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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.15 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Fragmentos da análise de uma criança: movimentos de constituição subjetiva

 

A child’s analysis fragments: subjective constitution movements

 

 

Cláudia Andréa Gori1

Universidade de Ribeirao Preto - UNAERP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No decorrer de sua obra, Freud formula a hipótese de que a inscrição do homem em um sistema cultural é a condição fundamental para a constituição da subjetividade. Considerando a idéia freudiana, o objetivo deste artigo é mostrar os movimentos de constituição subjetiva de uma criança em processo analítico, enfocando as relações teórico–clínicas da função do analista no processo de construção do eu na análise infantil, bem como as articulações entre o eu e a cultura, que se caracterizam por uma série de renúncias e substituições que irão moldar o ser pulsional.

Palavras-chave: Constituição subjetiva, Psicanálise, Criança, Analista, Cultura.


ABSTRACT

Along his work, Freud formulates the hypothesis that man integration into a cultural system is paramount for subjectivity constitution. Regarding such Freudian idea, the aim of this article is to present subjective constitution movement of children into an analytical method, focusing on theoretical–clinical relationships of the analyst’s role into the construction of the I within childhood analysis as well as the articulations between the I and culture, which are characterized by series of resignations and replacements that mold the drive (tribe)–being.

Keywords: Subjectivity constitution, Psychoanalysis, Child, Analyst, Culture.


 

 

O discurso freudiano trata sobretudo da questão do homem como ser cultural. Para Freud (1914), a inscrição do homem em um sistema cultural é a condição fundamental para a constituição da subjetivida–de. No entanto, esse ponto de articulação necessária entre o homem e a cultura é marcado por um mal–estar estrutural, na medida em que a civilização é fundada sobre a base da abdicação pulsional.

A criança é uma construção cultural. A partir do momento em que se dá sua inserção na cultura, por meio do olhar do outro, opera–se o início de uma sucessão de renúncias e substituições, que irão comprimir e moldar o ser pulsional.

Em seu artigo de 1914, Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud defende a idéia de que o eu, como unidade decorrente da reunião das parcialidades, não está presente desde o início, mas precisa ser construído a partir de uma nova ação psíquica que incide sobre o auto–erotismo e provoca o narcisismo. O eu inaugura–se com o narcisismo.

Esses movimentos de constituição subjetiva colocam questões e situam o analista de forma distinta na clínica de adultos e na clínica de crianças, em relação ao seu posicionamento diante do eu do paciente. Enquanto o eu na clínica do adulto é a fonte de resistências ao trabalho analítico, o eu na análise de crianças &– além de ser fonte de resistências à análise &– é também um acontecimento de máxima importância, na medida em que define a posição do sujeito frente às suas pulsões e à cultura. O eu da criança não está pronto, e o analista está diretamente implicado nesse processo de construção, já que ele, analista, oferece–se como continente para que o sujeito possa vir–a–ser.

Do ponto de vista teórico, recorrerei às postulações de Freud sobre o eu, datadas de 1914.

Capturado pelo olhar do outro e sem possibilidade de saber de si na ausência desse outro. Imerso na argila disforme. Essas foram minhas primeiras impressões diante de Pedro, agarrado e aninhado no colo de sua mãe.

Nas entrevistas iniciais, a mãe de Pedro mostra–se decepcionada: “Eu não tenho mais vida, porque ele não me deixa viver. Não pára na escola, não fica com a babá, chora desesperadamente enquanto eu tomo banho, em todos os lugares as pessoas referem–se a Pedro como “pirata”... Pai bendito! Não sei mais o que fazer com ele” (sic). Talvez a mãe de Pedro também não saiba o que fazer com ela própria.

O que predomina no discurso dessa mãe é a impotência à qual o adulto é submetido diante da emergência das dificuldades da criança. Pechberty aborda essa questão enfatizando que “a demanda de cuidado é vivida como um fracasso educativo pela família: o sintoma afasta, torna a criança estranha para seus próximos” (1996, p. 9).

Senti nessas palavras maternas uma ambigüidade desesperada, de quem sabe que precisa interditar essa relação maciça, mas ao mesmo tempo vê–se tão envolvida nela que não tem força suficiente para rompê–la. Transferencialmente ela colocava–me em uma posição terceira em relação ao par: enunciava um apelo ao Pai.

