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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.13 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

A perspectiva winnicottiana sobre o autismo no caso de Vitor1

 

The Winnicott’s perspective about the autism in the case of Vitor

 

 

Conceição A. Serralha de AraújoI

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto discute brevemente o autismo infantil, apontando as diversas transformações em sua definição nos últimos anos, e enfatizando o entendimento de D. W. Winnicott acerca do problema. Elementos do caso de Vitor são trazidos com o intuito de ilustrar os pontos da teoria winnicottiana, importantes para a compreensão da etiologia da situação autística, aqui discutida.

Palavras-chave: Autismo infantil, Winnicott, Sustentação ambiental, Defesa materna, Preocupação materna primária.


ABSTRACT

This work discusses briefly the infantile autism, pointing the variety of transformations in its definition in the last years and focusing the understanding of D. W. Winnicott on this issue. We present elements of Vitor’s case in order to illustrate important points of Winnicott’s theory in comprehending the etiology of the autistic condition.

Keywords: Infantile autism, Winnicott, Environmental holding, Maternal defense, Primary maternal preoccupation.


 

 

No contato com pacientes esquizofrênicos adultos, Bleuler, em 1911, introduziu o termo “autismo”, na tentativa de abarcar a perda de contato com a realidade juntamente com a permanência em um modo de viver voltado para si mesmo, que neles identificava. Esse neologismo, criado com base no auto-erotismo de Freud (1923), indicava uma perturbação na vida erótica desses pacientes.

Os esquizofrênicos mais gravemente atingidos, os que não têm mais contato com o mundo externo, vivem num mundo que lhes é próprio. Fecham-se com seus desejos e aspirações (que consideram realizados) ou se preocupam apenas com os avatares de suas idéias de perseguição; afastam-se o mais possível de todo contato com o mundo externo. A essa evasão da realidade, acompanhada ao mesmo tempo pela predominância absoluta ou relativa da vida interior, chamamos de autismo. (Bleuler apud Kaufmann, 1996, p. 56).

Longe de ser a primeira referência2 a esse tipo de sintomatologia, o termo autismo passou a ser conhecido e utilizado por estudiosos, tendo obtido uma descrição mais apurada a partir de Kanner, em 1943. Era uma descrição de um quadro específico de adoecimento infantil, e não mais do sintoma de esquizofrenia adulta.

Para Ajuriaguerra e Marcelli (1991), essa descrição do autismo por Kanner marcou o início da história atual das psicoses infantis, já que as primeiras tentativas de diagnosticá-las apenas faziam o translado do quadro semiológico do adulto para o da criança. Isso gerava uma situação de impasse, pois quanto mais rigor nesse translado, menos casos eram encontrados. As razões para tal situação estavam, entre outras, na dificuldade de integrar o conceito de demência (a criança não tinha uma organização psíquica anterior desenvolvida o suficiente) e no fato de ser extremamente raro encontrar um estado de delírio crônico na criança.

Apesar da descrição de Kanner ter identificado uma síndrome, as tentativas de um consenso em relação à compreensão de sua etiologia, tratamento e prevenção têm se mostrado impossíveis. As divergências não são encontradas apenas por virem de diferentes saberes, como neurologia, psiquiatria, psicologia e psicanálise. Constata-se que além do fato de haver várias abordagens dentro de um mesmo saber, existem quadros muito variados, com múltiplos fatores convergindo para a determinação de cada um deles, como indica a própria característica sindrômica. Assim, um único ponto de vista não consegue abarcar o tema, e tomar em consideração um lado da questão não elimina os outros. Considerar, por exemplo, fatores relativos à interação humana não exclui uma falha na condição física.

Nas classificações das doenças mentais, tanto da Associação Psiquiátrica Americana (as DSMs) quanto da Organização Mundial de Saúde (as CIDs), o autismo sofreu várias modificações em sua definição. Em 1968, a DSM II incluía o autismo no termo “esquizofrenia de início na infância”; logo em seguida, na década de 1970, passou a avaliá-lo como deficiência cognitiva (apud Cavalcanti e Rocha, 2001). Em 1980, a DSM III mudou mais uma vez; distinguiu-o da esquizofrenia infantil e o considerou como um “distúrbio pervasivo do desenvolvimento” (apud Cavalcanti e Rocha, 2001). Por fim, em 1995, a DSM IV passou a descrevê-lo como uma síndrome comportamental com várias etiologias. A CID 10 em 1993, já não julgava que o autismo fosse uma psicose, identificando-o como um “distúrbio global do desenvolvimento”.

Nessas duas últimas classificações o autismo é descrito como um desenvolvimento anormal e/ou comprometido da criança, manifesto antes dos três anos de idade, apresentando características desse funcionamento anormal na interação social, na comunicação e no comportamento, que se torna restrito e repetitivo. A prevalência é de 2 a 5:10.000, predominando mais em indivíduos do sexo masculino (3:1 ou 4:1), e decorre de variadas condições que se apresentam antes, durante e após o nascimento. Enquanto tais classificações falam de “distúrbios invasivos do desenvolvimento”, a classificação francesa (CFTMEA) ainda mantém o autismo como psicose infantil (Amy, 2001). Segundo Miranda (1999), “a história da psiquiatria infantil é a história de um retrocesso que parte do interesse pelos problemas de aprendizagem, avança para as hipóteses propriamente clínicas e retorna ao simplismo behaviorista” (p. 111).

