SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 issue13“The mirror”: between myself and another oneAlienation and separation in interpretative processes of psychoanalysis author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.8 no.13 São Paulo June 2004

 

ARTIGOS

 

Entre a fuga do social e a busca do individual: parcerias na leitura d’A maçã no escuro, de Clarice Lispector1

 

The fuge from social and the search of individual: partnerships on the study of “A maçã no escuro” of Clarice Lispector

 

 

Fernanda M. Colucci FonoffI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A análise literária dos trechos inicial e final do romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector, é o ponto de partida deste trabalho. Após ter cometido um crime, o personagem Martim inicia uma travessia inédita, que se caracteriza pela aparente rejeição da lingua-gem convencionada socialmente e pela busca de uma linguagem própria. A partir dessa leitura propomos a investigação de temas como individuação, formação de sujeito e a importância da função paterna para a introjeção das leis sociais.

Palavras-chave: Literatura/psicanálise, Clarice Lispector, Linguagem, Pulsões de vida e morte, Individuação.


ABSTRACT

The starting point of this work is the literary analysis of Clarice Lispector’s romance A maçã no escuro – The apple in the dark. After the character Martin had committed a crime, he begins a journey characterized by the apparent rejection of the socially conventionalized language, searching his own. This study proposes the investigation of such themes as individuation, subjective formation and the importance of paternal function for introjections of social laws.

Keywords: Literature/psychoanalysis, Clarice Lispector, Language, Life and death instinct, Individuation.


 

 

Em busca do signo criativo

A teoria literária unida à teoria psicanalítica – em particular a desenvolvida por Freud – servirão como subsídios desta empreitada. Tendo como objeto de análise a investigação n’A maçã no escuro, de Clarice Lispector (1998), do projeto de individuação2 de Martim, personagem principal, e de (re)construção de uma linguagem própria, bem como a relação que se estabelece com os outros (na rejeição e/ou no regresso na vida social), trabalharemos com a questão do anseio de conquistar a linguagem ligada intimamente ao contato do personagem Martim com o que lhe é próprio, com os outros e com a cultura.

A leitura do romance A maçã no escuro aqui desenvolvida concentra-se na narração da aventura de Martim, especificamente na temática da peregrinação em busca da individuação. No plano da ação externa, a narração dáse no processo da fuga, após a tentativa de Martim de assassinar a esposa. O enredo pode facilmente ser resumido em poucas linhas, por apresentar questões aparentemente banais: um homem comum foge para o interior do país, pois acredita ter matado de fato sua mulher. Na fuga, hospeda-se no hotel do alemão por duas semanas. Sentindo-se novamente ameaçado, o personagem foge do hotel em direção a um descampado, e depois de uma longa caminhada chega à pequena fazenda administrada por Vitória, uma mulher comum e que cuida de sua prima viúva chamada Ermelinda. Nessa fazenda o homem trabalha como faz-tudo em troca de comida e estada.

Este contexto aparentemente banal será o cenário da peregrinação de Martim por caminhos pouco explorados. Sua aventura interior inicia-se pela ruptura com sua aparente integração na sociedade. Ao longo do percurso da fuga, o peregrino percebe quanto o mundo exterior tornou-se sem sentido e quanto seu trabalho, suas relações interpessoais e seus interesses ficaram vazios. A peregrinação que iniciará transforma-se a posteriori na busca do sentido como homem, marido, pai, profissional.

O personagem foge do contato social pelo risco de continuar enredado na automação, e de ver seu crime classificado pela palavra comum, pois na sociedade configurada no romance, Martim sente anulada a possibilidade de ser um indivíduo – o que se simboliza, entre outros, pelo fato de ter a estatística como profissão.

Ao se condenar ao isolamento total e ao distanciamento de tudo que é comum à vida em sociedade, Martim aproxima-se ferrenhamente, à sua revelia, da cultura humana, mesmo que de uma forma indireta, por meio de alusões. Dessa forma, ao se nomear um ser a-lingüístico, contraditoriamente revela-se povoado de signos; e suas reflexões esbarram na “fala incontida” ao usar com freqüência a linguagem mítica.

