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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.15 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Afeto e representação nas origens da metapsicologia: uma leitura do Projeto de uma psicologia de Freud

 

Affect and representation in the origins of metapsychology: a reading of Freud’s “Project for a scientific psychology”

 

 

Érico Bruno Viana CamposI

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta a arquitetura teórica e analisa os conceitos de representação e afeto presentes no Projeto de uma psicologia, de Freud. Objetiva-se evidenciar as questões que apontam para a trama conceitual que emergirá na segunda tópica. Nesse intuito, marca a tônica do ponto de vista econômico, em especial a noção de uma regressão tópica e formal no afloramento da angústia. Problematiza os diversos registros mnêmicos e a ambigüidade da noção de afeto, apontando o impasse de uma estrutura que nunca abarca totalmente a intensidade energética como um fator constitutivo da subjetividade. Relaciona, ainda, a “coisa” (Das Ding) e a gênese do ego por identificação.

Palavras-chave: Metapsicologia, Projeto de uma psicologia, Representação, Afeto, Identificação.


ABSTRACT

This paper presents the theoretical architecture of Freud’s Project for a Scientific Psychology (1895) and analyses its concepts of representation and affect. These seem to be precursors of the conceptual net expounded in the second and last formulations of Freud work, where the economic point of view is prominent. We focus especially on the notion of topographical and formal regression as expressed in the theory of anxiety and discuss the distinctive mnemonic registers and the ambiguity of the concept of affect. We point to the problem of bringing to terms the structure and energetic intensity as a constitutive factor of subjectivity. We also tried to relate the notion of “thing” (Das Ding) to the genesis of ego through identification.

Keywords: Metapsychology, Project for a Scientific Psychology, Representation, Affect, Identification.


 

 

Introdução: o contexto e o recorte

O esboço remetido por Freud a Fliess em 1895 constitui a tentativa mais acabada de articular teoricamente os primeiros achados da psicanálise. Trata-se do “projeto” de fundamentá-la como ciência natural, construindo um modelo heurístico de aparelho psíquico sobre postulados de cunho energético e neuronal.

Curiosa a direção tomada pelo pensamento freudiano, o qual vinha operando progressivas rupturas epistemológicas com a concepção de ciência natural expressa pelo modelo anátomo-fisológico da medicina do final do século XIX. Observando com mais cuidado, percebe-se o quanto as teses energicistas e o substrato neuronal acompanham Freud ao longo dos anos 90, inclusive no surpreendente texto das afasias, no qual tanto um modelo psicológico quanto um neuronal são propostos, sem se chegar a uma definição da relação de “paralelismo” que há entre eles (Freud, 1891, p. 56). Correntemente contrapõe-se o modelo neuronal do Projeto ao modelo representacional que emerge n’ A interpretação dos sonhos, dando ao segundo o estatuto de real corte epistemológico que funda a psicanálise como campo de saber, cujo objeto de investigação é o Inconsciente, sendo o primeiro um desvio equivocado. No entanto essa interpretação é por demais simplista, pois se observa a retomada de vários conceitos e hipóteses inicialmente construídos em âmbito neuronal na elaboração do aparelho psíquico da primeira tópica (Monzani, 1989, p. 137).

Pode-se pensar que o interesse despertado pelo rascunho de 1895 seja meramente histórico – ou uma propedêutica ao modelo da primeira tópica –, o qual articula melhor uma série de questões deixadas em aberto pelo Projeto, responsáveis por seu abandono. De fato, esse texto falha em articular de forma sólida defesa e sexualidade, o ponto central que emerge na clínica psicanalítica (Mezan, 2001, p. 28-29). A dificuldade surge por conta da falha da hipótese freudiana de uma sexualidade a posteriori como origem das neuroses, a qual nada mais é do que um corolário da teoria da sedução, abandonada em 1897.

Uma arqueologia dos conceitos desse período, porém, não encontra apenas formulações mal-acabadas, mas também o substrato de onde emerge uma nova trama conceitual, possibilitando uma apreensão mais clara dos pressupostos e hipóteses que instrumentam a confecção desse “novo” tecido. Nesse sentido, a máquina de sonhar de Freud partilha muitos aspectos com a máquina neuronal de cinco anos antes. É surpreendente encontrar ali o ponto de vista econômico em toda a sua vitalidade, por meio da noção de um processo primário e de um secundário, mediados por um ego que impede a alucinação do desejo e opera a defesa. Está lá, em linhas mestras, a teoria dos sonhos como uma regressão formal e tópica do aparelho psíquico, que visa a via alucinatória da realização de desejo. Encontra-se, ainda, a hipótese central do psiquismo entendido como processo de memória. Enfim, há muito da primeira tópica freudiana no Projeto, inclusive as diferentes concepções de representação e afeto.

O estudo das concepções presentes em 1895 possibilita uma apreensão mais consistente das hipóteses que fundamentam a primeira tópica freudiana, sendo relevante para a articulação da teoria dos representantes psíquicos como eixo norteador da metapsicologia freudiana até a “virada” dos anos vinte.

O interesse maior do texto, contudo, não está naquilo que ele inicia e que é a partir dele desenvolvido, mas naquilo que permanece operando de forma sub-reptícia, aguardando uma elaboração conceitual. Exemplos disso podem ser encontrados nos princípios de prazer e de constância, além das concepções de sedução, compulsão e trauma. O movimento da obra freudiana relega o ponto de vista econômico a um segundo plano na concepção topográfica, retornando ao centro da teorização metapsicológica com o modelo estrutural. Nesse sentido, a segunda tópica está em interlocução estreita com as concepções articuladas em 1895. O Projeto mostra-se importante na compreensão das vicissitudes teóricas do ponto de vista econômico na metapsicologia, além dos limites e impasses da teoria dos representantes psíquicos.

 

Arquitetura teórica do Projeto

A abordagem freudiana assenta-se sobre três postulados: (1) a excitação nervosa concebida como quantidade (Q) em fluxo, regida pelo princípio de inércia nervosa, ou seja, tendência à descarga; (2) neurônios como unidades histológicas idênticas que se diferenciam em sistemas a partir de seu manejo da Q; (3) organização do espaço psíquico em função da economia de Q, com magnitudes decrescentes do exterior para o interior do aparelho. O aparelho assim construído é inicialmente função da superposição de dois modelos: um mecânico, no qual o princípio econômico é o único instrumento explicativo, e outro biológico, no qual a explicação é função da sobrevivência do organismo. O psiquismo seria uma máquina biológica de desempenho energético cujo fluxo é ordenado segundo a lógica de um arco reflexo.

