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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.15 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Entre o corpo e o psiquismo: a noção de concomitância dependente em Freud1

 

Between body and psyche: Freud’s idea of “dependent concomitant”

 

 

Monah WinogradI

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A relação entre o corpo e o psiquismo é central e originária na teoria psicanalítica. Antes da psicanálise, Freud pesquisava a anatomia do sistema nervoso. Em certo sentido, seu objeto permanece o mesmo, mudando apenas a perspectiva da abordagem. Este artigo trata da noção que sustenta o ponto de vista freudiano sobre o problema corpo-mente: a noção de concomitância dependente. Cunhada antes da psicanálise propriamente dita nascer, esta noção organiza e prepara o terreno da teoria futura. Como um alicerce, a noção permanece subterrânea, mas ativa, até o final da vida de Freud.

Palavras-chave: Corpo, Psiquismo, Concomitância, Paralelismo psicofísico, Freud.


ABSTRACT

The relation between body and mind is original and central to the psychoanalytical theory. Before psychoanalysis, Freud researched the anatomy of the nervous system. In a way, his object remains the same, only his perspective changes. This article presents a notion that sustains Freud’s point of view of the body-mind problem: the notion of “dependent concomitant” which was postulated before psychoanalysis came to life. It helps us to organize and prepare the soil of the future theory. Although fundamental it remained in the underground, but always remained active, until the end of Freud’s life.

Keywords: Body, Mind, Dependent concomitant, Psycho-physic parallelism, Freud.


 

 

Ademais, existe o fato, inacessível por meio da compreensão mecânica, de que simultaneamente ao estado de excitação, definível mecanicamente, de elementos cerebrais específicos, estados específicos de consciência, acessíveis somente através de introspecção, podem ocorrer. O fato real da conexão entre mudanças no estado material do cérebro e mudanças no estado de consciência, mesmo que esse fato seja incompreensível mecanicamente, faz do cérebro o órgão da atividade anímica. Mesmo a natureza da conexão sendo incompreensível para nós, ela não é sem leis e, baseado na combinação entre experiência dos sentidos externos, de um lado, e introspecção interna, de outro, estamos aptos para afirmar algo sobre estas leis. Se uma mudança específica no estado material de um elemento cerebral específico conecta com uma mudança no estado de nossa consciência, então esta também é inteiramente específica; entretanto, ela não é dependente somente da mudança no estado material, quer esta conexão ocorra, quer não. Se o mesmo elemento cerebral passa pela mesma mudança de estado em momentos diferentes, então o processo anímico correspondente pode estar ligado a ele numa ocasião e não em outra. No momento, não estamos aptos a formular melhor as leis que governam isto. Não sabemos se a conexão depende, além da mudança de estado dos elementos considerados, de estados e mudanças simultâneos em outros elementos cerebrais, ou, ademais, se também depende de outra coisa (Freud, 1888a, p. 62-63).

 

 

Esta passagem foi extraída do artigo Cérebro, escrito por Sigmund Freud em 1888 para um dicionário de medicina geral2. Ele não figura nas edições de suas obras completas, e no entanto revela as bases do modo como Freud entendia a alma humana. Historicamente esse artigo pode ser classificado como parte de seus últimos escritos neurológicos, situando-se na fronteira entre o que se convencionou chamar de período neurológico e período psicológico da produção freudiana (Bruno, 1971; Solms e Saling, 1990). O fato de ter sido escrito durante a época em que Freud fazia suas primeiras observações e reflexões sistemáticas sobre psicopatologia, iniciando a construção de sua primeira teoria psicológica, aumenta ainda mais seu interesse.

Quando o escreveu, Freud tinha 32 anos. Aos 30, em 1885-86, estudou com Jean-Martin Charcot (1825-1893) em Paris. Histeria e hipnotismo eram os interesses principais de Charcot na época, e as atividades de Freud depois de seu retorno a Viena demonstram a profunda impressão que esses temas lhe causaram. Em 1886 ele traduziu as aulas do mestre francês (Freud, 1886a) – que eram principalmente sobre histeria –, apresentou um caso de histeria masculina para seus colegas (Freud, 1886b), começou a fazer um estudo comparativo da sintomatologia orgânica e histérica (Freud, 1893a) e começou a tratar de histéricos e neurastênicos em seu consultório particular. Durante o ano de 1887 começou a usar o “método catártico” de Joseph Breuer (18421925) no tratamento de pacientes histéricos e publicou duas resenhas sobre neurastenia e histeria, entre outros trabalhos. Em 1888 mais dois trabalhos sobre histeria foram publicados (Freud, 1888b e 1888c) e um livro sobre sugestão hipnótica escrito por Hippolyte Bernheim (1840-1919) foi traduzido (Freud, 1888d). No mesmo ano publicou o Cérebro.

