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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

EDITORIAL

 

 

O número 15 da revista Psychê abre com a reflexão de George Perec (1936-1982) sobre a vivência de sua análise, neste caso com J.-B. Pontalis, entre 1971 e 1975. Novamente, devemos a Ana Cecília Carvalho, integrante de nossa equipe editorial, a sugestão deste texto, sua tradução (junto com Fábio Belo) e alguns cuidados relativos à publicação. Trata-se de um escrito raro sobre a vivência do tempo, ritmo e espaço de uma análise, não de seus conteúdos ou das ações concretas de seus protagonistas. A psicanálise, afirma Perec, “não se parece em nada com aqueles anúncios de restauradores para cabelo: não existe nenhum ‘antes’ e ‘depois’”. Embora afirmasse que a experiência fosse apenas sua, compartilhamos sua constatação de que “a análise era em primeiro lugar isto: uma certa divisão nos dias – em dias com e dias sem –, e nos dias com, algo que se assemelhava a uma dobra, uma prega, um bolso: na estratificação das horas, um momento que era suspenso, era outro; um tipo de pausa ou intervalo na continuidade do dia. Havia algo de abstrato nesse tempo arbitrário, algo ao mesmo tempo tranqüilizador e assustador, um tempo imutável, atemporal, tempo imóvel em um espaço improvável”.

Esses adjetivos de ordem negativa sobre a experiência do tempo e do espaço da análise evocam-nos o tema do silêncio primordial, alteridade fundamental no ser sobre a qual se detém um livro com esse título, do ensaísta argentino Santiago Kovadloff (RJ: José Olympio, 2003). Essa tela de fundo, quase inominável, senão pelo avesso, pela negação, porém passível de experiência ou se colocando à mostra por uma espécie de alusão, tem sido elaborada na teoria psicanalítica em torno do negativo. Green, por exemplo, fala de uma tela não representável, mas que é condição de possibilidade de toda e qualquer representação e linguagem. Pensa-se, também, nessas coordenadas invisíveis de um pai filogenético ou o grande outro, que funda a possibilidade do desencadeamento da linguagem, da experiência psíquica. Kovadloff mostra em vários campos da cultura – na poesia, na cura da análise, na matemática, na pintura, na religião e no amor –, que o contato com esse plano, negativo, é condição da criação, é palco das várias cenas do mundo humano. Perec, com seu relato aparentemente simples permite-nos espiar e identificar esse estratagema, pré-texto a todos os textos da psicanálise. A cena que Perec descreve é antes um palco sobre o qual nascem e se movimentam todos os personagens das nossas teorias, assim como determina as bordas e o enquadre dos quais transbordam as manifestações clínicas com as quais nos defrontamos diariamente.

A metapsicologia, a psicopatologia, a técnica psicanalítica, assim como o papel da contemporaneidade – temas que compõem nossa revista, assim como outras dedicadas ao campo psicanalítico – articulam-se com esse pré-texto iluminado por Perec, condição de origem de todos esses textos. Seria interessante examinar como os desenhos particulares traçados pelos outros autores deste número articulam-se a essa tela de origem do ser. Assim, os temas abordados – como o pacto perverso dos pais revelado na clínica infantil, angústia e pensamento, a escuta e sua metapsicologia, o tempo e o ciclo vital, psicanálise e literatura, a consciência moral nas obras psicanalíticas, toxicomania e a saúde mental do psicanalista, entre outros estudos – reportam-se, e ao mesmo tempo refletem, o plano de origem sobre o qual desenrola-se o mundo psíquico e psicanalítico.

 

Daniel Delouya
Editor