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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.15 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

A reinvenção do coditiano e a clínica possível nos “serviços residenciais terapêuticos”

 

Reinventing daily life: a possible clinical approach to the “therapeutically residential service”

 

 

Cristina M. Marcos1

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A assistência aos portadores de transtorno mental internados há longos anos em hospitais psiquiátricos é uma questão essencial a todo projeto de desconstrução manicomial. A reabilitação nos “Serviços Residenciais Terapêuticos” inclui necessariamente a reinvenção do cotidiano, cuja regulação transforma-se em um recurso terapêutico, podendo funcionar como possibilitador de manobras visando a uma suplência da ordem simbólica e como espaço de construção e presentificação de um Outro menos invasivo. O louco pode ser objeto de políticas públicas e ainda ser condenado à zona branca do silêncio; a adesão a um projeto de vida imposto não garante a inclusão. A psicanálise dá acesso a uma dimensão clínica que está presente no cotidiano, em um olhar e uma escuta atentos ao sujeito.

Palavras-chave: Portadores de transtorno mental, Reabilitação psicossocial, Serviços residenciais terapêuticos, Cotidiano, Clínica.


ABSTRACT

The assistance to the psychiatric patients coming from a long period in psychiatric hospitals is a central issue to any therapeutically residential service. Our proposal is that the reinvention of daily life may be an important tool in recovering, allowing the substitution of the symbolic order and making room for the construction of a less invasive Other. The mentally ill may be the object of public policy and still be condemned to silence and that being submitted to an imposed project of life does not mean yet an inclusion. Psychoanalysis gives us access to a clinical dimension that is present in daily life, and to an attentive openness to the subject.

Keywords: Mentally ill, Psychosocial rehabilitation, Psychoanalysis, Daily life, Clinic.


 

 

A casa é a casa de familia, é para colocar as crianças e os homens, para os reter em um lugar feito para eles, para conter sua perdição, os distrair desse humor da aventura, da fuga que é o deles desde o começo das idades (Duras, 1987, p. 48).

 

 

A construção de novos modelos de assistência ao portador de transtorno mental, paralelamente à desconstrução e à desinstitucionalização das práticas hospitalares iniciadas com a reforma psiquiátrica, foi alvo de discussão, reflexão e investigação ao longo desses anos, resultando em várias experiências em que se priorizava o tratamento em sistema aberto ou extra-hospitalar. Os NAPS, CAPS, Centros de Convivências, CERSAMs e Hospitais-Dia testemunham esse processo.

Com a gradual substituição do modelo de tratamento asilar pelo modelo extra-hospitalar surge uma questão inevitável a todo projeto de desconstrução manicomial: a assistência aos pacientes crônicos internados há longos anos em hospitais psiquiátricos. São pacientes que “padecem de uma doença que se prolonga no tempo e que afeta sua qualidade de vida, limitando suas capacidades e tornando-o dependente de atendimento sanitário e social, embora possa revelar-se complexo definir concretamente a duração e o grau de incapacidade, ou tipo de recursos assistenciais necessários” (Desviat, 1999, p. 89). Sabe-se que o hospital psiquiátrico produz cronicidade e não à toa que a doença mental transformou-se em um paradigma da cronicidade e das for-mas marginalizadas de atendimento. Junto à idéia de periculosidade do louco, a deficiência, a deterioração e a incapacitação progressiva constituem o imaginário social acerca da loucura.

Temos então hoje, e após a reforma psiquiátrica, um contingente de pacientes portadores de distúrbios mentais variados que permanecem em hospitais psiquiátricos por longos períodos, fora do quadro agudo. Tais pacientes teriam condições de se beneficiarem de um tratamento extra-hospitalar; entretanto, constata-se um uso do hospital como moradia devido à falta de condições sociais, afetivas e/ou financeiras.

Em consonância com as conseqüências da Reforma, surgem Políticas Públicas de desospitalização psiquiátrica visando a atender os portadores de transtorno mental com longa história de internação em hospitais psiquiátricos públicos e/ou particulares conveniados ao SUS, e em condição de tratamento extra-hospitalar. Por meio de suporte financeiro (bolsa-desospitalização e serviços residenciais) e terapêutico (acolhimento na rede de saúde mental), busca-se a reinserção psicossocial desses pacientes, seja pelo retorno à família, do serviço residencial terapêutico ou da família de acolhimento.