Um ponto a ser explicitado é a natureza do fator quantitativo que rege o aparelho. O postulado de uma quantidade nada mais é do que a tentativa de abordagem mais rigorosa do fator dinâmico operante na hipótese representacional que norteia a construção teórica: uma soma de excitação ou quota de afeto. A elucidação desse fator energético está no cerne do ponto de vista econômico e é tema de discussão de diversos comentadores: de posições em que o termo seria apenas descritivo, indicando um deslocamento de energia hipotético, até a aproximação mais estreita com a eletricidade. No Projeto a Q é definida como a modificação de um estado físico: diferença entre repouso e movimento, sob o desígnio de uma lei geral de movimento; no caso, a lei de inércia. Dessa forma, aparece de forma explícita que o modelo é tomado da mecânica (Freud, 1895, p. 9). Essa suposição leva à constatação de que o aumento ou diminuição de Q deve ser aferido como uma grandeza relativa e não absoluta, já que a variação se dá sobre um estado de inércia que não é necessariamente o repouso (Gabbi Jr., 1995, p. 108-110). Essas variações devem ser entendidas mais como um fator qualitativo do que quantitativo, na forma de uma intensidade energética. Interpretação semelhante pode ser sustentada a partir de um modelo termodinâmico. A conclusão, contudo, é a mesma: a hipótese quantitativa proposta por Freud seria antes uma regulação da intensidade que a conservação da quantidade (Garcia-Roza, 1998, p. 112). Há portanto que se diferenciar um fator extensivo de outro intensivo nas concepções energéticas de Freud (Barros, 1975, p. 51-52). A intensidade deve ser considerada como a propriedade de variação de uma quantidade que está a ela relacionada, mas a essa não se reduz. No caso da hipótese freudiana, pode ser entendida como a expressão qualitativa de uma quantidade, caracterizando melhor o primeiro postulado como uma quantidade em fluxo. Isso implica que o princípio de inércia não deve ser entendido como tendência ao repouso absoluto, isto é, descarga de toda a quantidade, mas como repouso relativo; descarga de toda intensidade (Gabbi Jr., 1995, p. 112).

O modo originário de funcionamento do sistema é o de eliminação da intensidade de Q exógena que nele entra, necessitando de algum tipo de registro mnêmico para o organismo reconhecer o estímulo e dele fugir posterior-mente. A complexidade crescente do organismo acaba por originar também estímulos endógenos – fome, respiração, sexualidade. Nesse caso, diferentemente da fuga ante o estímulo, é preciso a execução de uma ação específica no mundo externo que cesse a Q endógena. O organismo precisa armazenar uma certa quantidade de Q para realizar a ação. Inaugura-se então o princípio de constância, que se instaura em função da necessidade de descarga da Q endógena como uma função secundária, imposta pela necessidade biológica. O organismo, portanto, encontra-se frente a uma dupla demanda de Q: endógena e exógena1.

Circuitos organizam o fluxo de Q, determinando caminhos de eliminação conforme a hipótese das barreiras de contato: permeabilidade seletiva de sistemas neuronais ao fluxo energético. Concebe-se a memória como alteração permanente de vias neuronais, função de um trilhamento, isto é, diferenciação entre níveis de barreira entre as quantidades no sistema que instaura cadeias associativas. Essa suposição leva à diferenciação entre células sensoriais (sistema φ) e células mnêmicas (sistema ψ). O sistema sensorial seria constantemente facilitado para receber os novos estímulos, tendo barreiras de contato facilmente suplantáveis, enquanto o sistema mnêmico seria particularmente resistente ao fluxo desordenado de Q, devido ao limiar alto de suas barreiras de contato. Assim, a arquitetura básica do Projeto diferencia percepção e memória como processos intensivos, organizando duas séries fundamentais, articuladas em torno dos sistemas φ e ψ: (1) estímulo externo, percepção, princípio de inércia, função primária; (2) estímulo interno, memória, princípio de constância, função secundária (Gabbi Jr., 1995, p. 118).

O postulado da organização do sistema em função da estratificação energética implica que o processo secundário se organiza sobre o primário como uma forma atenuada deste. Assim, o sistema ψ se diferencia a partir de φ por uma nova organização no processamento de Q. A distinção, portanto, não é topográfica, mas econômica: uma falha na manutenção das barreiras de contato pode fazer com que o sistema mnêmico regrida a um processo primário, funcionando tal como o sistema sensorial.

A vivência de dor dá a dimensão da ameaça à manutenção da organização topográfica e funcional do sistema nervoso. A dor é a “irrupção de grandes Qs na direção de ψ” (Freud, 1895, p. 21), ou seja, é entendida como uma efração da excitação exógena que rompe as barreiras de contato em ψ, criando novas facilitações. Isso se dá porque sua intensidade é maior que os estímulos normalmente provenientes de φ, com magnitude suficiente para suplantar as resistências em ψ, levando-o a funcionar em processo primário. Assim, a vivência de dor cria condições que implicam na regressão formal do sistema nervoso, abolindo, no limite, a diferenciação entre os sistemas. Mais do que isso, tem um efeito traumático sobre a economia psíquica. O organismo elimina esse excesso de excitação com a reação de fuga e com a inibição dos neurônios que formam o complexo representacional do objeto hostil. A vivência de dor cria as condições para a defesa, indicando os caminhos associativos que devem ser evitados nos processos secundários.

A Q endógena também se organiza em função de uma experiência originária, no caso a vivência de satisfação. Seu evento paradigmático é a fome, entendida como uma irrupção de Q endógena que visa uma ação específica, a alimentação. A diferença é que se anatomicamente o aparelho encontra-se preparado para lidar com um afluxo de excitação exógena – devido às mediações protetoras do escudo pára-excitações dos órgãos do sentido e do sistema φ –, esse não tem proteção contra a Q que irrompe internamente. Isso faz com que a Q endógena apresente uma demanda de trabalho constante ao sistema ψ, constituindo aquilo que Freud denomina de “mola pulsional do mecanismo psíquico” (Freud, 1895, p. 30). O armazenamento de Q endógena cria o impulso para toda a atividade em ψ: a vontade ou pulsão, que só é sanada pela ação específica que restabelece a resistência entre o núcleo de ψ2 e a fonte somática. A vivência de satisfação também tem tendência a regredir ao processo primário, por meio da alucinação do objeto de satisfação. As recordações prazerosas caracterizam-se como marcas a serem reinvestidas, orientando as vias associativas e criando condições para o desejo.

