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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.15 São Paulo dez. 2004

 

RESENHAS

 

Uma metapsicologia do irrepresentável

 

 

Érico Bruno Viana Campos1; Adriana Barbosa Pereira2

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 

BOTELLA, C.; BOTELLA, S. Irrepresentável : mais além da representação. Porto Alegre: Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul/ Criação Humana, 2002. 243p. ISB N 85-880-2205-2.

Qual a psicanálise para o século XXI? É com essa pergunta que o casal César e Sara Botella introduz sua contribuição à teoria analítica. Essa contribuição está aliada ao compromisso de tentar responder às inquietações provocadas pelo que tem sido chamado de psicopatologia contemporânea, assim como ao de responder metapsicologicamente e criticamente ao paradigma representacional na psicanálise.

O livro, uma coletânea de artigos, é a primeira obra do casal editada no Brasil, e traz um panorama da produção teórica dos autores, que se enquadram na linha de psicanalistas de língua francesa que defendem a valorização da dimensão pré-representacional na constituição do psiquismo, como: Piera Aulagnier, Pierre Fedida, André Green, entre outros.

O livro desses pensadores refinados é coeso em sua contribuição teórica, assentada tanto em uma concepção particular de técnica analítica quanto em derivações metapsicológicas que procuram manter-se na esteira do pensamento freudiano. Os capítulos complementam-se e giram em torno de um mesmo conjunto de hipóteses teórico-clínicas. Os conceitos são apresentados de forma condensada, mas a repetição dos temas e seus desdobramentos acabam por favorecer a elaboração por parte do leitor persistente. As vinhetas clínicas, por sua vez, dão uma boa ilustração das posições defendidas pelos autores, apesar do leitor não deixar de se surpreender com a disponibilidade para a regressão exigida por parte do analista. Dentre os conceitos e hipóteses enunciadas pelos autores destacam-se: a figurabilidade, o trabalho em duplo, o alucinatório, o fundamento traumático do psiquismo, a simetria representação-percepção e o princípio de coerência-convergência.

A proposta técnica é a de um trabalho em duplo na sessão (p. 62-68). Essa idéia – remetida a teses freudianas sobre o animismo, auto-erotismo e narcisismo – consiste, do ponto de vista de uma teoria da técnica, na representação de conteúdos traumáticos através da relação transferencial-contratransferencial. Essa hipótese supõe que aquilo que se repete compulsivamente como traço perceptivo pode ser elaborado em representação psíquica, de modo a ultrapassar os limites da atualização na transferência e colocar em jogo também uma atitude regressiva do analista, que pode metabolizar o traumático, configurando-o em representação. Este é um terreno amplamente explorado por uma certa linhagem da psicanálise inglesa, que valoriza a contratransferência do analista como possibilidade de configuração de sentido. No entanto, mais do que a disponibilidade para nomear as angústias do analisando, o que se afirma é a possibilidade de uma regressão aos modos de representação originários que possibilite a ligação do irrepresentável. Nesse sentido, o modelo do trabalho onírico é interpretado como uma atividade de elaboração psíquica por meio da figurabilidade (Darstelbarkeit), em vez de uma realização de desejos.

A regressão à figurabilidade é entendida essencialmente em seu aspecto formal. É o retorno a um modo originário de representação, ao modo originário de funcionamento psíquico, definido pelos autores como o alucinatório. É a regressão ao alucinatório que está em jogo na regressão formal do trabalho em duplo. Nesses casos, mais do que uma representação afetiva, o que se observa é a configuração de uma percepção. Explica-se isso pelo transbordamento das barreiras normais de contenção do ego, o que acaba por colocar o psiquismo de volta ao seu modo originário de funcionamento alucinatório. Assim, a alucinação é uma forma de figuração do afeto, que seria de outra forma transformado em ato. O afeto, nesse caso, é pura angústia automática pela perda da possibilidade de investimento do objeto, ou seja, é uma expressão em negativo. Os autores procuram mostrar a necessidade de se compreender a especificidade metapsicológica do perceptivo e do alucinatório como uma outra ordem na hierarquia de representações. Há uma preocupação em distinguir metapsicologicamente as diversas modalidades através das quais conteúdos mentais se expressam, como desdobramento da problemática metapsicológica freudiana.

O alucinatório assim entendido é mais do que a realização alucinatória de desejos – é seu fundamento. É uma modalidade normal de funcionamento psíquico que efetua a ligação do traumático em representação como uma repetição alucinatória de uma efração traumática, ligando-a a um traço perceptivo como primeira forma de representação. O traumático, por definição, é irrepresentável. É pura pulsão de morte e, portanto, desligamento. O trabalho do alucinatório é possibilitar a representação des-sa exigência pulsional que está para além da tópica. É, em termos freudianos, possibilitar a fusão das pulsões na formação da libido. Assim, há uma dimensão de não-representação como fundamento do aparelho psíquico, sendo a exigência de trabalho do traumático que mobiliza a constituição do representável. É nesse sentido que o alucinatório é tanto o que está para além da representação como o seu fundamento, possibilitando afirmar que “o alucinatório é parte constituinte do desejo inconsciente, assim como da não-representação” (p. 108).

