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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.15 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

A paranóia como crise da autoridade. Ou, não é só porque você é paranóico que não tem ninguém lhe perseguindo

 

Paranoia as crisis of authority: Or being a paranoiac does not mean that you are not being persecuted

 

 

Pedro Luiz Ribeiro de SantiI

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão
Escola Superior de Propaganda e Marketing. Faculdade de Comunicação Social

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo parte do livro de Eric Santner, A Alemanha de Schreber: uma história secreta da Modernidade. Da perspectiva sociológica do autor, que estabelece relações entre o modo de funcionamento da paranóia e determinadas características da autoridade na Modernidade, discuto a paranóia de Schreber recorrendo a três dimensões. Em primeiro lugar apresento dados históricos sobre a família de Schreber. Em segundo apresento brevemente algumas formulações da psicanálise sobre a paranóia: de Freud a autores contemporâneos. Em terceiro confronto a tese de Santner com minha compreensão das relações entre a psicanálise e a Modernidade. Tanto do ponto de vista da Modernidade quanto da psicanálise, trabalhei as conseqüências de experiências de intromissão sem uma condição de continência ou intermediação.

Palavras-chave: Paranóia, Modernidade, Autoridade, Intromissão, Cultura.


ABSTRACT

This article was stimulated by Eric Santner’s book, Scherber private Germany: a secret story of modernity. Santner established some relations between paranoid functioning and some characteristics of authority in Modernity, I discuss Schreber’s paranoia from three dimensions. We present historical data about Schreber’s family. Then we briefly present some psychoanalytic formulations about paranoia: from Freud to contemporary authors. At last, we try to confront Santner’s thesis with our own comprehension of the relations between psychoanalysis and Modernity. Both in the Modernity and in the psychoanalytic points of view, we consider the effects of intromission experiences in the lack of a continence or intermediateness conditions.

Keywords: Paranoia, Modernity, Authority, Intromission, Culture.


 

 

Ao preparar uma série de aulas sobre o chamado Caso Schreber (1911) de Freud1, entrei em contato com uma literatura extremamente interessante, que relacionava o quadro da paranóia a questões contemporâneas. Atribuímos algumas dessas questões à Modernidade: crise de autoridade, narcisismo (como dinâmica individual ou como “cultura do narcisismo”) e violência, para citar três temas de peso.

Especificamente a leitura de A Alemanha de Schreber: uma história secreta da Modernidade – de Eric Santner – deu origem a este texto. O autor estabelece uma relação intrínseca entre modernidade e paranóia, recorrendo a análises de Elias Canetti, Nietzsche e Walter Benjamin, entre outros.

As questões evocadas situam-se em um campo de intersecção entre a reflexão teórica e clínica da psicanálise, e a reflexão filosófica ou sociológica sobre o mundo contemporâneo. Ao estabelecer este tipo de relação podemos ultrapassar um “psicologismo” na compreensão das formas de sofrimento consideradas psicopatológicas, que as tomasse como questão exclusivamente de funcionamento interno da pessoa. Daí a brincadeira que adotei como subtítulo deste texto.

O fato de Daniel Paul Schreber (1842-1911) não ter sido paciente de Freud, mas ter deixado uma obra – as Memórias de um doente dos nervos (1903) –, criou a oportunidade para que psicanalistas e estudiosos de outras áreas tivessem acesso ao mesmo material do qual Freud partiu. Isso tornou possível a discussão de sua análise e a construção de novas interpretações sobre o mesmo material. Ao longo do século XX, muito se descobriu sobre a vida de Schreber e sua família.

É importante dizer que embora vá me utilizar desta obra, não me identifico com a posição de Santner – não considero que a Modernidade seja paranóica ou produtora de paranóia, exclusiva ou especificamente – mas considero que o autor conseguiu levantar questões muito significativas sobre a Modernidade e a constituição da subjetividade. Na última parte do artigo exporei minhas diferenças com relação às suas conclusões.

Assim, pretendo apresentar elementos que contribuam para a reflexão sobre o Caso Schreber de Freud e sobre as condições para a constituição subjetiva, não restritas à estruturação paranóica. Vale dizer que não exporei a análise de Freud em detalhe; conto com um conhecimento prévio do caso pelo leitor.

Antes de apresentar e discutir as teses de Santner, informarei alguns dados biográficos de Daniel Paul Schreber e sua família. Em seguida, procurarei discriminar algumas das tendências internas à psicanálise em suas propostas para a compreensão da paranóia.

 

Alguns dados biográficos de Schreber

Na literatura pós-freudiana tornou-se comum estabelecer uma relação mais direta entre as obras do pai de Schreber – Daniel Gottlieb Moritz Schreber (18081861) – e a doença do filho. Em um determinado momento da análise, Freud interpreta os delírios relativos a Deus como uma projeção da relação com o pai, e diz que tal associação era especialmente compreensível para Schreber, cujo pai era um grande homem. Essa admiração de Freud era comum no meio médico de então.

Muito do que sabemos hoje sobre a família Schreber deve-se às pesquisas do psicanalista William Niederland, que publicou muitos ensaios entre 1951 e 1972. Os Schreber eram uma família de burgueses protestantes. Buscavam celebridade pelo trabalho intelectual desde o século XVIII. As obras produzidas pela família tinham como tema recorrente a moralidade e o bem da humanidade. O bisavô dizia: “escreveremos para a posteridade” 2.

Marilene Carone fornece um resumo das idéias de Daniel Gottlieb Moritz Schreber, pai do autor das Memórias:

[Ele] pregava uma doutrina educacional rígida e implacavelmente moralista, que objetivava exercer um controle completo sobre todos os aspectos da vida, desde os hábitos de alimentação até a vida espiritual do futuro cidadão. Acreditava que seu trabalho contribuiria para aperfeiçoar a obra de Deus e a sociedade humana (Schreber, 1984, p. 9).

Dentre várias obras publicadas, a mais importante é Kallipaedie ou educação para a beleza através da promoção natural e simétrica do crescimento normal do corpo, conhecida como Doutrinação educacional (Kallipaedie oder Erziehung zur Freiheit. Leipzig: Fleischer, 1958, apud Niederland, 1974).

Ele visava corrigir os defeitos da natureza e remediar a doçura e decadência da sociedade, criando um homem novo: um espírito puro em um corpo sadio.

A idéia básica era usar o máximo de pressão e coerção sobre a criança em seus primeiros anos, o que evitaria problemas posteriores. Se todas as instruções inflexíveis e ritualísticas fossem seguidas, aos 5 ou 6 anos a criança já não precisaria ser controlada. Mensalmente a família deveria reunir-se para julgar os maus comportamentos das crianças. Deve-se combater, naturalmente, os “inícios da paixão” com intensa oposição e luta. Niederland (1974) vê aí uma visível referência à masturbação. Moritz Schreber dizia ter praticado esse método com seus filhos. É evidente a relação desse ideário tanto com o delírio do filho quanto com o nacional-socialismo, por quem foi resgatado.

