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Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.8 no.15 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e filosofia: uma relação entre experiência psicanalítica e atividade filosófica

 

Psychoanalysis and Philosophy: a relationship between psychoanalytical experience and philosophical activity

 

 

Ondina Pena PereiraI

Universidade Católica de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A relação entre Psicanálise e Filosofia é aqui tematizada por meio de duas estratégias. A primeira aborda a clínica psicanalítica pela perspectiva do divã, isto é, das representações/teorias que os analisandos constróem sobre a sua vivência desse espaço/tempo especial. Tais representações indicam a miséria simbólica do mundo contemporâneo e apontam as dimensões ritual, poética e principalmente trágica da cena analítica. A segunda procura aproximar teoria psicanalítica e filosofia por meio do pensamento de Nietzsche e de Rosset, quando se reencontra a teoria dos analisandos e se compreende a cena analítica como lugar da experiência trágico-poética de reinscrição do sujeito no mundo; assim a teoria analítica é lugar de desconstrução da ilusão de unidade do sujeito do conhecimento.

Palavras-chave: Trágico, Cena analítica, Miséria simbólica, Ritual, Poesia.


ABSTRACT

The relationship between Psychoanalysis and Philosophy is viewed by two strategies. The first one, approaches the clinic through the perspective of patient, that is, through the representations/theories that the patient constructs with his experience of this special space/ time. Such representations indicate the symbolic misery of the contemporary world and point the ritualistical, poetical and, mainly, tragical dimensions of the analytical scene. The second one, looks for an approach to the psychoanalytical theory and the philosophy mainly in the the thoughts of Nietzsche and Rosset, enabling us to concieve the theories made by patients and understanding the analytical scene as place of the tragic-poetical experience of reinscription of the subject in the world. Thus, the analytical theory is a place of desconstruction of the illusion of unit of the subject of knowledge.

Keywords: Tragic, Analytical scene, Symbolic misery, Ritual, Poetry.


 

 

A relação entre Psicanálise e Filosofia apresenta-se aqui em duas faces: a primeira trata da forma pela qual a cena analítica, no sentido de sua prática clínica, inscreve-se na sociedade contemporânea; a segunda trata das relações teóricas entre o pensamento psicanalítico e a filosofia trágica.

Ao tratar da primeira face, não se adota a perspectiva do psicanalista nem se recorre à teoria psicanalítica, mas tenta-se, deixando-se influenciar pelo método clássico da antropologia – de busca do ponto de vista do nativo –, escutar as representações que os analisandos constróem sobre a sua vivência da cena, compreendida como o espaço/tempo especial onde encontram um outro, ao mesmo tempo íntimo e estranho, que os escuta. A escolha da perspectiva do divã, ou seja, da perspectiva daqueles que se submetem ao processo justifica-se, na medida em que ela é capaz de revelar na cena analítica certas dimensões que se tornam mais visíveis com a utilização de outros instrumentos teóricos, diferentes das teorias do psiquismo. Tal abordagem tornou-se possível por meio da análise de entrevistas realizadas com um grande número de analisandos1, que em fases diferentes do processo analítico dispuseram-se a dar seus depoimentos sobre a forma como vivenciam aquele espaço/tempo.

Neste primeiro momento o que está em questão não é o sistema de conceitos, mas o vivido, gestado com e contra esse sistema. Parte-se da seguinte pergunta: o que significa para aquelas pessoas que se submetem a um processo de análise, a freqüentação dessa cena em nossos dias, tendo em vista que ao tentarmos descrever o mundo contemporâneo e a cena analítica, pelo menos à primeira vista estaremos diante de duas realidades estranhas uma à outra. Por um lado, o mundo contemporâneo tem sido insistentemente descrito por vários autores e de variadas formas como um mundo pragmático, que se organiza de modo a fornecer respostas programadas, sempre fáceis e imediatas, anteriores à demanda, fiéis ao que se poderia chamar de um hedonismo superficial e distante das experiências de angústia e de dor2. Por outro lado, a cena analítica é conhecida por se constituir como um longo percurso, uma longa tessitura verbal, de rememoração, que é dolorosa e sobre cujo desfecho paira a dúvida. Nesse sentido, ela poderia ser reconhecida como uma das instâncias na sociedade contemporânea que ainda resguarda o elemento trágico das nossas existências.