Tais programas representam uma possibilidade de resgate da cidadania dos portadores de transtorno mental. Sua proposta ética fundamenta-se na construção de novas possibilidades para a clientela asilada, assumindo o compromisso de conciliar em um projeto de tratamento extra-hospitalar tanto o aspecto de “proteção” e “assistência” quanto o retorno à vida da cidade e ao convívio social. Isso exige uma ética da clínica que não pode ser meramente burocrática ou autoritária, mas ao contrário, que considere a psicose em sua singularidade. (Greco, 2000). Desviat (1999) fala de uma cidadania assistida para designar esse tipo de projeto de tratamento. Trata-se, de fato, da passagem gradual de uma tutela completa para uma tutela parcial ou uma autonomia assistida, o que significa não só a criação e garantia de uma rede de assitência, mas da longa preparação desses pacientes para a vida fora do asilo.

O trabalho de reabilitação psicossocial de tais pacientes faz-se no interior das famílias de origem ou de acolhimento, ou no âmbito dos “Serviços Residenciais Terapêuticos”. Estes são moradias destinadas aos portadores de transtorno mental, que por motivos diversos e naquele momento, não apresentam condições de moradia autônoma ou com familiares. Tais moradias têm como princípio serem casas de passagem, onde os moradores possam resgatar sua autonomia, sua história familiar, possibilitando um retorno ao convívio social e à vida na cidade. O tratamento desses pacientes é garantido pela rede de assistência à saúde mental do município nos Centros de Saúde, CERSAMs e Centros de Convivência.

Nesses projetos depara-se então com a criação de uma casa e de seu cotidiano. Digo “casa” porque “Serviço Residencial Terapêutico” é o nome que nós, técnicos, damos à moradia; não é certamente, ou não deve ser, o nome dado por seus moradores a esse novo lugar onde vivem. E digo “criação” porque trata-se da invenção, da construção de um espaço, pois são as pessoas que ali moram que farão daquele lugar delimitado, daquelas paredes, uma casa, lugar em que se vive, lugar em que se pode conter a errância dos homens. Para aqueles que ali chegam, depois de anos de clausura, a casa pode surgir como ponto de partida para o resgate de uma nova cidadania.

Uma das preocupações fundamentais e primeiras é a de preservar o espaço da casa como casa, e não transformá-la em espaço de tratamento, clínica, ou ainda, de não reproduzir uma lógica da exclusão, da contenção e do enclausuramento à qual está atado o hospital psiquiátrico.

A desospitalização implica em riscos de uma fragmentação psicológica, seja pelas dificuldades dos portadores de transtorno mental egressos de hospitais de longa permanência em viver fora do asilo, seja pela própria expectativa das pessoas envolvidas no processo de desospitalização idealizando a reinserção social desses pacientes e se pautando no mito da autonomia. É preciso conduzir-se na clínica possível, em detrimento da clínica Ideal. O Ideal funcionaria como significante-mestre, excluindo o sujeito e sua singularidade, e levando a uma prática autoritária. O que orienta a condução do tratamento e a reabilitação do paciente são suas produções sintomáticas e seus arranjos subjetivos, ou seja, o discurso do sujeito e não o discurso do ideal da autonomia.

Há, é claro, o receio de se reproduzir a lógica manicomial por meio de uma mentalidade protetora. Saraceno (1999) chama a atenção para o fato de que os manicômios e sua lógica não estão na arquitetura dos espaços, nos lugares abertos ou fechados, mas nas cabeças dos sujeitos envolvidos, referindo-se tanto aos usuários quanto aos profissionais. A desospitalização deve implicar um processo de desconstrução dessa lógica manicomial e de reconstrução gradual do direito ao uso da palavra, do próprio corpo, dos objetos pessoais; direito ao uso do espaço doméstico e da casa, de ir e vir, de se relacionar com as pessoas fora dos muros dos hospitais.

