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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.13 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

Figurações do feminino na atualidade

 

 

Ana Lucia Panachão1

Instituto Sedes Sapientiae. Setor Grupo de Estudos. Departamento de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 

ALONSO, Silvia L.; GURFINKEL, Aline C.; BREYTON, Danielle M. (orgs). Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo. São Paulo: Escuta, 2002. 360p. ISBN 8571372071.

De que se trata o feminino em psicanálise? E para os psicanalistas hoje?

O tema do feminino comporta em si mesmo uma abertura, abertura que possibilita inúmeros arranjos, à maneira de um caleidoscópio, formando imagens diferentes conforme seu movimento.

Há aproximadamente cem anos as histéricas inauguraram o campo psicanalítico, sustentando e ao mesmo tempo denunciando em seu corpo, por meio de sintomas conversivos, as vicissitudes e os atravessamentos da repressão sexual vigente no contexto social do final do século XIX. Freud, ao trabalhar sobre o sentido do sintoma histérico, constrói toda a teorização do conflito psíquico baseado fundamentalmente no mecanismo do recalque. Embora ele tenha se deparado inicialmente com uma clínica da histeria repleta de mulheres, não confundiu a mulher e a histérica, e continuou teorizando ao longo de mais de trinta anos sobre o processo que leva a pequena menina a tornar-se mulher. Nesse percurso teórico, ele formulou que a mulher encontra uma saída em direção à feminilidade ao deslocar-se da inveja do pênis para o desejo de filho como substituto simbólico do falo almejado um dia, e do qual sentiu-se privada. Com essa concepção, ele faz coincidir a mulher e a mãe. Ao final de sua obra, Freud surpreendeu-se ainda com uma outra face do feminino, misteriosa e enigmática, denominada por ele de “continente negro”. O enigma que intrigou Freud continua a inquietar os psicanalistas, fazendo a teoria psicanalítica avançar.

Falar sobre o feminino hoje é debruçar-se sobre um campo que abrange inúmeras questões com as quais se defrontam os psicanalistas, diante da variedade de novas modalidades de sofrimento psíquico presentes na clínica contemporânea. Novas figurações do feminino também se apresentam por meio de produções culturais variadas, seja nas obras literárias, nas produções cinematográficas, no campo das artes plásticas ou em outras manifestações culturais de nosso tempo.

Décadas de transformações sociais, históricas e econômicas possibilitaram à mulher ocupar novos lugares na cena social, ter acesso ao mercado de trabalho, apropriar-se de seu corpo e de sua sexualidade, aproximando-a de seu desejo. Contudo, essas mesmas transformações que caracterizam a vida contemporânea produzem novas formas de subjetividade e sofrimento psíquico, que desafiam os psicanalistas, questionando-os em suas práticas clínicas, incitando-os a produzir novas teorizações.

Foi dentro desse espírito de continuar trabalhando conceitos e produzindo novos saberes que um grupo de psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae reuniu-se em torno de um projeto de trabalho e pesquisa sobre “O feminino e o imaginário cultural contemporâneo”. O grupo teve início em 1997, sob a coorde nação de Silvia Leonor Alonso, e se norteia por um princípio fundamental desse departamento: a formação permanente de seus membros por meio de lugares de interlocução, pesquisa, aprofundamento de leitura e discussão sobre questões que a clínica psicanalítica cotidianamente suscita. Com o objetivo de ampliar os espaços de interlocução e fazer circular a produção psicanalítica entre todos os seus membros, este grupo propôs uma jornada interna ao departamento, sobre a temática do feminino, que foi nomeada “Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo”, realizada em agosto de 2001.

Desse encontro fecundo resultou o livro de mesmo título, que reúne os trabalhos apresentados na jornada, para a qual todos os membros do departamento foram convidados. Os textos foram agrupados pelas temáticas em nove mesas redondas, respeitando o estilo de cada autor e a perspectiva pela qual cada um desenvolveu questões sobre o tema do feminino.

O texto de abertura “Interrogando o feminino”, de autoria de Silvia Leonor Alonso, apresenta uma importante reflexão crítica sobre as teorias psicanalíticas acerca do percurso da mulher em direção à feminilidade. Nele a autora trabalha essencialmente com o texto freudiano de 1933 – A feminilidade –, que lhe permite retomar de modo minucioso as formulações anteriores e os desenvolvimentos feitos por Freud no decorrer de sua obra sobre o processo de sexuação feminina. A autora propõese a um trabalho rigoroso sobre as contradições e os impasses com os quais Freud deparouse nesse caminho, ao tentar sustentar determinadas conceitualizações. Ela aborda os embates entre diferentes enfoques psicanalíticos em relação à teoria falocêntrica, os desenvolvimentos teóricos que se opõem a ela, e as conseqüências clínicas que podem advir de determinadas leituras. A autora inclui em suas articulações a categoria de gênero como uma contribuição importante para trabalhar alguns conceitos psicanalíticos. Ela levanta ainda dois pontos sobre os quais os psicanalistas contemporâneos insistem: o feminino e a mulher não devem ser confundidos, e há que se diferenciar a sexualidade feminina da feminilidade. Essa diferenciação abre uma perspectiva nova, em que o feminino deixa de ser uma questão relativa somente às mulheres e ganha uma dimensão que inclui ambos os sexos. Silvia trabalha sobre os desenvolvimentos teóricos de autores pós-freudianos em uma articulação rica, que ajuda o leitor a situar-se no vasto e complexo campo do feminino, preparando-o para a variedade de enfoques com os quais deparar-se-á no decorrer da leitura dos muitos e interessantes artigos dos diferentes autores.