 

O cérebro e o paralelismo psicofísico

Em Cérebro apresenta o encontro entre dois campos – neurologia e psicologia – em uma só alma. Desse encontro resultará, três anos depois, a formalização do ponto de vista freudiano sobre o problema das relações corpo-alma, particularizado no das relações cérebro-pensamento. O artigo salta aos olhos como especialmente revelador. É um dos mais longos do dicionário e pretende ser uma introdução sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro humano. Dividido em duas partes, a primeira versa sobre neuroanatomia e a segunda sobre neurofisiologia. A primeira parte é subdividida em sete subseções, começando com uma rápida descrição do desenvolvimento embriológico do cérebro. As três subseções seguintes descrevem sua topografia geral e a anatomia de suas subdivisões maiores. A quinta seção trata de neuroanatomia microscópica e revisa as vantagens e desvantagens das diversas técnicas histológicas em uso na época. A sexta seção considera o quanto a investigação neuroanatômica da época podia esclarecer sobre o funcionamento cerebral. Aqui, o artigo torna-se menos descritivo, com críticas de Freud à então ortodoxa concepção das relações estruturo-funcionais no sistema nervoso humano. A sétima e última subseção é dedicada ao então controverso tema do curso das trilhas sensórias e motoras através do sistema nervoso.

A segunda parte do artigo é a que nos interessa. É sobre neurofisiologia, e começa pela problemática das relações entre processos neurofisiológicos e processos psíquicos, incluindo uma especulação sobre como estes podem ser representados no cérebro. A seguir, e até o final do artigo, são discutidas a fisiologia do córtex cerebral e de outras estruturas do sistema nervoso.

Freud começa essa segunda parte dando uma definição geral do cérebro como o órgão no qual “as excitações sensórias centrípetas” são convertidas em “impulsos centrífugos de movimentos”3. Esta função do cérebro recebe o estatuto de causalidade mecânica, tendo no arco-reflexo o seu modelo. Contudo, a atividade cerebral não se reduz a essa função, pois “simultaneamente ao estado de excitação, definível mecanicamente, de elementos cerebrais específicos, estados específicos de consciência podem ocorrer” (1888a, p. 62). Entre os estados de excitação cerebral e os estados de consciência, Freud concebe uma relação de conexão ou de ligação, que pode ser formulada da seguinte maneira: as mudanças nos estados materiais (excitação de elementos cerebrais) estão em conexão com as mudanças de estados de consciência (Bruno, 1971); ela constitui uma primeira determinação do psíquico e faz do cérebro “o órgão da atividade anímica (Seelenthätigkeit)”. O que nos diz Freud dessa atividade anímica?

A conexão que a constitui não tem origem em uma causalidade mecânica. Se a aparição de um estado de consciência implica necessariamente a excitação de elementos corticais, a recíproca não é verdadeira. Um mesmo estado de excitação, de um mesmo elemento cerebral, pode estar ou não em conexão com um estado de consciência, de acordo com cada momento. Nada, pelo menos na época de Freud, permitia dizer se a ocorrência dessa conexão depende de uma mudança de estado de outros elementos cerebrais; ou, segundo as palavras do jovem médico, “de outra coisa”.

A conexão, quando tem lugar, dá-se em termos de franqueamento ou não-franqueamento de um “limiar da consciência”. A aparição de um estado de consciência tem por protótipo o ato voluntário, mas os estados de consciência podem tomar formas diversas: sensação de necessidade, percepção de objeto, representação de objetivo etc. Os estados de consciência são acessíveis unicamente à introspecção. Na forma do comportamento observável nada permite afirmar com segurança que tiveram lugar.

A partir desses aspectos pode-se, provisoriamente, tirar algumas conclusões. A ausência de causalidade mecânica entre estado de excitação cortical e estado de consciência induz à idéia de uma espécie de distinção de níveis entre os dois, da qual ainda não se sabe se é nominal ou real. Por outro lado, há o anímico a partir do momento em que a conexão se efetua entre os dois níveis, o estado de excitação cortical sendo uma condição necessária, mas não suficiente, do estado de consciência. É o que Pierre Bruno (1971) chama, em sua análise do artigo, de determinação I do psíquico.