Há que se dizer também da reinvenção de um cotidiano. Nesse sentido, o cotidiano da casa passa a ser um aliado na condução do tratamento dos pacientes. O “Serviço Residencial Terapêutico” não visa simplesmente solucionar um problema de moradia, mas antes a criação de um espaço de reconstrução de laços sociais e afetivos para aqueles cujas vidas encontravam-se confinadas ao mundo asilar. A desospitalização é um processo de abertura de espaços de negociação para o paciente, para a família e para a comunidade. Trata-se de colocar ênfase na função do espaço relacional, e é no cotidiano que se busca um aumento das capacidades contratuais dos pacientes. Um caminho da reabilitação é aumentar essas capacidades contratuais, os vínculos afetivos e sociais dos sujeitos, seus espaços de circulação, e seus poderes de decisão sobre o cotidiano e sobre o uso dos espaços em que vivem.

Diversas são as definições do cotidiano ou da vida cotidiana. Associado ao espaço privado, ao feminino, à banalidade, ao insignificante, ou ao que é desprovido de significação simbólica, ao que é feito automática e maquinalmente, o cotidiano e suas definições são, para os sociólogos, resultado de um exercício ideológico de dominação (Lalive D’Epinay, 1983). Entretanto, situações-limite, como é o caso dos portadores de transtorno mental com longa história de internação, transformam essa práticas e gestos banalizados em problemas.

Vale ressaltar que o cotidiano pode ainda ser entendido como espaço de resistência do que é singular e próprio, contra o que é massificação e conformação. Se a razão técnica acredita saber atribuir a pessoas e coisas um lugar e um papel determinados, o cotidiano é o lugar em que o sujeito escapa silenciosamente a essa imposição. Esta é a tese de Certeau (1994), resultado de longa pesquisa que deu origem ao clássico livro A invenção do cotidiano. Para o autor, é na invenção do cotidiano que o sujeito se reapropria dos espaços e dos objetos a seu modo. O cotidiano, assim entendido, é lugar do próprio e da diferença no seio da sociedade massificadora.

Considero que a reabilitação psicossocial passa necessariamente pela reinvenção do cotidiano, e que este só pode ser definido por uma dialética entre a rotina e o imprevisto. O cotidiano só existe como modo de existência se, e somente se, houver espaço para o imprevisto. O imprevisto é constitutivo da qualidade de vida, e não à toa que ele seja negado nas instituições totais, hospícios e prisões (Goffman, 1974). A recuperação do cotidiano deve, portanto, comportar a possibilidade do imprevisto. O cotidiano atual dos moradores dos “Serviços Residenciais Terapêuticos” é resultado de um trabalho de reorganização profunda da vida até seus gestos mais rotineiros e elementares.

As práticas rotineiras são um processo constante de apropriação do tempo e do espaço. Sendo assim, a regulação e o funcionamento do cotidiano transformam-se em um recurso terapêutico a mais na reabilitação psicossocial do paciente, na recuperação do uso do próprio corpo, do espaço e do tempo. O cotidiano pode então funcionar como suplência à ordem simbólica e como espaço de construção e presentificação de um Outro menos invasivo. Mesmo que se defenda o espaço da casa como espaço da moradia e não do tratamento, a dimensão da clínica está presente no coditiano, em um olhar e uma escuta atentos ao sujeito.

Uma casa não se faz com paredes, mas com pessoas que ali vivem, que fazem daquele lugar um lugar próprio. Ora, a pergunta é: como se faz uma casa? Como ocupá-la, habitá-la? Como transformar o espaço estranho em espaço próprio? Como fazer do que é primeiro espaço vazio, moradia? Como mostrar para homens e mulheres encarcerados por quase toda uma vida que a delimitação das paredes não significa apenas enclausuramento, mas pode ganhar novo significado e ser lugar próprio, privado, doméstico, feito para si, lugar onde se pode guardar objetos, alimento, lembranças e segredos?

Quando os pacientes saem dos hospitais psiquiátricos, depois de anos de clausura e internação, temos diante de nós o que Goffman (1974) chamou de “mortificação do eu”, referindo-se à modificação da concepção que o paciente tinha de si ao longo da internação e à perda das referências que tinha de seu mundo doméstico. Ocorre uma perda dos papéis sociais, perda da aprendizagem do convívio social e da vida cotidiana fora do asilo.