Em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1914) postula a hipótese do narcisismo primário e do narcisismo secundário. Segundo ele, o narcisismo primário não pode ser objetivamente apreendido, mas decorre de uma inferência: antes da unificação das pulsões parciais em uma unidade chamada eu, não há representação do corpo como unidade, mas este é vivido como fragmentado, e o estado da pulsão é o auto–erotismo, isto é, as pulsões parciais buscam satisfação investindo partes do próprio corpo.

Para Freud, a constituição do eu é uma decorrência da posição dos pais diante do bebê. Os pais atribuem ao bebê todas as perfeições e sonhos que eles mesmos não puderam realizar ou precisaram renunciar em nome da cultura, ou seja, “o amor dos pais (...) nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido” (1914, p. 98). O bebê é colocado na posição de His Majesty the baby, e de forma onipotente representa todo o universo do desejo dos pais.

Esse eu nascente, que emerge da convergência do narcisismo dos pais e da imagem unificada que representa o corpo da criança, é o que Freud chama de eu ideal. O eu é um complexo de representações imaginárias, e na condição de ideal esse sujeito é o depositário de toda a perfeição e valor, ou seja, “o eu ideal é o efeito do discurso dos pais, efeito de um discurso apaixonado que abandona qualquer forma de consciência crítica para produzir uma imagem idealizada” (Garcia–Roza, 2000, p. 57).

No entanto, esse eu ideal corresponde à posição mítica de Narciso diante de sua imagem refletida na água. Há uma captura aprisionante, que impede o sujeito de se desligar dessa imagem e desejar fora dela; a libido entra em estase, na medida em que há um corte do investimento objetal e toda a libido reflui para o próprio eu, ou seja, “produz–se uma retirada da libido com a qual o objeto estava investido. Por isso o eu acumula toda a libido que ali se estagna e o objeto se separa dele. O corte do objeto é correlato de uma suspensão da circulação da libido” (Násio, 1995, p. 55).

Diante daquela criança de três anos de idade, agarrada em sua mãe como um animalzinho, nenhum convite de minha parte, nem os fantoches, nem as massinhas eram capazes de despertar qualquer desejo. Pedro não desejava nada além de sua própria imagem refletida nos olhos maternos. Dois encontros se passaram e a criança recusava–se a entrar na sala.

Conversei sobre essa dificuldade com a mãe da criança e propus que no próximo encontro ela trouxesse a criança mas não permanecesse na sala de espera. Cabisbaixa, ela mostrou–se descontente mas aceitou a proposta. Essa atitude de descontentamento vivida pela mãe de Pedro é vista por Pechberty como uma conseqüência do início do tratamento. A esse respeito, escreve ele: “com o estabelecimento do tratamento, a impotência dos próximos mostra seu fundo de ódio. Confirma–se uma desilusão, aquela de não se possuir uma criança ideal, imaginária, herdeira do narcisismo dos pais” (1996, p. 9).

Na sessão seguinte, a mãe de Pedro colocou–o no chão e lhe disse: “Agora mamãe vai fazer compras e você vai ficar aqui brincando até que eu volte” (sic). Sob os protestos de Pedro, ela saiu da sala e ele se atirou no chão, inconsolável. Rolando no chão, o menino chorava e gritava sem qualquer pausa.

Ao ver as lágrimas molhando todo seu rosto, senti que aquela criança estava literalmente desmanchando–se em lágrimas, e isso colocou–me em uma posição de desamparo: eu não sabia o que fazer para contorná–lo e contê–lo.

Sem pensar, brotaram três palavras de minha boca: “Você está chorando”. Ainda deitado no chão, ele pára de chorar e entre soluços diz: “Eu não estou chorando”; ao mesmo tempo, passa a mão no rosto e olha para a mão molhada de lágrima. “Eu não estou chorando”. Repete e começa a gritar e chorar novamente. Eu tomo Pedro em meus braços, levo–o diante de um espelho e digo–lhe: “Pedro, você está chorando porque está longe de sua mãe!”. Ele pára de chorar, olha–se no espelho e começa a sentir sua face com as mãos; passa a mão nos cabelos, nos olhos, nariz, boca, bochechas, ameaça começar a chorar, pára e começa novamente a perceber seu rosto.

