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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.8 no.13 São Paulo June 2004

 

RESENHAS

 

A fantástica viagem da locomotiva “Freud explica!” rumo ao umbigo dos sonhos...

 

 

Mário Eduardo Costa Pereira1

Universidade Estadual de Campinas. Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria

Endereço para correspondência

 

 

KON, Noemi M. A viagem: da literatura à psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, 416p. ISBN 8535904158.

Seria a “matéria” psíquica, psicopatológica, sobre a qual se debruça a psicanálise, integralmente traduzível em uma linguagem científica conceitual? Ou, ao contrário, tratarseia de um tecido a tal ponto sutil e delicado que resistiria – sob pena de irremediável despedaçamento – a todo esforço de submissão sem restos aos discursos da razão? Qual, pois, a forma literária necessária à metaps icologia? Quais, portanto e mais uma vez, as relações entre literatura e psicanálise?

Tal é o campo problemático sobre o qual se inscreve o belo livro “A viagem – da literatura à psicanálise”, de Noemi Moritz Kon, publicado no final de 2003 pela Companhia das Letras.

Há muito tempo a autora dedicase ao estudo do impreciso litoral que aproxima e separa a arte literária do campo do Inconsciente freudiano. Entre várias outras contribuições sobre o tema, Noemi Kon havia, já em 1996, redigido uma instigante reflexão sobre a angústia expressa por Freud de encontrar na arte – mais especificamente, na literatura de Schnitzler –um duplo capaz de inquietantemente borrar as fronteiras de seu próprio percurso psicanalítico.

Desta vez ela convida seus leitores a um percurso ainda mais original, conduzindoos em uma viagem que articula análise históricoconceitual e ficção, e que lhe permite explicitar suas teses sobre o surgimento da psicanálise, justamente no momento em que a literatura fantástica européia entrava em seu declínio.

Desde o início o livro cativa pela forma e pela originalidade. É importante assinalar que ele surge de uma tese universitária defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Ou seja, tratase de um escrito produzido sob a exigência da elaboração de proposições compartilháveis racionalmente e que, em última instância, correspondessem aos rigores do Logos e da Epistemè. Assim como não se produz uma tese de música por meio da composição de uma sinfonia – por mais revolucionária que esta seja &–, tampouco a redação de um belo romance tem por si mesma o estatuto de uma tese literária, ainda que seja a própria literatura. Nesse contexto, Noemi Kon inova, tomando a literatura e o discurso acadêmico não como opostos irreconciliáveis, mas propondo antes uma “viagem” da qual os dois campos saem enriquecidos, e que permite a explicitação de uma tese original, rigorosamente sustentada.

Na primeira parte do texto – intitulada “A viagem de Paris a Quillebeuf sur Seine”, a autora constrói a ficção de um improvável encontro de seis personagens, entre eles Freud, a partir da freqüentação que faziam da internacionalmente renomada apresentação pública de pacientes do Dr. Charcot, na Clínica de Doenças Nervosas da Salpêtrière. Um debate sobre a histeria assume assim, desde o começo, o ofício de pano de fundo e de referência fundamental para as reflexões que se seguiriam. Um daqueles homens – o Dr. Marrande &–, após uma das consultations externes animadas pelo famoso alienista francês, convida o grupo de colegas para uma viagem de visita à sua clínica privada, em uma cidadezinha na Alta Normandia.

Além de Freud e Marrande, os demais personagens constituem, na verdade, versões ficcionais de grandes autores da literatura fantástica do século XIX: Edgar Allan Poe (Dr. Paul), Robert Louis Stevenson (Dr. Jedell), Guy de Maupassant (o jornalista Sr. Maufrigneuse) e Machado de Assis (Dr. Simon). O próprio Marrande é uma referência a um personagem de Le Horla, de Maupassant, obra literária que terá particular importância no argumento de A viagem.