Porém, o restante do texto não permite a permanência nessa primeira determinação. Com efeito, ao lado da relação de conexão, Freud acrescenta um segundo tipo de relação, desta vez operando entre os próprios elementos psíquicos. Essa ligação tem a forma de uma cadeia, cujos elos são os elementos psíquicos, que podem ser por exemplo, os diversos estados de consciência, ou mesmo as diversas idéias. Segundo a primeira relação (determinação I), essa cadeia psíquica está em ligação com a cadeia material, mas é ao mesmo tempo distinta. Ela obedece às leis da associação de idéias (associacionismo), o que implica leis homólogas ao nível da cadeia material. Mas será que esta homologia de leis permite a dedução da existência de uma correspondência elo a elo entre as duas cadeias?

Freud oferece três possibilidades de composição da cadeia psíquica:

1. todos os elos da cadeia psíquica franquearam o limiar da consciência. É o caso mais simples;

2. somente alguns elos franquearam esse limiar;

3. algum elo não franqueou esse limiar.

De saída nota-se que a identificação entre consciente e psíquico parece impossível: se algum elo da cadeia psíquica pode não ter franqueado o limiar da consciência, e ainda assim ser um elo da cadeia psíquica, é porque psíquico e consciente não são idênticos. A pergunta é inevitável: qual o destino dos elos que não franquearam o limiar da consciência? Pierre Bruno (1971) decompõe a resposta em duas eventualidades, evidenciando o ponto de vista de Freud sobre o problema das relações corpo-alma.

Em uma primeira eventualidade os elos que não franquearam o limiar da consciência só existiriam como elos da cadeia material. No caso em que apenas alguns elos franquearam esse limiar, e se queremos que a cadeia não se rompa, devemos supor a existência de uma possibilidade de associação entre um elo da cadeia psíquica e um elo da cadeia material, o que estaria conforme a ideologia associacionista. Por outro lado, conforme as palavras de Pierre Bruno, “no caso em que nenhum elo franqueie o limiar da consciência, a aplicação desta eventualidade resulta na redução total da cadeia psíquica à cadeia material. Vê-se o que daí decorre: o psíquico não seria nada mais do que a fisiologia cortical, incluindo a possibilidade, mas não a necessidade, da consciência” (1971, p. 130).

Pierre Bruno prossegue e apresenta uma segunda eventualidade: os elos que não franquearam o limiar da consciência subsistem como elos psíquicos não-conscientes, distintos da cadeia material. Neste caso, Freud estaria considerando o psíquico como mais do que somente a consciência e irredutível ao fisiológico. Embora o desdobramento ulterior do pensamento freudiano leve a considerar a segunda eventualidade como pertinente, nada no texto de 1888 permite escolher seguramente uma das duas possibilidades. Somente uma coisa é certa: há uma determinação I do psíquico, que segundo as eventualidades 1 e 2, pode especificar-se em determinação I.1 ou I.2 (p. 131 e ss).

Esse problema – como Freud concebia a relação entre psíquico e fisiológico, portanto mais profundamente, qual a sua posição filosófica sobre o problema das relações corpo-alma nessa ocasião – foi objeto de alguns poucos estudos. Ola Andersson (1962) acreditava que o jovem Freud tinha uma perspectiva epifenomenalista, segundo a qual os acontecimentos psíquicos seriam somente sombras dos acontecimentos físicos. A relação causal é clara e de mão única: o físico causa o psíquico. Como conseqüência, os acontecimentos psíquicos são dispensáveis, já que o curso dos acontecimentos físicos seria exatamente o mesmo, com ou sem seu correspondente psíquico. Peter Amacher (1965) aproxima-se de Andersson ao afirmar que Freud não concebia os processos anímicos como sendo independentes dos físicos. Cérebro e pensamento funcionariam segundo princípios idênticos, quais sejam, os do arco-reflexo. Solms e Saling (1990), discordando de Andersson e Amacher, entendem que para Freud a atividade psíquica não pode ser reduzida à fisiologia cerebral e seus princípios. Para esses comentadores, a posição de Freud sobre o problema das relações corpo-alma seguia o paralelismo psicofísico (Freud, 1891; Solms e Saling, 1986)4.

