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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.13 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

Uma anatomia cultural do risco: sobre as relações de gênero e a periculosidade do imaginário nos tempos da AIDS

 

 

Nelson da Silva Junior1

Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia Social e do Trabalho

Endereço para correspondência

 

 

CARVALHO, João Alberto. O amor que rouba os sonhos: um estudo sobre a exposição feminina ao HIV. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 200p. ISBN: 85-7396-267-4.

Apresentar este trabalho de João Alberto Carvalho é, além de uma honra, um grande prazer. Diante do atual processo de denegrimento cultural e acadêmico que a psicanálise tem sofrido, somos aqui honrados com uma demonstração cristalina da seriedade intelectual de nossa jovem ciência. Com efeito, trata-se de uma pesquisa em psicanálise de rara qualidade, uma vez que soube reunir a um só tempo excelência teórica, precisão metodológica e compromisso social.

A partir da inquietante constatação de um aumento crescente da infecção de mulheres pelo HIV nos últimos anos, João Alberto descarta as explicações fáceis, que fazem incidir a responsabilidade desse fenômeno na idéia de uma prática bissexual de seus parceiros. Ora, não é difícil perceber o funcionamento moralista dessa hipótese, que apesar da drástica queda da disseminação do HIV em seu primeiro grupo de risco, os homossexuais masculinos, insiste em pensar a AIDS como a praga gay, isto é, como uma doença necessariamente vinculada a essa escolha sexual.

Ao invés disso, somos convidados a refletir sobre a determinação cultural desse novo padrão de propagação da doença entre as mulheres. Duas questões se apresentam como que naturalmente nesse convite. Em primeiro lugar, a questão de saber quais elementos de nossa cultura seriam eventual-mente responsáveis pela importância da crescente exposição feminina ao HIV. Em segundo lugar, a questão da determinação do sujeito pela cultura, uma vez que se trata aqui de conceber como tais elementos da cultura se precipitariam e se realizariam em mulheres supostamente capazes de uma certa faixa de autonomia, que renunciam ao exercício de sua liberdade, ainda que sob o risco de uma doença mortal. Ora, a natureza da primeira questão conduzirá o leitor necessariamente a refletir sobre o papel iatrogênico da cultura, e a segunda a respeito do caráter compulsório da reprodução da cultura pelo sujeito. Teria a psicanálise algo a dizer sobre tais questões?

Ora, no que diz respeito à crítica psicanalítica da cultura e ao papel eventual-mente iatrogênico desta, vale lembrar que desde 1908, em A moral sexual civilizada e a neurose moderna, Freud convida a sociedade burguesa a uma auto-reflexão a respeito de suas normas e valores, sugerindo explicitamente a franqueza e a verdade a respeito dos assuntos sexuais – sobretudo com relação às jovens da sociedade vienense, na época praticamente inexistente, em vista da valorização cultural de um modelo da mulher distante da idéia da sexualidade – como os melhores remédios para a hipocrisia moral da época e suas conseqüências psíquicas. Claro está que, se por um lado a Psicanálise aponta para o caráter inevitável do mal-estar da vida em civilização, ela também aposta na minimização de tal sofrimento, buscando reduzir a dor neurótica ao sofrimento humano comum. Assim, as teses freudianas sobre o sofrimento inerente à inevitável renúncia sexual da vida em sociedade não impedem a realização de uma crítica social genuinamente psicanalítica, que preserva o sentido crítico das hipóteses psicanalíticas, sem engessar seu posicionamento intelectual nas formas de sofrimento, pelas quais a psicanálise constrói sua idéia de sujeito.

