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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.15 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Ícones russos ilustrando a relação mãe/bebê: desdobramentos clínicos

 

Russian icons illustrating the mother/baby relationship: clinical reflection

 

 

Maria Valéria Pelosi Hossepian Salles Lima1

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma visita à exposição 500 anos de arte russa resultou de início em uma crônica e posteriormente em uma reflexão sobre a relação mãe-bebê, a partir da observação de dois objetos culturais: os ícones e a crônica. Neste trabalho tais objetos serão tomados como ilustrações de uma relação, que está nos alicerces da teoria do desenvolvimento emocional infantil, segundo Winnicott, e cujos desdobramentos estão presentes na clínica. A apreensão desse fenômeno a partir desse olhar determinará a postura terapêutica.

Palavras-chave: Arte russa, Relação mãe/bebê, Desenvolvimento emocional, Clínica, Teoria e técnica.


ABSTRACT

A visit to the “500 Years of Russian Art” resulted initially in a chronicle and afterwards in a reflection about the mother/baby relationship out of the observation of two cultural objects: the icons and the chronic. In this work, these objects will be taken as illustration of a relationship that bases, according to Winnicott, the child development. We go through its clinical unfolding and show that the perception of this phenomenon can determine the therapeutic strategy.

Keywords : Russian art, Mother/baby relationship, Emotional development, Clinic, Theory and technique.


 

 

Crônica

Nasceu fulva em terra de morenos. A bem da verdade, não se poderia dizer fulva; foi a explicação que a mãe encontrou para aquela promessa de cabelos dourados, a primeira parte dela a chegar ao mundo. Promessa que nunca se realizou em cabelos, mas que a acompanhou por toda a vida, mesmo quando os cabelos escuros nasceram. Assim, tinha duas cabeleiras, uma que balançava com o vento e outra que era de vento.

Como fulva não era palavra que conhecessem, chamaram-na Russinha.

Além da cabeleira de vento, havia muitas coisas em Russinha que os pais não entendiam.

Porque velhos, os pais estranharam sua chegada. A mãe estranhou mas logo derramou-se e não quis explicações. Foi ela quem inventou a palavra “comunhão”, palavra que depois muitos usaram, mas nunca mais foi a mesma. O pai estranhou mas desconfiou, porque confiar é coisa para poucos; perde-se muito fácil.

Assim, Russinha chegou sob o signo do estranhamento e logo, logo, ela era o próprio estranhamento.

A mãe velha não brincava muito com Russinha, ou talvez brincasse melhor, porque podia ficar longas horas ao lado da filha brincando com seus próprios pensamentos, enquanto a menina brincava de estranhar.

Brincar de estranhar é fácil. Basta olhar muito bem para qualquer coisa, principalmente as pequenas, até que você e a coisa fiquem um só.

De tanto brincar disso os olhos da menina, de redondos de espanto, passaram a ovais de estranhamento.

O que ela mais gostava de olhar era o vento brincando com qualquer grãozinho de areia, empurrando-o de um lado para outro. Outra coisa bonita de ver era a chuva fazendo riozinhos e caverninhas na terra molhada. Gostava também das labaredas bailarinas, aquelas miudinhas com as saias fulvas, quase iguais à sua cabeleira de vento.

O tempo passando e Russinha especializando-se em “conhecer” o mínimo, as essências. Tanto, tanto, que lá pelas tantas deles nasceu-lhe um filho.

Veio com a mesma cabeleira dupla da mãe e os olhos nem passaram pela fase redonda, já nasceram alongados, e por meio deles é que as essências, das quais era filho, procuravam suas parceiras aqui nesse mundão. (Todos os que dele descendem continuam procurando).

Russinha deslumbrou-se. Aquele filho era a essência das essências. Tê-lo junto a si, peito com peito, quase fundidos, deu ao seu corpo um outro sentido, só possível porque ele estava ali, mas ao mesmo tempo ia tomando a forma do corpo dela. Era um colo-ninho para ele poder ser criança.

Bem lentamente, quase como as plantas, o filho foi procurando, e o colo deixando ele procurar, outros rostos que não o da mãe. Aí era um colo-apoio, e a criança era homem.

Depois o colo ficou trono e ele era rei.

Perseguido pelos reis das ninharias, cumpriu-se o destino do rei das essências, e nessa hora Russinha desesperou, mas foi só um átimo, no qual ela conheceu a última das essências que lhe faltava: a essência da dor.

Aí ela buscou lá atrás seu colo-ninho e colocou nele sua criança, mas aí ele já era de novo a essência da essências.