Solms e Saling parecem estar com a razão. Com efeito, segundo as duas determinações diferenciadas acima, Freud supõe duas cadeias – a mate-rial e a psíquica – ligadas, inter-relacionadas, em conexão, mas simultaneamente distintas. Apesar de não encontrarmos nenhum tipo de resolução explícita quanto ao destino dos elos que não franqueiam o limiar da consciência, a distinção entre as duas cadeias, aliada à afirmação de que a conexão entre elas não segue uma causalidade mecânica, sugere que Freud as compreendia de maneira paralelista. Fica evidente que se por um lado ele não concebia as cadeias como substâncias distintas, operando de modo independente, por outro lado também não reduzia uma à outra – posição reiterada e reforçada, como veremos, em 1891.

 

A histeria e a distribuição das excitações

No artigo Histeria, escrito para o mesmo dicionário de medicina geral, pode-se encontrar outras indicações sobre o modo como Sigmund Freud entendia a relação entre a cadeia material e a cadeia psíquica. Logo na primeira página ele afirma que não foram encontradas alterações anatômicas perceptíveis do sistema nervoso nos pacientes histéricos, e que não se deve esperar encontrá-las, mesmo com o aperfeiçoamento das técnicas de anatomia. Isso porque, nas suas palavras, “a histeria baseia-se inteiramente em modificações fisiológicas do sistema nervoso, e sua essência deveria expressar-se mediante uma fórmula que desse conta das relações de excitabilidade entre as diversas partes do referido sistema” (1888b, p. 45).

Dentre os sintomas físicos da histeria, o jovem médico inventaria os seguintes: ataques convulsivos, perturbações da sensibilidade, paralisias e contraturas. Todos marcados pelo caráter do excessivo: uma dor histérica é relatada como dolorosa em um grau máximo, uma contratura opera o máximo de contração de que um músculo é capaz etc. Quanto aos sintomas psíquicos, Freud os define como alterações no decurso e na associação de representações, inibições da atividade voluntária, acentuação ou sufocamento de sentimentos, entre outros. Todos podendo ser resumidos como “umas modificações na distribuição normal, sobre o sistema nervoso, das magnitudes de excitação estáveis” (p. 54), com a produção de um excedente de excitação que exteriorizar-se-ia ora inibindo ora estimulando, e deslocarse-ia livremente. Vê-se que variações nas excitações dos elementos do sistema nervoso estão em conexão com variações anímicas, tal e qual o que foi proposto no artigo Cérebro.

No final de Histeria, a título de resumo, Freud escreve:

Para sintetizar, se pode dizer: a histeria é uma anomalia do sistema nervoso baseada numa distribuição diferente das excitações, provavelmente com formação de um excedente de estímulo dentro do órgão anímico. Sua sintomatologia mostra que este excedente de estímulo é distribuído por representações conscientes e inconscientes. Tudo quanto varie a distribuição das excitações dentro do sistema nervoso é capaz de curar perturbações histéricas; tais intervenções são em parte de natureza física, em parte de natureza psíquica (p. 62-63).

Primeiro, a confirmação de mais uma idéia que ficava implícita no artigo Cérebro:os elos que não franqueiam o limiar da consciência permanecem como elos psíquicos inconscientes. Depois, a afirmação de que intervenções de natureza psíquica, bem como física, podem fazer variar a distribuição das excitações no sistema nervoso: a conexão entre as cadeias material e psíquica é recíproca. A cada configuração somática das forças em ação no sistema nervoso, ou segundo o punho de Freud (1889), a cada “estado encefálico” corresponderia um “estado de alma” e, inversamente, a cada estado de alma corresponderia um estado encefálico, cada um sendo causa do outro e de si mesmo. É isto que permite o deslizamento e a indecisão entre a utilização de termos psicológicos e fisiológicos, característicos desse texto de 1888. São dois modos de descrever um mesmo processo.