Ele ainda criou aparelhos para controlar a postura, mesmo durante o sono. Alguns lembram algumas das manipulações corporais que Schreber diz ter sofrido ao longo de sua doença. Por sua preocupação com a saúde e os benefícios do ar puro, são chamadas ainda hoje Schrebergärten pequenas áreas ajardinadas famosas na Alemanha, que seriam dedicadas a crianças.

Um biógrafo o descreve como um gigante capaz de mobilizar seus contemporâneos, e acredita que se cada século tivesse um homem como ele, o futuro da humanidade estaria livre de perigo. Esse gigante teve uma saúde bastante frágil e um “físico pobre” na infância. Em virtude da sua baixa estatura, foi impedido de prestar o serviço militar. Por meio de exercícios físicos sistemáticos, tornou-se um homem robusto, excelente ginasta, notável nadador e cavaleiro.

No prontuário de entrada de Schreber no hospício de Sonnesntein há uma referência ao pai. Ele é descrito como alguém que sofria de manifestações compulsivas e impulsos assassinos.

Moritz Schreber teve cinco filhos, dois deles homens. Ele morreu ao ter uma úlcera perfurada, mas sofria já há três anos os danos de um acidente grave, no qual uma escada caíra em sua cabeça (coisa para deixar qualquer um, paranóico ou não, boquiaberto). Há também a hipótese de que o acidente apenas tenha servido como desculpa para encobrir uma possível deterioração mental. Schreber tinha dezenove anos então. Seu irmão – Daniel Gustav (três anos mais velho) – suicidou-se em 1877 com um tiro na cabeça. O suicídio seguiu-se à necessidade de assumir um cargo importante, situação semelhante àquelas que antecederam as três internações de Daniel Paul.

Tendo permanecido o único homem da família, ele deveria arcar com a responsabilidade de ter uma descendência que levasse o nome do pai. Assim, Schreber casou-se no ano seguinte com Sabine, mas eles nunca tiveram filhos; ela sofreu seis abortos. Há quem encontre aí uma fonte para o delírio de se transformar em mulher e ele próprio gerar filhos.

Depois da segunda alta e da publicação das Memórias, em 1903, Schreber adotou uma menina de treze anos a quem, consta, tratou com atenção e carinho. Em 1972 Nierderland entrevistou-a, então com setenta e nove anos e em ótimo estado de saúde. Ela relatou lembrar-se bem do período em que fora adotada, por iniciativa de Schreber. Ele teria sido sempre caloroso e bondoso, ajudando-a nos estudos e passeando com ela. Em suas palavras, “ele era mais mãe para mim que minha mãe” (Niederland, 1974, p. 37).

Naquele período Schreber não apresentou sintomas que dificultassem sua vida prática. Ele continuou a ouvir vozes, mas elas eram apenas um ruído distante; também acreditava ter o corpo de uma mulher, com seios e outros atributos.

Ao longo de 1907 sua mãe e esposa morreram, e em novembro seu estado voltou a se deteriorar, sendo internado pela terceira vez. Marilene Carone também associa sua deterioração à visita de um grupo de estudiosos, que requeriam que ele os reconhecesse como representantes legítimos das idéias de seu pai: uma vez mais ele teria sido convocado a assumir uma investidura simbólica e sucumbido. Nessa terceira internação seu estado foi semelhante ao das anteriores; a família – que já havia censurado um capítulo das Memórias – aproveitou para retirar o livro de circulação. Em 1911 Schreber morreu de angina, ainda internado.

Ironicamente, Schreber trouxe à família a celebridade há tanto tempo almejada: sua fama estendeu-se para além da de seu pai, e ele se tornou o louco mais conhecido da literatura3.

 

Breve retomada da compreensão psicanalítica da paranóia

Desde Freud a compreensão sobre paranóia vem sendo trabalhada pela psicanálise. Gostaria de retomar aqui alguns dos temas básicos das formas de compreensão, para que possa articulá-las às questões que trabalharei adiante sobre a Modernidade. Naturalmente seria inviável dar conta da totalidade dessas teorizações no âmbito de um artigo: trata-se de um apanhado de linhas gerais entre autores clássicos.

Distingo aqui determinados fatores que têm sido recorrentemente evocados nas teorizações psicanalíticas. O primeiro põe em destaque o narcisismo e o fechamento psíquico, fator teorizado pelo próprio Freud, e muito desenvolvido por Lacan e seus seguidores – este último trabalha o fechamento narcísico em relação à falha da função paterna no complexo de Édipo. O segundo fator evidencia a dimensão da agressividade, quer do próprio sujeito em constituição, quer de um ambiente invasivo, e ganhou destaque em Klein e Winnicott. Alguns autores, mais próximos de nós cronologicamente, procuram articular estes elementos, como Laplanche, Green e Aulagnier.

 

Narcisismo e a falha da função paterna

Inicialmente apresento uma síntese do mecanismo da paranóia segundo Freud, tal como aparece no Caso Schreber. Sua origem estaria em uma defesa contra impulsos homossexuais, que seriam projetados para o mundo externo (retorno do que foi excluído sob a forma de alucinação). A repressão e a projeção seriam os dois principais mecanismos de defesa envolvidos no processo. O impulso amoroso ao objeto sofre uma dupla inversão como forma de defesa: o amor pelo ódio e o sujeito pelo objeto como fonte do impulso, resultando na fantasia de ser perseguido pelo objeto. A libido sofre uma introversão, levando à hiper-valorização narcísica do eu e ao desligamento do mundo externo. A formação delirante seria uma forma de buscar a cura, de reintegrar os fragmentos de realidade em um todo coerente (“racional”, que recusa qualquer arbitrariedade e vê sentido auto-referente em tudo, semelhante ao que ocorre na neurose obsessiva), ainda que incompatível com a interpretação compartilhada pelos demais. Com isso, o paranóico é capaz de obter um aguda apreensão endopsíquica do funcionamento da mente.

Sem dúvida, a maior contribuição de Freud nesse campo foi a formulação do conceito de narcisismo. Ele aparecera pela primeira em uma obra pouco anterior, Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci (1910), para dar conta de sua suposta homossexualidade sublimada e da fantasia primitiva de fusão com a mãe. No Caso Schreber o conceito aparece como um momento intermediário entre o auto-erotismo e a escolha de objeto, no qual os impulsos sexuais tomam o próprio eu – ainda em formação – como objeto de amor. A partir de 1914, com o texto Para introduzir ao narcisismo, o conceito ocupará um papel importantíssimo na teoria freudiana.

A noção de repressão da homossexualidade não rendeu frutos diretos. A idéia de que o mecanismo de defesa na paranóia seja a repressão foi substituída pela de que nela operam mecanismos de defesa mais primitivos.

Ao lado do narcisismo, outro tema clássico sobre a psicose na literatura pós-freudiana é a questão da falha da função paterna, teorizada por Lacan. Entre 1955 e 56, ele dedicou um de seus seminários ao estudo do caso Schreber; posteriormente o seminário foi publicado com o nome de As psicoses4.

As questões-chave à compreensão do quadro são colocadas em termos de uma forma específica de defesa e o fato de que ela incide sobre um elemento em especial. Destacarei alguns dos aspectos que interessam desses textos difíceis.