 

 

Arte e ciência

Essa crônica nasceu logo após uma visita à exposição 500 anos de arte russa: dos ícones à arte contemporânea, realizada na Oca/Parque do Ibirapuera, São Paulo.

Durante a visita chamou-me a atenção alguns ícones representativos da Virgem com o Menino, em que a relação corporal entre ambos apresentava algumas características distintas. Os ícones que ilustram este artigo são um exemplo.

Tocada por essa peculiaridade, e mesmo antes de refletir sobre ela, emerge o texto que iniciou este trabalho. Logo vou percebê-lo em seus diversos desdobramentos. Afinal, essa crônica escrita quase aos moldes do surrealismo era uma versão laica da história de Maria, e ao mesmo tempo, uma alegoria sobre a teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional infantil.

É nesse sentido que ela será utilizada neste trabalho: como uma ilustração, em que poder-se-á observar uma teoria, e consequentemente uma técnica determinantes do lugar do terapeuta na relação analítica.

 

O terapeuta

Desde meus primeiros contatos com o pensamento de D. W. Winnicott, pude experimentar a grande tranqüilidade de ter encontrado um pensador com o qual poderia dialogar. Encontrei nele a resposta para questionamentos e inquietações que envolviam minha prática psicanalítica e dificultavam o encontro de meu “si-mesmo” terapêutico. A partir dele conheci outros autores que valorizam o encontro humano como a matriz ética fundante, e seu conseqüente efeito terapêutico.

Ao falar de “encontro humano” dentro da situação clínica, estamos tocando em uma importante questão técnica. Pensamos em um terapeuta atento às necessidades do paciente; necessidades que não são redutíveis a um mapeamento de seus processos mentais. Um terapeuta presente não só como destinatário dos processos transferenciais, mas que estivesse ali para recebê-los a partir de um lugar histórico. Histórico porque se apresenta em suas dimensões de tempo e espaço reais.

Um paciente em sua primeira sessão diz: “tenho um amigo que se formou em psicologia e ele me disse que tudo nos consultórios é arrumado com algum propósito. Por isso demorei muito tempo para vir. Tinha a impressão que iria ser manipulado”. Bruno buscava alguém real. Temia a máscara, aquilo que simula o humano, mas ao qual falta a essência. É coisa. Coisa que pode tomar o lugar do encontro humano necessitado e buscado na transferência.

Quando alguém se apresenta, afeta-nos em diferentes níveis e um deles é o estético. Estético aqui entendido em seu sentido original, isto é, uma noção de percepção, a possibilidade de apreensão do mundo com os sentidos. O indivíduo constrói essa categoria no espaço e no tempo.

Gradativamente Bruno vai se tranqüilizando, à medida que unia as características da terapeuta ao ambiente. Não estava mais em um cenário, contracenando com um personagem. Mais para o fim da sessão diz: “não tenho contato com a família de meu pai, não se pode confiar. É diferente daqui”.

Havíamos conseguido estabelecer a condição essencial para o trabalho terapêutico: a confiança. Esse seria o terreno onde suas necessidades e angústias poderiam ser depositadas, porque não seriam tratadas como excrescências, mas como experiências compartilháveis com o outro humano.

Em seu texto O sonho e a estética do self, Safra enfatiza: “o ser humano tem uma natureza tal que ele reverbera, ele surge a partir da presença de outros significativos. (...) É preciso um encontro com pessoas significativas, que possam reconhecer a singularidade desse outro ser” (1999, p. 79).

As questões transferenciais e contratranferenciais envolvidas são evidentes. O terapeuta como esse “outro significativo” precisa abrir-se para a alteridade de seu paciente, para aquilo que ele traz de inédito, acompanhá-lo em seu próprio registro existencial, em sua história. Freqüentemente somos tentados a reduzir tudo ao familiar, às nossas idéias pré-existentes, sejam teóricas ou práticas, no entanto o outro não se reduz a elas. A cada paciente, uma linguagem própria. Amoldarmo-nos ao seu tempo, ao seu espaço, à sua história, e consequentemente à sua cultura. Metaforicamente reproduzindo Russinha: “bem lentamente, quase como as plantas, o filho foi procurando, e o colo deixando ele procurar, outros rostos que não o da mãe”. Uma relação terapêutica que vai se transformando de acordo com as necessidades e possibilidades do paciente, tendo em mente que muitas vezes partimos da dependência absoluta em direção à possível independência, do objeto subjetivo ao estabelecimento do objeto objetivamente percebido. Muitas vezes somos instados a reproduzir esse percurso natural, e nesse sentido permitir que pontos de estagnação sejam ultrapassados.