Se era realmente este o seu ponto de vista, nada mais coerente do que considerar o método hipnótico como uma possibilidade interessante no tratamento de algumas afecções. Em seu prólogo à tradução do livro de H. Bernheim, De la suggestion, também de 1888, Freud apresenta o problema de como o hipnotismo deveria ser considerado: como um fenômeno psíquico (desencadeado a partir da “sugestão”) ou como um fenômeno físico e fisiológico. Como era de se esperar, ele não assume nenhuma das duas posições. Ao contrário, empenha-se em descrever tanto os processos fisiológicos quanto os psicológicos envolvidos, e justifica seus argumentos concordando com Bernheim sobre o equívoco de classificar os fenômenos hipnóticos como puramente fisiológicos ou puramente psíquicos. Trata-se na verdade de um processo de dupla face que implica, simultaneamente, variações psíquicas e fisiológicas. A especificação, de acordo com sua natureza, dos mecanismos em ação na hipnose deve, portanto, ser considerada um falso problema: “creio, então, que é preciso desautorizar a pergunta sobre se a hipnose mostra fenômenos psíquicos ou fisiológicos, e submeter a decisão a uma indagação especial para cada fenômeno singular” (Freud, 1888d, p. 91). Para Freud, um determinado fenômeno (no caso, o hipnotismo) será psíquico ou fisiológico, anímico ou corporal, de acordo com o registro de incidência da investigação e da explicação, o que faz da decisão sobre o que teria causado o que uma questão formulada equivocadamente.

 

A ação recíproca entre o anímico e o corporal

Dois anos depois, em 1890, Freud publicava o artigo Tratamento psíquico no manual de medicina Die Gesundheit, uma obra de divulgação em dois volumes, que reunia muitas colaborações de autores variados. Esse artigo integrava uma seção do primeiro volume sobre os diversos métodos terapêuticos. Versando mais uma vez sobre o polêmico tratamento hipnótico, Freud apresentou seu ponto de vista sobre o próprio hipnotismo, a medicina de seu tempo, e sobretudo o paralelismo psicofísico. A passagem é bastante clara e mostra a atitude singular de Freud frente ao modo como seus colegas médicos pensavam a vida anímica:

É verdade que a medicina moderna teve ocasião suficiente de estudar os nexos entre o corporal e o anímico, nexos cuja existência é inegável; mas, em nenhum caso, deixou de apresentar o anímico como comandado pelo corporal e dependente dele. Destacou, assim, que as operações anímicas supõem um cérebro bem nutrido e de desenvolvimento normal, de sorte que resultam perturbadas toda vez que esse órgão se enferma; (...). A relação entre o corporal e o anímico (no animal, tanto como no homem) é de ação recíproca; mas, no passado, o outro flanco desta relação, a ação do anímico sobre o corpo, encontrou pouca honra aos olhos dos médicos. Pareciam temer que, se concedessem certa autonomia à vida anímica, deixariam de pisar o terreno seguro da ciência (1890, p. 116 – grifo meu).

Pela primeira vez Freud declara explicitamente que entende as relações entre o anímico e o corporal como sendo recíprocas. Por um lado, variações na configuração material dinâmica do sistema nervoso implicam variações na atividade da alma. Por outro, o anímico também age sobre o corpo, por exemplo paralisando pernas e braços, como na histeria. E mais uma vez o problema da verificação empírica da causa última dessas variações deve ser descartado, na medida em que a premissa é a de que se trata de dois modos possíveis e legítimos de explicação para um mesmo acontecimento. Acontecimento que ao afetar simultaneamente os dois registros, produz efeitos em ambos, sem que seja possível determinar a causa primeira.

Finalmente, em 1891 Freud publica sua primeira obra, Contribuição à concepção das afasias, na qual é possível encontrar – ao lado e por conta de sua tomada de posição relativamente às teorias neurológicas mais influentes da academia vienense do final do século passado – a formalização de seu paralelismo apenas esboçado implicitamente nos textos anteriores. Nesse livro Freud arrisca a construção do primeiro modelo de aparato psíquico sob a forma de um aparato de linguagem. Sua intenção era criar um modelo que, diferentemente daqueles concebidos por seus colegas Karl Wernicke (1848-1905) e Theodor Meynert (1833-1892), entre outros, fosse capaz de explicar ao mesmo tempo o discurso espontâneo normal e os distúrbios funcionais reversíveis (Nassif, 1977; Rizzuto, 1993). Segundo Ana-Maria Rizzuto (1989), o motivo para empreender tal tarefa teria sido a necessidade de dar conta dos fenômenos discursivos apresentados, por exemplo, por sua paciente Emmy von N. e pela antiga paciente de Breuer, Anna O. Os modelos de seus colegas explicavam satisfatoriamente a repetição da linguagem falada por outros, mas não incluíam nenhuma explanação de como o discurso espontâneo acontece.