Quase cem anos depois, e pelo menos trinta anos após a revolução sexual – além de uma longa batalha feminista, diga-se de passagem –, estariam estas críticas da psicanálise à cultura sexual burguesa real-mente ultrapassadas? As hipóteses de João Alberto a respeito dos elementos culturais atuantes na dificuldade das mulheres em adotar medidas e posições de auto-proteção podem ser lidas como uma cuidadosa e complexa resposta a essa questão. Segundo o autor, duas tradições são particularmente atuantes quando se trata de pensar os empecilhos sobre a palavra e a autonomia da mulher no interior das relações amorosas. Em primeiro lugar, a tradição patriarcalista, que pensa as relações de gênero no interior de uma estrutura hierárquica de poder. Em segundo lugar, a tradição do amor romântico, que tende a organizar as relações amorosas sob a égide narcísica de ideais de completude, complementariedade, eternidade e incondicionalidade. Da articulação dessas duas tradições, a determinação cultural do lugar da mulher nas relações amorosas lhe prescreve fundamentalmente uma identidade cindida em três papéis – aquele de mãe, o de esposa e o de concubina. Tratase de uma “liga” talvez insólita, mas sem dúvida perigosa, uma vez que o denominador comum de tal estrutura tripartite costuma ser uma forma infantilizada e valorizada de passividade, em que a idealização falogocêntrica – neologismo de J. Derrida extremamente adequado ao tema – do parceiro lhe exige uma correlata submissão sexual na hierarquia doméstica. Assim, podemos conceber que em relações amorosas estáveis, por exemplo, a mulher não encontre um lugar socialmente legítimo para introduzir o tema e argumentar pelo uso do preservativo, o que implicaria abordar com franqueza o tema da infidelidade e dos desvios dos padrões morais de comportamento sexual.

Note-se que tais temas não se resumem a meras hipóteses teóricas sobre a submissão cultural da mulher, seus eventuais efeitos na propagação da doença. João Alberto, em um raro e precioso exemplo de pesquisa acadêmica em psicanálise, oferece evidências empíricas da pertinência de tais hipóteses. Eis uma faceta desse trabalho que merece uma atenção à parte, pois demonstra a delicada humanidade da escuta clínica do autor. Um conjunto extremamente tocante de falas colhidas de entrevistas traz ao leitor a trágica espessura do real na qual se traduzem esses ideais culturais.

Tal enraizamento dos ideais culturais em mulheres singulares retoma a segunda questão teórica exigida por esse trabalho. De fato, trata-se do desafio de articular essas prescrições culturais sobre o lugar da mulher nas relações amorosas ao seu pólo subjetivo, e tentar conceber o modo com o qual a constituição psíquica se abre para a exterioridade do espaço social. Para avançar nesse terreno, João Alberto retoma as teses de Jurandir Freire Costa – que, a propósito, assina um elogioso prefácio ao livro – a respeito da abertura do imaginário entre o social e o sujeito, fundamentalmente por meio dos processos de identificação com os ideais sociais na formação egóica. Assim, na medida em que o sujeito, para que possa constituir-se, depende, em certa etapa de seu desenvolvimento psíquico, da atribuição heterônima de seu lugar e de sua identidade social, ele se encontra constitutivamente aberto às determinações culturais veiculadas pelo outro. Isto permite pensar a categoria do imaginário como possuindo uma função de intermediário entre o sujeito e a cultura, e como tal, submetida ao avatar mor da constituição subjetiva, a saber, a subjetivação por meio da ultrapassagem/ suspensão do complexo edípico.

Essa hipótese, para além de seu interesse clínico, permite abordar um espinhoso elemento nos trabalhos que se propõem a pensar a continuidade e a ruptura das tradições na cultura. Com efeito, de que modo podemos compreender o caráter híbrido de palavras femininas, que fazem coexistir tradições patriarcais e ideais românticos com os avanços sociais da sociedade pós-moderna, em que a mulher conquistou igualdade de direitos no mundo social, e contribui financeiramente no lar com o fruto do trabalho? Ora, o autor enfrenta o desafio de pensar teoricamente a aparente contradição presente na diferença da liberdade da mulher no espaço público e privado, o que exige uma dupla abordagem do hibridismo cultural no discurso feminino: trata-se não apenas de compreender as condições intrapsíquicas de tal hibridismo – tarefa realizada pela categoria de imaginário –, como também suas condições sociológicas.