Assim, o projeto de se distanciar da vida em sociedade – com a execução de um suposto crime para alcançar sua existência individual – está condenado à falência desde o princípio, já que sua existência, bem como sua consciência e sua linguagem são historicamente determinadas, e mais, produzidas historicamente. A maçã no escuro inscreve em suas linhas, desta forma, a aporia: Martim deseja alcançar sua existência recusando a linguagem compartilhada socialmente, e mais, deseja alcançar sua individuação longe do contato com outros indivíduos.

 

A percepção da vacuidade do signo

Após a fuga do “hotel do alemão”, Martim chega em um “descampado”, como já foi dito, e lá inicia a aventura pelo caminho da linguagem articulada em voz alta. A primeira fala de Martim dá-se após ter rosnado para o “pássaro negro”, que encontrou entre um ramo baixo, no descampado: “– É, sim! disse alto e sem sentido, e parecia cada vez mais glorioso como se fosse cair morto” (Lispector, 1998, p. 29). E repetiu:

(...) “é, sim!” Cada vez que dizia essas palavras estava convencido de que aludia a alguma coisa. Fez mesmo um gesto de generosidade e largueza com a mão que segurava o passarinho, e magnânimo pensou: “eles não sabem a que estou me referindo”./ Depois – como se pensar tivesse se reduzido a ver, e a confusão da luz tivesse tremido nele como em água – ocorreu-lhe em refração confusa que ele mesmo esquecera ao que aludia (p. 29).

Martim descobre a alusão. O domínio da linguagem convencional não lhe desperta interesse, pois ele parece saber do esvaziamento de seu significado e assim pretende lançá-la ao esquecimento. A linguagem torna-se parca e enigmática – nesse momento em que o homem depara-se com a própria existência e quer ressignificá-la como tal. Mas se a alusão, como recurso de linguagem, é valorizada por ampliar a rede de significação, os recursos de Martim com o processo de expansão dos significados da linguagem, e portanto da consciência, são escassos. O homem alude, mas esquece ao que aludia. E introduz ecos da fala de sua esposa, recordando antigos questionamentos feitos por ela: “– Você não sabe mais falar?!” (p. 30). Este é o primeiro indício da sociabilidade anterior – com a qual rompera e que implicara a travessia também pela linguagem.

A tentativa de conquistar uma linguagem própria passa pela tentativa de recusa radical à comunicação dialógica com os outros. Martim deseja rejeitar a linguagem dos outros, a fim de denunciar suas falências. “– Não sei mais falar, disse então para o passarinho, evitando olhá-lo por uma certa delicadeza de pudor”. Prossegue afirmando que “Perdi a linguagem dos outros” (p. 31) e nota que “(...) alguma coisa estava lhe acontecendo. E era alguma coisa com um significado” (p. 31).

O desejo pelo significado – embora sem o signo que o nomeie – põe Martim em movimento, e ele procura expandir seu modo de se relacionar com o mundo interno e o mundo externo. Diz perder a linguagem dos outros; contudo sua percepção parece radicalizar a aporia: seria impossível o personagem rejeitar plenamente a linguagem dos outros, já que a duplica em seus próprios solilóquios. Além disso, note-se que ele, ao pronunciar, dirige-se ao outro, ao passarinho; abdica apenas da comunicação e do contato interpessoal na busca por reinaugurar-se; duplica, ao projetar o (seu) outro na figura apequenada, do passarinho, a mesma incomunicabilidade de que visara escapar.

Mas Martim parece acreditar que assim rejeita seu modo antigo de significar o mundo e de denominar-se.

Com enorme coragem, aquele homem deixara enfim de ser inteligente. / (...) se ele conseguisse se provar que nunca tinha sido inteligente, então se revelaria também que seu próprio passado fora outro, e se revelaria que alguma coisa no fundo dele próprio sempre fora inteiro e sólido (p. 33).

O foco de luz passa a incidir em seu passado: Martim quer entender seus atos pregressos, para também ressignificá-los. Questiona-se sobre quem era, o que fizera e como agira. O narrador aponta a problemática de Martim para reintegrar-se com seu passado e com a sociedade dita esclarecida. Como o homem adapta-se à sociedade pré-estabelecida? Como a alienação toma conta das relações interpessoais? “Como se faz um homem3 alienado de sua humanidade e da civilidade? Essas são as questões que importam para compreender o projeto de Martim, e a incapacidade do homem de lutar por algo criativo, sendo formado pela sociedade, mesmo que dela se retire.