Lacan pinçou e destacou o termo Verwerfung da obra de Freud, traduzindo-o como foraclusão e atribuindo-lhe o status de conceito-chave para a compreensão da psicose. Normalmente, traduz-se o termo por “rejeição”. Freud recorreu a este termo pela primeira vez em As neuropsicoses de defesa (1894) para tratar da confusão alucinatória psicótica. Nela, o eu põe em ação um mecanismo de defesa mais radical que a repressão, com mais energia e sucesso, no qual rejeita a representação insuportável juntamente com seu afeto, conduzindo-se como se ela jamais houvesse existido; na repressão a exclusão do eu era restrita à representação. Aquela exclusão mais violenta cobra seu preço: o que foi excluído do psiquismo volta agora pela percepção, ou seja, a pessoa alucina.

Apesar do uso essencial do conceito por Lacan e pelos lacanianos, é preciso observar que o próprio Freud não recorre regularmente ao termo nem estabelece sua especificidade para a compreensão das psicoses. Como maior exemplo temos justamente o Caso Schreber, no qual não utiliza o termo. Ao longo do caso, por duas oportunidades, Freud sintetiza o que acredita ser o núcleo do mecanismo paranóico. Cito as passagens abaixo, identificando o termo alemão usado por Freud em cada oportunidade. Na Parte II, “Tentativa de interpretação”, diz: “A motivação desta enfermidade foi, pois, um avanço da libido homossexual, orientada desde o início provavelmente ao Dr. Flechsig. A resistência contra (Sträuben gegen) este impulso libidinoso criou o conflito do qual surgiram os fenômenos patológicos” (BN, 1505; GW, VIII, 278)5. Na Parte III, “O mecanismo paranóico”, Freud define no primeiro parágrafo: “Diríamos que o caráter paranóico está em que a reação do sujeito como defesa (Abwer) contra uma fantasia de desejo homossexual tenha consistido em um delírio persecutório desta espécie” (BN, 1516; GW, VIII, 295). Nas últimas páginas do texto há uma passagem muito conhecida sobre o mecanismo da alucinação na qual Freud diz que “o interiormente abolido (aufgehoben) retorna desde o exterior” (BN, 1523; GW VIII, 308). Nestas três passagens teria sido oportuno o recurso ao termo “rejeição”, caso Freud pretendesse estabelecê-lo como mecanismo específico da psicose. Foi no caso do Homem dos lobos que a “rejeição” reapareceu e – é preciso lembrar – ele não era tomado como um caso de psicose para Freud.

Voltando a Lacan, a foraclusão tem um alvo específico, um significante primordial no triângulo edípico, constitutivo da subjetividade: o nome-do-pai:

O significante ser pai é o que constitui a estrada principal entre as relações sexuais com uma mulher. Se a estrada principal não existe, a gente se vê diante de um certo número de pequenos caminhos elementares, copular e em seguida a gravidez de uma mulher.

O presidente Schreber está falto, segundo o que se sabe, deste significante fundamental que se chama ser pai. Por isso é preciso que ele se embrulhe, até pensar estar ele próprio prenhe como uma mulher. Foi preciso que ele próprio se imaginasse mulher, e realizar numa gravidez a segunda parte do caminho necessário para que, adicionando-se a um outro, a função ser pai seja realizada (1985, p. 33).

Na concepção de Lacan a função paterna representa um terceiro termo, que intervém na relação fusional da criança com a mãe, rompendo o narcisismo. Esta é a forma como Lacan lida com a idéia de castração na consumação do complexo de Édipo. Sem tal intervenção, a criança permaneceria prisioneira de um universo fechado. A função paterna “entra” por meio de quem quer que exerça a função materna, na medida em que esta pessoa passou por sua vez pelo seu complexo de Édipo e tem a castração marcada em si.

A ruptura assim dada alça a criança a uma dimensão simbólica e a um universo de falta, que produz seu desejo e o movimento pelo qual ela voltarse-á ao mundo, em busca de objetos substitutos e da constituição de uma subjetividade própria. É o pai, como função, que instaura a falta.

Como já apontei, a figura de pai de Schreber não instaura qualquer falta, pelo contrário, ele parece impor sua presença e saber, por meio das manipulações e dos experimentos a que submete seu filho. A função paterna não se confunde com a idéia de um pai bravo, na medida em que ele se apresente como onipresente e invasivo.

Assim, com todo seu autoritarismo, o médico Moritz Schreber não tem autoridade e é desqualificado por meio da representação de um Deus que nada sabe sobre os vivos, assim como nada sabe sobre a sexualidade, como mostra o seguinte trecho das Memórias:

As almas sabiam com precisão que o homem se deita de lado e a mulher de costas (num certo sentido, como “parte que está por baixo” – sempre na posição que lhe corresponde na cópula); eu, que nunca em minha vida pregressa tinha prestado atenção nisto, fiquei sabendo destas coisas através das almas. De acordo com o que leio a respeito disto, por exemplo, na Ginástica Médica de Salão, de meu pai, parece que nem mesmo os médicos estão bem-informados a este respeito (Schreber, 1984, cap. 12, p. 167).

Schreber não pôde sustentar os mandatos a que foi indicado, nem transmitir o nome do pai a uma descendência. As intervenções que sofreu na infância por parte da figura paterna ganham o caráter de mutilação, ao invés do de castração simbólica. O significante foracluído está ausente do inconsciente e retorna alucinatoriamente desde o real, na figura de um perseguidor.

 

Violência e destrutividade

A dimensão de violência e destrutividade, presentes na paranóia, foi desenvolvida inicialmente pela escola inglesa de psicanálise. Em 1946 Melanie Klein escreveu um de seus trabalhos clássicos, Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. Nesta obra, que trabalha fundamentalmente com o conceito de cisão, ela apresenta a noção de posição esquizo-paranóide. Em um apêndice ao artigo, a análise de Freud do caso Schreber é comentada.

Para Klein, na perseguição sofrida pelo eu o ódio não teria o sentido de inversão defensiva do amor ao objeto, mas seria constitutivo da experiência fundamental da psicose. Partindo de sua apreensão do conceito de pulsão de morte (que Freud ainda não criara ao escrever o caso, e de toda a forma é muito diferente de como é concebido por ela), Klein situa os impulsos destrutivos como primários para a compreensão da psicose.

A interpretação freudiana, segundo a qual as imagens de Deus e Flechsig seriam a do pai e do irmão, é questionada em favor da idéia de que tratar-seia de uma projeção da divisão do próprio ego. A divisão da alma de Flechsig em dezenas representaria também esta cisão excessiva do eu, que implicava em sua desintegração. O fato de Deus investir sobre elas e reduzi-las a uma ou duas formas é interpretado por Klein como um mecanismo esquizóide: uma parte do self aniquila as demais.