Ao querer um aparato capaz de produzir o discurso espontâneo, Freud pretendia que esse aparato fosse capaz de pensamento, de processos psíquicos implicando representações (objeto e palavra), associações entre tais representações, e por aí vai. Mas para Freud ainda era necessário relacionar essas atividades da alma à estrutura e ao funcionamento material do cérebro. A doutrina dominante no ano de 1891 era a teoria da localização, segundo a qual as funções psíquicas poderiam ser localizadas anatomicamente no cérebro. A partir da verificação da relação, em cadáveres, entre lesões no córtex e déficits funcionais, inferia-se a referência de determinada função psíquica a uma localização cerebral dada. Freud discordava desse ponto de vista, tanto com relação à localização das funções psíquicas quanto com relação à inferência da fisiologia cerebral a partir de sua patologia. Essa discussão o leva, necessariamente, ao problema das relações corpo-alma.

 

A concomitância dependente

Na parte V do livro sobre as afasias, ao criticar a doutrina “córtico-cêntrica” de Meynert e sua hipótese da localização anatômica das funções cerebrais, Freud explicita e defende a idéia de que a relação entre os processos fisiológicos do sistema nervoso e os processos psicológicos não é de causalidade mecânica, mas de concomitância dependente. Ou seja, os processos fisiológicos e os processos psicológicos são concomitantes (ocorrem simultaneamente a partir de certo momento), interdependentes e de ação recíproca.

A cadeia dos processos fisiológicos no sistema nervoso não se encontra, provavelmente, numa relação de causalidade com os processos psíquicos. Os processos fisiológicos não se interrompem ao iniciarem-se os processos psíquicos. Ao contrário, a cadeia fisiológica prossegue, só que a partir de um certo momento, um fenômeno psíquico corresponde a um ou mais de seus elos. O processo psíquico é, assim, paralelo ao processo fisiológico (“a dependent concomitant”) (1891, p. 105 – grifo meu).

Sendo assim paralelos, processos fisiológicos e processos psicológicos não se confundem, embora estejam estreitamente conectados entre si. Daí a localização das representações nas células nervosas ser, para Freud, um grande equívoco. O correlato fisiológico da representação não deve ser algo em repouso, mas alguma coisa da natureza de um processo, cujas propriedades devem ser definidas por si mesmas e independentes de seu correlato psicológico. O mesmo vale para os processos psicológicos: sua estrutura interna independe das estruturas anatômica e fisiológica, e deve ser abordada em seus próprios termos.

Para alguns comentadores, como Bruno (1971) e Solms e Saling (1986; 1990), esse teria sido o momento de mudança formal do pensamento conceitual de Freud, o “elo perdido” entre seus anos neurológicos e psicológicos. Para outros, como Sulloway (1979), nada haveria da ordem de um corte, mas ao contrário uma síntese entre psicologia e biologia. Outros, como Rizzuto (1989) e Garcia-Roza (1991), preferem ressaltar a importância do texto como sendo a primeira construção de um modelo de aparato psíquico, ainda que se especializasse em um aparato de linguagem, implicando a formulação de noções como as de representação-objeto e representação-palavra.

De fato, a monografia de 1891 contém a formulação inicial de conceitos importantes, que irão operar como elementos de outros conceitos especificadores do campo da psicanálise. Determiná-la como o ponto de mudança formal do pensamento de Freud é forçar uma marcação histórico-epistemológica. Afastar-se da pesquisa em neurologia não significou, para Freud, o abandono dos pontos de vista assumidos. Pelo contrário, sua manutenção foi produtora da própria psicanálise.

Voltando à questão da concomitância dependente, se tinha ficado clara para Freud a relação paralela e de ação recíproca entre as séries fisiológica e psicológica, um outro problema permanecia enigmático: o que acontece no momento a partir do qual à série fisiológica há uma série psicológica correspondente, simultânea e paralela? Serão precisos poucos anos mais para que uma resposta seja esboçada, com a retomada da noção de limiar em outro contexto teórico.