Enquanto ele tocava seu próprio rosto com as mãos, eu ia dizendo–lhe, baixinho: “Esse é o Pedro! Que gosta muito da mamãe... gosta de brincar... gosta de passar a mão nos cabelos cacheados... tem olhos bonitos, nossa, que olhos bonitos e grandes!... cheios de lágrimas! Será que tem algum peixinho nesses olhos cheios de água?... É Pedro... que brinca com os dedos na boca... dedos sapecas que não param de passear pela boca, pelos olhos!”. Eu fico em silêncio por um momento, e ele olha–me, faz boca de choro e diz: “Vai, fala...”. Eu olho para ele e pergunto: “O que você quer que eu fale?”. E ele: “Esse é Pedro, de cabelo cacheado... vai! Fala dos peixinhos também”.

Eu comecei a nomeá–lo novamente, e momentos depois Pedro afastou–se do espelho, abriu a caixa de brinquedos e começou a olhar e pegar o que havia ali dentro. Algumas vezes lembrava de sua mãe, olhava–me quase chorando, levantava–se e ia até o espelho. Olhava–se e voltava a brincar. Ao nomear a angústia de Pedro, eu podia também dar uma forma e conter a angústia que aquela criança suscitava em mim, e isso tornava possível continuar meu trabalho de escuta.

Durante algumas sessões Pedro intercalou os momentos das brincadeiras com os momentos em que ele se fitava no espelho, e depois de alguns meses de trabalho ele entrava na sala e ia logo até o espelho. Olhava–se e dizia: “Hoje mamãe me levou para cortar o cabelo. Você viu como eu estou bonito?”.

Eu confirmava para ele a beleza da imagem que ele estava vendo. Ele já podia ver a si mesmo, nomear sua imagem e falar sobre a mamãe ausente.

Pechberty compreende o espaço terapêutico como um dispositivo separador, ou seja, “O tratamento institui uma nova separação, violenta, entre a criança e sua família. Esta distingue–se das experiências anteriores (...). O tratamento isola o jovem paciente de seus pais, regularmente e por longo tempo: ela cria uma comunicação em que o íntimo de uma criança diz–se, a um adulto, devotado em ficar fora da família” (1996, p. 12).

Nesses momentos em que Pedro falava a respeito da falta de sua mãe, eu podia sentir um abrandamento da carga transferencial depositada sobre mim; eram momentos nos quais o esboço de uma situação triangular começava a ser delineado, na medida em que Pedro incluía–me como um terceiro termo na relação entre ele e a mãe. Esse esboço de descolamento entre o menino e sua mãe provavelmente atingiu a criança, provocando uma perda momentânea das referências e representações que o definem como ser. Talvez, longe dos olhos daquela que reflete a sua própria imagem e diz quem ele é, Pedro tenha se perdido dele mesmo, nas primeiras sessões de análise.

Quiçá o choro inconsolável poderia ser traduzido por uma pergunta: e agora? O que eu sou se aquela que diz de mim não está aqui? E também quando a mãe diz à criança: “Agora mamãe vai fazer compras e você vai ficar aqui”, a mãe está dizendo que ela deseja para além dele, que ele não é tudo para ela e que não a satisfaz inteiramente. Rompe–se a plenitude do eu ideal, a imagem perfeita é perturbada pelas condições da realidade e uma parcela do narcisismo é perdida.

Essa perda instaura uma falta e altera o sentido do movimento da libido: o sujeito passa a investir nos objetos na tentativa de recuperar a parcela de narcisismo perdido, e posteriormente esse investimento retorna ao eu, tomando–o como objeto. Esse movimento em busca da recuperação da perfeição perdida é magnetizado pela parte do narcisismo que foi perdida, e na melhor das hipóteses projetada diante de si sob a forma de um ideal de eu.

A partir dessa posição, todos os investimentos do sujeito passam a ser deslocamentos do desejo de recuperar o amor perdido e se fazer amado pelo outro. No entanto, esses investimentos são mediatizados pelo ideal de eu, imagem à qual o sujeito procura conformar–se, ou seja, “o que ele projeta diante de si como sendo o seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal” (Násio, 1995, p. 101).

Apesar dos ensaios de ruptura entre a criança e a mãe, não havia indícios da presença de um ideal que Pedro pudesse seguir e se modelar a partir dessa imagem. Desde o episódio do espelho, no qual Pedro achou–se bonito com os cabelos cortados, iniciaram–se momentos de angústia: aquela criança, sossegada no colo da mãe, transformou–se em um garoto inquieto.