Ao rever seu passado, Martim percebe a falta de individuação e a distância que o separa do conhecimento de seu mundo psíquico. O trecho que segue abaixo focaliza o momento dessa percepção. Os parágrafos serão transcritos integralmente, apesar de extensos:

“Na verdade”, pensou então experimentando com cuidado esse truque de defesa, “na verdade apenas imitei a inteligência assim como poderia nadar como um peixe sem o ser!” O homem se mexeu contente: imitei? mas sim! Pois se, imitando o que seria ganhar o primeiro lugar no concurso de estatística, ele ganhara o primeiro lugar no concurso de estatística! Na verdade, concluiu então muito interessado, apenas imitara a inteligência, com aquela falta essencial de respeito que faz com que uma pessoa imite. E com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a idéia que se fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a idéia que se fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço sobre-humano a própria cara e a idéia de existir; sem falar na concentração angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade – com uma cautela diária em não escorregar para um ato verdadeiro, e portanto incomparável, e portanto inimitável e portanto desconcertante. E enquanto isso, tinha alguma coisa velha e podre em algum lugar inidentificável da casa, e a gente dorme inquieta, o desconforto é a única advertência de que se está copiando, e nós nos escutamos atentos embaixo dos lençóis. Mas tão distanciados estamos pela imitação que aquilo que ouvimos nos vem tão sem som como se fosse uma visão que fosse tão invisível como se estivesse nas trevas que estas são tão compactas que mãos são inúteis. Porque mesmo a compreensão a pessoa imitava. A compreensão que nunca fora feita senão da linguagem alheia e de palavras. Mas restava a desobediência. Então – através do grande pulo de um crime – há duas semanas ele se arriscara a não ter nenhuma garantia, e passara a não compreender (p. 33-4).

Martim, tateante, elabora suas reflexões sobre a imitação, a alienação, a formação do homem, a repressão que lança ao esquecimento o anseio por “atos verdadeiros” e a palavra inserida no contexto social. Discute e questiona a qualidade das relações, das experiências e da comunicação por ele estabelecidas. Ao imitar o que é ser homem, Martim não era homem, mas sua imagem especular. Ao imitar, ficara preso ao comportamento mimético, não soubera aproveitá-lo para superá-lo, agarrara-se a ele. A alienação de Martim, descrita como algo anterior a seu ato transgressivo, talvez possa ser compreendida, a posteriori, como sua incapacidade de valer-se do comportamento mimético para depois abandoná-lo. Se antes Martim imitara mecanicamente o que é ser homem, agora quer ser – e para isso precisa romper as engrenagens do viver automatizado. Nesse caso, como em outros de Clarice Lispector, o caminho é o do mal, o da transgressão: o crime4.

O trecho selecionado introduz também a reflexão sobre a mimese, priorizando o viés regressivo – “e com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a idéia que se fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a idéia que se fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço sobre-humano a própria cara e a idéia de existir”. Inicialmente estudada por Platão e Aristóteles, a necessidade do homem de imitar o real, sempre retomada, foi reiluminada por teóricos como Sigmund Freud, Adorno e Horkheimer.

Ao aproximar o conceito de repetição com o desejo de conservar o mesmo, Freud nos dá o indício da mimese regressiva. Este conceito desenvolvido por Adorno e Horkheimer poderia, no contexto d’A maçã no escuro, ser definido como aquele que limita os atos do indivíduo e o aprisiona na massificação. A mecanização do comportamento humano, tanto com relação às normas sociais como com relação ao próprio indivíduo, é discutida por esses pensadores. A dialética do esclarecimento enfatiza que:

(...) o preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das reações e funções convencionais que se esperam dele como algo objetivo. O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas (...). As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes, racionais (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 40).