Em meio à impossibilidade consensual, o National Center for Clinical Infant Program (NCCIP) propôs novas categorias em 1997, que na prática ainda não são muito divulgadas, e conseqüentemente, não muito utilizadas para a comunicação de diagnósticos. Essa categorização destaca transtornos que apresentam as mesmas dificuldades descritas nos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, manifestos em bebês e crianças pequenas, mas que evidenciam uma certa capacidade de manter relações afetuosas e interativas com seus cuidadores, lado a lado com um progresso razoável em seu desenvolvimento cognitivo. São então denominados “Transtornos Multissistêmicos do Desenvolvimento”. O NCCIP alerta que “quando identificadas e tratadas apropriadamente, muitas crianças com ‘aspectos autísticos’ desenvolvem relacionamentos de afeto e intimidade” (1997, p. 41).

Dentro da psicanálise, as várias abordagens no estudo do autismo discutem desde a sua constituição – para uns como estado, para outros como estrutura – até a sua não-constituição como doença, segundo a visão da psicanálise winnicottiana.

No estudo etiológico, a teoria do amadurecimento de Winnicott permite a compreensão do autismo como uma questão de imaturidade emocional, que pode acontecer quando o amadurecimento da criança é interrompido de alguma forma, pela inadequação ou insuficiência do ambiente perante suas necessidades. Essa compreensão pode evitar que o autismo seja tomado como uma doença (nos termos da psiquiatria), uma entidade nosológica, que muitas vezes retira a importância da relação ambiente-indivíduo da constituição do problema. Winnicott comentava: “Qualquer um dos muitos elementos descritivos pode ser examinado separadamente e pode ser encontrado em crianças que não são autistas, e mesmo em crianças que são chamadas de normais e sadias” (1967, p. 194).

E mais, “para cada caso de autismo que encontrei na minha prática, encontrei centenas de casos em que havia uma tendência que foi compensada, mas que poderia ter produzido o quadro autista” (1966, p. 180). Essa afirmação expressa seu pensamento de que, por mais que determinados momento e contexto tendam a levar o bebê para um estado autístico, existem cuidados do ambiente que podem minimizar quaisquer conseqüências de fatores adversos, e possibilitar que o desenvolvimento possa seguir de um modo satisfatório.

Percebe-se que a teoria do amadurecimento não descarta a presença de fatores externos à relação ambiente-indivíduo (relação inicial mãe-bebê), e ajuda a dimensionar a responsabilidade dos pais, inerente à condição de genitores e cuidadores, sem culpabilizá-los. Como bem sabia Winnicott (1950), não se pode deixar de reconhecer o “acaso”, dentre outros fatores – “há as crianças cujos pais não foram bem sucedidos e precisamos lembrar que o fracas-so pode não ser absolutamente por falha deles. Pode ser por um erro médico, ou um erro da enfermeira, ou pode ter sido por uma intervenção do acaso...” (1950, p. 37). Nesses casos os pais podem carecer de recursos para lidar com o imprevisto, e o suporte do ambiente próximo será fundamental.

Mas, enfim, o que seria o autismo para Winnicott?

Segundo sua teoria, no autismo a criança produziria uma organização defensiva, no sentido de adquirir uma invulnerabilidade diante da ameaça de voltar a ser tomada por uma agonia anteriormente sentida, devido a uma “invasão” ou falha do ambiente para com ela, na fase de extrema dependência do início de sua vida. Sem a defesa, a criança ver-se-ia diante “de uma quebra da organização mental da ordem da desintegração, despersonalização, desorientação, queda para sempre e perda do sentido do real e da capacidade de se relacionar com os objetos”, que para Winnicott caracterizavam as agonias impensáveis (1984, p. 98).

Ao precisar defender-se, muitas vezes antes de ter implementado suas tarefas iniciais do amadurecimento – integração, personalização, relação com os objetos da realidade externa –, a criança terá somente seu recurso mais primitivo para alcançar a invulnerabilidade: o isolamento. A invulnerabilidade alcançada dessa maneira impossibilita outras defesas, já que impede a relação da criança com o outro, e conseqüentemente, o desenvolvimento das tarefas iniciais, que respaldariam essas defesas minimamente mais evoluídas.

As atividades da criança autista têm uma especialização monótona, sem a presença de fantasias. O apego a certos objetos, a fixação, o balanceio, os comportamentos repetitivos, a evitação de qualquer contato, podem ser utilizados pela criança muito precocemente para defender-se da agonia engendrada pela falha na relação primitiva de identificação primária. Uma agonia que acontece não propriamente por uma questão de intensidade da falha, mas pelo momento de seu acontecimento. Winnicott comenta que o fracasso em satisfazer às necessidades do bebê:

resulta numa deformação do desenvolvimento da criança, individualmente considerada, e pode ser tomado como um axioma, segundo o qual quanto mais primitivo for o tipo de necessidade, tanto maior será a dependência do indivíduo em relação ao meio ambiente e mais desastroso o malogro na satisfação dessas necessidades (1954, p. 208).

Assim, diante de uma falha pouco intensa, o que justificaria uma angústia extrema seria o grau de imaturidade do bebê e seus míseros recursos possíveis no momento para lidar com a situação3, devido à persistência da falha ambiental. O traumatismo torna-se potencial, e a ameaça de retorno da angústia passa a ser sempre considerada, independentemente de sua presença objetiva ou não.

