poderia acontecer com a sua família, principalmente com a mãe, se ele fosse embora. Isso bate um sentimento de culpa nele... ele fica triste, mas pensa na possibilidade. Não sei mais o que dizer... ele decide deixar para ir trabalhar mais pra frente, quando sua mãe se acostumar com a ideia. É, ele fica em casa.

A natureza notavelmente depressiva da história mostra o funcionamento psíquico do sujeito e suas angústias em relação ao desenvolvimento e à sua separação da família, sendo que o tema principal da história é a necessidade de realização imediata do desejo versus sua protelação. O que subjaz a esse tema é o medo de se destruir o objeto caso o desejo se concretize e, para que isso não ocorra e o ego não sinta a consequente culpa pela realização daquilo que almeja, precisa reparar o objeto para mantê-lo vivo e livre de sentimentos indesejáveis. Tal fantasia do temor à aniquilação do objeto amado e à expressão dos desejos considerados proibidos é característica da posição depressiva descrita por Klein (1930/1991) sobre os estados psíquicos do bebê.

Na história, seria o sair para trabalhar o elemento simbólico que representa a fantasia de presença de desejos hostis e que poderiam ferir o objeto amado, pois, caso isso acontecesse, o personagem poderia magoar a família e, principalmente, a mãe. Portanto, a solução viável seria a de reprimir o desejo e reparar o objeto amado ficando em casa, adiando a satisfação do almejado.

Observando a vinheta acima, a ideia de expressar as angústias e as ansiedades pela atividade simbólica descrita por Klein (Segal, 1975) torna-se sobremodo possível no ato de contar histórias. Nela, o conflito resulta em uma solução viável ao ego, compreendido pela possibilidade de se escutar o inconsciente por meio do discurso apresentado no instrumento. Além disso, a qualidade do brincar com os elementos do mundo interno mostrou-se menos ameaçadora do que na primeira história.

A próxima história, contada por um sujeito de 27 anos, revela de forma nítida a dificuldade do ego em lidar com a tarefa de exame. O instrumento aplicado foi o TAT, cuja prancha 11 foi escolhida para a apresentação que se segue.

 

Título: o fugitivo

S: – Ai..., que mancha horrível. Vai ser difícil contar uma história em uma mancha tão feia. Eu tenho mesmo que contar uma história aqui? Então tá. Hum... era uma aldeia de índios e eles estavam sendo seguidos por um bicho feio, um monstro. De repente, um deles se perde e acaba dentro da caverna do monstro... me lembra sabe o quê? O escritório de um lugar que eu trabalhei, horrível.... Daí ele tenta lutar com o monstro e acaba se machucando todo. Posso inventar qualquer final?... ele não sabe o que fazer com o monstro. A vontade dele é a de se vingar. Não dá pra trocar de teste, não? Esse aqui é muito chato, só tem umas figuras idiotas. Não gostei de contar histórias, não.

Alternar entre a realidade e a fantasia, nesse caso, mostra-se extremamente difícil pelo fato de suas delimitações não estarem bem definidas. A evasão do mundo da realidade descrita por Huizinga (n.d.) durante o brincar se inviabiliza quando não é possível discernir o brincar do não brincar. Nesse caso, tanto o começo quanto o meio e o término da brincadeira se misturam com o dado da realidade.

É provável que ocorra a regressão funcional do aparelho psíquico aos estágios mais iniciais em histórias dessa natureza. contudo, quando se regride aos estágios primeiros do desenvolvimento e se provoca o inconsciente na tarefa de brincar (contar histórias), a capacidade de entrar e sair dela (a tarefa) sem deixar feridas egóicas revela como o sujeito se utiliza da atmosfera simbólica para resolver tal problema. Então, os elementos simbólicos se mostram frágeis por não tornar viável representar o proibido como algo distinto do inaceitável, e o mundo da realidade se mistura com o da fantasia na mente do sujeito, impossibilitando-o de brincar com os elementos da sua constelação mental por tornar questionável ser seguro ao ego articular a realidade e a fantasia. As fantasias ganham um caráter quase concreto, o que inibe a possibilidade de expansão e exploração desse universo. como apontado por Freud (1908/1974), o brincar é movido pelo desejo, e o ser desejante, nesse caso, se aproximou de seu desejo e teve dificuldades em lidar com sua existência.

Em relação à presença da repressão, a história seguinte retrata muito bem a presença do fenômeno em questão. Foi relatada por uma criança de oito anos no Teste das Fábulas, e diz muito sobre a sua relação com o seu mundo de fantasia.