É pela percepção da coisificação de sua (falsa) identidade, e pela percepção do alto preço da perda que isso acarretou, que Martim dá um novo significado a seu ato. Se em um primeiro momento a fuga poderia ser entendida como medo de ser punido pelo crime cometido, aos poucos revela-se como o ato transgressivo necessário à busca de sua individualidade e de sua criatividade. Martim deseja que seu crime saia da banalidade e da palavra comum para modificar-se em ato. Assim, seu crime deixaria de fazer parte da estatística da criminalidade no país para significar algo “verdadeiro”, individual, único – em uma espécie de ressignificação da palavra que retorna, miticamente (ainda que na esfera apenas pessoal), identificando-se com o ato.

Com isso, instaura-se uma nova questão e se apresenta um outro aspecto com relação ao significado de mimese. Além de conter as idéias de alienação e de pulsão de morte, o conceito de mimese, nesse processo interpretativo, inclui ao mesmo tempo a necessidade de discutir o comportamento regressivo no processo de formação do sujeito, que assim supõe romper com a “prisão do esclarecimento” e retornar à esfera do mito. Ao abandonar sua vida regrada na sociedade dita esclarecida, Martim deseja reconstruir seu mito pessoal5 – buscar o que o constitui como sujeito.

Se junto com isso retomarmos a noção de poietiké como imitação, da perspectiva aristotélica6, lembramos que Walter Benjamin pensa o conceito de mimese não como regressivo, mas como transformador, principalmente na linguagem.

É o homem que tem a capacidade suprema de produzir semelhanças. Na verdade, talvez não haja nenhuma de suas funções superiores que não seja decisivamente co-determinada pela faculdade mimética. Essa faculdade tem uma história, tanto no sentido filogenético como ontogenético. No que diz respeito ao último, a brincadeira infantil constitui a escola dessa faculdade (1987, p. 108).

Benjamin enfatiza nesse trecho a importância da imitação, a partir das brincadeiras, para a aquisição da linguagem. Nesse contexto, a imitação – como a possibilidade de sua ampliação em simbolização, ou aquisição da linguagem – apresenta-se como nova possibilidade de investigação da mimese na trajetória de Martim.

Assim como Benjamim, Freud, em Psicologia de grupo e análise do ego: identificação, discute a mimese não-regressiva. Freud nomeia “identificação” o mecanismo de imitação da criança, que segundo ele pode ocorrer partindo de três fontes:

(...) primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção do objeto no ego; e terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto do instinto sexual (Freud, 1921, p. 136).

Martim regride – e imita os gestos supostamente “originais”; Martim regride – e seu corpo imita, ou revive, gestos da animalidade (em todo esse processo, os termos a ele dirigidos expressam ações animais – grunhir, balbuciar, rosnar etc). Porém ao fazê-lo, no cerne da regressão, quer dar o salto do conhecimento.

A trajetória de Martim torna-se especial, segundo nossa percepção, por tratar da aventura trilhada em um percurso que se deseja totalmente inédito – o percurso de sua individuação –, oposto ao caminho socialmente estabelecido.

“Crime?” Não. “O grande pulo” – estas sim pareciam palavras dele, obscuras como o nó de um sonho. Seu crime fora um movimento vital involuntário como o reflexo do joelho à pancada. (...)/ Com deslumbramento, vira que a coisa inesperadamente funcionava: que um ato ainda tinha o valor de um ato.(...) Assim, com um único gesto, ele não era mais um colaborador dos outros, e com um único gesto cessara de colaborar consigo mesmo. Pela primeira vez Martim se achava incapacitado de imitar./(...) Em um minuto Martim fora transfigurado pelo seu próprio ato. Porque depois de duas semanas de silêncio, eis que ele muito naturalmente passara a chamar seu crime de “ato” (Lispector, 1998, p. 36).

Ao redescobrir o crime como o “grande pulo”, e então nomeá-lo como “ato”, rompe com a linguagem estereotipada que carreia um conjunto de códigos (lingüístico e ético) sociais, os quais, compartilhados, possibilitam certo modo de comunicação e de dominação, fundado também no signo cristalizado. Martim quer ter primeiro sua própria consciência, antes de estabelecer relação com o outro. Sabe que seu “ato” seria rapidamente tachado como crime pela lei dos homens, preocupada com a normatização moral, perdendo assim seu caráter particular de “ato” como busca de si mesmo. O crime poderia conter em si a questão da violência como pulsão de morte7, mas aqui se enfatiza o crime como pulsão de vida, quase instintiva (no símile do “reflexo do joelho à pancada”). É por meio do “ato” que Martim rompe com a mesmice, lutando pela possibilidade de criar algo original: a nomeação ou a renomeação. É contra a pulsão de morte que quer criar a vida, “imitando” o poder do demiurgo.