O que se percebe é que apesar de tantas mudanças, e do desenvolvimento de tantas técnicas terapêuticas que prometem efeitos curativos rápidos, uma camada da classe média urbana3 procura a cena analítica.

Em um primeiro momento o que as mobiliza é o sofrimento pessoal, e a demanda é a de livrar-se dele. Mas depois de um certo ponto do processo, alguma coisa muda. Tendo havido cura ou não daqueles sintomas que as levaram à análise, as pessoas aí permanecem. É justamente essa permanência na cena – que parece realizar um movimento suplementar para além da cura e gerar um efeito de um outro tipo na existência dessas pessoas – que suscitou investigação.

Os depoimentos a seguir autorizam tal leitura: “o divã tornou-se para mim aquilo que ele é: o privilégio de ter à disposição um lugar mágico, em que esqueço o lado útil da vida e começo a falar de coisas que pareciam estar encantadas. Eu embarco nesse encantamento, no prazer e na dor de conseguir desvendar o enigma de um sonho”. Ou: “as minhas queixas mais urgentes se resolveram, mas eu continuei indo lá, um pouco encantada, talvez, com as possibilidades de fala que eu ia descobrindo em mim, um desejo de aprimorar essas falas que pareciam sutilmente provocar mudanças no meu cotidiano”.

A partir da análise dos vários depoimentos, começou-se a perceber o esforço de trazer à tona a miséria simbólica a que estão submetidas no mundo atual, o que dá origem ao desejo de constituição de uma cena que torne possível sua entrega a uma forma de existência contrária à do automatismo cotidiano – “a minha sensação ao falar era a de que estava sonhando acordada (...) ou que estivesse falando enquanto sonhava, enquanto dormia” –, e cultivar uma posição filosófica de dúvida e de desestabilização de si mesmas e do que as circunda: “eu me permitia algo que não me permitia fora, que era uma certa fragmentação do meu mundo”. O que se percebe, assim, é que uma outra queixa vai agregando-se à queixa inicial de uma vida pessoal sofrida: a de que é o próprio mundo que se tornou sem encanto, sem poesia, em uma palavra, dessimbolizado.

A primeira dimensão da cena à qual os depoimentos aludem é a sua dimensão ritual e poética, no sentido deque o rito e a poesia têm por função desfamiliarizar a realidade do senso comum, cotidiana, e introduzir em um contexto onde nossa fantasia do Todo ganha terreno. Eis uma fala que, entre muitas outras, sintetiza essa idéia: “o fato de entrar por uma porta e sair por outra ritualiza a sessão. Impõe regras. Eu vivi como um renascimento o fato de ter a analista sempre atrás da minha cabeça. A posição é a mesma. As psicanalistas são as novas parteiras”. E é essa fantasia que tem o poder de nos devolver o espanto, o estranhamento diante da naturalidade dos gestos e comportamentos cotidianos fragmentados.

Ao pensar sobre e sob esse efeito de estranhamento, os analisandos aproximam-se daquilo que poderia ser considerada uma atividade filosófica, se essa atividade for compreendida como o exercício da dúvida, da inquietação, da incerteza, em suma, como o questionamento de todas as coisas que parecem fundadas. Conforme um dos depoimentos: “a análise é o questionamento de tudo que foi confirmado, não por nós”.

Os comentários sobre essas conversões que se processam no cotidiano levaram à construção de uma concepção da cena analítica como uma espécie de potlatch contemporâneo, na medida em que nos introduz em relações que não podem ser reduzidas a explicações, fundamentadas em uma economia (de bens, de linguagem, psíquica etc). O potlatch é um sistema de trocas encontrado por Mauss (1988) entre os povos do noroeste americano, cujo fundamento é a convicção de que o valor localiza-se na troca em si e não nos bens trocados. O grande interesse das trocas é a intensidade das relações sociais que elas proporcionam. Baudrillard (1976) chamou-as de trocas simbólicas, justamente porque são trocas que se constituem em um fluxo ininterrupto de dom e contra-dom, introduzindo-nos no universo do dispêndio luxuoso.

Utiliza-se essa idéia de potlatch como uma chave teórica que se aproxima das transformações operadas pela cena analítica, justamente porque é um acontecimento cuja compreensão desencoraja o recurso a qualquer explicação do tipo econômico e pragmático. É algo a ser pensado como gasto, festa, obra de arte ou poema, porque é nessas práticas que alguma coisa é retirada do fluxo útil e econômico e revertida em uma troca inútil e sacrificial, em que o que está em jogo é a consumação e não propriamente o consumo (Baudrillard, 1976). Dessa forma é que: “é um espaço privilegiado, um palco todo meu, onde realizo, mesmo sem talento, meu sonho de ser artista, quer dizer, de ser adulta”. Ou ainda: “é o espaço abissal da subjetividade”.