Para Winnicott, “quaisquer que sejam os fatores externos, é a visão que o indivíduo tem do fator externo o que conta” (1962, p. 59). É importante salientar que em uma fase bem precoce, o que se chama de “visão” de um “fator externo”, é na realidade do bebê um sentimento subjetivo de estranheza, de algo que não deveria estar acontecendo, visto que o bebê ainda não compreende razões e tampouco percebe objetivamente o que é interno e externo.

Com esse modo de pensar o autismo, Winnicott acreditava que não se poderia avançar muito na compreensão de sua etiologia, e conseqüentemente na prevenção, se não houvesse coragem de tocar em questões extremamente difíceis e delicadas. Uma dessas questões refere-se ao ódio inconsciente da mãe em relação à criança, oculto por formações reativas, tornando-se, por essa particularidade, mais difícil de ser enfrentado pela criança.

No texto A etiologia da esquizofrenia da criança em termos do fracasso adaptativo, Winnicott (1967) aponta o fator do ódio inconsciente materno, juntamente com mais oito outros pontos – resumidos em notas (de A a I) – como essenciais para o estudo do autismo. Esses pontos são: a “obscuridade ao pensar no quadro autista como regressão”; a organização de defesa sofisticadíssima4 do autismo, promovendo a invulnerabilidade da criança, que deixa de sofrer, ficando o sofrimento com os pais; a defesa também como “garantia contra a recorrência das condições da ansiedade impensável”, devido à “memória (perdida)”5 desta ansiedade que a criança leva consigo; o contexto primitivo em que a ansiedade acontece, contexto de extrema dependência e confiança, antes da consciência de eu e não-eu6; a possibilidade de retorno da vulnerabilidade, quando do fornecimento de uma provisão ambiental capaz de permitir a retomada do desenvolvimento e, por conseguinte, a experiência de sofrimento pessoal da criança; a necessidade de pensar o desenvolvimento emocional da criança em seu início, livre de questões como instinto pré-genital, erotismo oral e anal etc; a característica essencial da mãe de identificar-se com o bebê, sustentando-o; “o desejo de morte reprimido em relação ao bebê”, ódio inconsciente, oculto por formações reativas, que fica “além da capacidade de manejo do bebê”; e por fim o pensamento de que “uma verdadeira explicação da etiologia” do autismo pode melhorar o “entendimento da natureza humana” (p. 195-6).

A ênfase de Winnicott no afeto inconsciente materno como fator etiológico não surgiu apenas nesse momento de seu percurso como estudioso. Desde 1928, em seu texto The only child, Winnicott já trazia algo nesse sentido. Ele dizia: “a influência mais importante sobre a vida de uma criança é a soma das ações e reações impensadas da mãe, e de outras relações e amigos; não são as ações refletidas que têm os principais efeitos”7. Seu pensar a respeito desse tópico foi evoluindo, e em 1969, no texto Desenvolvimento do tema do inconsciente da mãe tal como descoberto na prática psicanalítica, ele voltou a alertar:

O que se torna muito claro é a diferença muito grande que existe entre ser o ódio da mãe ou o ódio reprimido e inconsciente da mãe o que se acha em consideração. Em outras palavras, as crianças parecem ser capazes de lidar com o fato de serem odiadas e isto, naturalmente, é simplesmente uma maneira de dizer que podem enfrentar e fazer uso da ambivalência que a mãe sente e demonstra. O que elas não podem jamais usar satisfatoriamente em seu desenvolvimento emocional é o ódio reprimido e inconsciente da mãe, que apenas encontram em suas experiências de vida, sob a forma reativa. No momento em que a mãe odeia, ela demonstra uma ternura especial e não existe maneira por que uma criança possa lidar com este fenômeno (1994, p. 194 – grifos meus).

Winnicott confessa que gostaria muito de dizer a todo mundo que a atitude dos pais não tem qualquer influência no surgimento do autismo, ou da delinqüência, ou de outros distúrbios do desenvolvimento. Mas ele dizia que não podia, e se pudesse, seria o mesmo que dizer “que os pais não desempenham nenhum papel quando as coisas vão bem”. Segundo ele, “temos de procurar todas as causas de qualquer transtorno, e também da saúde, e não podemos esconder coisas por medo de magoar alguém.” Entretanto, “isso é muito diferente de dizer para uma mãe ou um pai: ‘Isso é culpa sua’” (1966, p. 18990). Uma coisa é culpa e outra é responsabilidade. É preciso analisar a etiologia, pois muitas vezes, “o dano foi feito sem querer e sem maldade. Simplesmente aconteceu” (1960, p. 82).

Por reconhecer a importância da adequação do ambiente para que o amadurecimento da criança se dê de forma satisfatória, Winnicott apontava os cuidados que o próprio ambiente, em particular a mãe, demandam. Para ele, mãe e bebê inicialmente precisam que seu ambiente próximo promova recursos que levem a mãe a desenvolver confiança em si própria.

Adquirir essa confiança torna-se uma tarefa extremamente difícil para algumas mães, já que muitas vezes elas têm dificuldades pessoais grandes, devido a conflitos internos relacionados às suas próprias experiências infantis, vivem em um ambiente que não estimula essa confiança, e também podem deparar-se com situações imprevistas e “mal calculadas”. Nesses casos, a chegada de um filho remetem-nas a experiências infantis malsucedidas e malelaboradas, que podem continuar reverberando dentro delas, fazendo surgir sentimentos intoleráveis, dos quais sentem necessidade de se defender. A defesa não permite que entrem em estado de preocupação materna primária, que lhes possibilitaria identificar-se com o bebê.