 

Fábula do passarinho

Instrução: “um papai e uma mamãe pássaros e seu filhote passarinho estão dormindo num ninho, no galho. De repente, começa a soprar um vento muito forte, que sacode a árvore, e o ninho cai no chão. Os três passarinhos acordam num instante e o passarinho papai voa rapidamente para uma árvore, enquanto a mamãe passarinho voa para outra árvore. O que vai fazer o passarinho? Ele já sabe voar um pouco”. (Cunha & Nunes, 1993, p. 108)

S: – O passarinho não fez nada... ficou esperando o pai.... Acho que só.

 

Fábula do cordeiro

Instrução: “Lá no pasto, estão uma mamãe ovelha e seu cordeirinho. O cordeirinho pula todo o dia ao lado da mamãe, e todas as tardes a mamãe lhe dá um bom leite quente que ele adora. Mas ele já come capim também. Um dia trouxeram para a mamãe ovelha um cordeirinho que estava com fome, para que a mamãe lhe desse leite. Mas a mamãe ovelha não tem leite bastante para os dois, e diz para o seu primeiro cordeirinho: - como eu não tenho leite bastante para os dois, vá então comer capim fresco. O que o cordeirinho vai fazer?”. (cunha & Nunes, 1993, p. 132).

S: – Simples. Ele foi comer capim.
E: – E como ele se sentiu?
S: – Normal.
E: – como assim, normal?
S: – Normal, ué.
E: – E o que aconteceu antes?
S: – Ah, ele tava com a mãe.
E: – E como é a relação que ele tem com a mãe?
S: – É boa.
E: – O que é para ele uma relação boa?
S: – Ah, boa..., ele gosta da mãe.
E: – Gosta como?
S: – como assim?
E: – como é esse gostar da mãe?
S: – Ah, como todo mundo gosta da mãe.
Os filhos gostam da mãe, e ele gosta igual.

As outras histórias pertinente sao instrumento também foram dessa mesma natureza, com poucos elementos verbais e com escassez de material simbólico.

Segundo Hammer (1991), as técnicas projetivas proporcionam a condição de o sujeito mostrar suas peculiaridades e os significados dados aos estímulos por meio da tarefa de sistematizar modos de se resolver problemas na situação de exame, o que invariavelmente revelaria a sua disposição inconsciente. Mais ainda, seria via projeção que a regressão aos estados mais primitivos da mente se expressaria, e seria na própria tarefa examinadora que a articulação entre estímulo e mundo interno se processaria. como nos sonhos, os elementos inconscientes são passíveis de serem trazidos à tona devido à regressão funcional do aparelho psíquico aos estágios iniciais de desenvolvimento e funcionamento, onde se encontram incipientes aqueles desejos de caráter proibitório e que surgem no estado de sono por burlarem a censura através da formação de compromisso, característica essa da atividade onírica. Nessa regressão, é operado o retorno a formas de pensamentos mais rudimentares, aos estados cronológicos mais arcaicos e à instância tópica inconsciente (Freud, 1900/1974).

Nas técnicas projetivas, o processo seria, via de regra, o mesmo (Anzieu, 1976/1981). E, se a intenção da situação é a de provocar o inconsciente visando a propiciar a expressão do desejo por meio dessa formação de compromisso entre sujeito, inconsciente e exame, como apontado por Sigal (2000), a falta de recursos simbólicos minimizaria as chances de o material proibido surgir, e a regressão funcional aos estágios iniciais do desenvolvimento provavelmente seria evitada.

Entretanto, evitar a expressão de elementos inconscientes por não se comprometer, ou não formar compromisso com a tarefa de exame, e, no sentido aqui almejado, evitar brincar com o mundo de fantasia, torna-se por si só indicativo do funcionamento psicodinâmico. Se forem característicos do sujeito a ausência de recursos simbólicos e o não investimento de energia na própria situação, será então a própria concretude a modalidade diagnóstica possível. complementando as perguntas levantadas anteriormente, a consideração plausível em tais situações seria a de que o sujeito evita brincar com o mundo de fantasia por, duplamente, compreender o brincar como atividade proibida, e sua realização, como atividade inaceitável. Brincar seria tanto sinônimo de realizar os desejos proibidos (ou de fazê-los acontecer) quanto sinônimo de reviver os desejos construídos na relação erotizada entre ego/corpo, inibidos principalmente pela ação da repressão e pela anulação dos processos criativos.