A saída do hospital e a chegada na casa não garantem a real passagem do modo de vida asilar ao modo de vida doméstico e da cidade. Os moradores podem reproduzir o cotidiano do hospital na casa, fechando-se em seus quartos, deambulando no quintal, recusando-se a participar dos afazeres domésticos e esperando a tutela e o cuidado hospitalares, entre outras atitudes. Podem não saber cuidar do próprio corpo e dos objetos de uso pessoal (muitos simples-mente não os têm), não saber sentar-se à mesa e comer de garfo e faca, não saber servir sua própria comida. Existe ainda a dificuldade de adaptação ao espaço privado e à idéia de que se tem direito a ele. O medo da cidade também pode estar presente, uma cidade que se modificou ao longo dos anos de internação, cujos referenciais não existem mais. Embora a casa não deva ser espaço de clausura, eles podem simplesmente, em um primeiro momento, não querer sair. Trata-se antes de mais nada de fazer daquele espaço lugar de abrigo, sem transformá-lo em prisão.

Poderíamos tentar uma descrição da casa. Como descrevê-la? São dez moradores, três ou quatro quartos, em cada quarto camas e um armário. Dois banheiros, pia, vaso, ducha, lugar em que o corpo é cuidado. Uma cozinha, fogão, geladeira, lugar em que se prepara o alimento. Uma sala, espaço do convívio, da conversa, do café. Uma copa, a mesa, a refeição. Um pátio ou um quintal ou uma varanda, lugar da hora desatenta.

Tornar a casa um lugar habitável. Mesas, camas, cadeiras, panelas, garfos e facas, sofa, televisão, quadros, flores e um paninho de mesa – tudo o que uma casa precisa conter. O espaço vazio começa então a ser ocupado, habitado por esses objetos, que mudos vão construindo a casa. Uma casa também se faz de detalhes.

A casa fica em uma rua, que fica em um bairro, que fica em uma cidade. Seus futuros moradores serão moradores da rua, do bairro, da cidade e habitarão esses lugares, errarão por por esses espaços, tendo um lugar feito para eles, abrigo que é um ponto de partida e um ponto de chegada. A reinserção psicossocial passa por essa ocupação/apropriação da casa e da cidade. Não mais confinados ao hospital, essas pessoas precisarão reconquistar a casa, espaço doméstico, mas também a rua, espaço público, citadino.

Nessa ocupação, também é preciso haver lugar para o imprevisto, a invenção. Marguerite Duras chama atenção para o incidente e o imprevisível como o que revela o uso e a ocupação da casa. Ela escreve: “há também as casas bem feitas demais, que são bem pensadas demais, sem incidente al-gum, pensadas anteriormente pelos especialistas. Por incidente, entendo a imprevisibilidade que revela o uso da casa” (Duras, M., 1987, p. 86).

Que a cozinha, pensada como lugar em que se prepara a comida, possa também transformar-se em lugar de encontro, onde todos se comprimem no seu exíguo espaço e se compartilha a boa conversa e a boa comida. Cômodos rigidamente definidos por sua funcionalidade lembram-nos instituições, cárceres e hospitais. Ora, esses lugares são definidos a partir de uma funcionalidade e regidos por uma lei que busca banir o imprevisto e o acidente a fim de manter a ordem. Não seria a casa o avesso disso? Mesmo se ela também é, em um certo sentido, manuntenção da ordem, contenção da errância dos homens, a casa, para ser casa, precisa deixar caminho aberto à irrupção da desordem, da surpresa e do imprevisto.

Saraceno (1999) afirma que a reabilitação psicossocial é estreitamente relacionada à idéia de casa ou do morar, e faz uma reflexão sobre a diferença entre o estar e o morar que me parece de grande relevância para pensarmos a casa e a apropriação do espaço doméstico em oposição ao asilo. Segundo ele, um dos elementos fundamentais da qualidade de vida de um indivíduo e de sua capacidade contratual é representado pelo quanto o “estar” em determinado lugar transforma-se em “habitar” esse lugar. Embora quase sempre confundidos e sobrepostos, esses dois termos “estar” e “habitar” são separados por uma grande diferença. O primeiro designaria pouca ou nenhuma relação de propriedade do lugar, do espaço no qual se vive, por parte do indivíduo; o segundo designaria, por sua vez, um grau de propriedade maior do espaço no qual se vive e uma participação maior na organização material e simbólica desse espaço.