Winnicott aponta a necessidade de um papel paterno inicial, que em meio a isso tudo possa desviar da preocupação materna assuntos outros que não estejam ligados ao recém-nascido. Quanto mais existirem conflitos internos ou dificuldades pessoais, mais a mãe precisará de um ambiente sustentador da situação de maternidade, quando tudo se intensifica. Se não houver essa sustentação, pode-se supor um recrudescimento de sentimentos de insegurança, desamparo, raiva, ódio, que por sua intensidade, pelo fato de serem considerados inadequados ao papel materno, e pela incerteza de que o ambiente próximo consiga entender e acolher, são reprimidos, tornando-se inconscientes para a mãe. As formações reativas que podem advir desse inconsciente reprimido não só tornam indiscriminados esses sentimentos para a mãe – e por isso impossíveis de serem elaborados por ela –, como também não permitem que o ambiente os identifique e promova a ajuda necessária.

De acordo com o pensamento winnicottiano, a mãe que se encontra defendida dessa maneira fica inibida, dificultando não só sua identificação com as necessidades do bebê, como também a identificação dos acontecimentos advindos dessa situação. Esses acontecimentos podem ser extremamente graves, como mostra o caso relatado a seguir.

 

O autismo de Vitor

O presente caso foi atendido por mim em uma instituição pública e sofreu várias intercorrências que um serviço público infelizmente costuma propiciar. Entre estas poderia citar o fato de, em algumas oportunidades, encontrarmos a porta da clínica fechada por atraso do funcionário encarregado da chave. Nessas ocasiões, eu e a mãe do pequeno Vitor tínhamos que lidar com a raiva da criança por não poder entrar, e com a nossa incapacidade de conseguir dele um entendimento da situação. Outra intercorrência foi minha substituição como psicoterapeuta junto ao caso quando de minha saída da instituição, já que Vitor, antes de ser meu cliente, era um cliente da instituição. Talvez esse seja o maior entrave encontrado em serviços públicos para tratamentos que demandem tempo e exijam estabilidade, como nos casos de autismo.

A mãe de Vitor foi incentivada a buscar ajuda pelos avós. Inicialmente ela procurou auxílio em um posto de saúde e foi encaminhada ao neurologista. Este pediu exames eletroencefalográfico e tomográfico, e nada encontrou. Percebendo as características autistas de Vitor, o médico encaminhou-o ao serviço de psicologia da instituição em que me encontrava. Nesta, o menino passou a fazer parte de um programa de atendimento a crianças autistas, psicóticas, que além do atendimento individual, oferecia atividades com música, atividades artísticas, educação física e atendimento aos pais.

Ao chegar à instituição Vitor tinha três anos e dez meses de idade. A mãe não “sabia”8 contar acerca de seus primeiros meses de vida. Sobre a gravidez disse ter transcorrido relativamente bem, tendo como pontos destacados por ela uma depressão que a acometera – chorava muito por se sentir sozinha quando o marido ia para o trabalho – e uma pré-eclâmpsia próximo aos nove meses de gestação. Muito pouco ou quase nada relatou sobre as circunstâncias do nascimento, apenas que foi uma cesariana, e que Vitor teve icterícia, necessitando ficar no hospital cerca de três dias após sua alta. Quanto ao desenvolvimento inicial, limitava-se a dizer que nunca havia percebido nada de anormal. Às vezes suas cunhadas percebiam-no diferente e comentavam, mas ela nada via. O pai, uma pessoa bastante tímida, também nunca suspeitou de qualquer anormalidade, dizendo que Vitor desenvolvera-se bem – já pronunciava algumas palavrinhas como “papai”, “mamãe”, “vovó” – até por volta de um ano e meio, quando derrubou uma televisão ligada. A mãe presenciou o ocorrido e disse que Vitor levou um susto muito grande, chorou uma meia hora, e segundo o pai, a partir daí enrolou a fala e começou a ter problemas. A mãe disse que o sonho deles era vê-lo falar, e que agora, próximo aos 4 anos, ele estava começando a cantar.

Em resumo, a mãe contou o seguinte sobre Vitor: era inquieto; batia no pai e na mãe se lhe chamavam a atenção; não brincava com outras crianças, isolava-se; na rua queria escolher o lado por onde andar e queria entrar em armazéns; ficava sempre em volta da mãe, mas “sempre sozinho”; às vezes parecia que não ouvia, que não estava ali, como se estivesse em outro lugar; se ia a algum local barulhento tampava os ouvidos; às vezes parava, ficava olhando para o nada e ria; às vezes olhava para o nada e chorava; não gostava de brinquedo; não tinha medo de nada, mas evitava as crianças, e nesse caso parecia ter medo delas; dormia bem a noite toda; em sua inquietude abria gavetas, armários, “bagunçava” tudo; caía muito da cama; um dia tomou desinfetante, a mãe bateu nele e depois sentiu-se muito culpada; sentava-se perto da mãe quando ela estava assistindo TV e ficava conversando; se ela sentava com ele para brincar, ele a deixava sozinha; se ele ia para o quintal ficava “brigando” com o cachorro, pegava a vassoura para bater nele; ainda mamava na mãe, que gostava de amamentá-lo; ele não pedia, ela oferecia, e quando o fazia ele vinha correndo, ficava muito tempo mamando, segurava o mamilo com os dentes, e às vezes a machucava; não pedia para fazer “xixi” e “cocô”, mas quando ele apertava as pernas ela o levava ao banheiro; ficava muito tempo tentando amarrar os sapatos; gostava de rabiscar folhas de papel.