A idéia de consumação em oposição à idéia de consumo remete à noção de que a cena analítica não se deixa reduzir a um olhar afinado com a praticidade e utilidade dos comportamentos cotidianos porque exige uma outra posição diante do mundo, das coisas e de si mesmo. Exige que se volte justamente para aquilo que, visto com olhar pragmático, pareceria inútil.

Recorre-se a Bergson (1979), em sua tentativa de mostrar que para além do olhar intelectual, científico, que garante a produção de conceitos, que por sua vez visam a tornar mais agradável e mais fácil a sobrevivência, há ainda o olhar intuitivo, que alcança a realidade na sua intimidade, na sua “duração pura”. Eis algumas falas: “tudo aquilo que parece inútil no cotidiano, sonhos, pensamentos loucos, fragmentos de lembranças infantis, tudo isso toma outro peso e ganha outro sentido”. Ou: “naquele lugar eu saio da prevalência do automatismo, do discurso habitual, rompendo com um certo tipo de relação com a vida e instalando uma outra, em que busco em mim, em minhas lembranças mais remotas, alguma base para uma experiência de diferenciação do habitual, para uma experiência singular”.

O olhar habitual ou científico fixa a realidade em contornos definidos por meio dos conceitos (o que nos dá a segurança de poder agir nesse mundo), mas com isso perde a riqueza de seu movimento.

O olhar intuitivo, entretanto, violenta o sentido dessa operação conceitual e recupera essas perdas porque lança mão de uma linguagem mais fluida, mais alusiva, mais poética, que é capaz de dar passagem à sinuosidade fugidia do real. Para isso é preciso resistir à tentação de separar as coisas fixas – que nos aparecem ao olhar – da sua maneira fugaz de aparecer, ou seja, as coisas são sempre repletas de reservas, como em uma realidade inesgotável (Bergson, 1979).

Pode-se, nessa linguagem, abrir mão do rigor do conceito – que estabelece relações entre os objetos – em favor do rigor do contato íntimo com o objeto singular, justamente porque não se persegue resultado prático, útil. O que se quer é, ao contrário, neutralizar a instância seletiva que instrumentaliza as ações, e com isso recuperar as realidades sacrificadas por nosso “eu prático”. Por isso é possível falar da cena analítica recorrendo às noções como as de dispêndio luxuoso, de sacrifício, de potlatch.

A começar, por exemplo, pela idéia de tempo, de dispêndio de tempo, de lentidão do processo de análise, em relação à exigência de pressa no cotidiano e ao nosso insistente álibi de falta de tempo, forjado a partir da constatação da aceleração dos acontecimentos no mundo moderno (Virilio, 1989). É o que diz o depoimento seguinte: “tenho muito carinho por uma espécie de ética da lentidão, que nós perdemos. Na ética da lentidão existe a possibilidade, ainda não descoberta, que é a de as coisas se encadearem segundo o encadeamento próprio delas (...) A ética da lentidão implica uma ética da alteridade”.

Por meio dos depoimentos pôde-se constatar que a cena analítica altera nossa relação com o tempo em vários sentidos, mas principalmente à medida que não responde às demandas de solução urgente, e que desloca a atenção de um fim a atingir para o percurso. Com isso pode prolongar-se, sem provocar sensação de perda de tempo, já que o tempo deixa de ser acumulado economicamente (como seria a exigência da vida prática), deixa de ser a medida abstrata de uma sucessão progressiva para ser escoado segundo sua dimensão própria.

Seria a dimensão própria a memória-souvenir de Bergson (1979), na qual acontecimentos passados podem se tornar cada vez mais presentes, aguçando minúcias, detalhes, cores, reflexos, ecos, ao passo que a sua memória-prática é acelerada e seletiva. Pode-se ver aí uma ligação entre lentidão e memória e entre velocidade e esquecimento, na qual o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória (como a memória-souvenir, a memória inútil, da melancolia), enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento (como a memória prática, a memória útil, do luto).