É fundamental, na vivência de satisfação, o fato de seu sucesso depender inicialmente da ajuda de um “ser-próximo” – a intervenção materna. O acúmulo de Q endógena e a impossibilidade de execução da ação específica têm como resultado a alucinação do seio e a descarga inadequada na forma de grito ou choro. Essa motilidade ineficaz, que tem a função primária de tentativa de liberação da intensidade, logo adquire uma função secundária de comunicação, reconhecida pelo adulto. É essa função secundária que permitirá o sucesso da ação específica pela modificação da realidade por meio de um outro. Assim, o desamparo inicial do ser humano e sua suplantação pela comunicação com outrem é o fundamento da ética (Freud, 1895, p. 32)3. Estaria aí expresso o naturalismo ético freudiano (Gabbi Jr., 1995, p. 132): a crença em uma motivação biológica – evitar a morte de outrem e a própria – como fundamento da moral. A questão do complexo do próximo, contudo, merece uma observação mais detida.

O outro surge no Projeto como objeto prototípico sob três aspectos: (1) primeiro objeto de satisfação; (2) primeiro objeto hostil; e (3) único auxiliar. Desse triplo registro chega-se à conclusão de que “através do próximo, o homem aprende a reconhecer” (Freud, 1895, p. 44). Para se avançar no reconhecimento, entretanto, é necessário introduzir uma série de elementos que possibilitarão o processo associativo secundário e, conseqüentemente, as diversas formas de pensamento. Mas desde já pode-se descartar algumas derivações apressadas da descrição freudiana. Em primeiro lugar é preciso afirmar que a experiência do outro não se dá de forma unificada e integrada, mas na forma de registros distintos: um circuito do desejo e de pensamento; outro de dor e defesa. O corpo do outro é tomado por analogia perceptiva e gestual, gerando as condições para o reconhecimento de si próprio como objeto de desejo. Porém, o corpo do outro não é percebido como um todo, mas sim como fragmentos perceptivos que precisam ser ligados por processos associativos de pensamento. Portanto, se há uma noção de gênese especular da subjetividade, essa deve ser tomada como um processo de raciocínio analógico envolvendo representações de objeto, e não como uma integração ilusória dada pela imagem unificada do outro ou por intermédio de estruturas lingüísticas. Essas aparecerão em função do desenvolvimento dos processos secundários, sendo resultado e não origem da experiência intersubjetiva.

O grito é inicialmente a expressividade de uma necessidade orgânica que será interpretada como um apelo por outrem. O outro, nesse caso, é pura ambivalência, e o desamparo é a experiência afetiva originária. O controle dessa situação deverá ser feito por meio de processos cognitivos que possibilitem a diferenciação entre eu e outro, além do reencontro do objeto de satisfação e da defesa contra o objeto hostil. O outro é sobretudo o suporte perceptivo fragmentário sobre o qual analogias associativas irão se construir, suprimindo a irrupção de afetos e estabelecendo trilhas de descarga e de pensamento. É através da alteridade que o processo secundário e a identidade se constituem: o outro será tomado como complexo representativo que organiza as facilitações entre o núcleo e o manto de ψ. Ele é vivido como uma experiência excessiva, que possibilita a organização do eu por meio da simultaneidade associativa que se dá entre a percepção de um corpo alheio e a descarga da ação específica. Em suma, o outro é fundamental para a organização de ψ, do eu e dos processos secundários.

O aparelho psíquico é fundamentado em duas experiências prototípicas que deixam registros nas facilitações de ψ: o desejo e o afeto. Ele visa originariamente a repetição das vivências, a identidade perceptiva e a descarga da intensidade, de forma que a vivência de satisfação se mostra o paradigma da alucinação positiva, enquanto a de dor é modelo da alucinação negativa (Gabbi Jr., 1995, p. 135). A vivência de satisfação deixará facilitações associativas dadas por simultaneidade, enquanto a vivência de dor deixará inibições na direção do objeto hostil. O desejo e o afeto são estruturas associativas que se prestarão a um reinvestimento intensivo, constituindo assim circuitos representacionais.

Se o desejo é entendido como um circuito representacional que associa o núcleo de ψ com partes do manto, e emerge na consciência na forma de pensamento ou alucinação, o estatuto do afeto como circuito representacional é um pouco mais complexo. Isso se dá por uma certa ambigüidade no uso do termo por Freud. O afeto é inicialmente entendido como a revivência do registro da experiência de dor no núcleo de ψ por meio da secreção de Q pelos neurônios-chave, o que acaba articulando um circuito associativo entre o núcleo e o manto do sistema mnêmico. Contudo, Freud irá chamar de afeto qualquer perturbação do processo secundário de pensamento oriundo não só de uma experiência de dor, mas também qualquer desprazer, incluindo aí aquele dado pela significação a posteriori de experiências infantis. Fora isso, o afeto também é a própria experiência consciente de desprazer, além de uma descarga motora. Isso faz com que no Projeto, de uma forma estrita, possa-se diferenciar várias acepções de afeto: (1) quantidade ou quota de afeto; (2) afeto-nuclear; (3) afeto- pallium; (4) afeto-percepção; (5) afeto-descarga; e (6) estrutura afetiva (Brito, 1986). Nos termos aqui desenvolvidos pode-se organizar essas concepções da seguinte maneira: variações no fluxo de Q no sistema mnêmico (afeto-nuclear ou afeto-pallium) se dão pelo reinvestimento de registros da experiência de dor ou de qualquer outro excesso traumático (estrutura afetiva), irrompendo na consciência como processo primário (afeto-percepção), e levando a processos de descarga como o choro, o grito, ou mesmo inervações viscerais (afeto-descarga). Em todo esse processo é necessário levar em consideração que o que está em jogo é fundamentalmente a vicissitude do fator intensivo (quota de afeto ou quantidade de afeto) e não extensivo (quantidade absoluta).