Segundo a mãe, o pai era uma pessoa “sem graça” com o filho, seco, “acabava o repertório” rapidamente. Disse que Vitor não sabia o que era certo e errado, e ela não gostava que a sogra e as cunhadas chamassem a atenção dele.

O pai já achava que tinha de chamar a atenção dele, que não era porque ele era “doente” que iria fazer o que quisesse. Para o pai, só chamando a atenção de Vitor este iria aprender o que era certo e o que era errado.

A mãe sentia-se culpada pela situação do menino e julgava que a família contribuíra muito para tal sentimento. O avô e a cunhada diziam que o problema de Vitor era “coisa da barriga”; seus parentes diziam que era porque ela não conversava com ele, e a vizinha dizia que era porque ela gritava com ele. A família do marido acusava-a de ter rejeitado o filho, ela ficava chateada com isso e defendia-se dizendo que nunca o rejeitara. Referia-se sempre a ele como o “nenenzinho da mamãe”, “meu amor”, beijando-o muito.

Nos primeiros encontros comigo Vitor não sustentava o olhar ao encontrar o meu, recusava-se a entrar na sala, e deixava perceber nitidamente um medo muito grande do ventilador de teto. Tentei garantir-lhe que a porta ficaria aberta e que ele poderia sair quando quisesse. Após algumas sessões, um pouco mais confiante, Vitor deu seus primeiros passos dentro da sala. Nesse dia, enquanto manipulava alguns objetos sobre a mesa, ora olhava para o ventilador, ora para a porta. De súbito, uma corrente de ar bateu a porta e ele, um sobressalto, correu em direção a ela, chorando. Abri a porta, disse-lhe que fora o vento, que ela não estava trancada e nós poderíamos abri-la. Deixei a porta aberta e ele voltou-se para os objetos. Nova corrente de ar bateu a porta. Dessa vez ele apenas olhou-a sem demonstrar qualquer temor.

Deu-se início a um trabalho cheio de encontros e desencontros. Às vezes a possibilidade de pensar e entender o que se passava fazia-se completamente ausente. Comportamentos repetitivos foram se sucedendo, até que algum senti-do pudesse ser alcançado.

Vitor, quando contrariado, fazia birra deitado ao chão, esfregava as mãos na cabeça de baixo para cima, como se quisesse ver-se livre de alguma coisa que estivesse prendendo ou apertando a cabeça. Refleti na relação disso com traços mnêmicos de algum momento difícil inicial e também com o fato de Vitor sentirse preso no setting analítico – ou pelo menos de não ter condições de prever sua duração, com um sentimento de ameaça de ficar ali para sempre. Em outros momentos, quando chateado, fugia para a sala de café e se deitava em um pequeno sofá. Deitado, Vitor parecia estar seguro, protegido; o sofá era um objeto que estava sempre ali, da mesma forma, com a mesma consistência, e portanto, mais confiável que a mutabilidade do ser humano. Nesses momentos a única possibilidade era sustentar a situação até que ele pudesse estar comigo novamente.

Em determinado período, Vitor passou a picar em pedacinhos bem miúdos os rolos de massa de modelar. A mesa ficava repleta de tais pedacinhos. A mãe comentou que em casa ele também estava com o hábito de transformar em pedacinhos os gravetos que encontrava no quintal. Após algumas sessões, esses pedacinhos passaram a ser esticados com o dedinho sobre a mesa até que ficassem completamente aderidos a esta, como se fossem um só. A experiência de contato pele com pele, o sentimento de insuficiência e a necessidade de identificar-se com o outro pareciam, assim, estar sendo “contados”.

A recordação desses comportamentos de Vitor remeteu-me a uma fala da mãe: “sempre perto de mim... sempre sozinho...”. Além de referir-se à dificuldade da criança de estar ao lado dela, com ela, estaria a mãe referindo-se também à sua própria dificuldade de “estar” ao lado dele quando de suas necessidades, de juntar-lhe os “pedaços”, de acolher suas ansiedades e dar-lhes um sentido?

A existência de Vitor como pessoa parece ter sofrido interferências precoces no seio da família. Após algum tempo de trabalho, durante um encontro que a mãe teve comigo, contou-me sobre carícias feitas a ele pela cunhada e pelo avô desde que ele era bem pequeno: a cunhada, com o pé, ficava acariciando o pênis de Vitor até obter uma ereção; o mesmo fazia o avô com a mão. Em seguida, riam do efeito obtido. A mãe, mesmo não concordando com isso, não conseguia opor-se à “brincadeira”. Ela parecia não ter confiança no próprio discernimento.

Crianças autistas costumam apresentar interesse por partes do próprio corpo e do corpo das pessoas que se relacionam com elas, mas no caso de Vitor o fascínio por pés, que ele começou a apresentar nas sessões, parecia ter um significado particular.

A impossibilidade de a mãe “estar” inteira ao lado dele, ou seja, estar não só física mas psiquicamente sustentadora em momentos de intensa excitação e imaturidade, sendo a “brincadeira” familiar um exemplo, parece ter sido fundamental para caracterizar essas situações como extremamente invasivas.