A fantasia de catástrofe do mundo implica na preponderância do impulso destrutivo sobre a libido: “se o ego e os objetos internalizados são sentidos como estando em pedaços, o bebê vivencia uma catástrofe interna que simultaneamente se estende ao mundo externo e é projetado nele” (Klein, 1946, p. 43). Essa experiência seria característica da posição esquizo-paranóide e mostra o ódio como algo sofrido e utilizado como reação contra o objeto mau.

Mantendo-me no campo da teoria kleiniana, posso arriscar uma hipótese adicional. Schreber diz que só ao redigir as Memórias – ao sair do surto – concebeu que Deus fosse cúmplice e até inspirador das perseguições. Até então ele procurava protegê-lo e justificá-lo, depositando toda a responsabilidade pelos males que passara em Flechsig. Cito a passagem das Memórias:

Que o próprio Deus fosse cúmplice, senão instigador do plano que visava o assassinato da minha alma e o abandono do meu corpo como prostituta feminina, é um pensamento que só muito mais tarde se impôs a mim e que em parte, seja-me permitido afirmar, só me veio claramente à consciência durante a redação do presente ensaio (Schreber, 1984, cap. 5, p. 79).

Talvez se pudesse pensar que ao sair do delírio ele estivesse passando a funcionar no registro da posição depressiva, e pudesse assim integrar aspectos bons e maus do objeto.

Um autor inglês que manteve uma posição de independência com relação à tradição kleiniana – Winnicott – parece ter discriminado mais especificamente a condição na qual a constituição do psiquismo pode desembocar na psicose.

Em um artigo de 1952 chamado Psicoses e cuidados maternos, ele parte da idéia de que inicialmente não há unidade no eu, mas um conjunto ambienteindivíduo. Em um ambiente no qual se dá um desenvolvimento “normal”, o bebê é inicialmente mantido em isolamento sem ser perturbado. Ele pode fazer movimentos espontâneos, descobrindo o ambiente sem que isso o desestruture. Em um ambiente desfavorável, o ambiente é intrusivo e a criança perde a sensação de ser, o que a leva a reagir por meio de uma volta ao isolamento.

O isolamento defensivo pode gerar diversos resultados. Em primeiro lugar ele pode ser considerado até uma condição para a formação dos limites necessários do eu. Mas em uma circunstância de grande cisão, o mundo interno pode estabelecer poucas relações com o externo e permanecer incomunicável; o indivíduo pode criar então uma forma superficial de relação com o mundo, atraído por um ambiente sedutor. A isto Winnicott chama de eu falso (falso self), que aparenta normalidade enquanto pode abrigar uma psicose latente.

Diante de um ambiente hostil, o isolamento leva a uma integração excessiva, produzindo “um indivíduo em estado bruto, um paranóico em potencial” (Winnicott, 1952, p. 313), dado que experimentou ser hostilizado e perseguido pelo ambiente. Este indivíduo sentir-se-á constantemente ameaçado pela ameaça de um colapso (breakdown). Os elementos perseguidores podem ser neutralizados pela presença de uma mãe devotada que garanta o isolamento: uma falha dessa continência gera um potencial paranóico.

 

Articulação das duas referências anteriores: pai intrusivo, cisão e narcisismo

A partir dessas grandes linhas de referência, alguns autores contemporâneos parecem ter produzido um pensamento teórico que tanto integra os anteriores, quanto acaba por produzir formas originais de compreensão do sofrimento psíquico6.

André Green parece retomar a tradição inglesa, incluindo agora o conceito de narcisismo. Em Narcisismo de vida, narcisismo de morte, ele retoma a passagem do desenvolvimento na qual se dá a perda inicial do objeto na amamentação. Quando o objeto é continente, dada a sua perda, o investimento que nele estava depositado nele reflui ao eu, o objeto é internalizado e se torna um abrigo interno. É como se o eu dissesse ao isso: você pode me amar, sou parecido com o objeto. O investimento narcísico compensa a diferença instaurada entre a mãe e a criança.

Mas quando a ação específica é especificamente má, ela torna-se uma outra fonte de conflito. À luta entre o eu e as pulsões acrescenta-se a luta entre o eu e o objeto. O eu mobiliza pulsões destrutivas contra o objeto exter-no e interno: “assim, o objeto-trauma torna-se um objeto-louco. Enlouquecido e enlouquecedor, contra o qual será tentada uma neutralização pelas pulsões de destruição” (Green, 1988, p. 164).

A realidade externa e interna tornam-se odiadas e o eu não consegue se proteger no narcisismo. Surge daí o que Green chama de narcisismo negativo, que visa a nadificação do eu, a anulação mútua do eu e do objeto. Um dos destinos possíveis dessa dinâmica é a paranóia. Tomado pelo mecanismo de cisão, o eu só deseja amor; de forma que ao encontrar os outros, acha-os maus e violentos.

Em outra direção, um autor derivado – ainda que como crítico – da escola lacaniana pode nos fornecer mais alguns elementos neste estudo: Jean Laplanche e sua teoria da sedução generalizada. Embora o próprio Laplanche não tenha avançado muito sua teoria sobre o terreno da psicose, em Paranoïa et théorie de la séduction généralisée, Luiz Carlos Tarelho (1999) faz um estudo bastante abrangente e profundo sobre o tema.

Partindo do papel das experiências mais primitivas do sujeito em sua constituição, Tarelho propõe a seguinte formulação, inspirada em Laplanche: a subjetividade psicótica derivaria da intromissão de significantes não metabolizáveis oriundos do mundo adulto que envolve a criança.

Antes de desenvolver a construção teórica de Tarelho, acho que será útil para nossa finalidade evocar dois artigos de Laplanche. Em “Séduction, persécution, révélation” (1999), Laplanche discute como é corrente, desde Freud, que estes três termos sejam precedidos pela expressão “fantasia de”. Aqueles termos tão ativos, tão evocativos de uma ação sofrida pelo sujeito desde o exterior, acabam enfraquecidos sob o subjetivismo da representação que se dá a um sujeito. A atividade (de seduzir, perseguir) do outro é transferida para a atividade do sujeito (que representa, fantasia), e com isso a dimensão de sua passividade originária é negada. Como se sabe, boa parte do trabalho de Laplanche em reabilitar os conceitos de trauma e sedução vai na direção da recuperação de uma certa realidade do impacto do outro humano que envolve a criança. Segundo ele, seria preciso conceber um terceiro domínio de realidade que não se confundisse com uma materialidade pura nem com um psicologismo puro7.

O segundo artigo de Laplanche ao qual gostaria de me referir é “Implantation, intromission”. Definindo e diferenciando os termos que nomeiam o artigo, diz:

A implantação é um processo comum, cotidiano, normal ou neurótico. Ao lado dele, como sua variação violenta, é preciso dar lugar à intromissão. Enquanto que a implantação permite ao indivíduo uma retomada ativa, com sua dupla face tradutiva-repressiva, é preciso tentar conceber um processo que estabelece um obstáculo a esta retomada, curto-circuita as diferenciações das instâncias em vias de formação e põe no interior um elemento rebelde à toda metábole (1992, p. 358).