O enredo dividese em dois momentos fortes: em primeiro lugar a viagem de trem, durante a qual os seis personagens contam, cada um a seu turno, episódios “clínicos” profundamente misteriosos e inusuais, para os quais as concepções médicocientíficas disponíveis pareciam claramente insuficientes. A seguir focalizase a chegada do grupo a Quillebeuf sur Seine, a visita à clínica do Dr. Marrande e o encontro dos visitantes com um dos pacientes ali internados, cujo histórico clínico era particularmente inquietante e perturbador. Os debates que se seguiram entre os viajantes e seu anfitrião, em torno da estranheza provocada pelo relato daquele desafortunado indivíduo, dão ensejo a que Freud apresente suas teorias e que estas inscrevam aquele quadro absurdo em um contexto explicativo, que colocaria fim ao mistério. Ao mesmo tempo, tal procedimento iluminador dá à autora a ocasião para expressar suas profundas reservas quanto à pretensão freudiana de tudo explicar, e de reduzir o campo do misterioso a suas hipóteses metapsicológicas.

A ficção é construída em grande parte por recortes de passagens de textos clássicos dos autores mencionados, incluindo alguns escritos do próprio Freud, permitindo tomarse ao pé da letra o espírito e o âmbito estético, tanto da literatura fantástica quanto da nascente psicanálise.

A segunda parte do livro, por sua vez, apresenta o “makingoff” de A viagem, retomando parágrafo por parágrafo as proposições e idéias neles embutidas, de modo a explicitálas e darlhes um tratamento teórico mais preciso e delimitado.

Nas palavras da autora, “o inconsciente freudiano e o território inédito que lhe é intrínseco, o mundo psíquico, vão acolher o antigo maravilhoso, atraindoo para seus domínios e procurando, assim, desfazer o mistério essencial do fantástico” (p. 21). É sob essa perspectiva que a psicanálise é vista como tomando a seu cargo a tarefa de introduzir racionalidade em fenômenos para os quais, até então, a decadente literatura fantástica produzia discursos que sustentavam o miraculoso e o enigmático como tais, ou pelo menos em uma aura de modesta indefinição.

É assim que em uma passagem o Sr. Maufrigneuse proclama que, por ação da ciência, “não há mais mistérios; todo o inexplicado será explicável um dia; pois o sobrenatural baixa como um lago que um canal consome; a ciência, a todo o momento, diminui os limites do maravilhoso” (p. 77). Correlativamente, a autora sugere que a psicanálise inscrevese nesse projeto cientificizante positivista de destruir todos os mistérios, reduzindoos a explicações metapsicológicas. “Digamos adeus aos mistérios, aos velhos mistérios de velhos tempos...” (p. 81), proclama a um certo momento o mesmo Sr. Maufrigneuse.

O ápice da demonstração desse ponto de vista, segundo o qual haveria um compromisso iluminista e positivista da psicanálise, ocorre quando o próprio Freud toma a palavra para tentar elucidar o estranho caso alucinatório do paciente da clínica do Dr. Marrande. Baseado na análise da história clínica descrita pelo médico e pelo próprio paciente, e focalizando sobretudo o enredo fornecido (deixando estranhamente de lado os ditos efetivos pronunciados pelo enfermo), Freud estabelece um longo comentário interpretativo dos fatos aparentemente misteriosos em jogo. Vemos surgir de maneira mais ou menos explícita todos os grandes conceitos metapsicológicos fundadores da doutrina freudiana: a defesa, o recalque, o inconsciente dinâmico, o papel perturbador da sexualidade etc. Ao cabo dessas explicações, o paciente sentese aliviado, mas ainda hesita entre uma solução metapsicológica e uma “fantástica”.

A segunda metade do livro é dedicada, como vimos, ao comentário do texto e à explicitação teórica das posições da autora. Ela explica que pretendia confirmar a hipótese de parentesco entre a psicanálise e a arte, apostando que seria possível colocar em suspenso um viés cientificista da disciplina criada por Freud, reassumindo “o valor do imaginário e da fantasia como criadores de realidades e não apenas admitilos como elementos que guardam em suas entranhas o ouro puro das recordações” (p. 202).

A psicanálise é apresentada, então, como substituta da literatura fantástica e como uma das responsáveis por seu declínio e por sua superação, no sentido da Aufhebung hegeliana.