No trabalho Trauma e sexualidade, Rossi trata da questão ética de um comportamento como o descrito acima. A diferença de valores nas diversas culturas, que em uma pode considerar traumático acariciar os genitais de crianças pequenas para provocar prazer e em outra pode considerar traumático não acariciar (Arapesh-Mead), é por ele comentada. Em seguida declara:

O contato com a sexualidade adulta é inevitável e necessário. É fundamental para a hominização. Será bem sucedido se estiver de acordo com a ética vigente e mal-sucedido se estiver em desacordo. (...) Suponhamos que o adulto que entra em contato com a criança, tenha “insight” a respeito do que está acontecendo e se disponha a conversar com ela, e sem culpa ou pudor a ajude a expressar e comunicar as experiências que estão se desenrolando. Suponhamos ainda que os fatos em questão não estão de acordo com os costumes e os valores da sociedade na qual ambos estão inseridos. Poder-se-ia pensar que nada mais ocorreria. No entanto, pode-se prever que este adulto, à medida que os dois estão fora da lei, torna-se um cúmplice e em vez de ajudá-la a se inserir na grande comunidade humana, onde ela teria o máximo de chance de trocas, oferece a ela o ingresso a uma comunidade de proscritos. Creio que esta seria uma das raízes dos mundos das psicoses e das perversões (1996, p. 929-30).

Tomando por base a teorização de Winnicott, contudo, o que se identifica nesta situação é que a imaturidade de Vitor não poderia dar conta desse tipo de “invasão”.

Winnicott (1945) fala de duas experiências das quais deriva a integração de um bebê: a experiência instintual aguda (que tende a integrar a partir do interior) e o manejo adequado do bebê pela mãe (a forma como ela cuida dele e o envolve). No caso de Vitor, contudo, a intensa excitação era provocada “de fora”, e apesar do bebê ainda não conseguir distinguir este detalhe, era algo não esperado, que sua imaturidade não conseguia abarcar. Além disso, Vitor não tinha como elaborar imaginativamente sua área genital, e muito menos os acontecimentos que a envolviam. Diante da insegurança materna, Vitor ficava “abandonado à própria excitação”.

Aos poucos fui me convencendo de que a queda da televisão não fora o fato desencadeante do autismo de Vitor, mas o fato desencadeante da percepção dos pais para algo que já vinha se estabelecendo desde os momentos iniciais de sua vida.

Em uma sessão acontecida quando Vitor já contava seis anos de idade, comecei a fazer alguns desenhos no papel e o convidei a desenhar comigo. Ele aproximou-se, destampou todas as canetinhas e picou a massa de modelar. Pegou uma banheirinha plástica que gostava de bater na mão e voltou para o lugar onde estava. Peguei os pedacinhos de massa e comecei a montar um boneco. Ele ficou olhando, e quando terminei mostrei-lhe, dizendo: “um menino feito de pedacinhos!”. Ele sorriu e pegou o boneco. Olhou-o, depois o embolou.

Na sessão seguinte, entrou dizendo: “u dindinho to edacinho”. Repeti: “o menino feito de pedacinhos!”. Ele sorriu e eu desenhei o menino no papel. Ele veio e o rabiscou. Passei a utilizar esse recurso no trabalho com Vitor. Por meio da construção em desenhos e modelagens do “menino feito de pedacinhos”, não só fui obtendo maior oportunidade de manter Vitor em contato comigo, como também foi um excelente auxílio para trabalhar sua percepção e integração das partes do próprio corpo e para comunicações importantes entre nós. No início houve respostas positivas simples, como em uma sessão em que ao desenhar o menino e nomear a parte “barriga”, Vitor levantou sua camiseta e mostrou a sua. Ele mostrou também que estava acompanhando interessado e que estava conseguindo, mesmo que ainda de forma inconsistente, identificar-se com o “menino feito de pedacinhos”. Isso me incentivava a utilizar o “menino” para interpretações.

Em um determinado dia ele chegou diferente, triste e quieto. Quando modelei o “menino feito de pedacinhos”, ele o pegou em suas mãos, bateu-o contra o peito e depois começou a mexer em suas partes. Tirou dois pedaços de um braço e os grudou em outra parte. Colocou o seu “menino feito de pedacinhos” sobre a mesa e deitou-se no banco. Olhei para a modelagem e percebi o “menino” em posição fetal. Comentei que ele parecia estar precisando sentir-se protegido, todo juntinho, como esteve dentro da barriga da mamãe. Percebi que naquele dia o melhor seria deixá-lo ali deitado, quietinho, apenas acompanhando seu isolamento. Ao final da sessão, quando o levei ao encontro da mãe, ela perguntou se ele havia vomitado, pois desde cedo ele estivera vomitando e evacuando muito. Posteriormente, ao analisar melhor a modelagem, compreendi que ele esteve me “contando” tudo aquilo: uma das mãos do “menino” em posição fetal segurava a cabeça, um pé tampava-lhe a boca, e os pedaços de braço, ele os colocara sobre a região do ânus, tampando-o também. O sentimento de estar sendo “esvaziado” de todas as suas partes parece ter tomado conta dele, e em uma defesa a esse desmantelamento Vitor encolheu-se, fechando-se sobre si.

Os pais também receberam atendimento no programa, e nos contatos que tive eles contavam como estavam conseguindo entender melhor a criança, que ela se encontrava mais tranqüila, participava de algumas atividades e havia melhorado muito o contato com as pessoas.