Pode-se dizer que a lentidão é tempo despendido de uma maneira ostensiva. Isso significa que é um ritmo contrário à tradição, que segundo Baudrillard (1976) vem desde o Renascimento, refina o olhar guiado pelo princípio da utilidade e da praticidade, criando oposições distintivas e ocultando certos termos dessas oposições. Por exemplo, na oposição vida/morte: se nos grupos primitivos a morte faz parte da vida, das trocas, se na Idade Média a morte é vivida como teatro coletivo, na Modernidade ela pára de circular, é extraditada, banida. É o momento do nascimento do sistema da economia política, no qual tudo começa a circular submetendo-se ao equivalente geral. Em última instância, o que se acumula é o tempo (o tempo de trabalho). Mediante o tempo, a morte aparece como raridade absoluta. Ela é o equivalente geral, enquanto na lentidão da cena analítica a morte volta a circular, é simbolizada nas falas. Tal é o que conta esse fragmento de fala: “tudo para mim é uma questão de moradia, é isso, é a moradia... a moradia ou amor à noite?”. Pergunta o analista e escuta em seguida: “amor na noite, a morna noite, a morte na noite, a morte no amor, o temor no amor, o temor na morte, a morte, amo-te”.

Essa dimensão da cena analítica como um lugar no qual a morte circula nas falas dá à linguagem, à troca de palavras, ao texto que se constrói, algumas dimensões importantes. Uma delas é a dimensão poética, justamente aquela que realiza a desaprendizagem das significações cotidianas para dar passagem ao insólito. Assim, Blanchot fala da escrita poética como a escrita na qual a morte é feita palavra, Mallarmé fala da poesia como uma purificação da ausência, Kafka fala dela como morte contente. Em suma, a presença da morte nas falas não significa a referência à morte concreta. O que se busca é a expressão da ausência, do nada, do vazio, que ao ser acolhido dá espaço à totalidade da vida. Seu acolhimento tem ao mesmo tempo o sentido da prodigalidade, do excesso, do luxo que demole as redes de significação habituais, os códigos racionalmente construídos, para que se pratique a livre-associação, as palavras sem controle, forma pela qual as palavras circulam na cena – “foi aí que percebi que estava saindo daquele domínio da busca da palavra certa para falar de mim mesma de uma forma desordenada, onde eu lembrava de uma coisa do passado, de um pedaço de um sonho, de uma palavra que minha avó me disse um dia”.

O esforço que o analisando faz para reconstituir a textura do passado é amparado na ousadia da improvisação, e é pleno de fantasia, já que na perspectiva do entrevistado “o divã é uma piscina onde a gente nada de costas, mas nem tudo é azul”. Nem fantasia nem improvisação comprometem a verdade da narrativa, mas a consolidam. Não vêm para esconder, desviar ou camuflar, vêm para recriar, reinventar, e com isso dissipar a inércia e a fixidez de certos sentidos. É possível dizer que a linguagem na cena não é referencial, mas anagramática, de tal forma que possa dar lugar a trocas assim: “–Eu me sentia atraída por ele. – Ah, sim, quem era a traída?”. O anagrama seria na verdade uma anti-linguagem, uma contra-hermenêutica (Baudrillard, 1979), que trabalha no sentido de implodir as significações e as crenças construídas por uma pessoa durante sua vida, abrindo espaço para a experiência do vazio, única forma pela qual nossa ordenação usual das coisas no mundo pode ser submetida à incerteza e à indeterminação dos valores e dos sentidos.

Incerteza e indeterminação lançadas, por exemplo, sobre as identidades modernas, de indivíduos sós e separados (Elias, 1994), vivendo em um mundo desencantado, ou em um mundo cujo encantamento refluiu para a esfera da intimidade, aqui entendida como a internalização, pelos indivíduos, de todas as realidades que outrora foram partilhadas socialmente e que depois foram banidas.

Com a modernidade, a vida em comum torna-se secundária em relação à evidência do indivíduo como valor (Elias, 1994). Passa-se a viver a oposição indivíduo/sociedade sem dar conta da promiscuidade entre os dois termos. E recebe-se como golpes ao narcisismo todos aqueles que vieram dizer que o indivíduo é entrelaçado a uma rede social, que a autonomia, a supremacia, é uma condição imaginária e efêmera. É a própria sociedade dos indivíduos que deixa o retorno sobre si mesmo como única possibilidade de reencontro com a totalidade perdida. Outro golpe viria daqueles que mostraram que a vivência do eu como um si mesmo é um acontecimento com data marcada, que outras sociedades e outras culturas viveram experiências diferentes, experimentaram um “eu relacional” sem um centro de identidade e atado a uma rede mítica. A referência aqui é a sociedade dos melanésios, descrita por Leenhardt (1985). O “eu” nessa sociedade só é referido na medida em que está relacionado a um outro: eu e o totem, eu e o ancestral, eu e meu tio materno. Não há centro de identidade. O centro é deixado vazio.