É este o processo destacado por Tarelho para a compreensão da paranóia. Sua tese é a de que na fonte da paranóia há o confronto com uma sexualidade intrusiva, que não pôde ser integrada como deveria. Algo na própria natureza da mensagem enviada pelo outro impediria sua metabolização. Para Tarelho trata-se nesse caso de uma “mensagem veredicto”, uma prescrição sexual que conteria uma mensagem paradoxal.

Tarelho descreve a situação de mensagem paradoxal da seguinte forma: em primeiro lugar ela é caracterizada por uma relação na qual uma pessoa depende vitalmente de outra, da qual recebe uma exigência negativa; uma segunda exigência é imposta, também à força, entrando em conflito com a primeira; ainda uma terceira injunção negativa impediria que o sujeito saísse da situação.

No caso específico de Schreber, Tarelho evoca as intervenções que sofreu de seu pai na infância. Nos procedimentos que visavam impedir a eclosão dos impulsos sexuais, eles acabavam por ser despertados. É como se Moritz Schreber houvesse dito: “eu te interdito sexualmente toda sexualidade”, ou “para que não tenhas o desejo de ser penetrado, é absolutamente necessário que sejas penetrado” (Tarelho, 1999, p. 161). Todas as manipulações sofridas pelo corpo de Schreber submetiam-no a uma posição passiva, que despertava a sexualidade que supostamente visavam inibir.

Por fim, o envio de mensagens paradoxais por parte dos pais informaria muito sobre sua própria subjetividade. O duplo entrave acabaria por ser emitido justamente graças à intolerância do pais para com qualquer ambigüidade. É seu próprio narcisismo que estaria sendo mantido, às custas do eu da criança8. O fechamento paranóico da criança seria sua reposta à tal intrusão.

Ao recorrer a Laplanche, pude dar também um passo na direção da compreensão do sofrimento patológico dos pais. A função paterna lacaniana torna-se mais encarnada.

Para concluir este breve levantamento de autores, vale a pena mencionar Piera Aulagnier. Em A violência da interpretação (1975), ela fornece uma espécie de “fenótipo” do paranóico – assim como do de seu pai – que permite reunir os três temas que tenho destacado: o narcisismo, a crise da autoridade paterna e a violência.

Restringindo-me ao que diz sobre o pai de Schreber, Aulagnier alinha-se ao que dissemos ao trabalhar o pensamento de Lacan: pai bravo não é função paterna. Ele mostra-se um educador “sem lei”, exercendo a violência em nome de uma ética que velava o impulso sádico. A lei do pai revela-se um abuso de poder ilegítimo e imperdoável.

Para nossa finalidade, tomemos as características que ela destaca no delírio paranóico: em primeiro lugar viria a necessidade que o sistema paranóico tem de não permitir a menor abertura em seu mundo delirante, com o temor de que qualquer falha lançá-lo-ia em um abismo; em segundo o papel do ódio, que constelará todo seu conjunto de relações e sentimentos; em terceiro uma representação da relação entre os pais como conflitiva e cheia de ódio.

O papel do pai violento seria então representado da seguinte forma: ele não seria ausente; pelo contrário, ele ocuparia o centro da cena e atrairia para si o olhar da criança:

Este momento de idealização da imago paterna parece ser sucedido por uma experiência, que tornará o que chamamos “a castração simbólica” impossível, por duas razões aparentemente contraditórias. A primeira é que a violência do pai, se ela ultrapassa certos limites, vai tornar fusionados o termo de castração e a imagem de uma verdadeira mutilação (...). A outra razão que encontramos freqüentemente re-mete ao que chamamos o “horror da degradação”, a decepção inaceitável. No que aparecia até então como os signos de um poder e de uma força, revelam-se os signos da psicopatia, da decadência ou da delinqüência (Aulagnier, 1975, p. 253-4).

O pai deixa de poder representar a lei, na medida em que se mostra pleno de ódio erotizado (sadismo).

Esta forma de representação paterna pode ser relacionada à constituição subjetiva daqueles que recebem e cercam a criança em sua própria constituição. Eles estão, por sua vez, implicados em sua cultura e no universo no qual eles próprios se constituíram, o que nos leva a um recuo sem fim.

Nestas últimas formulações pudemos articular o fechamento narcísico do paranóico e seu delírio persecutório como uma reação a um ambiente intrusivo, associado privilegiadamente à figura de um pai sádico (que bem parece uma mãe má), o qual não exerce aquilo que em psicanálise se convencionou nomear como função paterna: a lei, a castração, a perda do projeto original etc. A presença do outro humano é vivida como persecutória e excessiva, justamente pela falta de algum elemento (um terceiro termo entre o eu e o outro) suavizante, relativizante, capaz de criar um espaço intermediário que rompesse a fusão com o objeto.

Por meio desta apresentação de algumas formulações psicanalíticas, creio que chegamos ao ponto no qual se situa a relação entre paranóia e Modernidade, tal como figurada por Santner.

 

A paranóia como doença do poder

Passemos agora à análise de Santner, em A Alemanha de Schreber: uma história secreta da Modernidade. Ele crê que as crises da micro-sociedade da família Schreber são as mesmas crises da Modernidade, para as quais o nazismo pretendeu encontrar a solução final.

Basicamente o autor identifica essas crises na mudança moderna das relações indivíduo/autoridade social. Os laços sociais teriam se tornado cronicamente atenuados e não seriam mais capazes de propiciar ao sujeito uma compreensão de si. O que teria realmente entrado em crise seria o que chama de “investimento simbólico”. Schreber sucumbe a seus surtos justamente nos momentos em que é promovido a algum lugar simbólico de poder ou justiça. A paranóia implica no sentimento de extrema alienação, anomia, vazio e angústias de ausência. Internamente haveria o colapso do espaço social.

Na falta desta possibilidade de habitar e se investir de um lugar simbólico, o sujeito ficaria entregue a um excesso de proximidade de uma presença malévola que controla seu íntimo. Não seria possível reconhecer autoridade legítima naqueles que ocupam posições de autoridade. Creio ser bastante evidente a relação estreita entre esta concepção e a psicanalítica, tal como apresentada acima.

Autores de peso como Benjamin e Nietzsche subscreveriam tal concepção. Em Benjamin, Santner encontra a concepção de que a simples afirmação da lei implica um ato violento, na medida em que faltaria a esta fundamento absoluto. A Modernidade traria a marca da degeneração. Tal falta de sustentação consistente faria com que as próprias instituições não acreditassem mais em si: haveria um forte esforço para se esquecer da degeneração moderna, que uma obra como a de Schreber traria à tona.

A mesma percepção teria sido obtida por Nietzsche, para quem os verdadeiros estados de emergência e exceção são produzidos pela ordem legal, não pelo crime. Santner remete-nos à A genealogia da moral, de 1887, como obra privilegiada de Nietzsche sobre a arbitrariedade e falta de fundamento das instituições humanas.