Ao buscar romper com a comunicação estereotipada, Martim suspende predominantemente a relação com o outro e com a continuidade de suas relações objetais. E de fato, desde o início, e antes mesmo de empreender a viagem por território desconhecido, Martim entra em contato consigo mesmo e deseja refazer o percurso inicial de sua individuação. Desta forma, a ruptura estabelecida não diz respeito apenas à linguagem propriamente dita, se entendermos a forma final do pensamento como linguagem verbal. O personagem descobre, com a ruptura do ato, a vacuidade de certa linguagem dialógica e, a partir desse contato traumático com a sociedade alienada, inicia a travessia pela e para a linguagem.

Após o ato transgressivo, seu caminho iniciara com a aparente rejeição da sua própria corporeidade – ao se entregar a um sono profundo – e da linguagem convencional e esvaziada; agora, aproximar-se-á da possibilidade da imitação criadora, que valendo-se da cultura em que está imerso, pode ousar recriar o (seu) mundo. Martim dá-se conta de que a “anulação” é, na vida administrada, a condição da existência. Ao romper – sem astúcia – com o previsível, na impulsividade do crime, lança-se à ruptura da falsa individualidade. Mas seu crime torna-se o ato astuciosamente transgressor – “e portanto incomparável, e portanto inimitável e portanto desconcertante”.

 

A peregrinação interminável pela individuação

O crime de Martim é desvendado no final do romance pelos representantes sociais: o prefeito de Vila Baixa, o professor – figura respeitada na cidade – e os investigadores de polícia. Eles chegam à fazenda de Vitória a fim de prender o criminoso, levá-lo de volta à sociedade, para então submetê-lo ao julgamento de seu ato.

Vitória pergunta ao investigador o que afinal aquele homem cometera e, antes que o investigador se pronunciasse, Martim responde: “– Matei minha mulher” (Lispector, 1998, p. 297). A rapidez com que se dirige a Vitória e aos representantes sociais pode significar finalmente sua assimilação do crime, condição para que possa responsabilizar-se por ele, tanto externa (jurídica e socialmente) como internamente. Porém, Martim também não conhece a verdade, ou ao menos não conhece todo o desfecho de seu ato, e é o investigador quem esclarece toda a história. Ele, que atirara em sua esposa, não a matara. Ela fora socorrida a tempo e sobrevivera aos ferimentos. Seu filho não ficara sabendo do ocorrido e pensa que o pai está viajando. As revelações apontam que os personagens vivem circunscritos a seu próprio mundo psíquico: Vitória abriga um forasteiro sem conhecê-lo; Martim vai à fazenda a fim de elaborar um crime cujo desfecho pressupunha, mas que estava incorreto.

Confuso com os limites entre o eu e o outro, Martim tenta fazer coexistirem sua verdade com a verdade alheia, aderindo a esta e a seus lugares-comuns, mas transformando-os em silêncio. Ao ser questionado sobre os motivos que o levaram a cometer o crime, e frente à hipótese de seu crime ter sido passional, ele elabora:

A verdade dos outros tinha que ser a sua verdade, ou o trabalho de milhões se perderia. Não seria esse o grande lugar comum a todos? Seus olhos piscaram de esperteza e argúcia e curiosidade. Embora soubesse que não a amara, experimentou com alguma cautela fazer suas as palavras dos outros que afinal não podem ser vazias: “pois um homem ama a sua mulher”. (...) Sim, fora por amor, Martim ainda quis ver se daria certo estabelecer um compromisso entre a sua verdade e a verdade dos outros, tentando fazer de ambas as duas faces de um só: “sim, fora por amor, não por sua mulher, mas por amor”, pensou pestanejando, “um crime de amor... pelo mundo”, arriscou ele encabulado, tentando sem jeito a presunção (p. 299-30, grifos nossos).