Dois pacientes. O primeiro, um jovem de 16 anos que vem para as sessões de skate, com a aba do boné virada para trás, e trazendo a letra manuscrita de sua música preferida. Ele estabelece e desenha o campo onde vamos conviver nos próximos minutos e ainda me “presenteia” com um valioso instrumento, para que eu possa chegar aos pontos em que ele pressente suas necessidades.

A outra. Uma senhora de 73 anos, estrangeira, falando mal o português, e que habitualmente utiliza suas sessões para contar-me histórias de sua infância. “Ouço” o convite para habitarmos um outro tempo e lugar; utilizo-me de algum conhecimento de sua língua materna para darmos prosseguimento à sessão. A transformação em seu semblante é imediata, sorri. Ela encontrou uma companhia para visitar um tempo em que muita dor estava presente, e aí as elaborações são possíveis.

 

Considerações teóricas

As reflexões vão desdobrando-se e agora cabem algumas considerações teóricas, tomando como ilustração o texto literário e como base científica o pensamento de Winnicott a respeito de desenvolvimento emocional infantil.

É interessante notar uma certa precedência da obra de arte sobre as teorias científicas. Já é conhecida a importância dos romances de Machado de Assis para o estudo de traços psíquicos, que à sua época nem haviam sido ainda sistematizados por Freud. Na cultura russa os textos de Dostoiévski são base para estudo de pedagogia, filosofia e teologia. Os autores dos ícones russos precederam em muitos anos ao pensamento de Winnicott; no entanto, é possível captar neles toda a relação mãe/bebê que esse pensador viria a desenvolver como um conceito teórico fundamental. Cabe a nós fazermos essa religação, deixarmo-nos tocar por ela, e dela extrairmos o conhecimento das expressões humanas onde quer que estejam.

Quando falo que a mãe de Russinha inventou a palavra “comunhão” estou dizendo que ela havia entrado no “estado de devoção” que deveria acompanhar as maternagens com chances de bons resultados.

Todos os processos de uma criatura viva constituem um “vir-a-ser”, uma espécie de plano para a existência. A mãe que é capaz de se devotar, por um período, a essa tarefa natural, é capaz de proteger o “vir-a-ser” de seu nenê (Winnicott, 1984, p. 82).

A mãe velha que ficava longas horas ao lado da filha sugere o texto de Winnicott, A capacidade para estar só. O próprio autor nos diz:

Embora muitos tipos de experiência levem à formação da capacidade de ficar só, há um que é básico, e sem o qual a capacidade de ficar só não surge; essa experiência é a de ficar só, como lactente ou criança pequena, na presença da mãe. Assim, a base da capacidade de estar só é um paradoxo; é a possibilidade de estar só quando mais alguém está presente (1984, p. 32-33).

Nesse tipo especial de relação pressupõe-se a presença de uma mãe “confiantemente presente” e que, segundo meu ponto de vista, virá a ser o paradigma do sentimento de confiança, de segurança, que garantirá ao ser humano a possibilidade de buscar conhecer, de encontrar o que estava ali para ser encontrado (mais um dos paradoxos winnicottianos) &– enfim, recriar o mundo.

Essa mesma confiança é fundamental na clínica. Por meio desse sentimento o paciente vai apoderando-se de experiências que não fizeram parte de seu repertório, mas que poderão ser assimiladas a partir da relação terapêutica. Ancorado na confiança, pode também apoderar-se de sua história, inclusive de suas dores. Ele passa a “ter” uma dor e não “ser” uma dor.

Nossa menina teve essa mãe, e por isso ela pode estranhar e buscar as essências das quais o mundo e o homem são feitos. Em nossa história falamos de uma jovem redescobrindo os quatro elementos &– o ar, o fogo, a água e a terra &–, sentindo-se parte desses elementos, preparando-se para gerar. No caso ela gera um filho, como poderia ter gerado o próprio mundo. Estou referindo-me ao gesto criativo do homem, que segundo o pensamento de Winnicott, caso as condições sejam adequadas, poderá criar aquilo que estava ali para ser encontrado. Ao nascer o bebê encontra um mundo que o precede, mas apoderar-se desse mundo e estabelecer com ele uma relação criativa depende de fatores específicos.