Baseada em Foucault, a autora apresenta Freud como “um instaurador de discursividade” (p. 275), ou seja, como um fundador de uma nova maneira de se colocar as questões e os discursos legítimos sobre os sofrimentos e paixões humanas. Entretanto, desconhecendo em certa medida o caráter criador de novas realidades da literatura e de sua própria teoria, Freud constrói com sua interpretação não um nível mais profundo de alcance da verdade, mas tão somente “um sonho compartilhado para o homem da modernidade” (p. 276). A psicanálise “transformaria, assim, o mistério (o antigo milagre), tornando previamente fantasia, conflito, angústia e dor, em enigma decifrável” (p. 326).

O caráter profundamente instigante de tais proposições merecem um comentário mais minucioso, sobretudo se levarmos em conta que uma das acusações que mais consistente e contudentemente têm atingido a psicanálise ao longo de sua história é justamente a do caráter reducionista –e ao mesmo tempo absolutizante – de suas proposições.

Evidentemente, as concepções naturalistas da histeria, visando inscrever esse fenômeno clínico em um quadro explicativo causal, não precisaram aguardar o surgimento da psicanálise no final do século XIX para fazer sua aparição histórica na cultura. Podese mesmo constatar que o surgimento da medicina hipocrática coincide com o esforço de se propor à histeria uma série de explicações ancoradas no campo da Physis e suas determinações.

Para os gregos, como antes para os egípcios, a histeria não era “misteriosa”, no sentido de depender de forças sobrenaturais desconhecidas, pelo menos não mais misteriosa do que outras doenças que se manifestavam naquelas sociedades.

As teorias dos vapores, degradação mórbida dos humores fundamentais, ainda que bizarra aos olhos dos jogos de linguagem correntes na medicina contemporânea, visava assentar a histeria sobre as bases naturais em voga desde a herança de Galeno até o final da Idade Média.

Mesmo o sinistro período medieval, durante o qual as possessões demoníacas e os processos da Santa Inquisição constituíam um quadro de inscrição social da histeria, estava modulado por figuras como Wyers, que estabelecia, sobre bases clínicas, a distinção entre o quadro médico da histeria e os “verdadeiros” fenômenos de possessão.

Sob muitos pontos de vista, podese descrever a história de histeria no Ocidente como a de uma tensão constante entre um quadro clínico móvel e caleidoscópio, e o esforço por fixálo em uma explicação naturalista e metafísica. Tratase, portanto, de indagar se a psicanálise de Freud participa, historicamente, desse mesmo processo cultural da construção de discursos científicos explicativocausais sobre a histeria.

Nesse sentido, a fórmula tão difundida segundo a qual “Freud explica!” constituiria o paradigma mesmo de uma visão segundo a qual o processo interpretativo da psicanálise consistiria em reduzir as falas e as expressões sintomáticas do paciente, assim como as manifestações gerais da cultura, às grandes proposições metapsicológicas da teoria freudiana.

A metapsicologia seria, nesse caso, a realização mesma do projeto de destituição da metafísica, colocando em seu lugar uma ordem transcendente de leis gerais que regeriam o funcionamento psíquico inconsciente.

Neurose, psicose, folclore, tradição, arte, e em particular a literatura, seriam, sob tal perspectiva, descritíveis e analisáveis por redução a esses princípios mentais gerais e a priori, dos quais se deduziriam todas as produções do espírito humano.

Observase assim, na cultura, a emergência salutar de uma grande resistência à psicanálise dessa forma concebida. Contra o horror de uma concepção absolutizante e unificante da experiência humana, é totalmente legítima a insurreição de posturas reivindicando a irredutibilidade do humano a tais discursos pretensamente científicos. De que valeria a introdução de uma atitude ética e metodológica de quebra de ídolos e de ideologias –analítica no seu sentido literal –para em seguida erigir em torno dela um sistema de proposições ainda mais totalitárias e, mesmo, ditatoriais?

Essa é a antiga crítica do “psicanalismo” que fez fortuna, sobretudo nos anos 70. Entretanto, caberia questionar se tal visão da psicanálise faz justiça à proposta analítica freudiana ou, ao contrário, constrói apenas uma visão congelada e preconceituosa que passa ao largo do essencial de sua descoberta?