O problema conceitual, todavia, não se encontra nos diversos níveis de descrição do processo afetivo, mas principalmente na indefinição da fonte da experiência afetiva: se inicialmente o afeto é revivência de uma experiência de dor, ele passará também a ser qualquer perturbação na economia psíquica, podendo ser resultado de uma pulsão ou mesmo da emergência da sexualidade. Nesse ponto há de se pensar se o registro da experiência de dor é a única estrutura afetiva fundamental, ou se cada experiência traumática deixa um registro distinto. Infelizmente essa questão permanece ambígua no texto freudiano, não sendo resolvida posteriormente. Um fato, contudo, é claro: a experiência afetiva do psiquismo é, necessariamente, representada. A questão é saber se a dimensão afetiva de que fala Freud resume-se ao aspecto representacional ou se ela também diz respeito à própria exigência de trabalho do psiquismo, sendo portanto sempre um excedente à representação. Esse ponto é crucial para a compreensão da teoria dos representantes psíquicos freudiana, mas não poderá ser abordado em pormenor neste artigo.

Independente das distinções, é certo que desejo e afeto são os circuitos representacionais que dão expressão para a compulsão repetitiva que rege o aparelho psíquico em processo primário. Essa constatação de que ambas as experiências prototípicas do psiquismo deixam atrás de si “motivos compulsivos” (Freud, 1895, p. 35) ao lidar com as intensidades, implica na afirmação da existência de estruturas fundamentais representacionais e afetivas no aparelho psíquico freudiano, e que são elas que organizam a dinâmica do aparelho psíquico. Conclui-se que o modo originário de funcionamento do aparelho psíquico é a compulsão à repetição, e é através dessa que a memória se constitui. A memória é o aspecto fundamental do psiquismo em Freud, surgindo apenas pela repetição das facilitações inicialmente formadas pela ação excessiva das intensidades traumáticas.

A concepção de memória como repetição e diferenciação no sistema ψ por meio das vivências prototípicas é discutida em Santos (2002, p. 2539) e Garcia-Roza (1998, p. 110-113). Ambos tendem a assumir a interpretação de Jacques Derrida da memória como pura diferença, baseada na noção da facilitação como diferença de magnitudes quantitativas. A memória seria constituída pelo “entre” das quantidades, e não por suas magnitudes propriamente ditas, o que possibilitaria dizer que a memória seria qualidade pura e não quantidade. Essa interpretação tende a se apoiar sobretudo na valorização da noção de período no Projeto. O período é uma forma particular de interação entre os neurônios no manejo das quantidades, em que seria comunicada apenas a fase ou período de descarga do neurônio e não sua quantidade propriamente dita, como normalmente ocorre. A noção de período, contudo, é um subterfúgio ao qual recorre Freud para dar conta do problema da consciência e da qualidade em seu esquema puramente quantitativo. Como a consciência, sendo o sistema que lida com menor magnitude de Q, é a que lida com as qualidades psíquicas, há um problema teórico para explicar a relação da quantidade com a qualidade psíquica. É no mínimo problemático fundamentar a concepção de memória em Freud onde justamente ela se mostra insuficiente. O problema teórico aqui não decorre da memória, mas sim da própria dificuldade em articular a passagem de processos fisiológicos para processos de consciência. Nesse sentido há na interpretação da pura diferença uma transposição perigosa. Trata-se de vincular muito apressadamente a memória como diferença quantitativa (trilhamento como diferença das magnitudes de Q) e a consciência como expressão puramente qualitativa (transmissão do período e não de quantidades) sem levar em conta que se tratam de níveis diferenciados do funcionamento psíquico. Em suma, a consciência pode ser tomada como pura diferença, mas não a memória, pelo menos na concepção freudiana do Projeto.

Dois motivos levam ao desenvolvimento do processo secundário. O primeiro é a motivação biológica, que implica na necessidade de diferenciação entre percepção externa e representação alucinada na realização das ações específicas e manutenção da integridade do organismo. O segundo é a pressão do desejo, que exige uma ação sobre a realidade para que a ação específica seja realizada. Para tanto são necessários dois mecanismos: um que possibilite a prova de realidade e outro que iniba a regressão alucinatória. O primeiro será dado pelos signos de realidade ou qualidade, enquanto o segundo depende da constituição de um eu ou ego.

A prova de realidade está a cargo de um terceiro sistema, denominado de consciência (ω). Aqui tem-se uma complicação teórica séria, que é o problema de derivar a qualidade, um atributo da consciência, dos processos energéticos intensivos. É exigência teórica que os neurônios do sistema ω possuam permeabilidade e facilitação completa como φ, mas maior resistência a Q do que ψ, já que neurônios sensitivos trabalham em quantidades altas, decorrendo daí sua permeabilidade, enquanto os neurônios mnêmicos possuem barreiras de contato menos permeáveis e Q menores. O problema é assegurar a total facilitação, sem com isso abrir mão do pressuposto de isomorfismo entre os neurônios. A saída é postular a transmissão temporal e não quantitativa entre os neurônios: o período de oscilação em ψ chega à consciência como qualidade. A noção de período, contudo, não é compreensível nos termos das leis gerais do movimento, isto é, nos moldes de um princípio de inércia ou constância, pois não há aqui descarga de Q. Introduz-se um novo elemento teórico, de forma que os sistemas não serão mais diferenciados pela permeabilidade, mas também pelo regime de oscilação de período, sendo que a origem desse não é clara. Freud afirma que as diferentes qualidades seriam fruto das diferenças entre os períodos, passando do sistema sensorial para o mnêmico e daí para a consciência, mas só neste se tornando reconhecível. Não há dúvida dos problemas nessa hipótese, incluindo a questão de saber a relação tópica do novo sistema com os demais. De qualquer forma, a introdução da consciência implica em uma modificação profunda nos postulados principais que orientam o Projeto (Gabbi Jr., 1995, p. 127).