A mãe queixava–se de que ele se machucava muito porque não a ouvia, e brincava com coisas perigosas como subir nos móveis, brincar com fogo e brigar na escola. Nas sessões Pedro esparramava todos os brinquedos e atirava–os por todos os cantos da sala. Mostrava–me seus machucados e dizia: “eu machuquei aqui (mostrava–me uma das mãos) brincando com a faca. Eu brinco com o que eu quiser. Se eu quiser, eu bato no meu pai e na minha irmã”. Nesses momentos Pedro mostrava–se incapaz de se aquietar e se interessar por alguma coisa. Ele transitava incessantemente por todos os brinquedos e cantos da sala, e rendia–se apenas ao cansaço; depois de algum tempo ele deitava–se no chão, ofegante. Pedro ainda não continha sua própria angústia.

A onipotência dessa criança produzia em mim uma angústia que se manifestava por uma inquietação por ver todo o espaço da sala tomado pelos brinquedos que Pedro esparramava. Nesse momento sentia–se mais um brinquedo jogado pela sala, e podia perceber que uma certa raiva brotava em mim pelo fato de estar ocupando esse desconfortável lugar transferencial.

Diante dessa situação, com grande esforço, procurei empreender um movimento que permitisse afastar–me e olhar toda aquela bagunça a partir de fora dela, como uma observadora e não mais como um brinquedo jogado pela sala. Tive em minha mente a imagem de um pequeno que perambulava incessantemente ao redor de um vazio; uma criança que sabia que ali havia um vazio, mas não tinha medo porque nunca olhara para ele.

Identifiquei–me com a angústia desse pequenino e procurei traduzir isso em palavras, dizendo–lhe: “Pedro, parece que você está inquieto porque ainda não descobriu o que fazer com a falta que mamãe lhe faz quando ela não está presente”. Exausto, ele pára de correr pela sala, olha–me e diz: “mamãe vai vir, sua besta!”. Ao dizer isso, Pedro começou a chorar e a chamar mamãe repetidamente. Os primeiros movimentos de Pedro em direção à separação precisavam ser sedimentados pelo trabalho analítico; a criança ainda oscilava entre dois pólos distintos: um deles seria sentir a falta da mãe e falar sobre ela, o outro seria submergir a essa falta.

Depois de alguns meses de trabalho, pela primeira vez Pedro preocupou–se em guardar os brinquedos no final da sessão. Enquanto ele guardava os brinquedos, olhava para mim e dizia: “mamãe é do papai, mas eu preciso guardar os meus brinquedos”.

Chamou–me a atenção a aparente incoerência entre os fatos colocados por ele, ou seja, o fato da mamãe ser do papai e a necessidade de guardar os brinquedos. Diante disto, interroguei–o: “Por que você precisa guardar os seus brinquedos, Pedro?”. A resposta foi decisiva: “Mamãe me dá um beijo e diz que eu sou um menino bonito”.

Mamãe, papai e Pedro: isso marca um rompimento do amor exclusivo da mãe. A partir daí a posição da criança é outra: frente à falta do amor imediato, trata–se de criar estratégias, descobrir caminhos, investir objetos, construir um encadeamento de palavras para explicar algo, ligar as palavras às coisas, observar os códigos, curvar–se diante da Lei. Pedro descobriu que ele não é tudo, e que o amor é mediado. Ele precisa observar determinadas condições para ser amado.

O narcisismo primário é rompido pela experiência da angústia da castração; é ela que diz que o sujeito não é tudo, e ao tolher a imagem perfeita demarca territórios, estabelece um contorno, constrói bordas e delimita o eu. O reconhecimento da falta e da incompletude abre espaço para que o desejo circule e se desloque em sua busca infinita pela recuperação da imagem narcísica perfeita, busca esta orientada e sobrepujada pelo ideal de eu.

O ideal de eu é da ordem das representações culturais e éticas que o indivíduo reconhece como um modelo para si próprio. É neste sentido que o ideal de eu modela o eu, na medida em que o indivíduo submete–se às exigências de um ideal e recalca as representações que não condizem com o ideal por ele fixado, ou seja, o indivíduo “fixou um ideal em si mesmo, pelo qual mede seu eu real” (Freud, 1914, p. 100).

Há portanto um deslocamento do investimento libidinal: enquanto no narcisismo primário o alvo do amor próprio era o eu real, no narcisismo secundário toda a perfeição e valor, perdidos com a angústia da castração, deslocam–se do eu real e são atribuídos à imagem ideal, eternamente perseguida.