A questão do feminino é desdobrada em cada artigo do livro em direções variadas, podendo ser alinhadas em dois grandes eixos – o processo que leva a mulher em direção à sexualidade feminina e a feminilidade como campo para além do universo da mulher –, ambos tomados pelos autores em relação ao contexto social e cultural atuais.

Alguns autores optaram por trabalhar sobre relatos clínicos, a partir dos quais foram construindo hipóteses originais, seja articulando a angústia que se presentifica na fobia ao feminino, seja sobre a histeria em sua interface com o feminino, ou o feminino posto em xeque por meio de manifestações clínicas como a anorexia.

Outros foram tecendo suas reflexões teóricas sobre o processo de sexuação da mulher no entrecruzamento da constituição dos laços sociais e as sobredeterminações da cultura contemporânea. Nessa vertente, alguns psicanalistas utilizaramse de produções cinematográficas recentes, que possibilitam leituras interessantes sobre o lugar que a mulher ocupa na cena social, sobre as relações que se estabelecem hoje entre homens e mulheres, que lugar cada um ocupa no desejo do outro, o que se pode esperar e com que podem contar na relação amorosa com o outro. Sobre o pano de fundo das exigências narcisistas de autosuficiência e da recusa ao sofrimento na atualidade, como pensar o estabelecimento dos laços amorosos e sociais?

O leitor encontrará, em diferentes textos, discussões profícuas sobre as questões que dizem respeito tanto ao lugar que um filho ocupa no desejo de uma mulher hoje, quanto à dimensão da função materna na sociedade contemporânea.

Os autores abordam, ainda, a questão do feminino por meio de um elemento que representa bem uma das conseqüências das exigências a que estão submetidos os sujeitos na atualidade: o mal-estar contemporâneo transborda no corpo. Em seu exercício clínico, deparamse os psicanalistas cada vez mais com corpos transfigurados pela magreza esquelética na anorexia, ou ao contrário, com corpos estufados até seu limite pela obesidade mórbida; corpos esculpidos pela supervisão atenta de um personal trainer; corpos que se transformam em outros pela precisão aguda da lâmina de um competente bisturi; corpos que se transformam em objeto de arte; corpos que se oferecem como objeto de consumo; e corpos que consomem objetos adictamente. O corpo erógeno engendrase na relação intersubjetiva, sendo portanto, atravessado pelo discurso social e pelos ideais de uma determinada época. Que marcas da atualidade são denunciadas nessas transfigurações dos corpos? Haveria na atualidade um excesso de corpo levando ao desgaste do erógeno, e portanto, à mortificação do corpo? Em tudo isso, onde figura o feminino? O que o discurso contemporâneo oferece como sustentação para o corpo e o psiquismo?

Ao aceitarem o desafio de escrever sobre um tema tão complexo como o feminino, os psicanalistas possibilitam a continuidade da psicanálise, que se sustenta como um saber sempre aberto a novas interrogações e às vicissitudes do contexto histórico e social, em que se articulam sujeito e seu desejo inconsciente.

Freud não deixou de problematizar o feminino como enigmático, e ao denominá-lo “continente negro”, paradoxalmente iluminou uma via até então obscura: a de que há no feminino algo de irredutível, de inapreensível, e que não se esgota em uma resolução fálica, abrindo assim uma vertente na qual o feminino afirma-se como positividade. Não havendo um objeto fálico único que possa dar conta de responder de uma vez por todas ao que quer uma mulher, o feminino apresenta-se como furo interrogador tanto para homens quanto para mulheres, caminho sobre o qual têm trabalhado os psicanalistas na contemporaneidade, reformulando a teoria e a clínica para encontrar respostas consistentes frente às novas demandas de sofrimento psíquico.

Nesse livro o texto freudiano, longe de ser tomado como um saber canônico e inquestionável, é trabalhado pelos autores em toda sua dimensão metapsicológica e potência clínica. A valorização do referencial teórico freudiano é um traço compartilhado pelos psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, e que se evidencia como marca distintiva da formação e das produções psicanalíticas deste no cenário da psicanálise brasileira.

 

 

Endereço para correspondência
Ana Lucia Panachão
Email: apanachao@uol.com.br

 

 

1Psicanalista; Professora do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, e Membro do Setor Grupo de Estudos do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.