Ainda segundo Saraceno, o manicômio é, por excelência, lugar onde é negado o habitar e afirmado o estar, mesmo que ele seja para alguns, os pacientes crônicos, moradia. Ora, quando o hospital é moradia ele abole não só a relação de propriedade como todo o cotidiano que faria daquele espaço um espaço doméstico. Todos os aspectos da vida desenvolvem-se no mesmo lugar, em contato com um grande número de pessoas, e são regulados por regras explícitas e formais; não há possibilidade de existência do próprio, do particular, do singular. O imprevisto e o incidente são banidos ou abafados.

Quando um paciente sai do hospital e vai para a casa, ele não habita necessariamente a casa, ele pode ter passado do estado de não ter uma casa ao estado de ter uma casa concreta. Entretanto, habitar a casa depende de uma série de habilidades que precisarão ser desenvolvidas, indo desde a recuperação e legitimação do cotidiano – dormir, comer, caminhar, falar – até a apropriação e ocupação da casa como espaço próprio. Habitar a casa é desmontar um modo de vida asilar, em um trabalho de subjetivação dos espaços, de reaquisição do direito ao uso dos espaços e do seu melhoramento. É o processo de transformação do espaço da casa em espaço em que se habita, em que se vive, do “Serviço Residencial Terapêutico” em habitat, casa, que dá sentido à reabilitação. Para Saraceno, um dos eixos fundamentais da reabilitação não seria então a casa, mas o habitar. Seguindo suas reflexões, talvez pudéssemos pensar que o que faz de um espaço delimitado na cidade uma casa seja habitar esse espaço, apropriando-se dele. De que maneira seria isso uma possibilidade real para essa clientela asilar?

O “Serviço Residencial Terapêutico” não poderia deixar de carregar em si uma certa ambigüidade. Outros significantes são chamados a nomear essa casa singular, “Lar abrigado”, “assistido”, “protegido”, e todos eles trazem essa tensão entre a casa como espaço de liberdade e de proteção. Parece-me que de um certo modo, a passagem do “estar” na casa para o ”habitar” a casa se dê exatamente nessa tensão entre o abrigo e a liberdade, a proteção e o imprevisto. Não podemos nos furtar a isso, na medida em que se trata, nos “Serviços Residenciais Terapêuticos”, de uma casa um tanto particular, uma casa que busca incluir em sua dinâmica o cuidado e a liberdade, a ordem e a desordem, a assistência e a autonomia.

Não se trata de negar a especificidade que um “Serviço Residencial Terapêutico” possui, nem a singularidade de seus moradores. Entretanto, é preciso que haja possibilidade de incidentes e imprevistos, para que aquele lugar seja nomeado casa e não clínica ou asilo ou hospital onde a imprevisibilidade é banida ou minimizada pelos técnicos por meio da contenção, e pela instituição por meio de uma burocracia autoritária e de regras coercitivas.

Nesse sentido, há que se falar de uma reinvenção do cotididiano. A passagem do “estar” ao “habitar” ou “morar” envolve, como foi dito, a apropriação de um espaço doméstico e íntimo. Ora, a possibilidade de tal movimento passa pela reconstrução de um coditiano que inclua o imprevisto, em oposição ao ritmo de vida estanque das instituições hospitalares. É no imprevisto e no incidente que pode haver lugar para o sujeito.

Uma instância de regulação da vida da casa são as reuniões semanais, quando se discutem e se decidem as regras de convivência e o funcionamento do dia-a-dia, com a participação dos moradores, do corpo técnico envolvido e dos funcionários da moradia. Temos talvez aí a demonstração do modo como o cotidiano e sua regulação podem funcionar como recursos terapêuticos na condução do tratamento e na reabilitação psicossocial dos portadores de transtorno mental. Para esses sujeitos cuja relação com a ordem simbólica é marcada por uma forclusão essencial, é legítimo nos interrogarmos sobre os efeitos possíveis de uma tal proposta: a coletivização das regras e limites.