Contudo, o que realmente gostaria de refletir na história de Vitor não é o tratamento e sua evolução. Gostaria de chamar a atenção para acontecimentos anteriores, que penso poderão ilustrar o que tentei discutir neste texto, tendo por base o pensamento de Winnicott.

Os pais de Vitor vieram de famílias simples, relativamente estáveis, com um número pequeno de irmãos. A mãe, em sua família de origem, dizia ter sempre a casa cheia de gente, mas tinha dificuldade de interagir com pessoas que não fossem familiares. Considerava sua própria mãe como amiga. O pai de Vitor foi sempre muito tímido, calado, de pouquíssimos amigos. Seus familia-res contavam que até os nove anos de idade praticamente não falava. Aqueles que não tinham intimidade com ele pensavam que fosse mudo.

Depois de algum tempo de namoro, a mãe de Vitor descobriu que estava grávida. Disse que sua madrinha foi quem teve mais dificuldade de aceitar o fato; sua mãe, que fora a primeira a saber, apenas disse: “então vá ao médico”. Em meio ao tumulto feito pela madrinha, marcou-se o casamento. Entretanto, logo depois, a mãe de Vitor teve um aborto; os preparativos para o casamento continuaram e no dia marcado a mãe descobriu-se grávida novamente, dessa vez de Vitor.

Após o casamento foram morar em local afastado, e a mãe de Vitor passou por um período de depressão. Não estava acostumada a ficar sozinha, chorava muito enquanto o marido estava no trabalho. Não conseguiu falar disso com ninguém; não contou à mãe nem ao marido, que só soube do fato na época do tratamento do filho. Ela temia que ele não a compreendesse, que julgasse que ela não estava gostando do casamento. Enfim, temia magoá-lo, e com isso desencadear uma mudança dele para com ela. Engordou muito durante a gravidez.

O nascimento de Vitor foi o que ela chamou de “sua salvação”. Segundo ela, ele veio preencher seu vazio. Chorou muito quando teve que deixá-lo internado no hospital devido à icterícia. Foi com Vitor para a casa da mãe, que a ajudou nos cuidados iniciais. Tinha muito medo de machucar o bebê, e quando dizia isso para a mãe, em suas tentativas de cuidar da criança, ela lhe respondia: “não precisa se preocupar, mãe não machuca filho, não”. Não havia, por parte do ambiente, um acolhimento adequado de sua insegurança, de seu medo; e isto parece não ter sido apenas nesse momento. É bem provável que ela não tenha vivido, em seu próprio desenvolvimento, experiências emocionais com segurança, o que veio a evidenciar-se com maior intensidade ao ter que assumir a responsabilidade por seu bebê.

Nesse ponto destaco o fato de que a mãe de Vitor tinha uma família, um marido ao seu lado, ajudando-a naquele período tão difícil. Este destaque é feito para demonstrar que a presença física, a sustentação material e a técnica apenas não são suficientes. A mãe precisa de uma sustentação emocional, que vai muito além disso.

A mãe de Vitor, alguns anos depois, contou como se sentia sozinha e angustiada naquela ocasião, como sentia tudo tão difícil. A incerteza de ter seus sentimentos compreendidos parecia ter razão de ser, já que tanto sua mãe quanto o marido mostravam-se capazes de acolher os fatos, mas pareciam não conseguir acolher os sentimentos que envolviam os fatos. Os acontecimentos eram vividos de forma rápida, pareciam não ser elaborados. Os sentimentos, por sua vez, denotavam ser sempre ignorados ou negados. Dar a sustentação necessária à mãe era algo muito distante de cada um, devido às próprias dificuldades.

A avó de Vitor era uma mulher prática. Na tentativa de ajudar a filha, parece ter lhe confirmado o mito da “mãe perfeita”, daquela que não falha, que não machuca. Diante da insegurança da filha no cuidado com o bebê, em vez de lhe dizer que era preciso ter cuidado, que mãe machuca filho sim, que aos poucos ela iria aprender a lidar com seu bebê sem machucá-lo, que mesmo que o machucasse isso não iria destruí-lo, e a experiência iria lhe dar a medida certa do cuidado, a avó colocou-a diante da idéia que pode tê-la impedido de se identificar com o bebê – a mítica da mãe que não falha, que não machuca. Para cumprir esse papel de “perfeição” a mãe não tinha descanso, antecipava tudo, invadia, não podia deixar buracos, não dava oportunidade ao bebê de ir em busca de qualquer coisa. Nesse ideal de mãe o ódio não era admitido. Além disso, como poderia permitir-se odiar quem era a sua salvação?

Penso que o final de uma sessão de Vitor pode ilustrar bem essa defesa materna. Quando o entreguei à mãe ele estava incomodado, prendendo as perninhas. Acreditei que ela iria levá-lo ao banheiro, mas percebi que ela estava impaciente com Vitor e parecia não identificar a necessidade da criança. Perguntei-lhe se ele não estaria querendo ir ao banheiro; ela levou-o, e quando saíram disse que achava que teria de levá-lo ao médico, pois desde o dia anterior ele estava com diarréia.

Em um primeiro momento fiquei intrigada com esse acontecimento. A mãe de Vitor sabia identificar a necessidade da criança de evacuar, já o fizera inúmeras vezes. Por que naquele dia isso não lhe ficava claro? Pensando sobre o assunto concluí que talvez, por acreditar ser a diarréia ocasionada por uma falha sua como mãe, e por temer um julgamento de sua capacidade para cuidar do filho, não tenha conseguido identificá-la naquele momento. Isso lhe seria intolerável, pois poderia confrontá-la com sentimentos opostos aos idealizados.