Moritz Schreber, investido da autoridade científica, teria submetido seu filho a experimentos e manipulações com seus aparelhos a tal ponto, que sua intervenção acabou por revelar um caráter perverso/sádico. As Memórias contam os efeitos catastróficos de quando uma figura de autoridade ultrapassa o pacto simbólico. A suposta neutralidade e correção da lei mostra sua dimensão violenta, e com isso se desautoriza. Cito uma passagem de Santner, que parece uma ilustração do trabalho de Aulagnier:

(...) Schreber descobre que a autoridade simbólica em estado de emergência é transgressora, exibe uma obscena superproximidade do sujeito, ou seja, nas palavras dele, exige o gozo. A experiência que Schreber tem de seu corpo e sua mente como sede de intervenções e manipulações violentas e transgressivas, que produzem, como um resíduo ou um resto, uma espécie de excedente de gozo, é, segundo sugiro, o indício de uma crise que afeta sua relação com o campo exemplar da autoridade simbólica a que sua vida estava intimamente ligada, a saber, a lei (Santner, 1997, p. 45).

A mesma violência teria sido reproduzida em suas internações. Historicamente, Flechsig representava na medicina um movimento no qual a psiquiatria deixava de tratar da alma e passava a tratar só do cérebro. O tratamento consistia exclusivamente na manipulação do corpo do paciente, tomado como objeto, na melhor tradição científica moderna. Assim, a acusação de Schreber segundo a qual Flechsig busca o “assassinato da alma” assume também o aspecto de interface entre o delírio e uma percepção aguçada da dinâmica do poder9. A ciência, como legítima representante da Modernidade, abrigaria sua violência.

Há um encontro também na forma como ambas utilizam a linguagem. Assim como acontece na paranóia, a ciência moderna buscaria uma lingua-gem enxuta, unívoca e sem metáforas. A razão instrumental produz monstros, que produzem paranóicos. Reevocando a análise de Tarelho, paradoxalmente, essa linguagem parece querer abolir o simbólico e a polissemia, submeter o sujeito e as significações a uma ordem absoluta.

Por fim, a análise de Santner desenvolve a questão de como a submissão a esse poder produz uma degradação da pessoa. Em Schreber, o rebaixamento toma como referência temas correntes na virada do século XIX ao XX. Ele deve ser transformado naquelas figuras que representam a degeneração: daí a recorrência do tema da feminilização e a preocupação com a questão judaica.

Schreber diz que o idioma de Deus seria um alemão arcaico. Embora a beatitude não esteja restrita a esse povo, os alemães ocupariam hoje o papel de “povo eleito”, papel já ocupado pelos antigos judeus e greco-romanos.

Ao crer que a humanidade seria destruída e só ele restaria para dar origem a uma nova raça, Schreber identifica-se com a figura do judeu errante. No imaginário alemão, o judeu traz em si a marca da degeneração e mesmo da feminilidade, associada à circuncisão. A transformação a que seria submetido para o gozo de Deus seria, em síntese, de belo ariano masculino em feio judeu feminilizado. Cito Schreber:

Então, para a conservação da espécie seria reservado um único homem – talvez aquele que ainda fosse relativamente mais virtuoso do ponto de vista moral, chamado de “judeu errante” pelas vozes que falavam comigo (...) O judeu errante deve ter sido emasculado (transformado em uma mulher) para poder gerar filhos. A emasculação ocorria do seguinte modo: os órgãos sexuais externos (escroto e membro viril) eram retraídos para dentro do corpo e transformados nos órgãos sexuais femininos correspondentes, transformando-se simultaneamente também os órgãos sexuais internos (Schreber, 1984, cap. 5, p. 73-4).

O tema do poder tematizado pela perspectiva sociológica de Santner pode encontrar lugar na perspectiva psicanalítica quando confrontado com algo que desenvolvemos anteriormente: a passividade e dependência constitutivas da subjetividade humana. A paranóia parece estar diante dessa condição e o paranóico parece permanecer diante da violência persecutória exercida pelo outro. A busca pelo poder soa como um movimento defensivo, em busca de deixar a posição de passividade e ganhar algum controle (atividade) sobre si, o mundo e os objetos.

Santner não se refere a um texto extremamente pertinente à questão da lei e da autoridade escrito por Schreber. Seu médico no hospício de Sonnesntein, Dr. Weber, não atendeu a seu pedido de receber alta, em 1900. No processo que moveu para recuperar a liberdade constavam as Memórias, como prova de que recuperara suas faculdades mentais, e também um pequeno texto (incluído na edição brasileira das Memórias) intitulado: Em que condições uma pessoa considerada doente mental pode ser mantida reclusa em um sanatório contra sua vontade manifesta?

Nesse texto, Schreber argumenta que a simples opinião subjetiva do médico diretor, de que o paciente deve permanecer internado, não lhe dá o direito de impor ao paciente qualquer restrição à liberdade. Sobretudo quando o paciente mostrar uma firme decisão nesse sentido, mostrando uma “capacidade madura de ponderação”, e não for considerado perigoso para si ou para outros. Schreber inclui-se entre os doentes mentais inofensivos diante do direito administrativo. Seu caso seria como o do bêbado, que deve ser liberado pela autoridade policial uma vez que sua embriaguez tenha passado. Manter doentes mentais perigosos reclusos seria não apenas justo, mas dever do Estado, do ponto de vista da segurança pública.

A questão sobre o dever da autoridade médica atender o pedido de liberdade do paciente é sintetizada nos seguintes termos:

Se assim não se procedesse, configurar-se-ia um caso de detenção ilegal. Com relação a doentes mentais inofensivos, o diretor de uma clínica não é afinal um órgão da polícia judiciária, investido da autoridade desta, mas essencialmente apenas um consultor médico e por isso, no que diz respeito à questão da privação da liberdade, ele se encontra, em face de seus doentes mentais, exatamente na mesma relação que um médico particular em face de seus paciente (Schreber, 1984, p. 337).

Essa passagem parece interessante e bela, na medida em que é reafirmada a arbitrariedade da figura do médico, que impõe uma medida de força sem ter autoridade para tal, mas agora em nome de uma justiça. Uma discriminação de que determinadas decisões cabem à medicina e outras ao direito. Não me parece que se trate de uma superioridade de uma sobre a outra, mas do reconhecimento de que é justo que se faça uma discriminação do que cabe a qual esfera de poder. Fora do surto, Schreber parece ser capaz de invocar a lei em um caráter mais impessoal e abstrato. Aqui sim, parece haver alguma funcionalidade do nome-do-pai.

 

Sujeito moderno: entre sujeitado e subjacente

Gostaria de fazer alguns breves comentários sobre a análise de Santner da Modernidade, tendo como referência minha própria tese de doutorado: A crítica ao eu na Modernidade. Em Montaigne e Freud (Santi, 2003). Em suma, quero observar que concordo com sua teses segundo a qual a paranóia possui e expressa determinados aspectos velados sobre a questão do poder e da autoridade na Modernidade, mas gostaria também de evidenciar que a paranóia não é, naturalmente, a única resposta possível àqueles aspectos.

A própria subjetividade seria a referência do homem moderno, que estaria condenado à alienação de si-mesmo, na medida em que se constitui como sujeito transcendente. Destacando-se do mundo, o sujeito separa-se de tudo o mais, tomado agora como objeto de uso, estudo ou troca.