Existem outras formas de respostas que também revelam o evitamento da relação com o mundo de fantasia. São as respostas estereotipadas, que, de outro modo, possuem plural finalidade: a falta de criatividade e a falta de originalidade. Nesse sentido, brincar seria uma atividade mecânica e maneira de não expressar os verdadeiros sentimentos de amor e ódio, mas de expressá-los de jeito superficial. Logo, a modalidade diagnóstica se viabiliza não pelo eixo da concretude, mas pela qualidade do simbólico que, nas histórias estereotipadas, se apresentam como um compromisso do sujeito consigo mesmo ao evitar apropriar-se da situação para não brincar com seu mundo de fantasia.

 

Considerações finais

cabe ressaltar que as histórias aqui apresentadas não tiveram o intuito de ser pormenorizadamente interpretadas e nem o de fazer compreender o funcionamento dos sujeitos que relataram as histórias. Também o objetivo do presente trabalho não foi o de explanar como se utilizam instrumentos dessa magnitude, mas o de considerar a possibilidade de o sujeito brincar na situação de exame (no contar histórias) como uma forma de aproximação da relação que ele mantém com o seu mundo de fantasia. Se fosse o caso, todas as histórias de todos os instrumentos deveriam ser apresentadas e articuladas com outras evidências clínicas. Por isso, decidimos destacar apenas algumas vinhetas, visando a articular as respostas dadas pelos examinados com o pressuposto teórico sustentado aqui.

Como observado, são as fantasias de natureza depressiva e a capacidade de simbolização do ego os parâmetros de maior maturidade psíquica do sujeito, enquanto as histórias mais estereotipadas, concretas, inibidas e de natureza esquizo-paranóide são os parâmetros de situações psíquicas mais patológicas. A natureza do brincar como convite e como meio de se convocar o inconsciente no exame diagnóstico seria o indicativo da relação entre o ego e a possibilidade de se articular o mundo da fantasia com o mundo da realidade.

As moções pulsionais, quando expressas via conteúdo pré-consciente, alicerçam-se à natureza da história e revelam qual a estrutura do ego para lidar com a possibilidade de brincar com a atmosfera da fantasia, além da capacidade de se tolerar os rumos da própria brincadeira. Nessa perspectiva, a condição de simbolizar, outrora desenvolvida por intermédio da possibilidade de se brincar e de diferenciar o que é realidade do que é fantasia, é passível de ser observada por meio dessa atividade lúdica, isto é, por meio do próprio ato de contar histórias. Seria nesse momento de brincar contando histórias que a fantasia ou a concretude se tornariam modalidades diagnósticas plausíveis para se escutar o inconsciente e para observar suas vias de expressão.

 

 

Assim, convocar e convidar o inconsciente a se manifestar no sentido apontado por Sigal (2000), que estão presentes no ato de contar histórias, resultaria na relação com o mundo de fantasia e com os principais conflitos do sujeito. Por isso, seria necessário o dispêndio de elementos simbólicos a fim de transformar a representação-coisa em representação-palavra, tornando inteligível e possível a manifestação do inconsciente. contudo, seria tamanho do abismo existente nesse processo mediativo que a natureza do discurso penderia ou para o caminho do simbolismo, manifestação sadia, guardando-se as devidas proporções, ou para o da concretude, manifestação mais patológica e indicativa do possível empobrecimento dos processos criativos.

O ser desejante, que se move e se relaciona em função da satisfação de seus desejos inconscientes (Freud, 1900/1974), quando solicitado a contar uma história qualquer, revela ao profissional atento ao seu discurso de que maneira este lida com seus desejos, expressos via formação de compromisso ou extirpados de seu espaço psíquico via mecanismo repressivo. Mais além, o convite à brincadeira proporciona ao profissional considerar a própria brincadeira como indicativa da realidade psíquica daqueles que brincam (ou que conseguem brincar) de contar histórias.

 

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Endereço para correspondência
Fábio Donini Conti
Rua Mato Grosso, nº 140 – apto 21-A, Jardim cidade Brasil
07044-030 – Guarulhos, SP - Brasil
E-mail: fabio_donini @yahoo.com.br

Rebido 30/9/2008
1ª Reformolaçãoo 12/4/2009
2ª Reformulação 16/6/2009
Aprovado 30/6/2009

 

 

* Psicoterapeuta, professor de Psicologia da Universidade de Guarulhos, Guarulhos, SP - Brasil e da Universidade cruzeiro do Sul, São Paulo, SP – Brasil. Mestre em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil e doutorando em Psicologia no mesmo instituto. Membro do Laboratório Interdepartamental de Técnicas de Exame Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
** Psicanalista, doutora em Psicologia. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil. Membro do Laboratório Interdepartamental de Técnicas de Exame Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: asetton@uol.com.br