Tomemos, por exemplo, o próprio trabalho fundador da psicanálise, o protótipo mesmo da teoria freudiana da interpretação: a Traumdeutung, de 1900, na qual é explicitado teórica e praticamente o dispositivo interpretativo de Freud.

É bem verdade que ali estão presentes noções como as de sobredeterminação, causalidade psíquica, leis de funcionamento mental e de interpretação, entre outras de caráter fortemente metafísico. De outra parte, Freud é obrigado a confessar a insuficiência desse projeto teórico interpretativo, e explicitar que mesmo a interpretação de sonhos mais minuciosa acaba por atingir o “umbigo dos sonhos”, ponto em que as associações alcançam “o Desconhecido”: das Unerkannten.

Um desconhecido na fonte mesma dos processos associativos –como os feixes de um micélio, segundo a famosa metáfora freudiana –irredutível à palavra e a interpretação. Vemos aqui o mistério colocado na raiz mesma do processo psíquico que Freud deseja elucidar.

Não, para Freud a psicanálise não se propõe a ser uma Weltanschauung, uma “visão de mundo”. Ele recusa reiteradamente qualquer concepção absolutizante do pensamento teórico, igualando tal pretensão ao sistema delirante paranóico. Suas teorias são, Freud o sustenta explicitamente, meras ficções úteis, maneiras de dizer, provisórias, contingentes, abertas à revisão (“open to revision”, diria Freud em “A questão da análise leiga”, de 1926) a partir da aprendizagem obtida da experiência clínica. O valor de uma tal ficção é puramente heurístico: atrelase aos resultados que dela podem decorrer.

A metapsicologia não constitui, portanto, uma nova metafísica, surgida juntamente quando esta dava sinais de decadência histórica e filosófica. Ela é, antes de tudo, recurso à cozinha da Feiticeira, matéria linguajeira que permite dar forma, em palavras compartilháveis, a uma experiência singular e irredutível do contato com o sofrimento e com as paixões humanas em um contexto de transferência.

Em grande parte, a grande obra de Kant consistiu precisamente em um esforço de delimitação do universo passível de apreensão pela razão – bem como a explicitação das modalidades lógicoformais das operações mentais para este fim – em contraposição àquilo que só pode ser apreendido pela fé e sem as garantias do logos. Nesse sentido, nenhum discurso científico pode pretender dar conta da Coisaemsi, incognoscível por essência, e que só se oferece ao conhecimento através dos fenômenos, apreensível no âmbito das formas a priori de nossa intuição sensível. Há pois, desde a metafísica kantiana, a suposição do mistério embutido no coração mesmo do conhecimento.

Mais próximo de nós, Wittgenstein mostra que diferentes jogos de linguagem são capazes de, cada um a seu modo, dar conta de um estado de coisas no mundo e nele operar, nos limites de suas próprias capacidades operatórias.

Sob essa perspectiva, descrever um fenômeno mental em uma linguagem mentalista, metapsicológica, neurobiológica, genética ou míticoliterária não implica diferentes níveis de verdade, mas diferentes âmbitos explicativos e possibilidades operatórias.

Dessa forma, colocarse o enigma do inconsciente por meio da imagem de um jacaré escondido debaixo da cama não pressupõe maior ou menor apreensão de uma realidade do que aquele obtido pela referência a uma linguagem “pulsional”. Tratase apenas de diferentes jogos de linguagem, que constróem mundos diferentes, com diferentes possibilidades discursivas e de intervenção concreta.

Noemi Moritz Kon situa essa problemática de maneira instigante, precisa e original. E o livro que ela nos oferece constitui efetivamente uma viagem, naquilo que as grandes jornadas e travessias, desde Homero, proporcionam de mais desestabilizante para as certezas cristalizadas e de mais criativamente transformador.

 

Referência Bibliográfica

KON, N.M. Freud e seu duplo. São Paulo: EDUSP/ FAPESP, 1996.

 

 

Endereço para correspondência
Mário Eduardo Costa Pereira
Email: marioecpereira@uol.com.br

 

 

1Psicanalista; Psiquiatra; Professor do Deptº de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp; Diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Unicamp; Coordenador do Serviço de Psicoterapia Psicanalítica do Hospital das Clínicas/Unicamp; Autor de livros e vários artigos.