SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número13 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.13 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

Mas o que há em um nome?

 

 

Fátima Milnitzky1

Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 

DELOUYA, Daniel. Epistemopatia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 107 p. ISBN 85-7396-277-1.

O livro de Daniel Delouya provoca o lei-tor antes mesmo de se chegar às primeiras páginas. Ele nos interpela desde seu título, Epistemopatia, ao conjugar conhecimento (epistême) com paixão, sofrimento, passividade, patologia (pathos). Sua provocação é resultado de uma pesquisa de pósdoutoramento, na qual objetivava uma investigação acerca dos modos específicos de conhecer e descobrir na clínica psicanalítica.

Da primeira à última página exerce amplo questionamento acerca das condições nas quais emergem no analista desenhos psicopatológicos que configuram o desejo do paciente. A propósito do termo psicopatologia, o autor aproxima-se da concepção de Fedida, como “figurações hipotéticas no analista, veiculadas pela transferência e oriundas do desejo inconsciente que impregna as transformações e o remanejamento do conjunto sintomático no decorrer do trabalho analítico” (p. 87). Tece uma pesquisa com os fios do conhecimento e da psicopatologia, criando, a partir da trama dos nós, a tensão que suportará a investigação sobre as operações e os procedimentos que fazem curar, modificando o saber do psicanalista e da psicanálise.

Seu interesse ao examinar os supostos modos de conhecer, próprios à psicanálise, pretende expor um sistema de referências e os procedimentos específicos que constituem sua lógica de descoberta, à semelhança do que ocorre no campo científico. O paradigma questionado ao longo do livro interroga a possibilidade de tratar a psicanálise em paralelo ao modelo científico. Ao perseguir a veracidade do paradigma, faz uma revisão bibliográfica das principais correntes da filosofia do conhecimento na ciência, examinando suas idéias centrais e a relação destas em relação à psicanálise. Verifica no interior do campo psicanalítico duas orientações para abordar o problema. Uma que parte da metapsicologia, e outra cujo eixo é o espaço analítico e seu método.

O autor identifica a influência da concepção de ciência de Francis Bacon no universo da psicanálise inglesa, filiada à IPA. Influência localizada no uso lingüístico-conceitual de noções como “percepção”, observação”, “fatos”, “validade”; assim como no tipo de racionalidade adotada nessa corrente, legitimando “cientificamente” seus procedimentos de produção de conhecimentos e suas publicações. Aponta Bion como, a um só tempo, representante dessa escola e também sua exceção, observando que este “combinou as posições kleinianas com parâmetros baconianos; aprofundou Klein e foi além dela para criar a teoria psicanalítica do pensamento. Por outro lado, aceitou conscientemente a concepção baconiana de produção do conhecimento, além de fundá-la sobre a teoria kleiniana das posições” (p. 28).

Encontra-se, ao habitar as páginas de Epistemopatia, com as duas fontes essenciais da psicanálise para o enriquecimento da construção teórica. A primeira e maior delas é a experiência clínica. Esta permite que a psicanálise não se confunda com uma elucubração pseudo-filosófica. É da escuta da palavra dita pelo analisando que se retira tanto suas grandes descobertas, como suas mais complexas interrogações. A segunda fonte situa-se nas conexões da psicanálise com os saberes oriundos das mais diversas disciplinas que questionam o saber psicanalítico.

Ao explorar a vertente da experiência clínica, circunscrevendo os modos de conhecer e a lógica da descoberta no trabalho da psicanálise, o autor apresenta várias passagens ao leitor. Ele nos oferece, entre outras, uma reflexão sobre um fragmento extraído da primeira sessão do Homem dos ratos, assim como, a partir de um relato de uma passagem na análise de uma paciente sua, na qual o trabalho da supervisão opera uma mudança de rumo (p. 19). Desta experiência Delouya destaca o ponto no qual o analista termina por “ver-se fazendo” em lugar de “ouvir-se dizer”, isto é, “precipita-se na ação à qual a transferência o impele, ou vê-se inibido, ou capturado no lugar para o qual esta o destina” (p. 78). Nesse ponto o leitor se indaga acerca da relevância do trabalho da supervisão nos modos de conhecer.

A interlocução estabelecida com Major (1976), em “Como a interpretação vem ao analista”, possibilita uma articulação da lógica da descoberta disparada pela situação analítica. Ressalta a vertente intersubjetiva, ilustrando-a por meio de vinhetas clínicas suas e de Major.

Investigando a lógica da descoberta, o autor desperta em seu leitor o desejo de conhecer mais, de ser mais atravessado pelos saberes, sejam estes oriundos da psicanálise ou de outras disciplinas. Em Epistemopatia, diante do diálogo estabelecido entre o fazer psicanalítico e o fazer científico, o autor alcança o objetivo sublime de animar o leitor, por meio da sua obra, a uma autoria própria.

Podemos perguntar, como um dos personagens de Shakespeare na tragédia Romeu e Julieta: “o que há em um nome?” (1911). A provocação da criação de um nome pelo autor convoca o leitor para um debate, desdobrando-se em uma série de questões relevantes para o campo psicanalítico, trazendo ainda mais vigor para sua pesquisa.

Alguns sociólogos entendem que hoje vivemos em uma “sociedade do conhecimento”, ou “sociedade da informação”, marcada pela dominação de especialistas profissionais e seus métodos científicos. Segundo alguns economistas, vivemos em uma “economia do conhecimento”, ou “economia da informação”, configurada por uma expansão de ocupações produtoras ou disseminadoras do conhecimento (Burke, 2003, p. 11). Há historiadores que prevêem uma definição, por parte de seus colegas do futuro, para o período em torno de 2000 como a “era da informação”. Com sua pesquisa, Daniel Delouya leva a psicanálise para um debate com estes sociólogos, economistas e historiadores, que concordam em definir nosso próprio tempo em termos de sua relação com o conhecimento. O debate rigoroso reacende duas inquietações do fundador da psicanálise: a de alinhá-la no campo das ciências naturais e a de mantê-la leiga. Com a recente aprovação da regulamentação da profissão de psicanalista na França e as tentativas de regulamentação aqui no Brasil, a discussão objetivada por essa pesquisa oferece um estofo de rigor ímpar para subsidiar o escopo político sobre as conseqüências decorrentes de sustentar ou não a indicação do fundador de uma psicanálise leiga.

Com sua tocha clínica, Daniel Delouya ilumina os escuros desvãos do sistema universitário, permitindo-nos interpelar o poder de instituições como as universidades para definir o que conta e o que não conta como conhecimento legítimo. Com relação ao poder de definir que espécie de conhecimento é legítimo, sua importância já era óbvia para A.C. Beeching, satírico vitoriano, que colocou na boca de Benjamin Jowett o dito segundo o qual “o que eu não conheço não é conhecimento” (Burke, 2003, p. 25). No caso do autor de Epistemopatia, a discussão de tal dito encontrase de saída no nome que ele inventa para sua pesquisa.

 

Referências Bibliográficas

BURKE, P. Uma história social do conhecimento: de Guttenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

MAJOR, R. (org). Comment l’nterprétacion vient au psychanalyste. Paris: Aubier, 1976.

SHAKESPEARE, W. Romeo and Juliet. In: ___. The complete works of William Shakespeare with the complete notes by Israel Gollancz. New York: Edited by William George Clark and William Aldis Wright, 1911. Publishers Grosset & Dunlap.

 

 

Endereço para correspondência
Fátima Milnitzky
E-mail: fatimamil@terra.com.br

 

 

1Psicanalista; Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo; Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade São Marcos; Membro da APEP (Associação Paulista de Estudos Psicanalíticos).