O sistema ω não só é fundamental no esquema freudiano, como é seu próprio propósito, já que se trata de explicar o funcionamento do psiquismo em termos quantitativos. Ele seria o sistema que contém as qualidades sensoriais e as sensações de prazer e desprazer, relacionados aos níveis de Q em ψ. Nesse sentido, a consciência não é entendida como um epifenômeno e não se confunde com os processos psíquicos. Ela é o lado subjetivo dos processos quantitativos e contribui de forma importante para a ocorrência dos mesmos. A contribuição da consciência para a dinâmica dos processos psíquicos se dá na diferenciação entre percepção e representação alucinada. A ocorrência de processos sensoriais em ω indica a ψ que há um objeto externo percebido por meio de uma descarga de ω em ψ. Essa descarga funciona como um signo de realidade ou signo de qualidade. Há uma indicação de qualidade presente na consciência, que serve de parâmetro para a consistência do processo em ψ, ou seja, de que este encontra identidade de percepção. O termo signo ou indicação de qualidade é mais rigoroso, pois um processo alucinatório em ψ que exerça regressão formal como o sonho, por exemplo, não se diferenciará de uma percepção “externa”4. Todavia, em condições normais de funcionamento, é a indicação de qualidade da consciência que dá o parâmetro para a ocorrência de processos secundários.

Outro elemento necessário para o processo secundário é a inibição das tendências alucinatórias do aparelho psíquico, tanto no sentido do desejo como do afeto. A entidade responsável por essa função é o ego: conjunto neurônico permanentemente investido do sistema ψ. A inibição das facilitações primárias é feita pelo investimento lateral, utilizando-se para isso a Q que o sistema dispõe. Por meio desses investimentos o ego deflete o curso associativo, inibindo a descarga e realizando novas associações que permitam o reencontro da satisfação ou a evitação dos afetos. A gênese do ego se dá por duas exigências: o armazenamento da Q endógena no sistema nervoso e um mecanismo adequado de inibição da descarga motora inespecífica, o que depende de um critério adequado de discriminação perceptiva. Essa organização constitui-se desde os primórdios do aparelho, com a introdução do princípio da constância. O ego compreenderia a totalidade dos investimentos no sistema mnêmico, sendo formado por uma parte fixa e outra variável. A fixa corresponde ao núcleo do ego, sobreposta à representação do desejo. Ou seja, o núcleo do ego é a própria trilha associativa das vivências de satisfação originais, cuja via alucinatória está inibida. Essa Q acumulada é a fonte de energia para o ego operar os investimentos laterais que organizam o processo secundário. Esses investimentos dependem da situação do organismo e constituem a parte variável do ego.

Para o ego organizar o processo secundário e inibir o primário há a necessidade do signo de qualidade na consciência. É ele quem realmente possibilita o critério de diferenciação entre percepção e recordação, a partir da notícia da descarga em ω (Freud, 1895, p. 40). O signo de qualidade funciona então como um registro perceptivo em ψ. A descarga de um signo de qualidade inscrita em um registro mnêmico é diferente da simples percepção em ω. Esse é o processo consciente em si, enquanto aquele é a inscrição da percepção no processo psíquico propriamente dito, que ocorre no sistema mnêmico e é inconsciente. Há então um segundo tipo de registro mnêmico, diferente daquele que é oriundo do precipitado das vivências originais e que organiza os objetos. Ao lado de representações de objeto, que são precipitados do processo primário na forma de complexos associativos, há também representações perceptivas: uma primeira inscrição mnêmica na forma de figuração5.

A partir dos signos de qualidade o ego pode manter o processo primário inibido e o núcleo de ψ constantemente investido, possibilitando os investimentos laterais que organizarão os processos secundários. Esses são modalidades de pensamento – judicativo, recognitivo e reprodutivo – que visam ao reencontro do objeto de satisfação. Os processos de pensamento visam a um estado de identidade com o objeto de satisfação, e quando a eles se segue um signo de qualidade da percepção obtém-se a crença e a possibilidade de um trabalho de eliminação. O pensamento judicativo é primário. Trata-se de uma associação entre investimentos exógenos e aqueles provenientes do próprio corpo. É o julgamento da correspondência entre as representações evocadas pela percepção e as representações de objeto a partir dos registros de investimento na consciência. O esquema é relativamente simples: o complexo perceptivo é composto por elementos que coincidem com o objeto de desejo e outros que são contingentes. O objeto de desejo, por sua vez, também será composto por dois elementos – um que é do núcleo do eu e constante, e outro que é do manto e mutável. Freud chamará o primeiro de neurônio a e o segundo de neurônio b. O juízo consistirá na atividade que descobre a analogia entre o núcleo do ego (neurônio a), a parte constante do objeto percebido (neurônio a), os investimentos variáveis do ego no manto (neurônio b) e a parte também variável do complexo perceptivo (neurônio c). Essa identidade entre os neurônios a possibilitará os processos de pensamento subseqüentes, que procuram a partir de c reencontrar b, adquirindo a identidade desejada. O neurônio a é a coisa (Das Ding) e o neurônio b sua “atividade ou atributo; em suma, seu predicado” (Freud, 1895, p. 41-42). Eis a apresentação da bipartição do objeto de desejo e sua superposição em uma parte constante do ego e outra variável, fundamentando todos os processos de pensamento.

A partir do juízo, o ego poderá dar cabo ao pensar recordativo e ao reprodutivo. O pensar recordativo busca a identidade corporal. Ele está em jogo no complexo do próximo: o gesto do outro que produz o reconhecimento do próprio corpo. O pensamento reprodutivo visa a repetição da vivência de satisfação por intermédio de vias associativas secundárias. Envolve o estabelecimento de ligações que alcancem a identidade perceptiva por meio do rastreio das representações de objeto, cujo caráter é aberto (Freud, 1891). Essa busca pode levar a ações, e todo o processo é garantido pela meta de identidade, a qual é dada pelo investimento constante do neurônio b, direcionando o processo. Mas se o investimento do neurônio b é a meta teleológica do processo, este só se dá pela existência da coisa. Freud é explícito ao dizer que as coisas são restos que se subtraem à apreciação, o que significa que escapam ao processo de julgamento (Freud, 1895, p. 47). Isso ocorre porque é a invariância da coisa que propicia a própria comparação, de forma que nunca é tornada consciente para o pensamento.