Na cena analítica, de acordo com o depoimento dos entrevistados, há a ocasião de nos vermos como esses personagens que seguem um script ditado por uma ordem como a dos melanésios, sócio-mítica. Aquilo que parece radical-mente outro ao olhar habitual, essas estranhas criaturas sem corpo próprio, sem identidades fixas, ligadas a redes, e descobre-se serem nós mesmos, camuflados pela crença de sermos naturalmente singulares e autênticos. Percebe-se a ilusão de autonomia em que se vive ao caminhar da posição do indivíduo que se acredita ser a uma complexa rede em que se vê encerrado. A partir de então, vê-se diante da possibilidade de desfazer esses laços, ou simplesmente, diferenciar-se das redes e desejar, realizar escolhas, que são sempre circunscritas pela linguagem que se fala, pelos padrões culturais em que se vive. Diz um dos entrevistados: “A psicanálise, como a relação amorosa, deixa nosso corpo nu. O que enxergamos não é sempre o corpo ideal, mas ele é visível e eu não posso mais evitar sua dolorosa imagem”.

Esses padrões deixam de ser exteriores porque passam a ser o próprio exterior, que é visto como intersubjetividade, relação viva e tensão entre os indivíduos. Assim, ao contrário de uma realidade exterior a cada um, o social investe, solicita e ameaça, ao mesmo tempo, na medida em que cada um se perde e se reencontra na relação com o outro. A consciência desse entrelaçamento coloca-nos diante do paradoxo da alteridade e da identidade, e é o efeito de um processo de dilaceramento que se realiza na presença de um outro, com o qual se estabelece uma dialogia de um tipo especial, só possível com a instalação daquilo que se chama transferência, que permite entregar-se a um processo de desmantelamento das certezas, das miragens, de nossas crenças (DeWaelhens, 1974).

O processo só pode ocorrer onde há ainda uma dimensão ritual, algo que garanta o estabelecimento da distância simbólica necessária ao avanço à esfera da intimidade. Como em um rito de passagem, os analisandos são seres em estado liminar, ou seja, eles sofrem um prolongado processo de desaprendizagem e descondicionamento do que acreditam ser suas naturezas. Passam, para isso, por uma experiência de mortificação e aniquilamento, como os neófitos nos ritos iniciáticos (Turner, 1974; Van Gennep, 1969). Entretanto, esse estado liminar, que para os neófitos é intermediário entre uma certa condição e outra (da condição de seres biológicos à condição de seres sociais), para os analisandos parece ser a própria condição que se busca atingir e na qual se almeja permanecer: um estado permanente de indefinição, de incerteza, de inquietação. Detecta-se aí uma outra dimensão da cena, que é a sua dimensão trágica, já que leva o analisando ao reconhecimento da inexistência de solidez, de um sentido definitivo, ou seja, à assunção da imprevisibilidade constitutiva da existência.

É essa dimensão da imprevisibilidade que reenvia à segunda face da relação que se pretende estabelecer entre inconsciente e filosofia trágica. Agora essa relação se faz por meio de uma reflexão sobre a psicanálise – não mais como prática mas como teoria – e a noção de verdade. Isso porque é comum aparecer nos debates entre a psicanálise e outras áreas do conhecimento, principalmente a filosofia, a idéia segundo a qual nenhuma forma de saber está mais apta a dizer sobre o que é a verdade do que a psicanálise, não por causa de um longo acúmulo de conhecimentos, mas porque fala de um lugar que permanece fora do alcance do discurso do conhecimento, o outro da razão (Stein, 1997).

É a verdade vista a partir de uma “outra cena” contra o “discurso universitário”. Nesse tipo de visão, as construções conceptuais do discurso universitário seriam consideradas como construções determinadas por instâncias afetivas elementares, que comprometem o seu valor cognitivo, o seu valor de verdade. A verdade é, nesse sentido, sintoma. Alguém que declara possuí-la esconde-a, mais do que a revela.