A proposta teórica desses autores, amplamente apoiada nos conceitos da segunda tópica freudiana – angústia primordial, neurose traumática, pulsão de morte, compulsão à repetição e ligação &–, leva não só à valorização do alucinatório como processo constituinte do psiquismo, mas também a um resgate do perceptivo na metapsicologia. Os autores fazem um amplo recenseamento da evolução da noção de percepção em Freud, desde seu enraizamento em uma tradição empirista até a afirmação de um aparelho perceptivo próprio do Id, ressaltando a exigência da desvinculação entre percepção e consciência e, principalmente, da idéia de uma percepção como reprodução em espelho da realidade e protótipo da representação. O grande passo nesse sentido é a problematização do objeto fetiche e da alucinação negativa, que não só desvinculam de vez a percepção da noção tradicional de teste de realidade, como também colocam em cena a questão da “simetria percepção-representação” (p. 157).

O conceito de simetria entre percepção e representação é uma das contribuições mais originais do casal. Trata-se de pensar a constituição psíquica não apenas como função de uma pulsionalidade intrínseca, mas também como função de uma energia psíquica própria do pólo perceptivo. Assim haveria uma pulsionalidade própria da abertura perceptiva, que seria responsável pela quebra do ciclo compulsivo da pulsão de morte. Percepção e representação seriam complementares por uma negatividade em comum, sendo essa simetria que criaria o aparelho psíquico e a própria possibilidade de representação. A representação seria, então, fruto de uma dupla via psíquica, a progrediente rumo à representação e a regrediente rumo à alucinação. Nesta concepção o objeto não é inscrição da percepção no psiquismo ou mera alucinação fantasística, ele é simultaneamente uma criação interna e externa. É nesse sentido que os autores reinterpretam uma famosa passagem do texto A negativa (Freud, 1925) para afirmar que o objeto deve ser compreendido na dinâmica do “somente dentro – também fora” (p. 109). Essa idéia é vista como a verdadeira compreensão da prova de realidade que emerge do pensamento freudiano. Percebe-se a força do trabalho do negativo na criação da tópica, definido aqui de forma extremamente original na simetria percepção-representação: é pela perda do objeto perceptivo de satisfação que se cria a necessidade de representação e, simultaneamente, é na ausência do objeto de ação específica que se investe na representação. Assim, a origem não está nem na interioridade nem na exterioridade, são co-constituídas por um princípio lógico de coerência-convergência.

O princípio de coerência-convergência nada mais é que o trabalho de ligação do ego, fazendo o elo de articulação entre essas duas polaridades, reestabelecendo a coerência psíquica, ou seja, preservando os limites da tópica. É nesse sentido que os autores podem recolocar, a partir da sua apreciação original da simetria percepçãorepresentação, a lógica do funcionamento psíquico sob um princípio magno. Ele atuaria “permitindo a continuidade do todo e ao mesmo tempo a descontinuidade das for-mas autônomas das partes, não coincide contudo, apesar da proximidade, com a dualidade das tendências destruidoras de Tanatos e aquelas multiplicadoras de Eros, nem com as noções de energia livre do sistema Ics. e ligada do sistema Pcs; mas certamente todas são utilizadas pelo princípio” (p. 173). A citação ilustra as pretensões sistematizantes do trabalho dos autores. Trata-se de afirmar um verdadeiro princípio do funcionamento psíquico que não só transcenderia o princípio de prazer e da representação, mas que daria conta da gênese e da dinâmica entre a ligação e o desligamento, entre a representação e a não-representação. Assim, a idéia de um “somente dentro – também fora” encontra-se generalizada no princípio de coerência-convergência.

Esse princípio dá conta de uma lógica particular da teorização psicanalítica, e sua verdadeira originalidade está em dissolver interpretações simplistas sobre a dualidade em psicanálise. Quer seja para mostrar a relação entre a percepção e a representação, entre o traumático e o desejo ou entre as pulsões de vida e de morte, o que o livro revela é a ligação intrínseca e co-constitutiva dessa polaridade e a existência de uma lógica própria que não se resume a polaridades excludentes ou identidades autoconstituídas. Trata-se de um trabalho que se dirige progressivamente para a concepção de uma certa lógica da suplementaridade em psicanálise.

Mesmo sendo em alguns momentos uma leitura desafiadora, a apreciação do trabalho do casal Botella rende muitos frutos para o leitor interessado nos desafios intrínsecos à teorização em psicanálise. Mostrase também um trabalho compromissado com os desenvolvimentos de dispositivos técnicos no âmbito das psicopatologias contemporâneas. É um bom exemplo, nesse começo de século, do bom e velho trabalho competente de teorização em psicanálise a partir de seus desdobramentos internos e novos campos de pesquisa. Mais que uma revolução, o que o livro nos apresenta é o testemunho de um rigoroso e original resgate da psicanálise e sua problemática, renovando-a.

 

Referência Bibliográfica

FREUD, S. (1925). A negativa. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. vol. XIX.

 

 

Endereço para correspondência
Érico Bruno Viana Campos
E-mail: ebcampos@usp.br

Adriana Barbosa Pereira
E-mail: dribp@terra.com.br

 

 

1 Psicólogo; Mestrando em Psicologia pelo IPUSP; Bolsista CNPq.
2 Psicóloga; Mestranda em Psicologia pelo IPUSP; Pesquisadora auxiliar de “ Indicadores de Risco do Desenvolvimento Infantil ” (Ministério da Saúde IP/ USP/FAPESP).