Freud defende a idéia de que “para o eu, a formação de um ideal seria o fator condicionante do recalque” (1914, p. 100), ou seja, comparando–se com o ideal de eu, o eu efetua operações de recalque justamente sobre aquelas representações que são incompatíveis com o padrão de imagem ao qual ele procura ajustar–se.

Os movimentos de construção do eu, articulados pelo ideal de eu e pelo recalque, colocam a criança em uma posição ativa em relação àquela ocupada antes da formação de um ideal. Na posição narcísica primária a criança não precisa mover–se para buscar nada, porque ela é tudo; as certezas permeiam esse universo pleno, uma vez que não há espaço nem tempo para duvidar.

Com a angústia da castração a criança defronta–se com a perda, que institui um vazio; ela é instigada a mover–se para investir objetos na tentativa de preencher este vazio e essa busca incessante coloca–a diante da angústia e da incerteza. A criança sabe que perdeu algo e sofre por isso, mas não sabe se vai conseguir, algum dia, resgatar essa perda. Ela convive com o vazio, com o movimento, e com a incerteza. Agora a tarefa é outra: como conviver com essa angústia?

Depois da sessão em que Pedro mostrou–se preocupado em guardar os brinquedos, algo nessa criança ganhou uma nova forma, mais consistente, talvez. Senti que seus movimentos apontavam no sentido de uma transição dos brinquedos para o discurso. Literalmente, ele começou a guardar os seus brinquedos e a brincar com as palavras.

Nos encontros seguintes pela primeira vez Pedro despediu–se da mãe antes de entrar na sala, deu–lhe um beijo no rosto e disse: “Mamãe, você pode ir fazer compras, vou sentir saudades, mas agora eu vou brincar e você não pode vir comigo”. Ele não mais se desfazia em lágrimas: podia dizer de sua dor, mas sobretudo, podia senti–la e sobreviver a ela. Ele não era mais A dor. Agora ele é Pedro, que sente a dor e fala sobre ela.

Nas sessões que se seguiram Pedro sentava–se diante de mim, contava–me histórias e perguntava–me sobre algumas coisas. Apareceram as primeiras dúvidas. Dizia ele: “sabe, tia Cláudia, hoje quando eu fui na escolinha a tia passou muita lição para fazer. Eu não estava com muita vontade de fazer porque eu queria brincar de Batman com o meu amigo. Mas depois eu achei melhor fazer, né? Se eu ‘fazer’ a lição, depois eu brinco de Batman. Quando eu crescer, eu quero ser forte e bonito igual o Batman e igual o meu pai, e por isso precisa fazer a lição. Se eu ‘fazer’ a lição, quando eu crescer, será que eu fico igual a papai?”.

Escutei isso como um primeiro passo de Pedro em direção à construção de seus ideais. No entanto, não poderia garantir a ele o que ele estava pedindo: se fosse um bom menino, ganharia a mamãe para ele. Diante dessa impossibilidade, disse–lhe: “quando você crescer, poderá ficar parecido com o seu pai, mas não poderá fazer todas as coisas que ele faz”. Ele olha surpreso e pergunta: “o que eu não vou poder fazer?”. Apreensiva, devolvo a pergunta: “o que o seu pai faz com a sua mãe que você não pode fazer?”. Envergonhado, ele diz: “ele namora a minha mãe”.

Dúvidas, condições a serem observadas, adiamento do prazer em função da realidade, investimento nos objetos: a pulsão ganha novas formas de escoamento quando se encontra ligada aos objetos e sobrepujada pelo ideal de eu, que força as representações incompatíveis a essa imagem ideal em direção ao recalque originário, que as atrai.

Essas operações de recalque, orientadas pelo ideal de eu, demarcam o eu na medida em que o afastam de sua forma inicial, calcada no narcisismo primário. Para Freud, o afastamento do narcisismo primário é que define um maior desenvolvimento do eu, e esse movimento é provocado por um deslocamento da libido. Escreve ele: “esse afastamento [do narcisismo primário] é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal de eu imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal” (1914, p. 106).

O ideal de eu marca a alteração do curso da libido, e a satisfação &– que no narcisismo primário era encontrada no próprio eu como ideal &– no narcisismo secundário passa a ser possível a partir de uma aproximação entre o eu e o ideal de eu, que é uma imagem permeada pela cultura e, portanto, externa ao eu.