Ao desejar ser novamente aceito, o personagem se vê em uma encruzilhada: deseja retornar à cidade e deseja manter toda a evolução que conquistou com seu esforço nesses meses de fuga e peregrinação. Sua percepção é que, mantendo-se fechado em sua concha narcísica, perderá a riqueza do contato humano, e colocando-se aberto à interferência do julgamento social também correrá o risco de ficar enredado na teia alienante. Então, utilizando recursos astuciosos como solução de compromisso, Martim aceita que seu crime seja lido como passional – mas ele sabe que seu amor não é dedicado à mulher, mas à humanidade. O desafio do personagem, nesse momento, é reconhecer e respeitar sua individualidade dentro do grupo social – “Fui até onde pude. Mas como é que não compreendi que aquilo que não alcanço em mim... já são os outros? Os outros, que são o nosso mais profundo mergulho!” (p. 310).

Martim entra em contato com o limite, que é enfatizado como sendo o reconhecimento da individualidade do outro. Distingue, deste modo, sucesso de fracasso em sua travessia; reconhece seu processo e também suas limitações. Ao aderir à linguagem de que buscara escapar, o peregrino pretende resguardar seu campo pessoal de significações, sem mais lutar contra a linguagem do mundo, que afinal também o habita, e de que ele não pôde prescindir.

A idéia do fracasso nos conduz a outra reflexão: a travessia de Martim fracassa com sua prisão? Sua proposta inicial só fracassa na medida em que tenta realizar a travessia do alcance da individuação isolando-se social-mente. Entretanto, ao longo de sua peregrinação, ele atinge, por via dos fracassos parciais, alguns êxitos. Assim, sua travessia pode ser entendida como a da busca do inacessível, e nessa medida é êxito também, porque o aproxima de si mesmo.

Esse projeto, anseio ilusório do impossível, agora sem negar a vida social e suas regras, é vislumbrado sob outra luz por Martim. Sua travessia continuará mesmo estando preso, e mesmo retornando à sociedade como condenado. Conjectura a continuação de sua descoberta interior com a realização de um projeto audacioso – escrever um livro:

Porque afinal, diabo! – lembrou-se ele de repente – usei tudo o que pude, menos – menos a imaginação! simplesmente me esqueci! E imaginar era um meio legítimo de se atingir.(...)/ Mas com a imaginação ele escreveria na prisão a história muito torta de um homem que teve... Teve o quê? Digamos: pena e espanto?/ “Sobretudo”, pensou ele, “juro que no meu livro terei a coragem de deixar inexplicado o que é inexplicável” (p. 317).

O livro de Martim será a tentativa de elaboração da própria travessia feita de fracassos e avanços dela decorrentes. Se pensarmos no próprio romance, A maçã no escuro pode ser visto como o suposto livro de que fala Martim, e dessa forma, o romance aqui analisado seria um meta-romance.

Martim quer dedicar-se à escritura do livro que “deixará inexplicado o que é inexplicável”. Essa capacidade de poder conviver com o não-saber estava presente nele mesmo antes do início de sua fuga. Isso fica claro quando recorda sua história pessoal e lembra-se de seu pai.

E Martim compreendeu agora por que seu pai, já pelo fim da vida, dizia teimoso, inexplicável: “sempre consegui o que quis”. Sim, de algum modo sempre se conseguia. E eu, que foi que consegui? Consegui a experiência, que é essa coisa para a qual a gente nasce; e a profunda liberdade está na experiência. Mas experimentar o quê? experimentar essa coisa que nós somos e que vós sois? (p. 322).

Durante um período de sua vida, a frase do pai ficara guardada em Martim até que pudesse recordá-la, ressignificá-la e internalizá-la a partir de sua própria experiência. O reconhecimento da conquista de uma experiência modifica a idéia simplificada de fracasso absoluto da aventura de viver.

A relembrança da figura paterna surge no momento em que se instaura a prisão de Martim, concretizando assim seu retorno efetivo à sociedade, às leis, à cultura e ao julgamento de seu crime. Porém, podemos reconhecer que o símbolo paterno está presente desde sua fuga da sociedade, estendendo-se ao longo de toda sua travessia. A força desse símbolo contrapõe-se à fragilidade e quase inexistência do simbolismo materno.