Temos aqui mais um elemento de excelência teórica desse trabalho – o autor oferece-nos igualmente uma reflexão que dialoga pertinentemente com outras áreas das ciências humanas. Dirigindo a argumentação por meio da questão da fixidez e da transformabilidade das estruturas sociais, o autor retoma as teorias sociais de Lévy-Strauss, que pensa a sociedade a partir da fixidez de suas estruturas, e de Giddens, que defende a idéia de uma ruptura nas modalidades de relação social, como por exemplo, pela afirmação de uma nova forma de relacionamento afetivo, o amor confluente, demonstrando a insuficiência teórica de ambos quando se trata de pensar a realidade empírica da experiência das entrevistadas. Após tal demonstração, sua opção teórica recai em Bourdieu, demonstrando todo o interesse deste, ao conceber conceitos como estrutura estruturada e estrutura estruturante, e permitindo que se pense, por um lado, a continuidade das tradições; por outro, sua constante mudança como processos constitutivos das organizações sociais. Encontro imprevisto, porém bem vindo, o modelo de Bourdieu prestase assim a pensar no campo sociológico o mesmo fenômeno observado pela clínica psicanalítica, a saber: a natureza híbrida dos discursos subjetivos que (re-)produzem, a seu modo, os palimpsestos da cultura.

Diante da inquietante lógica psicossocial, revelada, isolada e elaborada criticamente pelo excelente trabalho de João Alberto a partir do aumento da doença entre as mulheres, gostaria de concluir esta resenha retomando o sentido do compromisso político da pesquisa em ciências sociais em geral, e deste trabalho em particular.

O projeto de desconstrução sistemática de práticas e discursos socialmente vigentes tem sentido na medida em que busca a explicitação de mecanismos de violência simbólica sobre o sujeito. Trata-se a cada vez de operar sobre formas discursivas de presença relativamente anônima na cultura, que costumam ter efeitos reificantes sobre a subjetividade, senão mortais, como podemos testemunhar nesse exemplar trabalho. Com efeito, o anonimato intrínseco às estruturas simbólicas sugere, a princípio, a idéia de uma forma de inumanidade que oprime o homem. Entretanto, tais estruturas, como produtos culturais, remetem ao próprio homem a responsabilidade da opressão da qual é vítima, retirando-lhe o véu do anonimato. Eis resumidamente o momento no qual uma ação conceitual sobre os discursos, no sentido de uma desconstrução, assume toda sua significação política e social. Nisso reside o posicionamento ético inerente a qualquer investigação em ciências humanas, seu papel libertador ou opressor, seu sentido contrário ou conivente com o sufocamento da liberdade objetiva, que utilizo aqui no sentido de Hannah Arendt, isto é, no sentido de liberdade política e não de “liberdade interior” do ser humano. O desvelamento das modalidades de eficácia psíquica das determinações sociais da relação de gênero constitui-se hoje como uma forma de ação política necessária e urgente.

Com efeito, trata-se de uma ação política na medida em que representa um cuidado com a possibilidade de uma ação que tem na liberdade um de seus princípios fundamentais. Nesse sentido, o inestimável trabalho intelectual de João Alberto Carvalho representa uma bem-vinda conquista política para a Psicanálise.

 

 

Endereço para correspondência
Nelson da Silva Junior
E-mail:nesj@terra.com.br

 

 

1Psicanalista; Professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho (IPUSP); Professor do Curso Psicanálise Teoria e Clínica do Instituto Sedes Sapientiae; Doutor pela Universidade Paris VII; Autor do livro Le fictionnel en psychanalyse. Une étude à partir de l’œuvre de Fernando Pessoa.