Um sociólogo atual, no qual podemos reconhecer uma forte influência psicanalítica, Zygmunt Bauman (1999), vê essa relação da seguinte forma: a tarefa impossível que a Modernidade se propôs seria a da criação da ordem, à qual se opõe o caos. Desta perspectiva, ela seria profundamente intolerante, na medida em que qualquer ambigüidade ou polissemia deveriam ser eliminadas (como se vê na linguagem científica, como já foi visto). A racionalidade deveria ser emancipada da interferência de normas éticas ou inibições morais.

Parece ser esta a perspectiva de Santner, o que pode ser confirmado pelo fato de que alguns dos autores dessa tradição também reconheceram o nazismo como uma expressão definitiva da Modernidade. Ele não teria sido a expressão de uma barbárie irracional, mas produto legítimo da busca pela perfeição e harmonia: o nazismo simplesmente levou às últimas conseqüências a crença utópica da solução final de todos os problemas (inclusive os sociais) pela ciência, e a suspensão de qualquer restrição moral para sua execução.

A subjetividade em busca de impessoalidade e racionalidade pura acabaria por revelar ser ainda habitada por seu fundamento impulsivo (intolerante e violento).

Mas mesmo dentro dessa perspectiva sociológica, muitos autores observam que embora o projeto moderno tenha sido aquele que citamos, ele simples-mente não pôde (ou pode) ser cumprido. Em Modernidade e ambivalência, o mesmo Bauman diz: “os problemas são criados pela resolução de problemas, novas áreas de caos são geradas pela atividade ordenadora. O progresso consiste antes e sobretudo na obsolescência das soluções de ontem” (1999, p. 22).

Poderíamos imaginar, paradoxalmente, que a Modernidade teria sido uma máquina de produzir paranóicos justamente se tivesse conseguido (ou “foi”, nas oportunidades em que chegou perto de conseguir) efetivar seu projeto. Mas em seu esforço de definir e controlar o mundo, a Modernidade não faria mais do que criar cada vez mais ambigüidade. O patamar do sujeito puro nunca parece ser atingido pelo movimento reflexivo, e mesmo a ciência, como representante maior do que podemos atingir de conhecimento seguro, é habitada pelo princípio da dúvida: todo conhecimento deve ser tomado como provisório, passível de ser ultrapassado por investigações posteriores.

Também nasceu na Modernidade um espaço de interioridade subjetiva inédita, que tem relação tanto com o individualismo moderno quanto com a subjetividade neurótica, tal como estudadas por Freud. É verdade que a Modernidade representa aquele esforço de controle, mas ela também significou possibilidades de liberdade, convivência com a diversidade do mundo, constituição de um espaço de interioridade, reflexão crítica, entre outras coisas. Em outros termos, a Modernidade conseguiu criar um espaço de articulação simbólica e relação com o mundo, que atingiu eficácia suficiente para que nem todos sejamos paranóicos.

Voltando a Bauman, ele também vê na Modernidade justamente uma condição de emancipação subjetiva, na medida em que se possa aceitar conviver com a própria contingência. Esta percepção pode nos levar à tolerância para com a alteridade. A vida social moderna empobrece e procura restringir a individualidade, mas ela também não é de todo impermeável, e cria novas possibilidades de emancipação. Na medida em que as pessoas não seriam simplesmente passivas diante das pressões sociais, haveria espaço para reações individuais.

Nesta mesma trilha, Figueiredo – em Modernidade, trauma e dissociação (2003) – indica algumas formas de reação a essa condição moderna: o Romantismo alimenta a esperança de restaurar a coincidência entre os produtos e os “ruídos” gerados como subprodutos da tentativa de totalização moderna; o Iluminismo apostaria na unidade e soberania de uma das partes sobre as demais. Outra via é proposta pela psicanálise, que se caracteriza por assumir a condição conflitiva e inacabada do homem; ela não procuraria corrigir tal condição. Ao sustentar a não exclusão do conflito, a psicanálise não potencializaria o terror das forças repressivas e do retorno do reprimido.

Em minha tese, procurei alinhar também a esta última forma um autor do limite inicial da Modernidade: Montaigne. Em um certo sentido, a paranóia de Schreber poderia ser contraposta ao bem viver e disponibilidade para com as fragmentações e contingências de Montaigne (2000).

Em suma, considero que Santner realizou um trabalho brilhante ao evidenciar atributos do projeto moderno e suas relações com a experiência persecutória de se viver sob um poder autoritário e ilegítimo. O que acrescento aqui, por meio do recurso ao também sociólogo Bauman e à minha tese, são observações sobre respostas subjetivas possíveis diante da não realização daquele projeto.

A perspectiva aberta pela relação entre paranóia e histeria, e os tempos modernos, permite-nos conceber que as diversas formas de sofrimento e funcionamento mental tratados pela psicanálise – sua teoria da psicopatologia – também sejam formas de resposta às contingências de nosso tempo.

Uma vez indentificados com uma forma de pensar a psicanálise na qual a constituição da subjetividade é fundada em um outro (outros) humanos, pensamos que as dinâmicas sociais, transmitidas por aqueles que proporcionam os primeiros cuidados à criança, podem favorecer ou propiciar ambientes nos quais se formem recursos e defesas psíquicas. Em uma “cultura do traumático”, para recorrer a uma expressão de Figueiredo (2003), os mais primitivos modos de funcionamentos mental são mobilizados.

 

Para concluir

Procurando aproveitar as idéias derivadas da sociologia e filosofia que evocamos, penso que a questão da intromissão de mensagens paradoxais violentas, que identificamos na teoria psicanalítica da paranóia não deveria ser contraposta a um universo de mensagens supostamente unívocas. Na medida em que toda a linguagem possa ser considerada polissêmica e o desejo seja sempre concebido como conflituoso e ambíguo, poderíamos pensar que a mensagem paradoxal na dinâmica psicótica fosse justamente aquela que tentasse denegar a ambigüidade, que se pretendesse única e inequívoca. O reverso da mensagem paradoxal seria a ambigüidade, não a univocidade; e o reverso da mania da causalidade seria o confronto com a contingência. Neste aspecto monolítico, que denega a incerteza, residiria sua força em intromissão e a fraqueza em consistência.

Se pudermos pensar, com Santner, que a paranóia evidencia determinadas características da questão da autoridade simbólica na Modernidade, podemos também supor que seus aspectos mais violentos se mostrem como paranóia ou genocídio quando uma força se imponha sem que nenhuma outra venha se contrapor, liberando uma destrutividade sem limite.

Em Modernidade e holocausto, Bauman apresenta a seguinte conclusão:

O holocausto é um subproduto do impulso moderno em direção a um mundo totalmente planejado e controlado, uma vez que esse impulso deixe de ser controlado e corra à solta. A maior parte do tempo, a Modernidade é impedida de chegar a esse ponto. Suas ambições chocam-se com o pluralismo do mundo humano: elas não se realizam por falta de um poder absoluto suficientemente absoluto e de um agente monopolista suficientemente monopolista para conseguir desprezar, deixar de lado ou esmagar toda a força autônoma e portanto compensatória e suavizante10 (1998, 117).