Em janeiro de 1895 Freud publica um artigo em que propõe uma nova entidade nosográfica, a neurose de angústia (1895a). Diferenciando-a da angústia histérica, Freud conclui que nessa neurose recém-definida, a angústia tem sua fonte nos assim chamados “fatores físicos da vida sexual”. A impossibilidade, pelos mais variados motivos, de transpor a tensão sexual física para o plano psíquico acarretaria um acúmulo exacerbado dessa tensão e sua conseqüente descarga motora através, por exemplo, de taquicardias, hiperventilação, tremores etc. Sua hipótese na ocasião era: para que uma excitação endógena sexual faça-se notar psiquicamente, ela deve atingir um certa intensidade, a partir da qual será valorizada e entrará em relação com os grupos de representações capazes de engendrar a solução específica. Dito de outro modo, a tensão sexual física deve atingir um certo valor acumulado para despertar a libido psíquica. Uma vez transposto esse limiar, o grupo de representações sexuais presente na alma seria dotado de “energia” – ou seja, o estado psíquico de tensão libidinosa seria gerado e levaria ao esforço para cancelá-lo. O limiar da consciência do texto de 1888 reaparece aqui como explicação etiológica de um tipo de neurose5.

Mas o que quer dizer “representações dotadas de energia”? Para Freud, evidentemente não se tratava de propor que a energia sexual física se transformasse em energia psíquica, mas de valorização psíquica de uma excitação física recebida pelo aparato anímico.

Se, para fixar melhor nossas representações sobre isto, supusermos que a excitação sexual somática se exterioriza como uma pressão sobre uma parede provida de terminações nervosas, as vesículas seminais, então, esta excitação visceral aumentará de modo contínuo, mas apenas a partir de certa altura será capaz de vencer a resistência da condução interpolada até o córtex cerebral e exteriorizar-se como estímulo psíquico (1895a, p. 108).

Se Freud arrisca aqui e ali a noção de limiar, ele não a desenvolve a ponto de utilizá-la como explicação geral da passagem da cadeia material para a cadeia psíquica. Seu uso é hipotético, local e bastante circunscrito. Para Freud somente uma coisa era certa: as cadeias material e psíquica são concomitantes dependentes, paralelas e de ação recíproca. Quaisquer afirmações sobre o modo como se dá a conexão entre elas eram, e até hoje ainda parecem ser, apenas hipóteses.

Dito de outro modo, é preciso considerar – e não apenas teoricamente, mas clinicamente também – a simultaneidade dos processos em jogo e a sua articulação em rede. De modo que o recurso tão freqüentemente utilizado – tentativas de explicação causal dos fenômenos clínicos – revela-se ingênuo e insuficiente. A relação entre as causas em operação é de ação recíproca formando um sistema complexo, no qual é impossível decidir sobre a causa primeira: somos uma conjugação entre o que trazemos à vida e o que a vida nos traz.

 

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Endereço para correspondência
Monah Winograd
Rua Prof. Luiz Cantanhede, 130/ 302 – Laranjeiras
22245-040 Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 2558-8772
E-mail: winograd@uol.com.br

Recebido em 17/02/04
Versão revisada recebida em 30/07/04
Aprovado em 05/08/04

 

 

Notas

I Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Pesquisadora do Departamento de Psicologia da PUC-RJ/FAPERJ.
1 Este trabalho resulta de pesquisa realizada com o apoio da FAPERJ por meio de seu programa de fixação de pesquisador.
2 Em 1888 Freud terminou de escrever três artigos, Cérebro, Afasia e Histeria para o primeiro volume do Handwörterbuch der gesamten Medizin, um dicionário de medicina geral em dois volumes, editado por Albert Villaret. Apenas o artigo Histeria consta da edição das obras completas, ainda que, como os outros dois, não tenha sido assinado por Freud. Para uma discussão sobre o estabelecimento da autoria desses textos, cf. Solms e Saling, 1990.
3 Nesse e nos próximos quatro parágrafos baseio-me, de modo aproximado, na argumentação de uma pequena parte da bela apresentação desse artigo feita por Pierre Bruno (1971).
4 Para Solms e Saling (1986), o paralelismo de Freud era tributário do paralelismo psicofísico de Huglings Jackson.
5 Esta idéia de um limiar também estava presente no manuscrito que Freud escreveu nesse mesmo ano, o Projeto de psicologia. Em termos muito gerais, ele constrói um aparato neurônico e propõe que entre os neurônios existiriam “barreiras-de-contato” a serem ou não transpostas, de acordo com a relação entre sua resistência e a quantidade de excitação em trâmite. Uma vez vencida a resistência da barreira-de-contato, haveria uma espécie de memória neurônica, representada por Freud com o termo “facilitação”. Ou seja, uma nova excitação tenderia a repetir o caminho percorrido anteriormente, uma vez que as barreiras-de-contato já estariam “facilitadas” – cf. Garcia-Roza (1991); Freud (1895b).