A noção de um núcleo de desconhecimento que organiza o pensamento permite a alguns comentadores sobrevalorizarem a noção de coisa que surge no Projeto. Tomam-na como algo fora do significado, uma estrutura vazia que permite o trânsito das representações, aproximando-se do objeto a em Lacan (Santos, 2002, p. 33-34; Bastos, 1999; Garcia-Roza, 1998, p. 159-160). Essa interpretação não é coerente com o modelo representacional e associativo que caracteriza o esforço teórico freudiano, pois coloca a coisa como algo que não se inscreve no aparelho psíquico. O problema dessa interpretação é tomar a afirmação freudiana – de que a coisa se furta ao processo de julgamento – como necessariamente um atestado de irrepresentabilidade. A coisa é, em termos descritivos, tão somente a essência do objeto de desejo, tirando seus atributos contingentes. Sabe-se que o atributo essencial da vivência de satisfação é a própria descarga. A coisa é a própria representação da pulsão; o cerne do circuito associativo nuclear da vivência de satisfação, que se encontra inibido. Ela não pode se tornar consciente pois é a parte pulsional e não objetal do circuito da fome que é o núcleo do ego. Por isso também não entra no processo associativo de julgamento, pois esse deve procurar os atributos contingentes dos objetos percebidos. A coisa, portanto, é a representação da pulsão no circuito associativo da vivência de satisfação. Nesse sentido, ela não pode ser tomada como algo da ordem do irrepresentável. Também não pode ser tomada como uma estrutura vazia, pois ela é parte de um circuito no qual fazem parte representações de objeto. A partir da noção de coisa pode-se afirmar que a essência da pulsão é encontrar a satisfação, mas não se pode dizer que o objeto é contingente, pois deve obedecer à ação específica6.

O registro mnêmico da coisa deve ser diferenciado da representação de objeto propriamente dita. A coisa é o substrato de toda a atividade do ego, sendo a partir dela que o pensamento pode emergir. Isso se dá não só pela analogia que permite, mas por ser o circuito básico permanentemente investido que constitui o ego. Pode-se pensar que a coisa é a representação de um ideal de funcionamento primário, ou seja, é a primeira inscrição da pulsão. A partir dessa consideração podemos arriscar também uma interpretação. Tomando a devida precaução de levar em conta as especificidades conceituais de cada período da metapsicologia freudiana, pode-se encontrar aqui uma indicação da futura noção de ego ideal: o regime de funcionamento narcísico, que permanece como substrato do psiquismo. Sabemos a dificuldade dessa articulação, que ademais não poderá ser efetuada aqui, mas o importante é ressaltar o quanto há indício de um outro tipo de registro, que não o da representação de objeto que está no cerne da constituição do eu. Outro elemento que contribui para essa interpretação é a noção do complexo do próximo como modelo analógico da identidade corporal, por meio do pensamento recognitivo. Há de se pensar se na gênese do ego não é fundamental um registro que organize os caminhos associativos básicos por meio de uma identificação com o outro. Nesse ponto, emerge a possibilidade de se pensar, já no Projeto, a identificação como um registro diferenciado da representação de objeto, que estaria no cerne da gênese do ego. Essa situação seria dada pela articulação da coisa com o pensar recognitivo por meio do complexo do próximo.

No regime de pensamento reprodutivo, as associações se dão por contigüidade, ou seja, pela associação entre as facilitações consolidadas e os investimentos mutáveis por meio da proximidade espacial, e não mais por proximidade temporal como na simultaneidade que impera na seqüência associativa primária. A evolução do aparelho psíquico do processo primário para o secundário dá-se na direção da simultaneidade para a contigüidade. O processo secundário é a repetição do curso mnêmico originário, porém em um nível energético inferior (Freud, 1895, p. 47), possibilitando novas articulações associativas.

O problema teórico que Freud terá de resolver é saber como o pensamento pode deixar traços que facilitem sua repetição, sem que se alterem os caminhos de eliminação. A resposta é dada em parte pela capacidade de ligação dos investimentos laterais do ego em ψ, mas só pode ser garantida pelos traços mnêmicos do pensar: os signos lingüísticos, que Freud chama de “traços especiais” (p. 48). Tem-se então a representação de palavra como forma de registro fundamental do pensamento. O processo secundário é essencialmente a articulação das representações de objeto às representações de palavra, criando percursos associativos que reencontrem o objeto. A descarga motora das representações de palavra servirá como signos de qualidade para o pensamento (p. 79). Se a notícia de percepção na consciência é condição para a crença na realidade, a palavra é condição para o pensamento. Tem-se assim um quarto registro mnêmico como condição essencial ao processo secundário.

O interesse do sonho para a presente discussão se dá pelo corolário a uma regressão formal e topográfica no aparelho psíquico. Como no sono a atenção psíquica – constante vigilância do sistema ψ contra o desprazer a partir da regulação dos signos de qualidade – se esvai pelo desinvestimento do sistema mnêmico, criam-se condições para um processo primário no ego que inverte o fluxo normal de Q – regressão topográfica – e modifica o regime econômico buscando a alucinação da vivência de satisfação – regressão formal.

Outra manifestação de falha no mecanismo de atenção psíquica se dá na psicopatologia. Nesse caso, o problema é diferenciar o mecanismo de defesa normal – baseado na vivência de dor – do patológico – originado de sensações sexuais. O modelo freudiano é a formação do símbolo histérico como próton pseudos: uma falsa associação entre representações. Freud terá dificuldade em articular o desejo sexual com a defesa, já que esta surge contra a dor exógena. A saída é pensar na posterioridade do efeito traumático da sexualidade. O fator patogênico estaria na sensação sexual e na impossibilidade de representá-la como tal em uma época pré-pubertária. Não havendo circuito de representação sexual, seria representada ligada à fome. A recordação posterior desperta um afeto novo, porque a transformação da puberdade insere uma nova forma de vivência – sexual –, possibilitando ressignificação da lembrança. A sexualidade funcionaria como um neurônio-chave, secretando Q para dentro do aparelho e originando um afeto. A liberação sexual é perigosa ao aparelho, não só pela emergência de uma intensidade, mas porque essa intensidade liga-se a uma recordação e não a uma vivência. Essa peculiaridade é suficiente para burlar o mecanismo da atenção psíquica, pois o desprazer não parte das percepções que normalmente dão lugar à liberação de desprazer, mas de uma recordação que irrompe inesperadamente. O ego permite o processo primário porque não o esperava e a memória, nesse caso, terá o caráter traumático de uma experiência de dor. Percebe-se nesse mecanismo o deslocamento da questão para efeitos semânticos, pois é na descoberta do sentido sexual originário que se produzirá o efeito intensivo que leva à repressão. O aparelho psíquico encontra-se sob um modelo de significação ou denotação (Gabbi Jr., 1995, p. 189), havendo a passagem da natureza puramente fisiológica na causação das intensidades para a articulação entre representações de palavra e de objeto.