Considero que quando o ambiente próximo, por suas próprias dificuldades, não consegue dar à mãe o reasseguramento adequado, não consegue dar a confiança de que irá sobreviver aos seus momentos de imaturidade, ao seu ódio e aos sentimentos de insegurança, medo, insuficiência, inerentes ao ser mãe, ela não pode tomar consciência e lidar com eles.

No presente caso esse não reasseguramento tornou-se um terreno fértil para as fantasias maternas sobre a maneira incompreensiva com que o ambiente receberia seus sentimentos e assim ela deixava de pedir ajuda, “camuflava” e negava o que sentia, não comunicava sua solidão. Em conseqüência disso, era impedida de ser ajudada por esse ambiente – que tinha dificuldade de perceber os sinais sutis do que realmente estava se passando. A defesa materna mantinha-se, impedindo que a mãe se identificasse com o bebê e o atendesse em suas necessidades.

Para que situações como essa não aconteçam, algo parece ser fundamental: a mãe precisa ter a segurança da sobrevivência do outro (inclusive do bebê) no contato com sua agressividade, com seu ódio, para não ser levada a negá-los. Ela precisa acreditar que seu lugar junto ao outro será mantido. Somente assim a conscientização e elaboração de seus sentimentos serão possíveis.

A clínica do autismo, por sua vez, precisa considerar a necessidade de uma sustentação emocional aos pais no exercício de seus papéis parentais, não só nos casos já instalados, mas principalmente na prevenção de novos casos. Essa clínica não pode estar preocupada com a sintomatologia, o funcionamento ou a estrutura dessas crianças. O que é importante cuidar é do acontecer da criança, e sendo assim, torna-se essencial um trabalho psicanalítico voltado para essa possibilidade, olhando inclusive, e imprescindivelmente, para aqueles que são os possibilitadores da continuidade desse acontecer: os pais.

 

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Endereço para correspondência
Conceição A. Serralha de Araújo
Av. Floriano Peixoto, 615 / 208 – 38400-102 – Centro – Uberlândia/MG
Tel.: (34) 3231-9543
E-mail: serralhac@hotmail.com

Recebido em 08/12/03
Aprovado em 27/02/04

 

 

Notas

IPsicóloga Clínica; Doutoranda em Psicologia Clínica (PUC-SP); Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP) e do Centro Winnicott/SP.
1O presente texto é parte da dissertação de Mestrado da autora (2002), sob orientação do Prof. Dr. Zeljko Loparic.
2Referências de casos anteriores de crianças autistas, na época não denominadas assim, podem ser encontrados em Darr (1951), Bercherie (1998) e Campanário de Moura (1995).
3Em relação ao sofrimento do bebê em uma situação de fracasso adaptativo, Tustin cita um parecer de Mahler de 1961: “O que raras vezes vemos e o que é raramente descrito na literatura, é o período de aflição e dor que, na minha opinião, precede e anuncia inevitavelmente a ruptura psicótica completa com a realidade” (Mahler apud Tustin, 1993, p. 71). Parece claro que Mahler alude às intensas agonias das quais a criança autista defende-se com a invulnerabilidade. Desde 1952, em Psicose e cuidados maternos, Winnicott falava sobre essas terríveis ansiedades.
4Ao referir-se a uma defesa sofisticadíssima do autismo, dentro de um contexto primitivo de extrema dependência e imaturidade, Winnicott (1967) deixa entrever mais uma vez seu pensamento paradoxal, que lhe permite considerar uma questão como essa, sem necessidade de resolvê-la.
5Winnicott (1967) refere-se a um “fato” que o indivíduo carrega consigo “escondido no inconsciente”. Entretanto, não se trata do inconsciente reprimido do psiconeurótico, mas de um inconsciente que quer dizer “que a integração do ego não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo demais para reunir todos os fenômenos dentro da área de onipotência pessoal” (p. 73).
6Nessa nota, Winnicott faz referência à metáfora de Bettelheim (1987) “fortaleza vazia”, deixando claro o seu entendimento de que nem sempre a fortaleza fica vazia. Dependendo do momento em que a defesa se constitui, muitas coisas já podem ter sido experienciadas pela criança. Um exemplo é o caso de uma criança de 12-13 meses de idade, cuja defesa pode se instalar pela incapacidade da criança em lidar com as dificuldades do nascimento de um irmão, associada à incapacidade do ambiente em auxiliá-la nesse momento.
7Esta citação, que pode ser encontrada na Introdução de Pensando sobre crianças (1997, p. 24), foi feita pelos organizadores, que apesar de dizerem que esta não tem qualquer evidência científica, parece ser derivada das teorias de Freud sobre as relações do bebê e do adulto com suas fantasias inconscientes. Entretanto, segundo Dias (1999), isso não deve levar o leitor a deduzir que o impensado em Winnicott é sinônimo de fantasia inconsciente. Também de acordo com um levantamento feito por essa autora, a citação acima não está mais acessível aos leitores nos trabalhos de Winnicott, a não ser na referida introdução dos organizadores da obra aqui citada, por pertencer a um livro que não é mais editado.
8Na verdade, não é que ela não soubesse. Como bem dizia Winnicott, a mãe precisa adquirir confiança no terapeuta para conseguir falar dos acontecimentos e dos sentimentos envolvidos.