Ao falar da importância da figura paterna, Hélio Pellegrino reflete sobre a questão da internalização da lei para a constituição do sujeito. Para ele,

a criança, na vicissitude edípica, tem que renunciar às suas pulsões incestuosas e parricidas. Tem que renunciar, portanto, à onipotência do seu desejo e ao princípio do prazer adequando-se ao princípio da realidade. Essa renúncia se faz em nome do temor, subordinado ao amor. A solução do complexo de Édipo implica um pacto – uma aliança – com o pai e com a função paterna. Ora, num pacto, sob a égide da concórdia, ganham os dois lados. No Édipo, com o acordo, ganha a sociedade, representada pelo pai e pela família, e tem que ganhar a criança. O pacto edipiano implica mão dupla, um toma lá, dá cá. A criança perde, mas ganha. Em troca da renúncia que lhe é exigida, tem o direito de receber nome, filiação, lugar na estrutura de parentesco, acesso à ordem do simbólico, além de tudo o mais que lhe permita desenvolver-se e sobreviver – vivendo (1987, p. 200).

Martim é o filho traído pela cultura, que ao lhe prometer amor, tirou-lhe a identidade e o escravizou à “imitação”. Talvez por isso o crime – entendido aqui como a traição de Martim às leis e às normas sociais. Talvez por isso o retorno narcísico que o arma para enfrentar o Pai.

Daniel Delouya lembra a importância da internalização da lei, não só como constitutiva do sujeito, mas também como aquilo que possibilita a entrada do sujeito na linguagem – sua inserção nos símbolos e signos culturais. E afirma que:

Spitz foi um dos primeiros a notar que a criança adquire a fala plena somente depois que passa a empregar o não. O não é, então, a condição da linguagem, assim como no mito freudiano, no qual a verdadeira palavra, a do poeta, só pôde ter tido lugar depois de um assassinato, de um não definitivo à tutela do pai perverso da horda. É este ato de um não que cria o herói épico, dá início à história e instaura a cultura (2000, p. 54).

Não é por acaso que esse romance de Clarice Lispector apresenta uma maior identificação com a figura paterna, principalmente se nos recordamos que as leis, o crime, a rejeição e a (re)apropriação da cultura são os elementos essenciais do enredo. Além, é claro, da questão central da narrativa, ou seja, a rejeição e a (re)apropriação da linguagem dialógica e comunicativa de Martim com outros personagens.

Outro ponto que merece ser assinalado é a última passagem, em que Martim, frente à última despedida imaginária – no túmulo do pai –, depara-se com a luz do fim do dia. As simbologias da morte e do fim se mesclam. A proximidade do fim do dia pode também representar a aproximação do fim de uma etapa de sua aventura e, conseqüentemente, do fim do romance.

Dessa forma, o romance encerra com Martim dirigindo-se a seus julgadores:

– Vamos, disse então aproximando-se incerto dos quatro homens pequenos e confusos. Vamos, disse. Porque eles deviam saber o que faziam. Eles certamente sabiam o que faziam. (...) Porque afinal não somos tão culpados, somos mais estúpidos que culpados. Com misericórdia também, pois. Em nome de Deus, espero que vocês saibam o que estão fazendo. Porque eu, meu filho, eu só tenho fome. E esse modo instável de pegar no escuro uma maçã – sem que ela caia (Lispector, 1998, p. 334)8.

Na despedida de Martim, percebemos certeza e incerteza, desamparo e esperança. Ele realiza, ao longo do romance, uma peregrinação em busca de si mesmo. E, ao chegar ao fim dessa travessia, o personagem depara-se com a consciência de que ela só se dá como processo interminável.

Martim tem fome, pega a maçã e não a morde. Instaura-se, assim, o desejo inacessível e inapreensível, tanto dele, que sai em busca da apreensão de sua total diferenciação com outros homens, como de nós, leitores, que assim encerramos esta análise.

 

Referências Bibliográficas

ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. O conceito de esclarecimento. In: ___. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.        [ Links ]

ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1981.        [ Links ]

BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: ___. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.        [ Links ]

DELOUYA, Daniel. A situação analítica e o Moisés de Freud. In: ___. Entre Moisés e Freud: tratados de origens e de desilusão do destino. São Paulo: Via Lettera/FAPESP, 2000.        [ Links ]

FERRARI, Armando B. Indivíduo: universo dos mitos. Revista Brasileira de Psicanálise. 35(2): 305-316, 2001.        [ Links ]

FONOFF, Fernanda Mara Colucci. Martim: pescador de palavras (Estudo d’A maçã no escuro, de Clarice Lispector). Dissertação (Mestrado). FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.