Paralelo a isso, observa-se a expansão da noção de afeto. Se antes o afeto restringia-se à repetição da experiência originária de dor, agora é qualquer intensidade psíquica que ameaça levar a emergência de facilitações préestabelecidas no processo primário, suplantando o pensamento e a atenção psíquica. O afeto aproxima-se, assim, do processo primário não-inibido (Freud, 1895, p. 69), sendo entendido como um excesso energético no aparelho que se expressa em angústia. A função principal do ego será a de ligação das intensidades, evitando a irrupção dos afetos. Mais que isso, o ego deve preparar-se para a irrupção do desprazer por meio da atenção psíquica. Isso faz com que a angústia oriunda da repetição do processo primário possa ser reduzida a um mero sinal da liberação de desprazer. O fato da atenção psíquica não estar voltada para a ressignificação sexual faz com que esse mecanismo não tenha sucesso na próton pseudos histérica. Nesse sentido, Freud coloca a angústia em dois planos: (1) processo intensivo traumático e prototípico que escapa ao ego e irrompe como angústia; (2) redução progressiva, pela atividade de ligação do ego, da angústia automática a um sinal de angústia que servirá de indicação de qualidade à atenção psíquica (p. 71).

 

Síntese e considerações finais

O aparelho psíquico do Projeto é um arco reflexo complexo, que procura manter a constância do fator intensivo da energia psíquica endógena e exógena, tendo como função primária a compulsão à repetição. A memória é o seu aspecto central, função de um excesso energético que diferencia circuitos associativos básicos. Esses precipitados de vivências – dor, satisfação e sexualidade – são estruturas fundamentais das representações ideacionais e afetivas, além de protótipos dos processos psíquicos de pensamento e defesa. O aparelho organiza-se contra a intensidade energética, diferenciando diversos sistemas neuronais a partir de uma estratificação em níveis. Encontra-se sempre ameaçado de regressão formal devido ao afluxo traumático de energia que suplanta a atividade secundária do ego. Esse exerce a função de ligação das intensidades, inibindo a compulsão e organizando os processos de pensamento que possibilitarão o reencontro do objeto da ação específica. Nesse processo, é fundamental a ação de um outro, que servirá como modelo para a identificação egóica.

A atividade psíquica tem como finalidade a representação das experiências, de forma a garantir o prazer e evitar o desprazer, por meio das diversas modalidades de registro da experiência ideativa e afetiva. No plano ideativo teremos, sucessivamente: (1) representações perceptivas, (2) representações de objeto e (3) representações de palavra. As primeiras são o registro dos signos de qualidade da percepção, protótipo da representação na forma de figurabilidade. Origina-se em regime de processo primário por meio de associações de simultaneidade. As representações de objeto também são fruto de regime primário, porém mediadas pelo juízo discernidor. Nesse, a referência é a identidade corporal, obtida pela analogia com outrem. A representação de objeto é a consolidação, por identificação, das representações perceptivas.

Dois aspectos são discerníveis na representação de objeto, a saber: a parte variável, que entra no circuito do pensamento, e a parte fixa, que o fundamenta. O segundo aspecto é a essência do desejo; representação da pulsão e do funcionamento ideal do psiquismo: a coisa. Sobre ela instauram-se os nexos causais que possibilitarão a emergência de conceitos. A representação de objeto tem dupla origem: é consolidada pelo processo secundário do pensamento reprodutivo, mas tem como origem uma forma de inscrição que é mais fundamental e se dá pela identificação com outrem no juízo e no reconhecimento. Chegou-se à hipótese de que a gênese do ego, como inscrição e organização, relaciona-se diretamente com a identificação com um objeto semelhante. A identificação tem um registro particular – a coisa –, organizando o ego sem, no entanto, aparecer como objeto de conhecimento ou da consciência. Em algum lugar entre a coisa e o objeto inscrever-se-ia o outro. Essa articulação é fundamental e será esquecida em toda a primeira tópica freudiana, a começar pela Carta 52 (Freud, 1896)7.

Outro nível de registro é encontrado nas representações de palavra. Elas são condição para a criação de associações originais em regime exclusivo de raciocínio. Para tanto, precisam da confirmação do signo de realidade do pensamento, que é a inervação motora da fala. O signo de realidade da fala está para o pensamento como o signo de qualidade da percepção está para uma representação de objeto. Os processos de pensamento reprodutivo são a expressão mais bem acabada do processo secundário, trabalhando com associações de contigüidade e por intermédio do controle da atenção psíquica do ego.

Os níveis de registro mnêmico constituirão um dos eixos da teoria representacional freudiana. Apesar do problema da origem do ego e da identificação, esse esquema norteará a topografia da primeira tópica. Se nesse ponto a articulação teórica está suficientemente sedimentada, pelo lado do afeto a questão é mais delicada. Entra-se assim na questão do estatuto do afeto na metapsicologia freudiana, a qual evidentemente transcende o texto aqui abordado. Nos termos do Projeto, a ambigüidade fica entre a suposição de pelo menos uma estrutura afetiva através da qual a experiência afetiva pode organizar-se e se repetir. Há sérios problemas em se tomar esse mode-lo a partir da Q exógena e da dor, pois a angústia que emerge da Q endógena precisará ser remetida a esse modelo. De qualquer forma, nota-se que o afeto como experiência consciente e descarga não se resume ao investimento de uma estrutura afetiva, mas a toda e qualquer intensidade que irrompe na trama associativa do aparelho. Nesse sentido, o afeto é fundamentalmente um excesso energético que precisa ser ligado pelo ego em processo secundário. Em suma, o afeto não é apenas a experiência de dor, mas principalmente a experiência de desprazer, que nada mais é do que a contraparte consciente de um processo econômico traumático. A dimensão traumática do afeto e sua ligação estreita com o ponto de vista econômico é um ponto central da estrutura conceitual do Projeto, o que faz com que a noção de afeto transite o tempo todo entre sua conformação a uma estrutura e sua resistência a ela. Essa polaridade é uma tônica da metapsicologia freudiana, e o Projeto contribui sobremaneira para entender a complexidade teórica dessa concepção. Um ponto importante é que essa polaridade não precisa, necessariamente, ser entendida como uma ambigüidade teórica, mas como um problema de nível energético: a estrutura suficientemente reinvestida comporta o afeto, mas quando o fator energético suplanta as barreiras de contato e os investimentos colaterais do ego, esse afeto torna-se traumático, necessitando de uma nova ligação. Nesse processo o excesso energético pode passar de uma estrutura afetiva para uma representacional, reinstaurando o processo secundário. Mas de qualquer forma, tem-se que a angústia é fundamental-mente uma experiência emocional do puro desprazer, da intensidade livre e pungente. Nesse sentido, a angústia é a repetição de uma falha na inscrição afetiva que se deu antes da instalação do ego. No caso do Projeto, e até 1897, isso se dá na próton pseudos8. A angústia é a repetição de uma condição automática de descarga, o reinvestimento de um registro mnêmico, e sobretudo sua falha: falha do ego em manter o processo secundário.