Evidentemente a teoria psicanalítica não pode escapar de fazer essa pergunta sobre si mesma, sob pena de se auto-condenar a esconderijo da verdade. Interessante pensar, então, onde deve se apoiar um saber que se autoriza a falar da verdade como um sintoma. É necessário que seja, no mínimo, em uma atitude de abstenção quanto a afirmações com alto grau de certeza, contentando-se com afirmações provisórias e frágeis.

Esse tipo de pensamento – que se abstém de afirmações com alto grau de certeza – elabora-se radicalmente no chamado “pensamento trágico”, no sentido de Clément Rosset. Ele nasce da assunção de que “faz parte da natureza de toda verdade, qualquer que seja seu gênero, ser duvidosa” (Rosset, 1989, p. 32). O filósofo apóia-se em uma passagem de Montaigne quando diz que duvida:

que Epicuro, Platão e Pitágoras tenham acreditado seriamente em suas teorias dos átomos, das idéias e dos números. Eram demasiado sábios e prudentes para crerem em coisas tão incertas e tão discutíveis. O que na realidade pode assegurar-se é que, dada a obscuridade das coisas do mundo, cada um desses grandes homens procurou encontrar uma imagem luminosa delas. Seus espíritos acharam explicações que tinham pelo menos uma certa verossimilhança e que, embora não averiguadamente verdadeiras, podiam manter-se contra as oposições contrárias (Rosset, 1989, p. 31).

Nessa perspectiva de Montaigne, segundo Rosset, todo autor acaba por duvidar de suas próprias produções. Somente um saber desse tipo, habitado por uma dose autodestrutiva de ceticismo, pode se dar ao luxo de apontar como sintomas as verdades enunciadas com a certeza própria do fanatismo. Sobre estas, o trabalho da dúvida mostra-se eficaz. Sobre aquelas que já se sabem, por si próprias, incertas e duvidosas, o trabalho da dúvida mostra-se inútil.

Pode-se dizer que a teoria psicanalítica, ou uma certa interpretação dessa teoria, tem ecos dessa “verdade filosófica”. Isto é, dessa verdade filosófica compreendida não no seu aspecto de certeza, mas no seu “poder de dissipar idéias muito mais falsas do que a verdade que ela enuncia ao contrário” (p. 34). Nesse sentido, a verdade filosófica por excelência seria aquela que se dispõe a extirpar idéias que se dão o ar de certeza, não evidentemente com uma outra certeza, mas exatamente com a dúvida, com a confissão da fragilidade com relação à imprevisível ameaça do mundo. Isso quer dizer que é preciso reconhecer que não é possível apostar em uma relação estável, sólida, com os objetos, já que a solidez e as regras com que nos construímos como sujeitos do conhecimento são ilusões.

Não há como deixar de apontar nesse pensamento trágico uma forte influência de Nietzsche e sua famosa afirmação de que “não há fatos, mas somente interpretações”. No texto A gaia ciência, no qual Nietzsche fala desse perspectivismo, chamado O nosso novo “infinito”, lê-se:

Espero, contudo, que estejamos hoje longe da ridícula pretensão de decretar que nosso cantinho é o único de onde se tem o direito de possuir uma perspectiva. Muito pelo contrário, o mundo, para nós, voltou a tornar-se infinito, no sentido em que não lhe podemos recusar a possibilidade de se prestar a uma infinidade de interpretações (...) só podemos ver com nossos olhos (1984, p. 287).

Não se trata nesse trecho da defesa de um relativismo empirista. Muito mais do que isso, o perspectivismo de Nietzsche é uma crítica implícita da noção hegeliana de um saber absoluto. Vemos aí justamente a idéia de que todos os juízos humanos são sintomas, pois não há metalinguagem, verdade absoluta, a partir do que a interpretação pudesse ser definitivamente fundada na razão e atingir finalmente a condição de verdade. Nas palavras de Stein, “não existe, portanto, uma filosofia neutra, universalizada, fora de um espaço afetivo, emocional” (1997, p. 165).

A importância da psicanálise para a filosofia é justamente que com a noção de inconsciente, Freud mostrou a impossibilidade de um fechamento sobre si do discurso, ou seja, do projeto de uma perfeita transparência do sujeito sobre si mesmo. Em outras palavras, o analista não detém o saber absoluto; suas interpretações são, elas mesmas, infinitamente interpretáveis por ele e por um outro. Não há fatos, mas interpretações. E o analista não pode jamais se deixar iludir por algo que suporia ser uma explicação verdadeira. Quando muito, é capaz de fornecer uma interpretação eficaz, produtora de novos sentidos e de novas dúvidas.