Garcia–Roza entende que esse movimento em direção a um fora implica na inscrição do sujeito no simbólico. A libido desvia–se do eu como construção imaginária e investe a imagem ideal, construída a partir das exigências culturais, ou seja, esse fora aponta “para um fora do imaginário, para o lugar das exigências da lei ou, se preferirmos, para o lugar do simbólico” (2000, p. 59).

Pechberty considera que o tratamento analítico mobiliza &– no paciente e no analista &– conflitos psíquicos básicos, na medida em que traz novamente para a cena analítica o desejo de viver entre o adulto e a criança. Para o autor, “repetem–se conflitos e fantasias, mas no quadro de uma nova experiência, a de um primeiro encontro com um terapeuta, adulto. Esta relação é efetiva, mas também mítica, ideal, abrindo a questão do desejo de crescer” (1996, p. 25). Transferencialmente, o paciente projeta no analista imagens parentais e representações ideais de um adulto que ele poderá vir a ser.

As confirmações dessa posição simbólica e as provas de que o recalque estava operando foram dadas pelas primeiras falhas no discurso. Diante das falhas discursivas, Pedro enrubescia, sorria envergonhado e eu podia começar a respirar tranqüila diante da emergência do sintoma.

Em uma das vezes em que Pedro contava–me suas histórias, algo irrompeu, apesar de sua vontade: “(...) A gente pode brincar de muitas coisas aqui, não é mesmo? Pode brincar de Batman, pode brincar de montar cidade, casinha e morar na casinha. Na minha casinha eu é que vou morar. Você vem morar comigo mamãe? Ops!... [desajeitado] Tia Cláudia... você vem morar comigo?”. Pedro e mamãe. “Ops!” Não foi isso que ele quis dizer, mas acabou dizendo, apesar de não querer.

No que se refere à produção do sintoma pela criança, Jerusalinsky considera que:

Uma criança (...) é chamada a desempenhar um papel sexual muitíssimo antes de ter condições para produzir o ato ou a prática que testemunhe sobre esse lugar. É por isso que as crianças brincam de mamãe antes de saber como se faz para sê–lo (...). E, nesse momento em que a criança responde ao imperativo do Outro para constituir–se nesse lugar sexual, a criança se vê empurrada a produzir seu sintoma. E é nesse momento que ela acede à condição de sujeito (1996, p. 156).

Algo se diz nele, e ao dizer de seu desejo por essa via indireta é que ele tem acesso à sua divisão, a uma dimensão inconsciente que escapa ao seu controle e pode se fazer sujeito. Envolver–se com o outro para ser um e des–envolver–se dele para tornar–se outro. As demarcações do eu são esboçadas pelas trilhas desenhadas pelos movimentos da libido diante da interdição. Essas marcas, que contornam um vazio fundamental, são traçadas pelo trabalho de investimento, desinvestimento e substituição dos objetos. Tomando essas marcas como alicerce, empreendemos infindáveis construções ao redor do vazio, que em última instância é o vestígio da perda do outro e da falta que ele nos faz. O eu constitui–se ao redor de uma falta: a falta do olhar do outro.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. vol XIV.        [ Links ]

GARCIA–ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. vol. 3.        [ Links ]

JERUSALINSKY, Alfredo. O sujeito infantil e a infância do sujeito. Estilos da Clínica. São Paulo, USP–IP, I(1): 146–159, 1996.        [ Links ]

NASIO, Juan David. Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. (Coleção Transmissão da Psicanálise).        [ Links ]

PECHBERTY, Bernard. A psicanálise da criança: uma situação violenta. Estilos da Clínica . São Paulo: USP–IP, I(1): 7–27, 1996.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Cláudia Andréa Gori
Rua Antonio Achê, 84 &– Jardim Irajá
14020–600 Ribeirão Preto/SP
Tel.: (16) 623–4379
e–mail: claudiagori@ig.com.br

Recebido em 24/11/03
Versão revisada recebida em 11/03/04
Aprovado em 15/04/04

 

 

1 Musicoterapeuta Clínica; Psicanalista e Aperfeiçoamento em Psicanálise (Instituto Sedes Sapientiae); Especialista em Teoria Psicanalítica (PUC–SP); Mestranda (Núcleo de Psicanálise PUC–SP); Docente UNAERP.