Reencontramos aqui os efeitos da ausência de um terceiro termo (um “outro”) que se interponha, criando um distanciamento simbólico com relação à presença maciça de forças primitivas. A presença deste outro (terceiro) no outro (adulto) que cuida da criança seria a condição para a constituição subjetiva neurótica, que sofre com a ambigüidade e contingência, mas consegue minimamente nelas habitar. As experiências de intromissão ou intrusão, sem uma condição de continência ou suavização, caracteriza estruturações mais primitivas, ou mesmo falhas fundamentais na possibilidade de uma estruturação psíquica consistente.

A experiência da paranóia evoca mecanismos e experiências vividos por todos os humanos em sua constituição. E certamente algo daquela dinâmica também permanece mesmo no psiquismo do neurótico11.

Como dissemos desde o início deste trabalho, a investigação sobre a paranóia e a Modernidade pode ensinar sobre o Caso Schreber de Freud, e também sobre as condições gerais da constituição subjetiva.

Em Neurose e psicose Freud postula que na neurose há uma ruptura entre o eu e o isso, e na psicose uma ruptura do eu com a realidade. Partindo daí, chega a uma conclusão sobre como poderia ser pensado o funcionamento normal do eu. Este modo parece contemplar a co-existência de conflitos, cisões e “outros bichos”:

(...) o eu poderá evitar uma ruptura para qualquer dos lados espontaneamente, se ele deformar a si-mesmo, deixar-se perder em sua unidade. Até mesmo, eventual-mente, dissociando-se. Deste modo, as inconseqüências e as loucuras dos homens, assim como suas perversões, numa perspectiva similar – através de sua aceitação – poupam-lhe repressões (1923, GW, XIII, 391; BN, 2744).

Vimos em alguns autores psicanalíticos suposições sobre a patologia daqueles que cercam o paranóico, em especial o pai. Creio que a reflexão sociológica de Santner e Bauman, entre outros, também contribui para que se amplie a compreensão das relações que envolvem a criança em sua constituição, sem reduzilas à explicação de uma estrutura por outra. Tais influências têm seu ponto de inserção na constituição psíquica dado por aqueles que recebem e proporcionam os primeiros cuidados à criança. Porém, mais que pensar na patologia do pai como uma entidade autônoma e encerrada em si mesma, podemos pensar em um contexto de forças que envolvem a criança, partindo daqueles que cuidam dela mais imediatamente, e vislumbrando a influência mais ampla da cultura.

 

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Endereço para correspondência
Pedro Luiz Ribeiro de Santi
Rua Haddock Lobo, 144 / 111
01414-000 – São Paulo/S P
Tel.: (11) 3129-7105
E-mail: plrsanti@uol.com.br

Recebido em 14/10/03
Versão revisada recebida em 29/01/04
Aprovado em 09/02/04

 

 

Notas

I Psicanalista; Professor nos cursos de Especialização em Psicologia Clínica: Teoria Psicanalítica (COGEAE/PUC-SP) e na Faculdade de Comunicação Social (ESPM).
1 As aulas foram preparadas em julho de 2002, para a disciplina “Psicopatologia II”, da Especialização em Psicologia Clínica: Teoria Psicanalítica, Cogeae/PUC-SP. Agradeço aos colegas do grupo de pós-doc, reunidos em torno de Luís Claudio Figueiredo, pela leitura prévia e crítica deste texto.
2 Essa linhagem paterna inicia-se com o tataravô chamado Daniel Gottfried Schreber (17081777); o bisavô chamava-se Johann Christian Daniel Schreber (1739-1810); o avô, Johann Gotthilf Daniel Schreber. A importância dos nomes será analisada adiante.
3 Em uma pesquisa realizada por meio de um mecanismo de busca na internet, encontrou-se muito mais referências ao filho. As referências ao pai são sobretudo relativas aos jardins que receberam seu nome, em páginas alemãs.
4 Em 1932 Lacan havia escrito sua tese de medicina, Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (Lacan, 1987), o que dá a dimensão de interesse do quadro para ele. Mas foi depois da tese que ele se voltou à psicanálise.
5 Por BN entenda-se a referência à edição em espanhol da Biblioteca Nueva (em 3 volumes), e por GW a edição em alemão, Gesammelte Werke (em 18 volumes).
6 Dentre as obras que pesquisei para este trabalho, devo muito ao livro de Renata Cromberg, Paranóia (2002), que apresenta um excelente histórico da paranóia antes e depois de Freud. Sou grato em especial por ter me chamado a atenção sobre a teorização da psicose de Green e Aulagnier, a quem recorreremos abaixo.
7 O subtítulo deste trabalho tinha como referência esta concepção.
8 Paulo Carvalho Ribeiro (2000) trabalha com a idéia de que a lógica da relação entre o eu e os elementos de alteridade é inicialmente de oposição, clivagem; só após a repressão secundária seria possível pensar em termos de conflito e formações de compromisso entre as partes. Isto parece combinar com a idéia de mensagens paradoxais paralisantes, sem a possibilidade de compromisso. Embora também recuse a formulação de Lacan sobre a foraclusão do nome do pai, recorrendo a dimensões mais primitivas e afetivas da constituição psíquica, Ribeiro con-corda com a idéia de que é o desejo da mãe pelo pai que permite sua representação para a criança. Um pai deveria ser capaz de instalar uma diferença entre a criança e a mãe, mas só poderia fazê-lo se pudesse reconhecer a potência materna. E seria esta a operação simbólica que possibilitaria a passagem da lógica da oposição (cisão, predominante na psicose) para aquela dos compromissos (repressão, predominante nas neuroses).
9 Niederland (1974, p. 104) também descobriu que Flechsig pregava e praticava a castração como terapia para a neurose e psicose. Não se sabe se Schreber sabia disso, o que daria também um elemento realista à fantasia de emasculação. Essa castração tem o caráter de mutilação, e não aquele de operação simbólica no complexo de Édipo.
10 O que nos remete à posição de Bush diante da ONU, com relação às guerras declaradas com a justificativa (inconsistente) do combate ao terrorismo. No tal mundo globalizado tudo é regido pelo mercado, é cada vez mais comum que se diga. Mas está se tornando mais difícil concebê-lo como capaz de auto-regular, como sempre pretendeu o liberalismo. Aquilo que passou a ocupar o lugar de referência para nós é cada vez mais concebido antropomorficamente como perverso, selvagem, “sem lei”, instável, movido por interesses imediatistas e sem o menor pudor em realizar em países (“mercados emergentes”) a pior fantasia violenta de Schreber: ser obrigado a gozar (por meio do consumo e da indústria do entretenimento), ser usado e depois ser deixado largado.
11 Na tradição de Laplanche, Marta Rezende Cardoso (2002), por exemplo, considera que o superego seria um resto não metabolizado de uma intromissão sofrida ainda no período pré-edípico. Entre uma dimensão primitiva e pulsional de agressividade e uma posterior tentativa de identificação com a figura paterna, resultaria o superego como um enclave psicótico nos neuróticos.