FREUD, Sigmund. (1920). Além do princípio do prazer. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. vol. XVIII.        [ Links ]

________. (1921). Psicologia de grupo e análise do ego: identificação. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. vol. XVIII.        [ Links ]

LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.        [ Links ]

MARTINS, Gilberto. As vigas de um heroísmo vago (três estudos de A maçã no escuro). Dissertação (Mestrado). FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.        [ Links ]

MELO NETO, João Cabral. Psicologia da composição. In: ___. Melhores poemas de João Cabral de Melo Neto. Seleção de Antonio Carlos Secchin. 8. ed. São Paulo: Global, 2001.        [ Links ]

PELLEGRINO, Hélio. Pacto edípico e pacto social. In: PY, Luiz Alberto. Grupo sobre grupo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.        [ Links ]

ROSENBAUM, Yudith. A metamorfose do mal. Tese (Doutorado). FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1997.        [ Links ]

SÁ, Olga de. A maçã no escuro. In: ___. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fernanda M. Colucci Fonoff
Rua Itacolomi, 601 / 24 – 01239-020 – Higienópolis – São Paulo/SP
Tel.: (11) 3237-2031
E-mail: fmcolucci@hotmail.com

Recebido em 03/04/03
Versão revisada recebida em 28/08/03
Aprovado em 05/09/03

 

 

Notas

ICandidata do Instituto de Psicanálise de São Paulo (SBPSP); Mestre em Teoria Literária pela FFLCH/USP.
1Este trabalho baseia-se em minha dissertação de mestrado, na qual acompanho passo a passo o trajeto do personagem Martim ao longo do romance A maçã no escuro (Fonoff, 2002).
2Por individuação entendo o processo pelo qual o indivíduo busca algo que lhe seja próprio e que o distinga do grupo social, além de também ser a busca do sujeito pelo que é indivisível em sua constituição – como in-divíduo (o que não é separado).
3Como se faz um homem” é referência ao título do primeiro capítulo do romance A maçã no escuro.
4Cf. os textos de Gilberto Martins, As vigas do heroísmo vago (1996); cf. também o trabalho de Yudith Rosenbaum, Metamorfoses do mal (1997).
5Entendo o conceito de mito pessoal segundo a concepção de Ferrari. Para ele, “o homem não pode descobrir o próprio mundo interno e defini-lo como sua consciência, a não ser sob a condição de pensá-la por meio, sobretudo, dos mitos pessoais dos quais advém a sua origem e a sua forma como indivíduo” (2001, p. 311).
6Segundo Aristóteles, “imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar./(...) Se a vista das imagens proporciona prazer é porque acontece a quem as contempla aprender e identificar cada original; por exemplo, ‘esse é Fulano’” (1981, p. 21-2).
7“Com a hipótese da libido narcisista e com a extensão do conceito de libido às células individuais, o instinto sexual foi por nós transformado em Eros, que procura reunir e manter juntas as partes da substância viva. Aqueles que são normalmente chamados de instintos sexuais são por nós encarados como a parte de Eros voltada para os objetos. Nossas especulações sugeriram que Eros opera desde o princípio da vida e aparece como um ‘instinto de vida’, em oposição ao ‘instinto de morte’, criado pela animação da substância inorgânica. Essas especulações procuram resolver o enigma da vida pela suposição de que esses dois instintos se acham lutando um com o outro desde o início” (Freud, 1920, p. 82, nota de rodapé).
8Olga de Sá aproxima esse enigma ao poema de João Cabral de Melo Neto: “(...) Cultivar o deserto / como um pomar às avessas: / então, nada mais / destila; evapora; / onde foi maçã / resta uma fome (...)”. E afirma que “a maçã pode ser a palavra. Mas a fome, para João Cabral, é a da palavra exata; para Clarice Lispector, sendo impossível dizer o ser, a palavra aspira ao silêncio” (1979, p. 199).