Se na neurose o Nome do Pai inscreve-se no Outro inaugurando a entrada do sujeito na ordem simbólica, na psicose a forclusão desse significante fundamental corresponde a uma abolição da lei simbólica. A inclusão do significante da castração no Outro amortece-o, de uma certa forma. Ora, para o psicótico o Outro não é barrado pelo significante da castração; ele é portanto consistente, absoluto, não havendo ali inscrição da lei. O sujeito encontra-se então, na psicose, submetido a um Outro absoluto, ele é objeto do gozo do Outro, objeto de uso do Outro. Deliberar sobre o próprio coditiano, com mediação dos técnicos envolvidos, pode ter uma função de manter esse Outro terrível um pouco mais afastado, em uma tentativa de “tratamento do Outro”. Contrapõem-se ao Outro onipotente, senhor de todas as decisões, regulador da vida e da morte, manobras que busquem instaurar o psicótico como sujeito e não como objeto do gozo do Outro, manobras que lembrem que esse Outro é, ele mesmo, sujeito a regras e limites.

A regulação do cotidiano pode funcionar como forma de presentificar um Outro menos invasivo. Como praticar essas manobras? Sobre os episódios de agressividade na casa, e a alegação reiterada do morador submetido a alucinações de que mexem com ele, falam dele e o provocam, a enunciação de uma regra que funcione tanto para os moradores quanto para os hospedadores e outros profissionais – como: “não se admitem agressões físicas no interior de uma casa” – pode promover o surgimento de um Outro menos absoluto. Ou ainda, em relação a uma moradora que saía nua pela casa após o banho, e dizia que os moradores queriam vê-la, a ponderação de que no espaço coletivo da casa as pessoas não podem exigir das outras que elas andem sem roupa.

As intervenções têm o objetivo de possibilitar a vida em comum. Não visam meramente à manutenção da ordem, pois são pautadas em uma lógica clínica e levam em consideração os modos de sustentação do sujeito. A psicose ensina as várias soluções possíveis que podem fazer suplência à ordem simbólica. Dizer não ao gozo do Outro não é abolir as regras ou encarnar a lei ou a função paterna, mas estar atento ao que a psicose nos ensina sobre como fazer suplência a esse significante para regular o gozo (Cf. Zenoni, 1998).

O regulamento da vida em comum, se pautado em uma ética clínica, e se atento ao sujeito, não funciona com um objetivo meramente disciplinar, mas busca referir o sujeito a uma regra que regula também o Outro, em vez de exprimir sua vontade (Zenoni, 1998). Para que se caminhe em direção a uma regra, que não seja a do capricho ou da vontade do Outro, busca-se a enunciação de uma regra à qual o Outro esteja submetido. Trata-se de um esvaziamento de seu poder.

O cotidiano, os laços aí estabelecidos e sua regulação, pode funcionar como uma mediação ao Real ameaçador. O imprevisto e a flexibilidade, em oposição às regras estanques que regulavam o cotidiano asilar, podem contribuir para a criação de um espaço para o surgimento do sujeito. Parece-nos que se a reabilitação psicossocial inclui o “habitar”, como diz Saraceno, ela se dá no limite tênue entre a proteção e a liberdade, o cuidado e a autonomia, a ordem e o imprevisível; ela inclui a reinvenção do cotidiano.

Cabe dizer que o cotidiano dos serviços residenciais é um recurso terapêutico a mais no tratamento do portador de transtorno mental. A reabilitação passa pela recuperação de um espaço doméstico e íntimo, e pela reinvenção de um cotidiano não mais regulado por regras rígidas e arbitrárias. Apesar da ênfase dada ao modelo de casa para esses serviços, e do esforço em se construir e preservar uma moradia para esses pacientes diferente do hospital-dia, do CERSAM ou do asilo, a dimensão clínica está presente. Na regulação e funcionamento da casa, no olhar do técnico, na condução do dia-a-dia, é necessário haver lugar para o sujeito e o modo singular pelo qual ele se sustenta. A reabilitação implica uma clínica que leve em consideração o sujeito e seu arranjo subjetivo, uma clínica que não seja, portanto, definida a priori pelas políticas de saúde, mas construída no cotidiano da ação.