Isso quer dizer que o indivíduo que se analisa tem que se ver como irremediavelmente finito, destinado a se confrontar sem cessar com essa parte de obscuridade, que se poderia concordar em chamar de inconsciente. Nesse sentido, ele adotaria uma perspectiva trágica, ou seja, desfaria a ilusão de unidade, de sujeito absoluto perfeitamente transparente e senhor de si, na medida em se depare com o silêncio, com o indizível, com o que não se pode, na interpretação, reduzir a algum sentido fixo, a alguma essência.

No entanto, além do indivíduo que se analisa, o existente, interessa refletir aqui sobre o sujeito do conhecimento, o qual também há de se ver diante do fato de que não há uma filosofia acima do espaço afetivo. Os estudos filosóficos, se submetidos a análise, revelariam o desejo inconsciente (segundo a psicanálise) ou a vontade de potência (segundo Nietzsche). A filosofia, tanto na perspectiva nietzscheana quanto na perspectiva da psicanálise, é um trabalho de representação, de expressão, que deixaria sempre algo na sombra, irrecuperável pelo seu próprio discurso, porque na sua origem está um combate incessante de forças, em que cada uma quer afirmar sua própria perspectiva contra todas as outras.

Não só a filosofia mas também a teoria psicanalítica, ao se constituir como um sistema de sentido, é ela própria um trabalho de representação, e como tal, resultado de embates de perspectivas que permanecem na obscuridade. Sobre isso basta pensar, por exemplo, no conceito de pulsão de morte, tal como o examina Baudrillard (1976). Trata-se de uma idéia trágica por excelência enquanto ainda não foi transformada em um conceito teórico, em uma verdade objetiva, mas mantida no seu limite, como mito. Vista dessa perspectiva, a idéia de pulsão de morte tem um caráter de ruptura, de desconstrução de todo o pensamento ocidental sobre a morte, na medida em que dá à morte uma contrafinalidade radical: a involução a um estado anterior e inorgânico, esse “não acontecimento por excelência”, que é reproduzido pela compulsão à repetição. Nesse sentido é que ela é uma proposta trágica – enquanto não reivindica para si o caráter construtivo de “verdade”; enquanto permanece nos limites da desconstrução que opera, submetendo-se ela própria à dúvida e à incerteza, e trazendo dúvida e incerteza para todo o edifício teórico da psicanálise.

Vê-se, pois, que essa dimensão trágica parece constituir-se como um terreno onde não só experiência analítica e filosofia dialogam – na medida em que são ambas obrigadas a se confrontar com a imprevisibilidade constitutiva da existência –, mas também onde se deve explicitar incessantemente os limites da objetividade, tanto da filosofia, quanto da teoria psicanalítica.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ondina Pena Pereira
SQN 404 / Bloco O / 207
70845-150 – Brasília/DF
Tel.: (61) 328-9632
E-mail: ondinapena@brturbo.com

Recebido em 02/02/04
Versão revisada recebida em 16/08/04
Aprovado em 17/08/04

 

 

Notas

I Mestre em Filosofia pela UFMG; Doutora em Antropologia pela UnB; Professora da Universidade Católica de Brasília.
1 As entrevistas estão integralmente publicadas em livro de minha autoria intitulado No horizonte do outro (Pereira, 1999). O limite de número de páginas de um artigo obriga-me a restringir sua apresentação a apenas algumas falas mais significativas no presente contexto.
2 A começar, por exemplo, por Arendt (1993), que analisa a condição banal da busca da felicidade no mundo moderno em comparação à Antigüidade Grega e sua existência política; também Baudrillard (1983, 1979, 1976), para quem vivemos na modernidade sob o imperativo do gozo e sob a metafísica dos códigos, encarregada de produzir (pro-ducere) o mundo e ocultar o real; Virilio (1989), que descreve um mundo invadido por formas aceleradas de comunicação e de locomoção, as quais destroem o prazer do percurso; Sennett (1998), segundo o qual a modernidade constitui-se como uma tirania da intimidade, ao reduzir a busca da felicidade ao prazer genital.
3 Não se trata aqui de afirmar que apenas a classe média procura análise, mas somente que entre as noventa entrevistas realizadas, todos os entrevistados pertencem a essa classificação.