A criatividade que estamos estudando relaciona-se com a abordagem do indivíduo à realidade externa. Supondo-se uma capacidade cerebral razoável, inteligência suficiente para capacitar o indivíduo a tornar-se uma pessoa ativa e a tomar parte na vida da comunidade, tudo o que acontece é criativo, exceto na medida em que o indivíduo é doente, ou foi prejudicado por fatores ambientais que sufocaram seus processos criativos (Winnicott, 1975, p. 98).

Os parágrafos que se seguem falam de Russinha sendo mãe. Em O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê (1993, p. 26), Winnicott fala das funções maternas fundamentais: holding, manuseio, apresentação de objeto. Ao exercer essas funções, a mãe não está simplesmente cuidando da sobrevivência física de seu filho. Envolvida nessas tarefas com sua própria corporeidade, ela está dando início ao psíquico; o registro e as elaborações conseqüentes desse contato dão início a um novo ser. Em um primeiro momento, amor é colo quente.

Assim, o holding está relacionado ao cuidado necessário à integração no sentido de unidade; o manuseio é o que possibilita o alojamento da psique no corpo e o início do processo de personalização, e a apresentação de objeto está relacionada ao início do sentido de real.

Russinha e seu filho dramatizaram essa teoria. Os ícones que ilustram o trabalho mostram mãe e filho em três posturas sutilmente diferentes. No primeiro, mãe e bebê estão enlaçados, é o colo-ninho. No segundo, o menino já se volta para fora e a mão dela o apóia, parece que ele pressente seu destino e ainda não está pronto. No último o colo sustenta o peso da responsabilidade do filho. Essa é uma história universalmente conhecida, e por meio dela ilustrei um processo também universal. O colo mutante é o responsável inicialmente pela saudável organização do mundo interno, pela solução pacífica dos conflitos entre pulsões e sanções, pela possibilidade de aquisição de relações completas com o mundo externo, e futuramente pela possibilidade de que o ser humano realize sua tarefa no mundo.

O enlaçamento entre mãe e bebê que podemos observar nos ícones, e as metamorfoses que vão sofrendo ao longo do tempo, são ao mesmo tempo metáforas do processo de constituição do humano e de um processo terapêutico. O que foi corpo será mente. O experimentado no corpo, nos momentos iniciais, decisivos, deixarão marcas psíquicas.

Em nossa atividade “terapêutica”, reiteradamente nos envolvemos com pacientes; atravessamos uma fase em que ficamos vulneráveis (como a mãe) por causa de nosso envolvimento; identificamo-nos com a criança, que por algum tempo permanece dependente de nós a um grau extremo; assistimos à queda do falso self ou dos falsos selves da crança; assistimos ao novo nascimento de um self verdadeiro, dotado de um ego que é forte porque nós, assim como a mãe a seu filho, fomos capazes de dar-lhe apoio (Winnicott, 1993, p. 28).

O drama humano, eternamente reencenado, tem um início indiscriminado (mãe e bebê fundidos); como segundo ato, uma desejada discriminação entre mãe e filho (eu/outro), viabilizada pela saudável posição materna, que gradativamente deve ir retornando ao seu lugar de pano de fundo; o terceiro ato deveria ser o gran finale, com um novo ser representando com maestria seu papel no mundo. A clínica mostra-nos que muitas vezes o indiscriminado confunde-se com um nó, que impede de se chegar a ser “nós”. Penso que nosso papel como terapeutas não se resume a de meros espectadores desse drama, mas de interlocutores que, após se retirarem do teatro, deixem o ator principal com a certeza de que tinham algo a dizer para alguém e que portanto ele existe.

Penso que o sentido último dessas reflexões representam a religação do homem com o simples, com o natural, com as essências, e a partir disso a possibilidade de um caráter especial de trabalho clínico. Que ao ouvirmos as histórias de nossos pacientes, mesmo que escritas à moda surrealista, não perdêssemos de vista todos os registros que as compõem. Que pudéssemos encontrar o sentido último de seus discursos, e a partir da descoberta de seu idioma pessoal estabelecermos a relação terapêutica como um encontro entre humanos.

 

Referências Bibliográficas

SAFRA, G. O sonho e a estética do self. Psychê. 3(4): 73-82, 1999.         [ Links ]

WINNICOTT, D.W. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

________. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.         [ Links ]

________. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo : Martins Fontes, 1993.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Valéria Pelosi Hossepian Salles Lima
Rua da União, 421 &– Vila Mariana
04107-011 São Paulo/SP
Tel.: (11) 5573-2590
E-mail: iovaleria@ig.com.br

Recebido em 27/08/03
Versão revisada recebida em 17/02/04
Aprovado em 26/02/04

 

 

1 Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade São Marcos; Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.