Após vinte anos da reforma psiquiátrica, trata-se da passagem da garantia dos direitos do portador de transtorno mental à cidade, ao convívio social e à vida, para a garantia de direitos singulares, direito ao tratamento em sistema aberto, à moradia e à assistência, sem que isso signifique tutela excessiva, privação de autonomia para o sujeito, ou controle social. Na verdade, a negação de tais direitos corresponde à negação da loucura. Ora, é a dimensão clínica que impede a negação da loucura.

Como nos diz Viganó (1997), “a abertura dos manicômios não exclui a segregação”. Pode-se criar lugares onde o louco é objeto de políticas de saúde e assistência, e continua sendo segregado, excluído dos discursos. Não estar atento às soluções que a psicose nos ensina, não discutir com o louco, não falar com ele, não torná-lo parte ativa da reabilitação é uma forma de excluí-lo. A adesão a um programa de vida, imposto sem expressão subjetiva, ainda é uma forma de segregação.

A reabilitação passa, como foi dito, pela questão da casa ou do morar. Ora, a inclusão do louco na cidade não se dá somente pela implantação de políticas que busquem a garantia de seus direitos. Esse discurso do Ideal, da autonomia, pode ser ouvido como o discurso do mestre, tal como Lacan define. Nele, o sujeito está excluído. Sua exigência é de que tudo funcione, mas aí não há lugar para a singularidade subjetiva.

Referência constante nas reflexões sobre clínica e reabilitação, o artigo de Carlos Viganó – A construção do caso clínico em saúde mental – ajuda-nos a pensar o que significaria uma prática que levasse em conta o sujeito e seus sintomas, entendidos como seu modo de sustentação. À pergunta dos técnicos: “o que faremos por ele?” opõe-se um outro modo de interrogação e implicação do sujeito: “o que ele fará para sair daqui?”.

Poderíamos pensar assim o caso de M., cuja história de expoliação e violência começa em sua terra natal, com a retirada da guarda de seus filhos e apropriação de seus bens por parte da Justiça. Não se sabe ao certo como isso aconteceu, mas reiteradas consultas ao serviço social de sua cidade de origem fazem pensar que há ali elementos de verdade. Entretanto, interrogada sobre detalhes como localização dos imóveis ou nome de familiares, ela não sabe como responder.

M. diz com frequência que está guardando dinheiro para voltar à sua cidade e recuparar seus bens, filhos e imóveis. De fato, ela sai um dia e é encontrada na rodoviária. De volta à casa, ela insiste em seu desejo de reaver seus pertences e voltar à sua cidade, e alega que ali ninguém quer que ela volte, que está ali contra sua vontade, e que tão logo seja possível voltará para sua terra.

Em conversa com M., decide-se então que ela escreverá no livro de anotações da casa toda informação que tiver sobre seus imóveis e sua família. Novos contatos serão feitos com o serviço social e com órgãos de defesa dos direitos humanos. Com essa atitude, escuta-se M. e se permite a passagem do “eu quero voltar para minha cidade” a “que cidade é essa?” – “um significante?”, “um lugar?” – “que traços lá deixei?”; e daí para “qual a possibilidade real de sair daquele lugar e retornar para sua cidade?”. M. passou a ter grande zelo na arrumação da casa e participa com empenho das atividades domésticas, convencida de que para voltar a sua cidade e morar sozinha será preciso ser autônoma, independente, continuar seu tratamento e trabalhar. Há então uma mudança do sujeito em relação ao seu discurso. Se antes ela situava-se como objeto de gozo do Outro, submetendo-se mais uma vez a sua vontade, agora ela pergunta-se sobre o que é preciso fazer para poder sair dali.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Cristina Moreira Marcos
Rua Paschoal Carlos Magno, 68 – Ouro Preto
31310-510 Belo Horizonte/MG
Tel.: (31) 3498-4182
E-mail: cristinamarcos@terra.com.br

Recebido em 31/05/04
Aprovado em 06/08/04

 

 

1 Psicanalista; Mestre em Literatura Brasileira (FALE/UFMG); D.E.A em Psicanálise (Universidade de Paris VIII); Doutoranda em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Universidade de Paris VII); Professora da PUC-MG.