A contribuição mais importante do Projeto é entender a experiência do processo primário como uma compulsão à repetição e à descarga, na qual o organismo encontra-se no mais completo desamparo, e contra a qual o organismo precisa organizar-se por meio da criação de uma instância que permita a ligação dessa energia livre. Deixando de lado a querela sobre as insolúveis dificuldades teórico-conceituais e as falsas suposições clínicas, que fazem desse texto freudiano um esforço teórico inconsistente como modelo de aparelho psíquico, pode-se perceber uma série de proposições que permanecerão no cerne da preocupação e do esforço teórico freudiano. Se por um lado tem-se a definição de um esboço de teoria representacional, tem-se também seus primeiros impasses, seja no campo da identificação e da gênese das representações do ego, seja no campo do afeto como demanda de trabalho do psiquismo, ou mesmo no substrato econômico do aparelho psíquico que esboça uma energia que visa a descarga e a compulsão à repetição. Trata-se de um texto problemático mas também surpreendente, trazendo inúmeras concepções que serão retomadas e conceitualizadas de forma satisfatória apenas ao fim de um longo percurso da metapsicologia. Não cabe dizer que já estejam aqui os conceitos freudianos de pulsão de morte, compulsão à repetição, identificação, Id e Ego. Mas não se pode negar que partes substanciais dessas noções aqui se encontram e estão operando desde o início no horizonte conceitual da metapsicologia freudiana.

A questão é delicada, mas encerro lembrando que também a metapsicologia freudiana opera sob a égide do paradoxo do desconhecimento-reconhecimento do Inconsciente: “não sabia; sempre soube”. É nessa complexa trama de idas e vindas – espiral, pendular ou suplementar – que se deve buscar o sentido da escrita freudiana.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Érico Bruno Viana Campos
R. Prof. Teotônio M. de Barros Fº, 535 / 33 – Vila Butantã
05360-030 São Paulo/SP
Tel.: (11) 3719-5284
E-mail: ericobvcampos@uol.com.br

Recebido em 06/10/03
Aprovado em 03/02/04

 

 

Notas

I Psicólogo; Mestrando do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; Pesquisador na linha de pesquisa “Problemas Teóricos da Psicologia” do Programa de Pós-graduação em Psicologia Experimental; Bolsista CNPq.
1 Freud diferencia entre a Q endógena (Qn) e a Q exógena (Q). Essa denominação não se mostra rigorosa no texto freudiano (Garcia-Roza, 1998, p. 82). No presente artigo, o termo Q refere-se ao fator quantitativo em geral, sendo especificado a contento caso se trate de origem endógena ou exógena. Segue-se a interpretação de que não haja diferença de natureza entre as diferentes quantidades, apenas de origem, não cabendo distinguir dois conceitos (Mezan, 2001, p. 31).
2 A dupla origem de Q instaura uma diferenciação no sistema ψ. Aquela parte que está relacionada mais diretamente aos estímulos externos formará o manto ou pallium desse sistema, enquanto a parte relacionada às terminações viscerais formará o seu núcleo.
3 A passagem é clássica, sendo que Freud utiliza o termo moral. Prefere-se aqui o termo ética para marcar a experiência subjetiva que estaria na fundamentação dos preceitos morais, o que não distorce, mas esclarece, o sentido da frase de Freud.
4 O termo está entre aspas, pois o empirismo cético presente em Freud a princípio não permitira um estatuto de verdade sobre a coisa externa em si, mas apenas uma crença na identidade perceptiva e associativa do mundo representacional. Contudo, a questão do estatuto da realidade em Freud não é livre de ambigüidades (Cf. Coelho Jr., 1995; Porchat, 2003).
5 Utilizo o termo figuração (Darstellung) para marcar a especificidade do registro perceptivo em relação à representação propriamente dita (Vorstellung) (Hanns, 1996, p. 398). No caso do Projeto é fácil entender o retorno do pensamento em imagem, pois a diferença entre eles se dá fundamentalmente na sua situação econômica, sendo que isso determinará seu estatuto topográfico. Quando ocorre reinvestimento em processo primário há uma regressão da representação de objeto para a figuração perceptiva: o sistema mnêmico regride formal-mente ao sensorial.
6 A trama conceitual do Projeto assenta-se sobre o modelo da fome, e interpretações que tomam a pulsão a partir da sexualidade como puro prazer independente do objeto traem seguramente a perspectiva freudiana desse período.
7 As considerações sobre o Projeto tornam mais clara a aparente novidade trazida pela Carta 52, pois os registros desta são reflexo das concepções de representação daquele. A diferença está no abandono do substrato neuronal e no esmaecimento do ponto de vista econômico, afirmando a estratificação formal em função da retranscrição dos registros. O trauma dá-se pela falha na transcrição de um registro para outro sem que se explicite a impossibilidade em lidar com a dimensão energética envolvida. Observa-se que comparece aquilo que é menos problemático nas construções do Projeto, ficando de fora a demanda de ligação do afeto, além da gênese do ego por identificação (Cf. Freud, 1896, p. 281-283).
8 Com a queda da teoria da sedução, a questão terá de ser formulada, mas se mantém na essência: a angústia advém da perda de referência, na perda dos laços associativos entre as representações de objeto e de palavra, por meio da repressão. (Cf. Gabbi Jr., 2000).